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“a menina de lá” de guimarães rosa - Departamento de Letras e ...

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Gláuks v. 7 n. 2 (2007) 137-156<br />

“A MENINA DE LÁ” DE GUIMARÃES ROSA:<br />

AS MARGENS DO DITO E DO MITO<br />

Matosalém Vilarino ∗<br />

RESUMO: No conto “A Menina <strong>de</strong> Lá” o autor se apropria <strong>de</strong><br />

elementos das narrativas orais <strong>de</strong> cunho mitopoético. Toma-se<br />

aqui o operador crítico <strong>de</strong> “mitopoesia” como um exercício <strong>de</strong><br />

leitura da obra em sua dupla dimensão: a encenação da<br />

propagação <strong>de</strong> um mito <strong>de</strong> origem e sua passagem pelo crivo da<br />

criação literária. Interessa-nos igualmente refletir sobre a<br />

interação da linguagem do leitor em face da componente mítica<br />

do conto, bem como sobre a do narrador e das personagens<br />

secundárias em face do idioleto da protagonista, mediante a<br />

interlocução com conceitos tais como diglossia e<br />

transculturação.<br />

PALAVRAS-CHAVE: literatura e oralida<strong>de</strong>; mito e criação<br />

literária; transculturação; diglossia.<br />

“ J’ai vu le Dieu, il m’a vu; il m’a confié son mystère”<br />

Euripi<strong>de</strong>. Les Bacchantes.<br />

Para a Lilia e a Teca<br />

∗ Professor <strong>de</strong> Literatura Francesa do <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> da UFV. Mestre em<br />

Língua e Literaturas <strong>de</strong> Língua Francesa pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro.


138<br />

A<br />

Gláuks<br />

mém. Esta palavra bastaria, uma vez conhecidas as<br />

façanhas <strong>de</strong> Nhinhinha. Ou Evoé. O mito se<br />

explicaria por si mesmo, e qualquer hybris <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser<br />

cometida. O <strong>de</strong>us espera seu <strong>de</strong>vido reconhecimento. A ira<br />

dionisíaca não se aplacaria sobre aquele narrador distanciado e<br />

nem sobre o pai da santinha, que levaram algum tempo sem<br />

compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>vidamente a aura mítica que a envolvia,<br />

Nhinhinha,“vestidinha <strong>de</strong> amarelo”, em sua quase-veste báquica,<br />

por <strong>de</strong>ntro da qual Penteu, orgulhoso, que não reconhecera<br />

Dioniso, também não a reconheceria. 1<br />

Com efeito, toda a obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa está<br />

sedimentada em elementos das narrativas orais sertanejas,<br />

particularmente, na apropriação <strong>de</strong> suas variantes mitopoéticas.<br />

Esses elementos perpassam pelos contos <strong>de</strong> Primeiras Estórias<br />

em seu todo, embora seja no conto “A Menina <strong>de</strong> Lá” que o<br />

autor tenha criado, entre as personagens <strong>de</strong>lirantes <strong>de</strong> todo o<br />

livro (crianças e loucos), um ícone correspon<strong>de</strong>nte a um ente<br />

que, no sistema mitológico sertanejo, se consi<strong>de</strong>raria um santo.<br />

É inegável a intertextualida<strong>de</strong> estabelecida por esta narrativa não<br />

apenas com os relatos orais que se ouvem nas conversações com<br />

sertanejos, nos seus casos que reportam eventos maravilhosos<br />

envolvendo a vida <strong>de</strong> indivíduos bizarros, em torno dos quais<br />

paira a aragem do sagrado, 2 mas também com as narrativas<br />

medievais das vidas dos santos, que davam conta <strong>de</strong><br />

miraculosida<strong>de</strong>s e estigmas, análogos às marcas físicas que<br />

encontramos no corpo quasimo<strong>de</strong>sco da personagem.<br />

1 Embora pertencentes a sistemas mitológicos distintos, a tradição judaico-cristã - em<br />

sua variante <strong>de</strong> catolicismo popular - e a mitologia grega, os mitos <strong>de</strong> Nhinhinha e<br />

<strong>de</strong> Dioniso são equiparáveis em um aspecto: a hybris cometida por mortais, sua<br />

<strong>de</strong>smedida em não venerar, <strong>de</strong> pronto, a divinda<strong>de</strong>, e entregar-se à experiência<br />

ritualística, o que lhes ren<strong>de</strong> o escárnio dos <strong>de</strong>uses.<br />

2 Com esta expressão, Riobaldo, em Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas, expressa a sensação do<br />

contato com o divino, por ocasião do tão polêmico pacto que fizera com o Diabo.


“A Menina <strong>de</strong> Lá” <strong>de</strong> Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito 139<br />

Este trabalho, ao contrário do que possa ter dado a<br />

enten<strong>de</strong>r seu preâmbulo, não é uma leitura que se <strong>de</strong>dica a<br />

estudar os aspectos míticos da obra roseana. Trata-se, por outro<br />

lado, <strong>de</strong> tomar como operador crítico o termo “mitopoético”,<br />

que contempla as duas especificida<strong>de</strong>s da obra, a apropriação do<br />

imaginário mítico e sua passagem pelo crivo da criação literária.<br />

Apresentar-se-á aqui uma discussão articulada pelo conceito <strong>de</strong><br />

hibri<strong>de</strong>z cultural e pelo termo <strong>de</strong> diglossia. Fez-se necessário<br />

também recorrer a algumas teorizações sobre mito.<br />

Tal como se encontra cunhado nos dicionários <strong>de</strong><br />

lingüística, o significado <strong>de</strong> diglossia restringe suas<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abordagem no campo da cultura, razão pela<br />

qual tivemos <strong>de</strong>, forçosamente, submetê-lo a um processo<br />

arbitrário <strong>de</strong> expansão semântica. Partimos, no entanto, da noção<br />

primeira do termo, que constata a existência <strong>de</strong> dois códigos<br />

lingüísticos no seio <strong>de</strong> uma mesma socieda<strong>de</strong>, sendo um <strong>de</strong>les<br />

prepon<strong>de</strong>rante em termos <strong>de</strong> prestígio e legitimida<strong>de</strong>. A partir <strong>de</strong><br />

então, extrapolamos as fronteiras <strong>de</strong> língua a fim <strong>de</strong> lidarmos<br />

com categorias mais amplas – as do âmbito da linguagem -,<br />

correndo, fatalmente, o risco <strong>de</strong> emprestar ao termo o que ele<br />

possa conter <strong>de</strong> mais metafórico.<br />

Enfim, nossa análise tenta observar em três níveis o<br />

fenômeno da diglossia no conto “A Menina <strong>de</strong> Lá”. Interessanos<br />

refletir sobre a resultante da interação do horizonte <strong>de</strong><br />

expectativa <strong>de</strong> diferentes categorias <strong>de</strong> leitor com a linguagem<br />

do conto, bem como sobre a do narrador face à protagonista e a<br />

dos personagens secundários em face <strong>de</strong>sta. Quanto ao termo <strong>de</strong><br />

hibri<strong>de</strong>z cultural, o mesmo nos foi inspirado pela teoria<br />

culturalista <strong>de</strong> Angel Rama, em um texto que propõe uma leitura<br />

estética contun<strong>de</strong>nte do transculturalismo característico das<br />

literaturas latino-americanas presentes em autores mo<strong>de</strong>rnistas,<br />

entre os quais Guimarães Rosa, com ênfase em Gran<strong>de</strong> Sertão:<br />

Veredas.


140<br />

Gláuks<br />

A travessia dos mitos<br />

Uma teorização complexa, expressa por Riobaldo em<br />

tom <strong>de</strong> conversa <strong>de</strong>spretensiosa com seu interlocutor, sobre a<br />

origem e a função dos mitos sertanejos, está con<strong>de</strong>nsada em uma<br />

passagem <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas:<br />

Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o<br />

Rio do Chico. O resto é pequena vereda. E agora me lembro:<br />

no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a fazenda velha,<br />

on<strong>de</strong> tinha um cômodo quase do tamanho da casa, por <strong>de</strong>baixo<br />

<strong>de</strong>la, socavado no antro do chão – lá judiaram com escravos e<br />

pessoas, até aos pouquinhos matar... Mas, para não mentir, lhe<br />

digo: eu nisso não acredito. Reconditório <strong>de</strong> se ocultar ouro,<br />

tesouro e armas, munição, ou dinheiro falso moedado, isto sim.<br />

O senhor <strong>de</strong>ve <strong>de</strong> ficar prevenido: esse povo diverte por <strong>de</strong>mais<br />

com a baboseira, dum traque <strong>de</strong> jumento formam tufão <strong>de</strong><br />

ventania. Por gosto <strong>de</strong> rebuliço. Querem-porque-querem<br />

inventar maravilhas glorionhas, <strong>de</strong>pois eles mesmos acabam<br />

temendo e crendo. Parece que todo o mundo carece disso. Eu<br />

acho, que. (ROSA, 1967:59)<br />

Evi<strong>de</strong>ncia-se aqui a sensibilida<strong>de</strong> antropológica <strong>de</strong><br />

Guimarães Rosa expressa na fala vaticinadora <strong>de</strong> Riobaldo, que<br />

<strong>de</strong>svenda e <strong>de</strong>smonta a engrenagem do engenho produtor <strong>de</strong><br />

mitos que é o sertão. Embora use <strong>de</strong> muita dissimulação e<br />

<strong>de</strong>sconfiança com relação ao seu próprio vaticínio, por temer<br />

<strong>de</strong>ixar-se levar pelo doutrinamento espiritualista recebido <strong>de</strong> seu<br />

compadre Quelemém, o narrador também não <strong>de</strong>sfaz a<br />

ambigüida<strong>de</strong> expressa pelo verbo achar, seguido da conjunção,<br />

após a qual não há progressão do discurso. Ou seja, o mito só se<br />

constitui como um discurso eficaz, só se concretiza como uma<br />

narrativa provida <strong>de</strong> sentido, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que haja a a<strong>de</strong>são do<br />

indivíduo, ou melhor, a a<strong>de</strong>são não passa <strong>de</strong> um primeiro passo<br />

em direção ao fato <strong>de</strong> que são os próprios indivíduos que,


“A Menina <strong>de</strong> Lá” <strong>de</strong> Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito 141<br />

coletivamente, tecem a teia dos sentidos que povoam e explicam<br />

suas experiências essenciais.<br />

É, pois, nesse universo <strong>de</strong> re-criação do real e do<br />

imaginário que se tece o argumento do conto “A Menina <strong>de</strong> Lá”,<br />

narrativa sobre a invenção das maravilhas glorionhas <strong>de</strong> uma<br />

criança sertaneja cujo discurso antagonista da doxa, idioleto,<br />

acaba <strong>de</strong>sconcertando os membros <strong>de</strong> sua família e da região,<br />

contagiando-os, e sendo o <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ante, à medida que progri<strong>de</strong><br />

a narrativa, <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio coletivo. Se o conto, em<br />

seu início, se apresenta apolíneo, na or<strong>de</strong>m calma das ativida<strong>de</strong>s<br />

rurais e corriqueiras <strong>de</strong>sempenhadas pelo Pai na exigüida<strong>de</strong> do<br />

espaço e do tempo – assim como nos é apresentada Nhinhinha,<br />

“perpétua e imperturbada, sentadinha on<strong>de</strong> sempre se achasse” –<br />

no final, todo o universo ficcional passa a ser comandado pelo<br />

esquisito do juízo, pelo enfeitado do sentido que fundamenta a<br />

antidoxa da protagonista. 3<br />

Do estranhamento causado pela personagem até seu<br />

reconhecimento como santa, um mito vai tomando corpo, vai<br />

preenchendo os vazios das personagens, encenando,<br />

narrativamente, a contracorrente daquela característica atribuída<br />

por Lukács ao romance: a do mundo abandonado por Deus. 4<br />

Não é que, à época <strong>de</strong> Rosa, Deus tenha ressuscitado para a<br />

literatura erudita, produzida na socieda<strong>de</strong> capitalista<br />

<strong>de</strong>sencantada, mas que a literatura <strong>de</strong> matriz oral ainda se nutra<br />

<strong>de</strong> elementos característicos <strong>de</strong> um pensamento arcaico, <strong>de</strong> uma<br />

época histórica em que a experiência ainda não se encontrava<br />

em <strong>de</strong>clínio e pu<strong>de</strong>sse ser realizada coletivamente, e a narrativa<br />

3 Relativamente à citação do conto no texto, foram adotados os seguintes critérios: em<br />

itálico e sem aspas, são incorporados excertos da obra ao nosso discurso; entre<br />

aspas, vem a voz do narrador e das personagens; em negrito, os enunciados <strong>de</strong><br />

Nhinhinha, tal como se encontram grafados na edição utilizada neste trabalho.<br />

4 Georg Lukács, em A Teoria do Romance, concebe o romance mo<strong>de</strong>rno como gênero<br />

fundamentado na ina<strong>de</strong>quação entre a experiência transcen<strong>de</strong>ntal e a-histórica à<br />

ativida<strong>de</strong> narrativa, já que os “esforços humanos” ten<strong>de</strong>m a se explicar cada vez<br />

mais por seu substrato histórico e material.


142<br />

Gláuks<br />

literária ainda pu<strong>de</strong>sse repertoriá-la, transmiti-la, apropriar-se<br />

<strong>de</strong>la. 5 Encenação <strong>de</strong> um mito <strong>de</strong> origem, por gosto <strong>de</strong> rebuliço,<br />

pela dinamização e renovação das formas narrativas cultas,<br />

projeto estético e ético que foi o <strong>de</strong> Guimarães Rosa, em tributo<br />

pago, aliás, aos mo<strong>de</strong>rnistas <strong>de</strong> 1922.<br />

A experiência mítica repousa sobre uma socieda<strong>de</strong> que<br />

ainda não tenha sido submetida ao <strong>de</strong>sencantamento e ao<br />

individualismo ocasionados pela divisão do trabalho na<br />

socieda<strong>de</strong> capitalista; ela requer uma experiência comungada<br />

coletivamente. No universo sertanejo conhecido e visitado por<br />

Rosa – on<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização é tardio -,<br />

conservaram-se alguns <strong>de</strong>sses traços experienciais. Daí falarmos<br />

<strong>de</strong> um “real” mítico no conto.<br />

Segundo Elia<strong>de</strong>, “todo mito <strong>de</strong> origem conta e justifica<br />

uma “situação nova” – no sentido <strong>de</strong> que não existia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

início do Mundo. Os mitos <strong>de</strong> origem prolongam e completam o<br />

mito cosmogônico: eles contam como o mundo foi modificado,<br />

enriquecido ou empobrecido.” (ELIADE, 1994:60) Assim como<br />

ocorre nos mitos, o evento que é representado no conto possui a<br />

mesma função mítica peculiar à qual se refere Elia<strong>de</strong>. No conto,<br />

o exercício <strong>de</strong> tal função se faz, porém, por um processo <strong>de</strong><br />

transgressão. Não é em vão que o Pai da protagonista, cujo<br />

nome é grafado com maiúscula, alegoria da Lei da letra, é o seu<br />

antagonista, pois, <strong>de</strong> início, não supera olhar para a alterida<strong>de</strong> da<br />

filha: “Ninguém enten<strong>de</strong> muita coisa que ela fala.” Pois será<br />

justamente ele quem recorrerá aos po<strong>de</strong>res da filha, pedindo-lhe<br />

a cura da esposa.<br />

A partir <strong>de</strong> então se opera a transgressão. Os mitos <strong>de</strong><br />

origem são transgressores pelo fato <strong>de</strong> profanarem o discurso<br />

estanque da cosmogonia dando-lhe um significado peculiar,<br />

5 O termo “<strong>de</strong>clínio da experiência” foi utilizado por Walter Benjamin, em seu ensaio<br />

O Narrador. O que <strong>de</strong>clina é a experiência coletiva que engendra e sustém a ca<strong>de</strong>ia<br />

das narrativas orais.


“A Menina <strong>de</strong> Lá” <strong>de</strong> Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito 143<br />

viabilizando novas interpretações para a vida do sujeito,<br />

oferecendo-lhe novas simbologias e signos, uma outra<br />

ritualização, uma realida<strong>de</strong> cultural em renovação, processual,<br />

ou, ainda, uma hibri<strong>de</strong>z <strong>de</strong> culturas, <strong>de</strong> modo que grupos<br />

distintos possam abrir-se para um processo <strong>de</strong> trocas culturais,<br />

compartilhando códigos.<br />

Se nos <strong>de</strong>tivermos na busca da fonte enunciativa do mito<br />

representado no conto, teremos <strong>de</strong> remontar a um sistema<br />

mitológico no qual se articulam as tradições judaica, cristã e<br />

católica em sua vertente <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> popular. Esse sistema<br />

se caracteriza por uma dinâmica e revela a evolução <strong>de</strong> um mito<br />

cosmogônico a originar outros que são mitos <strong>de</strong> origem, os do<br />

cristianismo, e, posteriormente, os do catolicismo. Essa<br />

remissão, no entanto, estaria restrita à mitologia legitimada e<br />

institucionalmente reconhecida, vinculada a discursos muitas<br />

vezes arbitrários, como é o caso do doutrinamento e da<br />

regulação sociais a que servem os mitos em <strong>de</strong>terminadas<br />

socieda<strong>de</strong>s. Um fator importante a ser consi<strong>de</strong>rado aí é que eles<br />

se constituem como narrativas escritas, cujas exegeses se<br />

confun<strong>de</strong>m com dogmas e padronizações <strong>de</strong> crenças e<br />

comportamentos sociais.<br />

O mito <strong>de</strong> Nhinhinha romperá com esse sistema: é fruto da<br />

religiosida<strong>de</strong> popular. Ela não é representativa ipsis litteris dos<br />

santos e profetas, mesmo porque, provi<strong>de</strong>ncial e ironicamente, no<br />

universo ficcional, a narrativa <strong>de</strong> seus feitos é ágrafa. Representa,<br />

antes, a cultura sem letra, que não se cristaliza na letra da lei, que<br />

<strong>de</strong>tecta, para retomarmos Elia<strong>de</strong>, a impertinência <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

códigos oficiais e legitimados às especificida<strong>de</strong>s culturais <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>terminado grupo. No caso do universo ficcional, santos e<br />

profetas bíblicos, livrescos, são arquétipos ina<strong>de</strong>quados à sua<br />

condição cultural <strong>de</strong>lirante e criadora. O conto é, portanto, a<br />

encenação da transgressão <strong>de</strong> tais mo<strong>de</strong>los, operada por uma<br />

cultura que os herdou e com eles rompeu.


144<br />

Gláuks<br />

Bem é verda<strong>de</strong> que o mito <strong>de</strong> Nhinhinha também foi<br />

registrado pela tradição letrada, mas seu narrador apenas pô<strong>de</strong><br />

registrá-lo no momento mesmo em que surgia e ainda estava<br />

circunscrito aos muros da casa da personagem, a que o narrador<br />

tivera acesso, <strong>de</strong>sfazendo as fronteiras do segredo do milagre da<br />

Mãe, imposto pela família, e recolhendo outros elementos<br />

daquela trama mítica, após a entrada <strong>de</strong>sta na ca<strong>de</strong>ia oral <strong>de</strong><br />

transmissão. Mas registra, paradoxalmente, para conservar o seu<br />

caráter <strong>de</strong> narrativa que não se encarcera pela letra da lei. E ele<br />

presentifica sua narrativa para expressar essa idéia, pois, no<br />

lugar <strong>de</strong> reportar os fatos com marcadores temporais do tempo<br />

transcorrido, como são narrados a gênese hebraica, os<br />

evangelhos e vidas <strong>de</strong> santos, enfatiza o valor presente do<br />

enunciado, valendo-se do recurso da vírgula que separa a ação<br />

passada do tempo presente em que a mesma transcorre, pondo<br />

esta em <strong>de</strong>staque: “Conversávamos, agora.”<br />

A ênfase no presente põe em relevância, pois, a<br />

especificida<strong>de</strong> dos enunciados da tradição sertaneja e iletrada,<br />

cuja propagação na ca<strong>de</strong>ia oral instaura a prepon<strong>de</strong>rância da<br />

enunciação, conferindo ao enunciador papel <strong>de</strong> extrema<br />

relevância na re-criação das narrativas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do<br />

menor ou maior grau <strong>de</strong> elementos míticos nelas presentes. É<br />

justamente o conto que nos autoriza a falar da disseminação do<br />

mito <strong>de</strong> Nhinhinha, uma vez que ele faz um percurso que vai<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a incompreensão inicial do Pai, passando pelos feitos que<br />

realiza no espaço privado da família, até à divulgação <strong>de</strong>stes<br />

após a morte da <strong>menina</strong>, o que fica a cargo <strong>de</strong> Tiantônia, que<br />

tomou coragem, pois aquela estória carecia <strong>de</strong> contar.<br />

O imaginário coletivo e o repertório <strong>de</strong> estórias<br />

extraordinárias do entorno da <strong>menina</strong> se vêem, <strong>de</strong>ssa forma,<br />

acrescidos <strong>de</strong> mais uma peça. Naquele sistema cultural, <strong>de</strong> que<br />

esse tipo <strong>de</strong> estória é componente capital, o ente fantástico<br />

Nhinhinha ficaria, então, fazendo sauda<strong>de</strong>, sauda<strong>de</strong> para o


“A Menina <strong>de</strong> Lá” <strong>de</strong> Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito 145<br />

mundo <strong>de</strong> cá, que, vez ou outra, traria à memória coletiva –<br />

entre lembrar e esquecer, retomar e recriar - a narrativa da morte<br />

<strong>de</strong> uma tal Nhinhinha, que vivia em lugar chamado o Temor-<strong>de</strong>-<br />

Deus, e que virara santa, estrelinha pia-pia. Morte no plano da<br />

história, ocasionada, quem sabe, pelas agruras da vida sertaneja,<br />

e, concomitantemente, vida que se reveste do <strong>de</strong>sejo do<br />

fantasioso, da palavra, do mito, do dito.<br />

Este movimento ambivalente que enreda a experiência <strong>de</strong><br />

vida-morte acena para a hibri<strong>de</strong>z cultural instaurada no conto,<br />

como uma resultante <strong>de</strong> transgressão, já que é uma<br />

reapropriação, expropriação mesmo, das cosmogonias,<br />

particularmente daquelas que se valem da chancela da cultura<br />

escrita. Logo, o conto, em sua vertente documental, não se furta<br />

a encenar uma espécie <strong>de</strong> antropofagia – no interior <strong>de</strong> uma<br />

mesma socieda<strong>de</strong> – a cuja força criadora são submetidos os<br />

discursos letrados e religiosos dominantes, revistos pela<br />

cosmovisão da religiosida<strong>de</strong> popular do sertão e por sua vocação<br />

criadora <strong>de</strong> discursos mitopoéticos. Diglossia. Guimarães Rosa,<br />

a quem as palavras em estado <strong>de</strong> dicionário eram caras, opera a<br />

hibri<strong>de</strong>z <strong>de</strong> dois registros em igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> prestígio.<br />

Ao lado dos valores híbridos presentes no universo<br />

narrado, há vozes peculiares que se bifurcam. Com a existência<br />

mitopoética da protagonista convivem com o arcaísmo e/ou os<br />

rudimentos lingüísticos <strong>de</strong> seus pais e a visão cosmopolita e<br />

epistemológica do narrador que ali esteve para recolher uma<br />

peça da literatura oral. Há uma multiplicida<strong>de</strong> enunciativa<br />

naquele universo, o que se compreen<strong>de</strong>, também, à luz das<br />

consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Rama sobre as narrativas transculturadoras:<br />

(...) La extraordinaria flui<strong>de</strong>z y el constante <strong>de</strong>splazamiento <strong>de</strong><br />

vidas y sucesos, las transmultaciones <strong>de</strong> la existencia y la<br />

inseguridad <strong>de</strong> los valores, tejerán entonces el sustrato sobre el<br />

cual se <strong>de</strong>splegará el discurso interpretativo. (...) La<br />

construcción <strong>de</strong> la historia es reproducida por la construcción


146<br />

Gláuks<br />

<strong>de</strong>l discurso, <strong>de</strong> tal modo que las formas <strong>de</strong> la periferia<br />

equivalen a las formas <strong>de</strong> la narratividad. (...) (RAMA,<br />

1982:23)<br />

Conclui-se daí que a polifonia 6 é o princípio sobre o qual<br />

se fundamentam essas narrativas. O que caracteriza a prática dos<br />

escritores transculturadores, para Rama, é a permissão que eles<br />

dão aos contadores e personagens da cultura iletrada, não apenas<br />

<strong>de</strong> serem repertoriados, como no caso da técnica dos discursos<br />

direto e indireto, mas <strong>de</strong> entrarem na cultura e serem alçados à<br />

categoria <strong>de</strong> narradores, como é o caso <strong>de</strong> Riobaldo, em Gran<strong>de</strong><br />

Sertão: Veredas, a cujo estudo se <strong>de</strong>dicou o teórico. Conquanto<br />

não seja a narradora <strong>de</strong> sua própria experiência – um <strong>de</strong>us não<br />

narra jamais sua própria história, não nos esqueçamos –,<br />

Nhinhinha goza, por parte <strong>de</strong>ste narrador, <strong>de</strong> um prestígio que<br />

vai da mais atenta escuta às concessões que faz a ela em seu<br />

próprio estilo. E por que não dizer, com Rama, muito mais que a<br />

fala <strong>de</strong>la tente equivaler ao registro do narrador em legitimida<strong>de</strong><br />

literária, mas que este se sinta <strong>de</strong> tal modo arrebatado que,<br />

<strong>de</strong>sejante, dê passos na direção da fala do outro, a tome para si,<br />

a faça sua: artimanhas e técnicas do discurso indireto livre. Esse<br />

compósito <strong>de</strong> vozes atonais e <strong>de</strong>stoantes aponta, inegavelmente,<br />

para a hibri<strong>de</strong>z cultural e uma diglossia às avessas, princípios<br />

formais e temáticos do conto.<br />

Entre o dito e o mito<br />

Haveria, para o leitor <strong>de</strong> “A <strong>menina</strong> <strong>de</strong> Lá”, a<br />

possibilida<strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> arrebatamento que não fosse<br />

ocasionado simplesmente pela estética do texto, mas igualmente<br />

6 A teoria <strong>de</strong> Rama estabelece uma intertextualida<strong>de</strong> com a noção bakhitiniana <strong>de</strong><br />

polifonia, pois o escritor transculturador é uma espécie <strong>de</strong> agenciador do discurso<br />

literário e das falas poéticas periféricas em relação aos códigos cosmopolitas e<br />

cultos, o que resulta em um discurso marcado por hibri<strong>de</strong>z, princípio polifônico por<br />

excelência.


“A Menina <strong>de</strong> Lá” <strong>de</strong> Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito 147<br />

por seu núcleo temático? Em outras palavras, esse conto po<strong>de</strong>ria<br />

mobilizar seu imaginário mítico, fazendo-o pensar na “real”<br />

existência <strong>de</strong> seres tal como a protagonista vivendo espalhados<br />

pelo sertão? De fato, estas perguntas fogem ao domínio da<br />

criação artística. No entanto, até os céticos se confessam<br />

arrebatados pelos textos roseanos, em que tais entes proliferam.<br />

Para não abandonarmos, principalmente por isso, o âmbito da<br />

estética, que acreditamos ser a nossa vereda, diríamos que a<br />

sensibilida<strong>de</strong> mítica possivelmente <strong>de</strong>spertada pelo conto no<br />

leitor advém justamente, e apenas, do fato <strong>de</strong> o texto criar um<br />

real, que não é outro se não o real da literatura. Quer o leitor<br />

adira, quer permaneça embevecido somente pela linguagem,<br />

pelos recursos estilísticos, há, assim pensamos, um <strong>de</strong>sejo, por<br />

parte do autor, <strong>de</strong> compor uma obra <strong>de</strong> arte, mas também o <strong>de</strong><br />

ludibriar o leitor, apresentando-lhe, sob a forma <strong>de</strong> estória da<br />

carochinha ou dos contos fantásticos (<strong>menina</strong>s engolidas por<br />

lobos, <strong>menina</strong>s-abóbora), um texto que nos convida a pensar, no<br />

mínimo, sobre o lugar <strong>de</strong> uma experiência absoluta, essencial.<br />

Depreen<strong>de</strong>-se do efeito criado pelo autor um questionamento<br />

implícito sobre a plausibilida<strong>de</strong> daquela experiência no plano da<br />

história social, ou na história ortodoxa do gênero romanesco na<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, o qual, segundo Walter Benjamin, no ensaio “O<br />

Narrador”, nos marcou, a nós, leitores, para sempre com a<br />

palavra “fim” ao término da narrativa, o que nos isola, não<br />

ativando nenhuma sensibilida<strong>de</strong> comungada no calor das<br />

experiências coletivas. No entanto, ainda há algo nos textos<br />

ficcionais que faz com que nos sentemos conjuntamente para<br />

falar <strong>de</strong>les, nem que seja com motivação puramente teórica. E, à<br />

parte teorias e críticas, há ainda quem forme grupos para discutir<br />

sobre aprendizados e experiências um tanto subjetivas<br />

adquiridos por meio da fruição <strong>de</strong> textos literários; outros,<br />

mesmo isolados, protótipos do leitor mo<strong>de</strong>rno, confessam<br />

<strong>de</strong>ixar-se arrebatar por motivos parecidos... De fato, essas<br />

consi<strong>de</strong>rações exigem um aprofundamento maior. Estão aqui


148<br />

Gláuks<br />

lançadas para que possamos sustentar uma leitura <strong>de</strong> “A Menina<br />

<strong>de</strong> Lá” que o situe entre as margens do dito e do mito.<br />

Os feitos <strong>de</strong> Nhinhinha – corro o risco <strong>de</strong> afirmá-lo –<br />

po<strong>de</strong>m também ser entendidos, ou melhor, sentidos, em sua<br />

essencialida<strong>de</strong> temática, se <strong>de</strong>stronado for <strong>de</strong> seu status literário.<br />

E, contudo, permaneceria no campo da estética, haja vista a<br />

função da estética no campo da fruição e da recepção, qual seja,<br />

a <strong>de</strong> tocar sensivelmente o leitor em suas percepções, o que po<strong>de</strong><br />

nos tornar os mais exímios analistas, mas também os leitores<br />

mais <strong>de</strong>sejantes, nas bordas <strong>de</strong> um real que se constrói nas zonas<br />

polissêmicas do texto, à beira <strong>de</strong> um estado fabular.<br />

“A Menina <strong>de</strong> Lá”: um dito propriamente mito, um mito<br />

propriamente dito. Teia que permite ao leitor certo<br />

entrelaçamento do dizer e do sentir, uma entrada mítica no reino<br />

<strong>de</strong> palavras aspirantes ao infinito, pelo fazer <strong>de</strong> um narrador que,<br />

embora distanciado, assume uma postura <strong>de</strong> aedo, do contador<br />

<strong>de</strong> uma história essencial. Entrada essa que se po<strong>de</strong>ria chamar <strong>de</strong><br />

“comportamento fabular” frente à literatura, que requeira um<br />

distanciamento da natureza do fenômeno artístico como<br />

representativida<strong>de</strong> da linguagem e da técnica literárias puras e<br />

simples. Desse modo, tanto quanto alienada parecesse, ela<br />

po<strong>de</strong>ria aproximar o conto da sua própria encenação,<br />

instaurando uma ilusão <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, ou seja, ela atuaria<br />

enquanto narrativa que fala do que realmente ocorreu, do que se<br />

manifestou plenamente. O mito, segundo a própria Nhinhinha,<br />

que também possuía seus escrúpulos estéticos, não é aquilo <strong>de</strong><br />

que se esperam milagres, mas as maravilhas glorionhas. A certa<br />

altura do conto, quando já haviam sido <strong>de</strong>scobertos seus<br />

atributos sobre-humanos, os pais pe<strong>de</strong>m-lhe que faça chover, ao<br />

que ela respon<strong>de</strong>: “Mas não po<strong>de</strong>, ué”. Entretanto, com seus<br />

caprichos estéticos, daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris.<br />

Fica explicitado, com esse rigor soberbo <strong>de</strong> <strong>de</strong>usa, que o mito é


“A Menina <strong>de</strong> Lá” <strong>de</strong> Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito 149<br />

para encantar, tão somente. E o dito também, como efeito da<br />

literatura em sua recepção <strong>de</strong>sejante.<br />

De fato, essa entrada no texto instaura um paradoxo, mas<br />

põe em jogo a questão da diglossia na esfera da recepção. Ao se<br />

expandir semanticamente o termo diglossia, po<strong>de</strong>r-se-ia<br />

recuperá-lo para uma reflexão sobre a atitu<strong>de</strong> do leitor que<br />

recebesse daquele modo o texto, mobilizando um horizonte <strong>de</strong><br />

expectativa do qual faz parte o <strong>de</strong>ixar-se levar pelo <strong>de</strong>lírio, pela<br />

ilusão-realida<strong>de</strong>. Leitor fingidor, tomado aqui como um<br />

atravessador <strong>de</strong> discursos, entre o literário e o mitológico, entre<br />

a ficção do real e o real da ficção. Nessa travessia ele se<br />

utilizaria ora do código lingüístico-literário que é o arcabouço<br />

do conto, ora daquele que estrutura a linguagem do mito<br />

narrado. Tratar-se-ia - por que não? – do domínio não mais <strong>de</strong><br />

duas línguas, mas <strong>de</strong> duas linguagens <strong>de</strong> estatuto assaz<br />

diferenciado: a da razão <strong>de</strong> permanecer no campo da recepção<br />

<strong>de</strong> um objeto estético e a do absurdo <strong>de</strong> conferir a este algum<br />

atributo encantatório. Travessias entre o dito e o mito: a vida<br />

propriamente lida, o dito propriamente mito.<br />

O mito – as margens – o dito<br />

O narrador <strong>de</strong> “A Menina <strong>de</strong> Lá” é um transculturador à<br />

medida que insere em seu discurso a fala <strong>de</strong> Nhinhinha,<br />

mostrando-se - como já dissemos - <strong>de</strong>sejante da enunciação da<br />

protagonista, quase à beira <strong>de</strong> largar mão <strong>de</strong> seu próprio registro,<br />

híbrido em todo o conto, uma forma do discurso indireto livre.<br />

Ele se mostra tão mais intrigado pela perspectiva daquela fala<br />

quanto mais não a <strong>de</strong>codifica segundo seus padrões eruditos:<br />

“Ralhei, <strong>de</strong>i conselhos, disse a ela que estava com a lua. Olhoume,<br />

zombaz, seus olhos muito perspectivos: - “Ele te<br />

xurugou?” Nunca mais vi Nhinhinha.”


150<br />

Gláuks<br />

A ironia <strong>de</strong> Nhinhinha presente na resposta e a sedução<br />

que ela causara no narrador até esta altura do enunciado, nos<br />

esclarecem que é esse o cume do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> escrever para tentar<br />

sentir aquela fala tão <strong>de</strong>sconcertante. Ele retira-se, então, da vida<br />

da <strong>menina</strong>. Refugia-se, mais tar<strong>de</strong>, na ficção: escreve. Um modo<br />

<strong>de</strong> permanecer na aragem do sagrado e participar, na<br />

transmissão daquele saber, com o oferecimento da letra, mas um<br />

registro que remeta à composição coletiva do universo mítico<br />

narrado.<br />

A consciência que ele tem <strong>de</strong> que jamais se saberia o<br />

que queriam dizer os enunciados lunáticos <strong>de</strong> sua interlocutora<br />

não o <strong>de</strong>ixa mais distanciado, ao abrigo <strong>de</strong> sua visão <strong>de</strong> possível<br />

etnógrafo. Sua epistemologia mostra-se estéril em face dos olhos<br />

muito perspectivos do saber mitopoético <strong>de</strong> que a <strong>menina</strong> é a<br />

personificação. O narrador, como diria Irene Simões (1988:<br />

p.84), é o “interpretante <strong>de</strong> um discurso intraduzível”. Porém,<br />

em tal polarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perspectivas <strong>de</strong>tectada pela crítica, atua, em<br />

nossa leitura, o <strong>de</strong>sejo que os imbrica enunciativamente. A<br />

noção <strong>de</strong> diglossia se inverte, pela imbricação dos registros e, no<br />

mesmo enunciado, duas enunciações dizem suas alterida<strong>de</strong>s.<br />

Fato é que o narrador <strong>de</strong>tém uma hermenêutica monotópica, a da<br />

cientificida<strong>de</strong>, sua narrativa registra a fala <strong>de</strong> Nhinhinha,<br />

correndo o risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-la às margens da enunciação, o que<br />

não acontece, já que abrir mão <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>ixar-se enredar, é<br />

estratégia criada por ele para tentar perscrutar o sistema cultural<br />

heterogêneo do universo sertanejo, composto por um saber<br />

mítico e arcaico, expresso em inúmeras variantes do código<br />

lingüístico padrão dominado por ele.<br />

O estranhamento resultante do contato entre esses distintos<br />

códigos, o embaraço em que se vê o narrador diante <strong>de</strong> uma<br />

experiência que foge ao seu horizonte <strong>de</strong> expectativa - que é<br />

homem <strong>de</strong> leitura, mas não consegue ler a fala <strong>de</strong> Nhinhinha -<br />

criam uma atmosfera a que Covizzi chamou “estética do insólito”:


“A Menina <strong>de</strong> Lá” <strong>de</strong> Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito 151<br />

Há sempre uma <strong>de</strong>terminação, uma vonta<strong>de</strong>, uma certeza, uma<br />

calma da parte da personagem, que parece conhecer, dominar a<br />

situação, saber o que está fazendo, em relação à perspectiva <strong>de</strong><br />

dúvida, <strong>de</strong> espanto, <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong>, que é do narrador e do<br />

leitor ignorantes, não viventes da situação. Aí o insólito. (...)<br />

(COVIZZI, 1978:89)<br />

Tal conceito é bastante pertinente para explicar os<br />

estranhamentos que causa Nhinhinha enquanto portadora <strong>de</strong> um<br />

discurso mitopoético, fala <strong>de</strong>lirante <strong>de</strong> lá, um lugar obtuso e<br />

imperscrutável para um narrador cuja enunciação se <strong>de</strong>fine<br />

segundo os padrões do pensamento cartesiano e positivista. Mas<br />

opera o <strong>de</strong>sejo. Entre não enten<strong>de</strong>r o objeto – uma vez já atraído<br />

por ele – e aferrar-se a uma indiferença narrativa,<br />

epistemológica ou céptica, ele se ren<strong>de</strong>. Já absorto por aquele<br />

dito quase mito, se inclui no grupo daqueles que da <strong>menina</strong> não<br />

esperam outra coisa senão seus enunciados invulgares: “O que<br />

falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: -<br />

“Alturas <strong>de</strong> urubuir...” Não, dissera só: - “... altura <strong>de</strong> urubu<br />

não ir.” O <strong>de</strong>dinho chegava quase no céu. (...)”<br />

A postura <strong>de</strong>ste narrador em face da matéria narrada<br />

enseja a <strong>de</strong>stituição - provisória que for - <strong>de</strong> uma hermenêutica<br />

monotópica. Se lhe soa intraduzível, como quer Covizzi, a fala<br />

da <strong>menina</strong>, não lhe resta outra saída senão sair da toca on<strong>de</strong> se<br />

escon<strong>de</strong>m os que se resguardam das falas lunáticas. Ele parece<br />

ter entendido bem a metáfora irônica <strong>de</strong> Nhinhinha: “Tatu não<br />

vê a lua...”.<br />

Entre o sagrado e o segredo<br />

A linguagem <strong>de</strong> Nhinhinha, por mais espontânea que<br />

seja, parece cumprir as exigências <strong>de</strong> um mundo ritualístico, no<br />

qual se faz pouco caso da ignorância <strong>de</strong> um não-iniciado. Sua<br />

fala, carregada <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>, nega o lógos tanto do senso


152<br />

Gláuks<br />

comum (o discurso dos pais e da gente sertaneja), quanto o da<br />

epistemologia do observador e posterior narrador. Por exemplo,<br />

quando o Pai quer atribuir às recém-<strong>de</strong>scobertas façanhas da<br />

filha alguma empregabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>para com a pronta recusa da<br />

<strong>menina</strong> em fazer que chovesse: “–Mas não po<strong>de</strong>, ué...” Os<br />

familiares insistem em persuadi-la, argumentando com a<br />

<strong>de</strong>solação que se abateria sobre o sertão. “Instaram-na”, relata o<br />

narrador. E é o próprio Pai quem, tradutor <strong>de</strong> uma<br />

intraduzibilida<strong>de</strong>, faz, no início do conto, a exegese daquele<br />

repertório <strong>de</strong> sandices: -“Ninguém enten<strong>de</strong> muita coisa que ela<br />

fala...”. Depois <strong>de</strong> se terem iniciado nos mistérios da filha, uma<br />

relação gradativa <strong>de</strong> menor estranhamento vai-se construindo,<br />

do início ao fim do conto.<br />

É que os <strong>de</strong>uses são caprichosos; “ninguém tinha real<br />

po<strong>de</strong>r sobre ela”, constata o narrador. Usando <strong>de</strong> disfarce,<br />

Nhinhinha realiza paulatinamente a sua completa personificação<br />

<strong>de</strong>ífica, que, aparentemente, seria a sua entronização no<br />

“caixãozinho cor-<strong>de</strong>-<strong>rosa</strong>, com enfeites ver<strong>de</strong>s brilhantes”. A<br />

<strong>de</strong>usa, todavia, está, durante todo o tempo do enunciado,<br />

<strong>de</strong>vidamente paramentada, “vestidinha <strong>de</strong> amarelo”, sentada em<br />

seu “tamboretinho”, tripé <strong>de</strong> pitonisa do sertão. Os não-iniciados<br />

levam tempo na aprendizagem da veneração. A <strong>de</strong>mora dos pais<br />

<strong>de</strong> Nhinhinha em se <strong>de</strong>ixar tomar pelo sentido daquela<br />

experiência é correlata à <strong>de</strong>mora cega <strong>de</strong> Penteu para reconhecer<br />

Dioniso, que, paramentado como <strong>de</strong>us, tripudiava, dissimulando,<br />

sobre a ingenuida<strong>de</strong> do rei <strong>de</strong> Tebas.<br />

“Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu.<br />

(...)” Idêntico capricho ocorre no episódio da cura da Mãe: “não<br />

houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura.” A <strong>menina</strong><br />

não proce<strong>de</strong>u como se lhe solicitara; ela tinha, como nos diz o<br />

narrador, outros modos, outros códigos para ler o mundo,<br />

segundo um <strong>de</strong>sejo insondável, e, a<strong>de</strong>mais, ninguém tinha real<br />

po<strong>de</strong>r sobre ela, é preciso insistir nisso. Foi, pois, abrindo mão


“A Menina <strong>de</strong> Lá” <strong>de</strong> Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito 153<br />

<strong>de</strong> suas contingências, e sendo levados a perceber o <strong>de</strong>sejo da<br />

filha, que não era o <strong>de</strong> salvar o mundo, mas <strong>de</strong> encantá-lo, <strong>de</strong><br />

acessar a poesia primeva circundante, que os pais aceitam seu<br />

ritual <strong>de</strong> iniciação. Não obstante, eles não se isentam totalmente<br />

<strong>de</strong> suas intenções profanas, o que para os <strong>de</strong>uses gregos<br />

constituiria uma hybris. Acontece que, em “A Menina <strong>de</strong> Lá”, o<br />

substrato mítico é <strong>de</strong> linhagem judaico-cristã, tradição que<br />

possui modos específicos <strong>de</strong> os humanos se re-ligarem às<br />

divinda<strong>de</strong>s, modos pelos quais os pais da <strong>menina</strong> a<strong>de</strong>rem à<br />

experiência mitopoética. Assim, creram piamente que a filha<br />

realizava-lhes os pedidos: “(...) Pai e Mãe cochichavam,<br />

contentes: que quando ela crescesse e tomasse juízo, ia po<strong>de</strong>r<br />

ajudar muito a eles, conforme à Providência prazia que fosse.”<br />

Há que se levar em conta aí a crítica social <strong>de</strong> Guimarães<br />

Rosa à precarieda<strong>de</strong> das condições <strong>de</strong> vida no sertão, dominado<br />

que se encontrava pelo mo<strong>de</strong>lo arcaico do coronelismo e da<br />

jagunçagem, on<strong>de</strong> os fenômenos <strong>de</strong> crença com matiz <strong>de</strong> histeria<br />

coletiva se proliferavam, já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Antônio Conselheiro. Embora<br />

seja da maior relevância essa abordagem sócio-histórica, para a<br />

leitura que vimos realizando até então, importa-nos antes a<br />

dimensão mitopoética dos elos criados pelos pais <strong>de</strong> Nhinhinha<br />

para se conectarem à recente experiência que vinha se tecendo<br />

pouco a pouco.<br />

Para nós, então, está aí a gênese do mito, discurso absurdo e<br />

excêntrico ao qual o sujeito agrega significados <strong>de</strong> sua própria<br />

mundanalida<strong>de</strong>, tornando-o um real, história verda<strong>de</strong>ira que, como<br />

quer Elia<strong>de</strong>, “sempre se refere a realida<strong>de</strong>s”. (ELIADE, 1994)<br />

Assim visto, percebe-se que a dimensão sagrada do mito <strong>de</strong>lineiase,<br />

progressivamente, a partir do total estranhamento sentido pelos<br />

pais e pelo narrador relativamente àquela experiência sem<br />

plausibilida<strong>de</strong> para o senso comum daqueles e para a erudição<br />

científico-literária <strong>de</strong>ste, evento que rompe com as inteligibilida<strong>de</strong>s<br />

fundantes <strong>de</strong> visões <strong>de</strong> mundo tão disparatadas.


154<br />

Gláuks<br />

Desse modo, concomitantemente à formação <strong>de</strong>ssa<br />

espécie <strong>de</strong> coro polifônico em que o mito promove uma partilha<br />

<strong>de</strong> experiências, os pais e o narrador <strong>de</strong>verão cada vez mais<br />

intensamente se <strong>de</strong>spir <strong>de</strong> seus substratos enunciativos e<br />

contingentes, ainda que o façam através <strong>de</strong> um silêncio, <strong>de</strong> uma<br />

mu<strong>de</strong>z pós-transe, ou, no campo da estética, <strong>de</strong> uma fruição<br />

estética diante <strong>de</strong> uma apreciação arrebatadora, em que os<br />

sentidos são todos oferecidos, <strong>de</strong>ixando ao contemplador uma<br />

sorte <strong>de</strong> esvaziamento momentâneo, <strong>de</strong> modo que a vista não<br />

suporte mais a visão do próprio <strong>de</strong>us e o sujeito <strong>de</strong>sapareça,<br />

arrebatado: “Nunca mais vi Nhinhinha”, expressa aí o narrador<br />

um tipo <strong>de</strong> extenuação - a visão que não suporta - que a<br />

divinda<strong>de</strong> inflige quando se dá a conhecer e venerar. Quando<br />

Nhinhinha quis que o sapo aparecesse para ela, após ter revelado<br />

que o mesmo estava “trabalhando um feitiço, os outros se<br />

pasmaram; silenciaram <strong>de</strong>mais”. Assim como silenciaram diante<br />

do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Nhinhinha, segredado à Tiantônia no dia do arcoíris,<br />

o <strong>de</strong> ser enterrada em um caixão “cor <strong>de</strong> <strong>rosa</strong> com ver<strong>de</strong>s<br />

funebrilhos”. Tal consentimento é uma exceção às regras das<br />

práticas e rituais mortuários estabelecidos para pequenas virgens<br />

sertanejas, cujo caixão é normalmente branco. Aí Guimarães<br />

Rosa <strong>de</strong>sempenha seu profundo conhecimento das tradições<br />

religiosas mineiras, da policromia <strong>de</strong> seus folguedos, reisados,<br />

congados e procissões. A morte <strong>de</strong> Nhinhinha encena, a um só<br />

tempo, um cortejo fúnebre e um ritual <strong>de</strong> transe: orgia e<br />

carnavalização.<br />

O silêncio do narrador é anterior à morte da <strong>menina</strong>, ou<br />

seja, ele lhe falou pela última vez quando a mesma lhe passara<br />

uma <strong>de</strong>scompostura zombaz pelo fato <strong>de</strong> ter querido dar<br />

conselhos a ela. O restante do tempo do enunciado, ele o recolhe<br />

já como uma peça da literatura oral, o que reitera o fato da<br />

propagação do mito <strong>de</strong> santa Nhinhinha. Vai, então, procurar<br />

amparo na escrita, para elaborar a impressão íntima do contato


“A Menina <strong>de</strong> Lá” <strong>de</strong> Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito 155<br />

que travara com ela, bem como o fenômeno coletivo <strong>de</strong> crença e<br />

transmissão <strong>de</strong> uma experiência mitopoética que presenciara.<br />

Seu silêncio é <strong>de</strong>ixar-se tocar pela fala do outro, incorporando<br />

traços <strong>de</strong> seu idioleto, silenciando a língua erudita da narração,<br />

misturando-se, a<strong>de</strong>rindo ao ponto <strong>de</strong> vista da protagonista no<br />

discurso indireto e indireto livre, re-criando, enfim, a língua<br />

portuguesa <strong>de</strong> que são usuários, todos, Nhinhinha, seus pais e o<br />

narrador. A erudição <strong>de</strong>ste e o senso comum daqueles <strong>de</strong>ixam-se<br />

penetrar pela mitopoesia, o que aponta, enfim, para outras<br />

conotações da diglossia. O sagrado traduziu-lhes o segredo.<br />

Conversavam, agora. O <strong>de</strong>sejo po<strong>de</strong> até mesmo esvair-se na<br />

escuta do idioleto daquela cujos vivos atos se passam longe<br />

<strong>de</strong>mais.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Do autor<br />

ROSA, Guimarães. Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas. 5ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José<br />

Olympio, 1967.<br />

____. Primeiras Estórias. 6ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1972.<br />

Bibliografia geral e específica<br />

BAKHTINE, M. La Poétique <strong>de</strong> Dostoievsky. Paris: Seuil, 1970.<br />

BENJAMIN, Walter. Benjamin. O Narrador. In: Magia e técnica, arte e<br />

política. São Paulo: Brasiliense, 1987.<br />

BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix,<br />

1974.<br />

BUBOIS, J. Dicionário <strong>de</strong> lingüística. Trad. Izidoro Blikstein. São Paulo:<br />

Cultrix, 1978.


156<br />

Gláuks<br />

COVIZZI, L. M. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo:<br />

Ática, 1978.<br />

ELIADE, M. Mito e realida<strong>de</strong>. São Paulo: Perspectiva, 1994.<br />

EURIPIDE. Les Bacchantes. Trad. Maurice Clavel. Paris: Comédie-<br />

Française, 1977.<br />

FREUD, S. Escritores criativos e <strong>de</strong>vaneios. In: Obras psicológicas<br />

completas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1969.<br />

GALVÃO, W. N. As formas do falso. São Paulo: perspectiva, 1986.<br />

LALANDE, A. Vocabulaire technique et critique <strong>de</strong> la philosophie. Paris:<br />

Presses Universitaires <strong>de</strong> France, 1972.<br />

LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cida<strong>de</strong>s, 2000.<br />

RAMA, A. Transculturación narrativa en América Latina. México,<br />

Fundación Angel Rama: 1982.<br />

SIMÕES, I. G. Guimarães Rosa: as paragens mágicas. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1988.<br />

RÉSUMÉ: Dans le conte “A Menina <strong>de</strong> Lá l’auteur s’approprie<br />

certains éléments <strong>de</strong>s récits oraux à signification mythopoétique.<br />

Nous nous servons <strong>de</strong> l’opérateur critique <strong>de</strong> mythopoésie en<br />

tant qu’un exercice <strong>de</strong> lecture <strong>de</strong> l’oeuvre sur ses <strong>de</strong>ux plans: la<br />

mise en scène <strong>de</strong> la propagation d’un mythe d’origine et son<br />

traitement par le biais <strong>de</strong> la création littéraire. Notre intérêt se<br />

porte également tant à l’intéraction <strong>de</strong> différents catégories <strong>de</strong><br />

lecteurs avec la composante mythique du conte, qu’à celle du<br />

narrateur et <strong>de</strong>s personnages secondaires face à l’idiolecte <strong>de</strong> la<br />

protagoniste, moyennant l’interlocution avec <strong>de</strong>s concepts tels<br />

que diglossie et “tranculturación”.<br />

MOTS-CLÉS: littérature et oralité; mythe et création littéraire;<br />

“transculturación”; diglossie.

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