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SÉCULO XIX - UFSM

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DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (<strong>SÉCULO</strong> <strong>XIX</strong>) 63<br />

DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-<br />

Introdução<br />

GRANDENSE (<strong>SÉCULO</strong> <strong>XIX</strong>)<br />

Luís Augusto Ebling Farinatti<br />

Prof. Departamento de História da <strong>UFSM</strong><br />

Doutor em História Social pela UFRJ<br />

lafarinatti@gmail.com<br />

A paisagem agrária da Campanha rio-grandense exibe as marcas de importantes transformações ocorridas,<br />

principalmente, a partir das décadas finais do século <strong>XIX</strong>. 2 Foi somente depois daquela época que se agregaram elementos<br />

2 No tocante às obras de pesquisa histórica, o termo “Campanha”, para designar uma área específica do território sul-riograndense, vem sendo<br />

empregado de forma variada. Dependendo do autor, esse termo pode abarcar grande parte da fronteira-oeste, desde São Borja até Jaguarão, ou<br />

mesmo indicar toda a parcela meridional do Rio Grande do Sul, englobando as áreas ao sul dos rios Ibicuí (a oeste) e Jacuí (a leste). O mais comum,<br />

porém, tem sido designar por “Campanha” as regiões próximas à fronteira do Brasil com o Uruguai, em uma faixa que, partindo da linha de fronteira,<br />

alarga-se para o interior do Rio Grande do Sul. É assim que o utilizamos aqui. Uma síntese das diversas configurações da área da Campanha,<br />

segundo critérios diferenciados, encontra-se em Costa (1988).


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como as cercas de arame, o verde-claro dos arrozais, os bosques de árvores exógenas (como o onipresente eucalipto),<br />

açudes, banheiros sanitários, pastagens artificiais, refinamento de raças animais e melhoramento genético.<br />

A importância dessas transformações tendem a dar a impressão de que os períodos anteriores foram de estagnação e<br />

de uma economia quase natural, que pouco ou nada teria produzido do ponto de vista técnico e que também não haveria<br />

interferido de modo significativo no ambiente. Contudo, trabalhos recentes tem demonstrado uma realidade muito diversa.<br />

Neste artigo, pretendemos investigar o mundo da pecuária tradicional praticada na Campanha Riograndense durante a maior<br />

parte do século <strong>XIX</strong>, com ênfase em seu repertório técnico e em sua lógica produtiva. Realizamos, também, reflexões<br />

introdutórias sobre as relações entre aquela economia e o ambiente. Temos consciência de que estudos que trilhem<br />

especificamente a seara da história ambiental exigiriam muito mais pesquisa e seguem sendo uma necessidade para a região<br />

analisada aqui. Iniciaremos por uma rápida retomada do sistema agrário que lhe precedeu a criação de gado luso-brasileira<br />

tradicional: a pecuária praticada pelos guaranis dos povos missioneiros, durante o século XVIII.<br />

O contexto pastoril-missioneiro<br />

No século XVIII, a área que, na centúria seguinte, viria a ser a Campanha Rio-grandense, estava incluída em uma<br />

vasta região que pertencia à jurisdição reivindicada pelos 30 Povos das missões jesuítico-guaranis. Esses 30 povos<br />

estendiam-se pelas margens dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai. Nas áreas a leste deste último rio ficavam, ao norte do rio<br />

Ibicuí, os Sete Povos Orientais e, ao sul, onde hoje se localiza a Campanha Rio-grandense, estavam situadas as estâncias<br />

pecuárias pertencentes aos Povos. Além de abrigar essas estâncias, aquela região continuava a ser palmilhada por grupos<br />

indígenas charruas e minuanos, refratários à cristianização e que sobreviviam hora fazendo aliança, hora entrando em


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conflito com as diferentes frentes coloniais. Por fim, consistia em uma imensa zona de fronteira, que sofria pressões de<br />

frentes colonizadoras que vinham do leste (portuguesa) e sul (espanhola).<br />

Em um texto recente e bastante sugestivo, a historiadora uruguaia María Inés Moraes (2006 e 2008) propôs uma<br />

releitura da ocupação e da construção de paisagens agrárias, nos séculos XVII e XVIII, na região localizada entre as áreas de<br />

colonização portuguesa (a leste) e os rios Ibicuí (ao norte), Uruguai (a oeste) e Negro (ao sul). Moraes problematiza a<br />

corrente majoritária na historiografia uruguaia, que tende a ver a ocupação colonial ao norte dos rios Negro e Yí como tardia.<br />

Ao contrário, a autora propõe um redimensionamento da importância das atividades tanto dos guaranis missioneiros, quanto<br />

dos demais indígenas e dos diversos súditos das coroas ibéricas que exerciam papéis sociais e econômicos diversificados<br />

naquela área. Eles levavam adiante formas de produção pecuária diversas das desenvolvidas nas zonas “atlânticas”, como<br />

as do entorno de Montevidéu, por exemplo. 3<br />

Segundo Moraes (2008), a “paisagem pastoril-missioneira” era parte de uma economia missioneira formada por um<br />

conjunto que englobava a exploração de recursos florestais, agrícolas e pecuários. Desenvolveu-se para resolver os<br />

problemas de abastecimento de uma população missioneira em expansão. Para tanto, os missioneiros empregaram técnicas<br />

diversas. As “vacarias” eram expedições que podiam ter objetivos variados. Algumas delas destinavam-se a arrear gado e<br />

colocá-lo em áreas onde estivessem menos sujeitas à exploração de agentes concorrentes. Outras, tinham por objetivo a<br />

faina do couro, tendo ocorrido principalmente após a expulsão dos jesuítas (1768), quando os Povos estavam sob<br />

3 Outras obras tem apresentado esse cuidado metodológico existente na obra de Moraes, procurando estudar as Missões respeitando sua<br />

historicidade e fora de marcos anacrônicos dos Estados Nacionais que só viriam a surgir depois. Entre outros: MAEDER e BOLSI (1982), WILDE<br />

(2001), PANIÁGUA (2003), NEUMANN (2004), MORAES (2006 E 2008), GARCIA (2007).


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administração civil e os mercados atlânticos de couro haviam se expandido fortemente. Por fim e talvez mais importante aqui:<br />

havia vacarias que serviam especificamente para arrebanhar animais bravios e levá-los para serem costeado nas estâncias<br />

dos Povos, a fim de que pudessem abastecer de carne a população missioneira (MORAES, 2008, p. 32).<br />

Este último tipo de vacarias ligava-se diretamente à constituição de estâncias pelos Povos Missioneiros. Essas<br />

estâncias consistiam em imensas áreas que eram colocadas sob o controle de um povo específico, destacando-se as<br />

estâncias dos Povos de Japejú e São Miguel. Localizavam-se ao sul do rio Ibicuí, na região que, no século seguinte,<br />

conformaria a Campanha do Rio Grande do Sul. Dentro delas, organizavam-se unidades menores de exploração,<br />

normalmente aproveitando a confluência de rios a arroios. Esses postos consistiam em locais dotados de currais, praça,<br />

capela e moradia para os trabalhadores. Entre eles, uma rede de caminhos terrestres e portos fluviais procurava ensejar a<br />

integração do espaço missioneiro. Como bem destacou Moraes (2008), essa pecuária missioneira consistiu em um sistema<br />

pastoril diferente daquele que era levado a cabo nas regiões coloniais hispânicas e lusitanas. Entre outros aspectos, essa<br />

especificidade residia no fato de produzirem voltadas para um mercado interno de abastecimento de carne dos Povos<br />

missioneiros, cuja demografia esteve em expansão ao longo dos dois primeiros terços do século XVIII (a orientação externa e<br />

atlântica do mercado, principalmente destinado à comercialização de couros, somente teria preeminência após 1770). Além<br />

disso, a apropriação dos recursos, a organização do trabalho e a distribuição dos produtos se fazia em marcos comunais,<br />

dentro do tupambaé missioneiro. Nesse sentido, longe de ser uma atividade “natural”, a pecuária missioneira consistiu em um<br />

ativo emprego de técnicas e trabalho para disponibilizar à população das Missões um aporte de energia extremamente<br />

significativo. Nas palavras de Moraes (2008, p. 23):<br />

El mundo rural mas allá del Yí o del Negro no era un patio trasero del agro de las jurisdicciones de Montevideo y<br />

Buenos Aires, es decir no era una versión más débil, más atrasada, más despoblada, del mismo paisaje agrario del sur


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rioplatense. Era otro mundo rural, más antiguo, con raíces demográficas, económicas, institucionales y culturales<br />

distintas.(grifo da autora)<br />

Assim, a paisagem pastoril-missioneira foi um sistema de criação de gado com especificidades marcantes e que não<br />

pode ser considerada apenas uma versão anômala dos padrões criatórios de outras regiões coloniais. Respeitado esse<br />

caráter específico, é preciso notar, porém, que alguns traços gerais eram análogos em todos esses casos. Um dos pontos<br />

que merece destaque é o caráter variado dos rebanhos que eram criados nas estâncias missioneiras. Assim como nas<br />

estâncias platinas e rio-grandenses, o gado bovino era o principal, mas também havia produção de mulas visando os<br />

mercados de Potosi e das Minas Gerais. Por sua vez, os cavalares estavam presentes tanto para servir de montaria no<br />

sistema de pastoreio a cavalo empregado pelos missioneiros, quando para serem utilizados como matrizes na produção de<br />

muares. Um traço um pouco mais específico era o alto número de ovinos presentes nas estâncias missioneiras, destinados,<br />

principalmente, à produção de lã para as atividades de fiação e tecelagem desenvolvidos nos próprios Povos.<br />

Um outro ponto, bastante genérico, mas nem por isso menos importante, que pode ser considerado semelhante entre<br />

os diversos sistemas pecuários praticados na região platina e no Rio Grande do Sul é seu caráter extensivo, e o fato de que<br />

seu conjunto de técnicas orientava-se para promover e controlar diferentes níveis de domesticação dos animais. Voltaremos<br />

a esse tema, adiante.<br />

O período que começa com a expulsão dos jesuítas e a passagem dos Povos para administração laica (1767),<br />

especialmente após 1780, estendendo-se até os conturbados anos iniciais do século <strong>XIX</strong>, foi uma época de erosão desse<br />

sistema pastoril construído nas décadas anteriores. Isso se deu, entre outros fatores, em razão da má administração dos<br />

Povos, combinada com o recrudescimento da pressão das frentes coloniais hispano-platina e luso-brasileira sobre o território<br />

missioneiro, especialmente e antes de tudo, sobre suas estâncias. A dispersão dos guaranis para fora do complexo<br />

missioneiro avultou-se e esteve acompanhada por um declínio da produção pecuária. Nesse período, ficaram cada vez mais


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comuns as vacarias para a retirada do couro, promovidas por bandos de arreadores de origens diversas e, por vezes, por<br />

guaranis contratados a particulares. Essa atividade era verdadeiramente predatória e tinha alto potencial destrutivo para os<br />

rebanhos.<br />

Moraes (2008) apontou que a paisagem pastoril-missioneira modificou sensivelmente a organização ecológica e<br />

territorial de uma região que ainda havia sido pouco tocada pelas forças da colonização. O período final de sua<br />

desarticulação ocorreu nas primeiras décadas do século <strong>XIX</strong>. Em 1801, os Sete Povos da margem oriental do rio Uruguai<br />

foram conquistados pelos luso-brasileiros. O território que havia pertencido às estâncias missioneiras, localizadas ao sul do<br />

Ibicuí, também saiu do domínio dos Povos e foi repartido como espólio da conquista.<br />

A pecuária tradicional rio-grandense no século <strong>XIX</strong><br />

A conquista luso-brasileira dos territórios missioneiros, localizados no lado oriental do Rio Uruguai, foi caracterizada<br />

por um avanço de povoadores e guerreiros que promoviam contínuas atividades de arreadas de gado e apossamento de<br />

terras. Quando findaram as guerras cisplatinas e o Estado Oriental do Uruguai emergiu definitivamente como nação soberana<br />

(1828), a questão da fronteira daquele país com o Império do Brasil ainda não estava totalmente resolvida (GOLIN, 2004).<br />

Mesmo que não fosse ponto pacífico, ficou estabelecido que o limite nacional no sudoeste ficaria marcado pelo rio Quarai e<br />

daí em uma fronteira seca que passaria pela paróquia de Santana do Livramento.<br />

Contudo, não obstante o estabelecimento desses limites, a ampla região formada pelas pastagens que iam desde a<br />

Campanha Rio-Grandense até as margens dos rios Yí e Negro, no centro da República do Uruguai, formavam uma paisagem<br />

agrária contínua, onde havia permamente fluxo de pessoas, gado, mercadorias e informações (SOUZA e PRADO, 2004).


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Naturalmente, o fato de que se buscavam instituir diferentes soberanias nacionais de cada lado da linha divisória, não podia<br />

ser negligenciado. Os sujeitos históricos elaboravam continuamente, e de modo diverso de acordo com sua posição social, as<br />

estratégias para lidar com essa a existência desse limite nacional de permeio àquela grande zona fronteiriça (THOMPSON<br />

FLORES e FARINATTI, 2009).<br />

Por outro lado, como apontou Moraes (2008), ainda que a paisagem pastoril-missioneira, tal como existira no século<br />

XVIII, tenha se desagregado, muitos de seus traços econômicos, demográficos e culturais seguiram presentes na região por<br />

todo o século <strong>XIX</strong>. De fato, os registros de batismo das recém-criadas paróquias luso-brasileiras da Campanha indicam uma<br />

presença demográfica expressiva de egressos das Missões. Os guaranis formavam 55% das mães e 44% dos pais que<br />

levaram seus filhos a batizar na Capela de Alegrete, entre 1821 e 1828 (FARINATTI e RIBEIRO, 2010, p. 8). Essa população<br />

e seus descendentes foram essenciais como povoadores, trabalhadores e soldados na constituição da sociedade que se<br />

erigiu na Campanha, na primeira metade do Oitocentos. Mas quais eram as características do mundo agrário no renovado<br />

contexto de dominação luso-brasileira na região?<br />

Por muito tempo, as descrições do mundo agrário rio-grandense do século <strong>XIX</strong> evocavam uma região dominada quase<br />

que exclusivamente por enormes latifúndios pecuários. A sociedade ali existente seria formada por uma dicotomia entre os<br />

grandes senhores e os peões que trabalhavam em suas estâncias. Estes formariam um estrato impreciso de homens livres<br />

pobres, que viveriam entre o trabalho assalariado nos estabelecimentos pecuários e atividades ilícitas, como o contrabando e<br />

o roubo de gado.<br />

Contudo, nos últimos anos, vem crescendo o número de novas pesquisas que colocam em questão esse quadro<br />

demasiadamente simplificador. No que se refere à Campanha, especificamente, os trabalhos apontaram que, em relação às<br />

demais regiões da província, no século <strong>XIX</strong>, a presença de grandes estabelecimentos pecuários, bem como a especialização<br />

na criação de gado bovino, eram, de fato, mais marcantes. Entretanto, sua estrutura social estava longe das formas pelas


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quais vinha tradicionalmente sendo descrita. Uma pequena elite de grandes estancieiros ocupava, sim, as posições cimeiras<br />

da hierarquia sócio-econômica. Porém, ao lado deles, havia uma miríade de médios e pequenos criadores de gado e, em<br />

menor escala, também lavradores. Eles produziam a partir de variadas formas de acesso à terra (posse, propriedade,<br />

arrendamento, produção “a favor” nos campos onde estavam agregados) e, muitas vezes, era das famílias desses pequenos<br />

produtores que saíam os peões para o trabalho nas estâncias. Esses peões, porém, não estavam sozinhos. Ao lado deles, os<br />

escravos tinham grande importância no costeio do gado, principalmente nas grandes estâncias, além de trabalharem em<br />

diversas outras atividades (BELL, 1998; ZARTH, 2002; GARCIA, 2005; FARINATTI, 2010; LEIPNITZ, 2010).<br />

No que se refere às unidades produtivas de maior envergadura econômica, a produção estava francamente orientada<br />

para a criação de novilhos para serem encaminhados, em pé, às charqueadas, especialmente as do leste da província do Rio<br />

Grande do Sul. A história da instalação das grandes estâncias, na primeira metade do século <strong>XIX</strong>, é a história da instituição<br />

de uma ordem assentada na propriedade privada da terra e do gado sobre um espaço onde antes havia a propriedade<br />

comunal missioneira ou das tribos nômades charruas e minuanos, e também a atividade difusa das arreadas e retirada do<br />

couro por bandos de changadores. Não houve nada de automático e mecânico nesse processo. A reivindicação de soberania<br />

do Império sobre aqueles territórios e a vigência de uma ordem legal assente na propriedade privada não tinham como<br />

garantir, de per se, sua própria aplicação. Outras lógicas de acesso a recursos que não a puramente mercantil, como a<br />

recompensa e redistribuição por atividades guerreiras, e também o acesso costumeiro e comunal seguiam presentes, ainda<br />

que, provavelmente, estivessem enfraquecendo ao longo do século. Além disso, aquele estava longe de ser um Estado<br />

pelnamente burocratizado e a garantia dos direitos formais e costumeiros passavam pelo estabelecimento de vínculos<br />

pessoais com vizinhos e membros mais poderosos da hierarquia social. Este é, porém, todo um tema de pesquisa que recém<br />

começa a ser levantado pelos historiadores.


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Essa pecuária tradicional, realizada em campos não-cercados, teve seus traços principais reiterados ao longo da maior<br />

parte do Oitocentos. Foi somente a partir da década de 1870, e mais fortemente no final do século, que fatores como o final<br />

da escravidão, a difusão do cercamento dos campos, a introdução de novas raças animais e a expansão das ferrovias para a<br />

Campanha modificaram de modo mais sensível aquele contexto, ainda que muito de suas características não tenham<br />

desaparecido senão muito tempo depois. Porém, essa situação não deve incentivar a retomada da velha ideia segundo a<br />

qual a pecuária tradicional consistiu em um sistema de produção quase natural, que pouco ou nada modificou o meio<br />

ambiente ou os âmbitos social, econômico e institucional da região da Campanha. Como deve ter ficado claro, isso não foi o<br />

caso da pecuária missioneira do século XVIII e também não se aplica ao sistema de criação de gado luso-brasileiro<br />

tradicional do século seguinte. Vamos nos deter um pouco mais, agora, nas características próprias deste último.<br />

Domesticação e técnica pecuária<br />

Como já foi dito, o agro da Campanha Rio-grandense era muito mais complexo do que um punhado de enormes<br />

estabelecimentos pecuários e, ao longo do século <strong>XIX</strong>, muitos dos subalternos tinham acesso a alguns meios de produção.<br />

Todavia, a importância econômica das grandes estâncias, pertencentes a uma pequena elite de famílias abastadas, é<br />

inegável. Em Alegrete, o maior município da Campanha, em uma amostra de 206 inventários post mortem abertos entre 1831<br />

e 1865, os 16 mais abastados senhores eram cerca de 8% dos titulares dos inventários, porém concentravam cerca de 60%


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da fortuna e 53% de todo o gado relacionado naqueles processos. 4 Considerando que os inventários post mortem são uma<br />

fonte histórica que tende a sobre-representar as camadas mais abastadas da população, essa disparidade devia ser mesmo<br />

maior. Ainda que pudessem desempenhar também outras atividades, como o comércio de tropas ou de mercadorias, todos<br />

os titulares daquelas fortunas eram abastados estancieiros, possuindo pelo menos uma grande estância (com mais de 2.000<br />

reses e mais de 6.000 ha.), sendo que alguns deles possuíam, também, terras na República do Uruguai (FARINATTI, 2010,<br />

p. 56).<br />

Tomando as grandes estâncias como unidades produtivas, a regra geral é a da predominância da atividade pecuária.<br />

Uma agricultura subsidiária, para sustento próprio ou para venda em mercados locais e regionais também era praticada.<br />

Como já foi dito, a predominância clara era do gado vacum, destinado à criação para venda às charqueadas. A criação de<br />

muares, destinados à feira de Sorocaba, esteve presente, declinando ao longo do século. O contrário se deu com os ovinos,<br />

que tenderam a estar mais presentes após 1860, quando os mercados para a lã começavam a encorpar-se. Assim como no<br />

caso da pecuária missioneira, e também no caso da pecuária platina, os cavalares marcavam presença principalmente para a<br />

montaria, para o pastoreio das reses bovinas, e para a produção de mulas. Além disso, alguns estancieiros vendiam para o<br />

exército, naquele século onde o estado de guerra era crônico (FARINATTI, 2010).<br />

Assim, o estímulo do mercado de gado em pé para as charqueadas e, de modo indireto, o impulso da demanda de<br />

charque nos portos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, tinham uma força bastante efetiva na moldagem da organização<br />

das estâncias, do ponto de vista de sua racionalidade produtiva. Tratava-se de organizar estabelecimentos adequados,<br />

4 Os inventários post mortem tem sido largamente utilizado pela história social e econômica. Entre muitos outros aspectos, sua importância reside no<br />

fato de que contém uma descrição e avaliação dos bens do falecido, permitindo realizar estudos sobre a economia, a cultura material e reconstruir<br />

hierarquias de fortunas.


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principalmente, a esse fim. Essa organização refletiu a experiência acumulada tanto pela produção pastoril luso-brasileira no<br />

leste do Rio Grande de São Pedro, quando pela própria pecuária missioneira. A chave unificadora das técnicas empregadas<br />

no pastoreio parece ter sido o controle e a regulagem de diferentes níveis de domesticação dos animais.<br />

Como apontou Jacques Barrau (1989), a domesticação pode ser entendida como um processo de intervenção humana<br />

nos aspectos fundamentais da vida animal e vegetal: proteção, nutrição e reprodução. Na visão do autor, a domesticação não<br />

é considerada uma linha precisa entre o mundo natural e a cultura, mas sim é vista como um continuum, como um gradiente.<br />

É justamente o grau de intervenção humana em cada um daqueles processos que determina o grau da domesticação. O<br />

objetivo costuma ser a modificação das espécies de modo a potencializar características úteis aos seres humanos e a<br />

eliminar as que lhes são um entrave. Ao mesmo tempo, essa intervenção vai tornando as espécies atingidas cada vez mais<br />

dependentes dos seres humanos, chegando ao ponto de que a população domesticada não consiga mais realizar, sozinha,<br />

uma daquelas três funções indispensáveis à sua sobrevivência (BARRAU, 1989).<br />

Para o caso dos animais vacuns e cavalares existentes na região, nos séculos XVII e XVIII, Moraes (2008, p. 30)<br />

apontou que se dividiam em três grupos. Os silvestres eram aqueles que, tendo escapado ao controle do homem, produziram<br />

descendência que não conheceu esse controle. 5 Os alçados eram os animais domesticados que se evadiam por alguma<br />

razão, como secas e guerras. Por fim, a autora nomeia como plenamente domesticados aqueles animais que permaneciam<br />

sob o controle humano, ficando “sujeitos a rodeio”. Uma divisão semelhante parece ter estado presente, também, nas áreas<br />

controladas pelos luso-brasileiros e pelos colonos hispano-platinos, naquele mesmo período.<br />

5 No caso dos vacuns eram chamados “cimarrones”, ou, no vocábulo aportuguesado, “gado chimarrão”. No caso dos cavalares, eram os “baguais”<br />

(MORAES, 2008, p. 30)


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No mundo agrário da Campanha no século <strong>XIX</strong> a tônica geral era semelhante, porém, houve um refinamento no modo<br />

como os próprios contemporâneos categorizaram essa divisão. Com o processo de conquista e colonização luso-brasileira ao<br />

sul do Ibicuí, nas primeiras décadas do século <strong>XIX</strong>, foram realizadas grandes arreadas de gado e fundação de<br />

estabelecimentos de envergaduras econômicas diversas. Ao longo do século, diminuiu muito o número de animais vacuns<br />

totalmente selvagens. Não há como fazer uma estimativa segura, mas é provável que já não fossem significativos na década<br />

de 1830. Como veremos adiante, o mesmo não ocorreu com os cavalares, cujas manadas selvagens continuavam a cruzar a<br />

Campanha em meados do Oitocentos. O gado alçado, por sua vez, seguiu a existir em todo o período, em virtude dos efeitos<br />

nocivos das guerras ou de fenômenos naturais.<br />

Contudo, os habitantes da Campanha construíram categorias também para designar diferentes graus de domesticação<br />

dentro do conjunto de animais domesticados. Trata-se de dividir vacuns, cavalares e muares em animais “mansos” e “xucros”.<br />

No caso dos vacuns existentes na amostra de inventários de Alegrete, já referida, essa divisão entre reses de criar “xucras” e<br />

“mansas” está explícita na quase totalidade dos rebanhos inventariados (cerca de 94%), repetindo um padrão já encontrado<br />

nos tempos coloniais tanto no Rio Grande de São Pedro quanto nas áreas vizinhas, de colonização espanhola. Esses<br />

estudos encontram o vocábulo “xucro” como sinônimo, ora de gado selvagem, ora de gado “alçado” (GELMAN, 1998;<br />

OSÓRIO, 2007). Esse, porém, não parece ter sido o caso do gado descrito nos inventários da amostra pesquisada. O<br />

significado que a expressão “xucro” assumia no contexto em análise, pode ser melhor compreendido a partir do único<br />

inventário da amostra em que foram descritas reses “alçadas”. Trata-se do inventário de dona Maria Mância Ribeiro, esposa<br />

do General Bento Manoel Ribeiro, aberto em 1854.<br />

No processo constava a presença de 200 reses mansas, 340 reses de gado xucro “costeado” e aproximadamente 700<br />

reses de gado alçado. As primeiras valiam 9$000 e as segundas 7$000, dentro da média de preços correntes para reses<br />

mansas e xucras nos inventários cujas avaliações de bens ocorreram naquele ano. As reses alçadas, porém, apresentam


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uma avaliação de 5$000, portanto inferior e não compatível com nenhum preço de reses xucras dos outros processos. 6 Ali<br />

está presente uma clara graduação em termos de domesticação que aparece como critério para a categorização dos animais<br />

criados. Ela também se reflete no preço, demonstrando a incorporação de trabalho ao valor do animal como mercadoria. O<br />

que variava era o nível de domesticação dos animais. Com gado manso se faziam com mais facilidade todos os<br />

procedimentos atinentes à criação, denotando a aplicação de um grau mais intenso de trabalho. O gado xucro “costeado” era<br />

aquele que se procurava, na medida do possível, manter dentro dos limites dos campos de seus proprietários, e sobre os<br />

quais certamente se efetuava a castração e a marcação. Em 1832, o futuro Conde de Piratini recomendava que o gado<br />

manso fosse marcado na perna, do lado esquerdo, e o gado xucro na anca, do mesmo lado (CESAR, 1978, p. 38). Essa<br />

distinção parece ter perdurado, pois consta nas memórias que o médico Severino de Sá Brito escreveu sobre o mundo da<br />

Campanha durante sua infância, na década de 1870 (SÁ BRITO, s/d, p. 64). 7<br />

Ao gado xucro era aplicada uma intensidade menor de manejo, sem garantir um nível mais forte de controle. Contudo,<br />

havia um limite para essa diminuição da intensidade do costeio. Além desse limite, poderia haver o extravio desse gado ou o<br />

fato de que, mesmo que permanecesse dentro das terras de seu dono, ele voltasse a se tornar bravio e os animais jovens<br />

que ali nascessem não fossem marcados e castrados. O gado estaria se tornando alçado. Assim, a palavra “xucro” não pode<br />

ser tomada aqui como sinônimo exato de gado não-domesticado. A designação de “reses xucras” até podia incluir dentro<br />

desse rebanho reses realmente alçadas, mas, em maioria, designava reses com um certo grau de domesticação, localizado<br />

entre os extremos ocupados pelo que se considerava gado manso, de um lado, e alçado, de outro.<br />

6 “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 11, N. 152, A. 1854. APRS”.<br />

7 CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música..., 1978, p. 38. BRITO, Severino de Sá. Trabalhos e costumes dos gauchos, s/d ,<br />

2.ed., p. 64.


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De fato, era corrente a prática de deixar uma grande parte do rebanho como xucro, exigindo uma aplicação de trabalho<br />

menor, como uma forma dos criadores conseguirem economizar mão-de-obra, em um contexto onde ela não era abundante<br />

(BELL, 1998). Essa era uma prática adequada, sobretudo, aos criadores que detinham maiores rebanhos, onde a aplicação<br />

de trabalho exigida era muito maior. Estima-se que um ou dois trabalhadores pudessem costear algo entre 400 e 600 reses, o<br />

que podia ser resolvido com trabalho familiar, exceção feita aos intensos períodos de marcação e castração. Estas<br />

atividades, porém, não ocupavam mais do que algumas semanas no ano. De fato, os dados da amostra de inventários<br />

estudada década à década, apontam que a proporção de reses mansas variava de acordo com a dimensão do rebanho. Nos<br />

estoques vacuns de até 100 reses, esse número chegou a 100% na década de 1850. Já nos que tinham até 500 reses,<br />

encontramos uma média de 35% de reses mansas naquela mesma década. Por sua vez, nas grandes estâncias, com<br />

rebanhos que superavam as 2.000 reses, a média de animais mansos foi de apenas 10%. 8<br />

O universo das técnicas agrárias reflete essa busca por controlar os graus de domesticação. As tarefas atinentes ao<br />

manejo do gado estavam, naquele sistema extensivo e dependente das boas condições das pastagens naturais, fortemente<br />

ligadas ao ciclo das estações. As grandes atividades das estâncias eram os rodeios. Essa palavra assumia um duplo<br />

significado. Por um lado, designava os locais específicos, dentro das estâncias, onde eram reunidos os gados que estavam<br />

aquerenciados em suas redondezas. Ao mesmo tempo, fazer ou parar “rodeio” queria dizer partir com um número suficiente<br />

8 Inventários post mortem. Cartórios de Órfãos e Ausentes, do Cível e Crime e da Provedoria, 1831-1865. Alegrete. Arquivo Público do Estado do Rio<br />

Grande do Sul (APERS).


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de trabalhadores e reunir, no lugar de mesmo nome, todo o gado que pastava nos arredores daquele local. Nessas ocasiões,<br />

o gado era reconhecido, contado e podiam-se realizar curas em feridas e bicheiras. 9<br />

Há informações conflitantes quanto à periodicidade em que se realizava essa tarefa. Em 1832, o futuro Conde de<br />

Piratini recomendou a seu capataz que se fizessem rodeios o mais amiúde possível sem que se possa compreender<br />

exatamente ao que essa expressão se refere. Para o historiador Guilhermino César, trata-se de uma advertência que denota<br />

um estancieiro excepcionalmente zeloso porque não era prática corrente parar mais de dois rodeios por ano. 10 Contra todas<br />

as outras referências e, ao que parece, com muito exagero, o Visconde de São Leopoldo sugeriu que eles eram feitos todas<br />

as semanas. 11 Severino de Sá Brito referiu que se paravam rodeios em pelo menos três épocas por ano, nas oportunidades<br />

da marcação, da castração e da formação de tropas para as charqueadas (SÁ BRITO, s/d). Creio que se essa informação<br />

ajuda a compor uma freqüência mínima de três ou até duas oportunidades por ano (caso a marcação e a castração fossem<br />

realizadas na mesma época) para a realização dos rodeios, afinal, marcar, castrar e vender os animais eram procedimentos<br />

obrigatórios para qualquer estabelecimento de criação em um ano de condições normais de produção. Além delas, variando<br />

de acordo com a disponibilidade de trabalhadores, as dimensões do rebanho e os cálculos dos criadores, podia-se reunir o<br />

gado um maior número de vezes ao longo do ano.<br />

9 Stephen Bell elaborou uma ótima descrição dessas atividades, baseado principalmente em um informe sobre a criação de gado elaborado pelo<br />

Visconde de São Leopoldo, que fora Presidente da Província do Rio Grande do Sul: “Informe do Visconde de São Leopoldo, sem indicação de<br />

destinatário, sobre a criação de gado na Província do Rio Grande do Sul, 1842)”. Manuscritos, II-36, I, 18. BN (de agora em diante o título do<br />

documento será grafado apenas “Informe...”) (BELL, 1998)<br />

10 César baseia-se em Nicolau Dreys para afirmar a periodicidade de duas épocas por ano em que se fazia rodeios (CESAR, 1978, p.38).<br />

11 “Informe...” Manuscritos, II-36, I, 18, Art. 4. BN.


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A marcação e a castração eram realizadas no outono, no inverno ou no início da primavera, o que dava tempo para as<br />

feridas geradas por essas atividades cicatrizarem e evitava que os insetos, comuns no verão, depositassem ali suas larvas<br />

gerando bicheiras. 12 Ambas as atividades eram as que exigiam um incremento mais significativo de trabalhadores,<br />

representando os picos estacionais de demanda de mão-de-obra nos estabelecimentos pecuários. Por sua vez, as tropas que<br />

partiam das estâncias rumo às charqueadas eram formadas em uma longa temporada, que ia de novembro até inícios de<br />

maio do ano seguinte, quando o bom pasto começava a escassear de novo e se principiava a preparação para as atividades<br />

de marcação e castração.<br />

Por fim, naquele mundo onde não existiam cercas artificiais nas divisas dos estabelecimentos de criação, o problema<br />

da evasão de gado era uma constante. Em tempos de seca, os rios e arroios tornavam-se rasos ou mesmo vazios, sendo<br />

facilmente vadeados pelas reses que partiam em busca de água e pasto. Ainda, os períodos de guerra, tão freqüentes na<br />

região e época tratada, traziam problemas adicionais. A prática voraz de recrutamentos arrancava seguidamente<br />

trabalhadores às lides produtivas. Sem trabalhos de marcação e castração, perdia-se o controle da produção anual. Sem<br />

operações de manejo regular, o gado ia-se desacostumando ao costeio e tornando-se mais bravio. Da mesma forma, o<br />

problema da dispersão do gado pela falta de água e alimento propiciada por uma seca, por exemplo, era catalisado se a<br />

unidade produtiva não pudesse contar com trabalhadores para evitar sua dispersão. Além de tudo, nas épocas de guerra, a<br />

passagem dos exércitos e a existência de bandos de desertores podiam desfalcar verdadeiramente os rebanhos. Por todos<br />

12 Em 1832, o futuro Conde de Piratini ordenava que a marcação fosse feita “o mais cedo que for possível a fim de não encontrar este trabalho com<br />

outros que se acumulam para o tempo de inverno...” (CESAR, 1978, p. 38). Dez anos depois, o Visconde de São Leopoldo afirmou que a marcação<br />

era praticada uma vez por ano, na estação fresca do outono. “Informe...”. Manuscritos, II-36, I, 18, art. “4”, BN. Severino de Sá Brito lembra que, na<br />

estância onde cresceu durante segunda metade do século <strong>XIX</strong>, a marcação era realizada no inverno e que, durante esses afazeres, se passavam<br />

alguns dias e eram feitos diversos rodeios BRITO, s/d ).


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esses motivos, era preciso fazer repontes, pastoreando o gado o mais amiúde possível e também efetuar recrutas ou<br />

reculutas, ou seja, partir à procura do gado já evadido, em campos vizinhos e além. 13<br />

Esses trabalhos envolviam montaria. Os cavalos eram indispensáveis para a viabilidade da criação bovina. Todo o<br />

trabalho de manejo do gado era feito a cavalo, de modo que os equinos ocupavam um lugar obrigatório dentro das estâncias.<br />

Os cavalos eram, também, o grande meio de transporte para vencer as lonjuras do pampa. Para as cargas e viagem com<br />

mais bagagem, empregavam-se carretas, com juntas de bois mansos. Para o transporte individual, sempre cavalos. Saint-<br />

Hilaire observou que “toda a gente, mesmo pobre, inclusive os escravos, não dão um passo sem ser a cavalo” (SAINT-<br />

HILAIRE, 1997, p.52). Além disso, podiam-se criar cavalos com fins comerciais, ainda que este ficasse sempre abaixo do<br />

gado bovino. Podia-se vender o couro dos eqüinos ou comercializar os animais em pé. A demanda tendia a aumentar,<br />

principalmente, nos períodos de guerra, pois os cavalos eram essenciais nos tipos de combates travados na região. Como a<br />

guerra no sul era crônica, abastecer os exércitos de cavalos tornava-se um bom negócio. Por outro lado, isso também<br />

ampliava os roubos e as requisições (dificilmente ressarcidas) por parte de exércitos e bandos armados.<br />

Nos inventários, aparecem, de um lado, os “cavalos mansos”, em geral cavalos de serviço, empregados no costeio do<br />

gado vacum. De outro, uma designação genérica de “éguas xucras” ou “animais cavalares”. Esta consistia em uma manada<br />

de éguas, potros e alguns reprodutores, todos ainda não domados, que os criadores buscavam aquerenciar e manter dentro<br />

dos limites de sua propriedade. Esse era o reservatório de animais de onde sairiam, depois de domados, os cavalos de<br />

serviço. Nessa manada, também estavam os ventres para a produção de mulas ou para a produção comercial de potros.<br />

13 O futuro Conde de Piratini dispôs que seu capataz não negasse rodeios a quem os pedisse, havendo gente para os parar. Guilhermino César<br />

explica que os donos de reses evadidas, ao providenciarem recrutas, podiam “pedir rodeio” ao dono do campo onde supunha encontrá-las. “Reunido o<br />

gado, com o concurso das duas partes, procede-se à busca.” Negar rodeio era sinônimo de má fé e era condenado por códigos de posturas de vários<br />

municípios riograndenses (CESAR, Guilhermino.1978).


DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (<strong>SÉCULO</strong> <strong>XIX</strong>) 80<br />

A doma dos cavalos era uma atividade assaz valorizada. Enquanto a diferença de preços, presentes na amostra de<br />

inventários trabalhada, entre os bovinos xucros e os mansos oscila entre 10 e 20%, a doma poderia elevar em até 300% o<br />

preço dos animais cavalares. 14 A verdade é que, até meados do século <strong>XIX</strong>, por suas poucas possibilidades comerciais, as<br />

éguas e cavalos xucros tinham valor reduzido. Por outro lado, cavalos bem domados podiam valer mesmo mais do que uma<br />

rês mansa em ponto de abate. Os peões domadores eram melhor remunerados e os escravos que exerciam essa função<br />

eram mais valorizados. A doma era uma atividade que envolvia sério risco, implicava em grande agregação de valor ao<br />

animal e beneficiava-se do grande prestígio que a destreza nas lides campeiras gozava no contexto daquela cultura.<br />

A domesticação era, portanto, a clivagem essencial que instaurava a classificação dos animais cuja criação era o<br />

objetivo das estâncias. Do ponto de vista técnico, o controle dos graus de domesticação dos rebanhos parece mesmo ter sido<br />

a chave para a administração das grandes estâncias da pecuária tradicional sulina.<br />

As estâncias oitocentistas como centros de domesticação<br />

Se tomarmos o controle dos níveis de domesticação como orientação técnica geral, podemos perceber uma lógica que<br />

organiza a estância como um centro de domesticação. Essa lógica era evidente no caso dos principais animais de criação,<br />

mas acabava por transbordar esses limites e instaurava-se nas relações dos homens com outros animais e plantas na<br />

Campanha.<br />

14 Inventários post mortem. Cartórios de Órfãos e Ausentes, do Cível e Crime e da Provedoria, 1831-1865. Alegrete. Arquivo Público do Estado do Rio<br />

Grande do Sul (APERS).


DOMESTICAÇÃO, TÉCNICA E PAISAGEM AGRÁRIA NA PECUÁRIA TRADICIONAL DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE (<strong>SÉCULO</strong> <strong>XIX</strong>) 81<br />

Observando a descrição contida nos inventários post mortem estudados, é possível perceber que as grandes<br />

estâncias costumavam obedecer um padrão de organização espacial. 15 Um conjunto variável de construções formava um<br />

domus, nos vários sentidos da palavra: o lar doméstico da família proprietária; o local de residência dos donos daquele<br />

domínio, de onde vinha um impulso de dominação e direção; o núcleo do centro de domesticação que era a estância, sob o<br />

aspecto da técnica pecuária. Ali estava a casa principal que, no Oitocentos, era quase sempre feita de pedras e coberta de<br />

telhas e, com o correr do século, assoalhada e, nos casos mais afortunados, também forrada. Por vezes, a cozinha se<br />

localizava em construção separada, em virtude do risco de incêndio e, talvez, também para evitar a presença de fumaça e<br />

fuligem dentro da casa principal. Por sua vez, as senzalas podiam tomar a forma de construções anexas à casa principal ou<br />

mesmo separadas e próximas a ela. Ao invés de senzala, podia haver a presença de pequenos ranchos cobertos de capim,<br />

também próximos a esse complexo principal, que abrigavam os escravos.<br />

Em geral, próximas à casa principal e feitas de pau-à-pique barreado ficavam construções que abrigavam atafonas<br />

para o fabrico de farinha de trigo ou mandioca, galpões e paióis, sendo, estes últimos, mais raros na Campanha do que no<br />

centro-norte do Rio Grande do Sul (FARINATTI, 2010). Nas proximidades, currais e mangueiras, feitos de pedras, madeira ou<br />

barro eram o espaço por excelência da reunião e manejo do gado, passo decisivo na intensificação do grau de domesticação<br />

desses animais. As maiores estâncias costumavam, também, contar com pomares que envolviam dezenas e até centenas de<br />

árvores frutíferas. Todas as árvores relacionadas, que receberam atribuição de valor monetário no inventário, tinham chegado<br />

à América com a colonização, sendo as principais as laranjeiras, as limeiras e os pessegueiros. Um outro espaço presente<br />

eram lavouras de dimensão variada, descritas nos inventários normalmente como “plantações”. Sempre cercadas (em grande<br />

15 Todas as informações referentes ao espaço das estâncias, contidas neste item, estão baseadas na análise da amostra de inventários post mortem<br />

de Alegrete (1831-1865), tantas vezes já referidas ao longo deste trabalho.


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parte com tramados de plantas de espinho) para evitar a entrada do gado, ali se produzia trigo, feijão, milho, por vezes<br />

mandioca, abóboras, favas e outras culturas. Por fim, pequenos potreiros e piquetes cercados destinados aos animais de<br />

tração (“bois mansos”), às vacas de leite e aos cavalos em serviço, compunha o complemento desse conjunto de construções<br />

principais das grandes estâncias. O “gado menor”, como aves de criação e porcos nunca aparece nos inventários, mas, ao<br />

menos no caso das aves, é possível ter uma ideia de sua existência por outros documentos, como as instruções que o Conde<br />

de Piratini enviou a seu capataz da Estância da Música, em 1832 (CESAR, 1978).<br />

Além desse complexo do domus, que aglutinava domicílio e núcleo da domesticação, as maiores estâncias, ou<br />

aquelas onde havia extremidades onde não existiam limites naturais como rios e arroios, também contavam com a presença<br />

de outros agrupamentos satélites, como estâncias menores (que podiam ser moradias de filhos casados) ou, mais<br />

comumente, postos (onde vivia o peão posteiro e, se fosse o caso, também sua família). Além da casa e plantações, também<br />

podia haver currais e mangueiras nesses postos, reproduzindo, de modo bem mais modesto, parte da estrutura do domus<br />

principal.<br />

Se relacionarmos essa estrutura às diferenças de grau de domesticação entre o gado vacum, encontraremos o gado<br />

presente no domus e manejado quase que diariamente, como animais de tração (“bois mansos”), vacas leiteiras e cavalos de<br />

serviço. Depois, as “reses de criar mansas” consistindo em um conjunto de animais vacuns manejados frequentemente nos<br />

currais e pontos de rodeio. Finalmente, um grupo de “reses de criar xucras”, tanto maior quanto maior eram os rebanhos<br />

daquele estabelecimento. Estas, como já dissemos, estavam aquerenciadas nas terras da estância, eram marcadas e os<br />

machos eram castrados, mas seu manejo era muito mais eventual. Estas reses eram as que corriam mais risco de alçar-se<br />

em casos de secas ou falta de trabalhadores ocasionada, por exemplo, pelos recrutamentos executados nos freqüentes<br />

tempos de guerra.


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Esse verdadeiro continuum de variados graus de domesticação com o qual operava a grande estância oitocentista<br />

encontrava seu limite exterior nos animais alçados e, principalmente, nos animais selvagens que cruzavam a Campanha.<br />

Parte importante de relação para com eles tinha como referência, novamente, a lógica pecuária que orientava os<br />

estabelecimentos de criação. Se a domesticação implica na interferência humana na proteção dos animais envolvidos, isso<br />

tinha diretamente a ver com, pelo menos, dois tipos de animais selvagens que, em suas formas domesticadas eram parte<br />

constituinte das estâncias: os cavalos e os cães.<br />

Ao que tudo indica, no entanto, as manadas de cavalos selvagens perduraram por mais tempo do que as manadas<br />

bovinas. Essas “eguadas” ou “bagualadas” bravias eram um transtorno para os estancieiros, pois ao cruzarem por seus<br />

campos misturavam-se aos cavalos da estância e podiam levá-los à fuga. Além disso, suas correrias dispersavam o gado<br />

bovino podendo também levá-los à evasão. Ainda, ao se misturarem aos cavalos mansos, montados por homens, podiam<br />

fazê-los sair em disparada pondo risco a própria vida dos cavaleiros. Uma das formas empregadas para enfrentar esse<br />

problema, choca nossa sensibilidade atual. Eram feitas reuniões de gente para a matança desses animais. O objetivo dos<br />

homens era matar o maior número possível de éguas e cavalos. Os que desejassem poderiam laçar animais e ficar com eles<br />

vivos, ou então ficar com o couro dos que fossem abatidos, mas o objetivo primordial da atividade era a pura eliminação física<br />

e não o “aproveitamento econômico” da manada. Essa prática foi rememorada literariamente no conto “Correr Eguada”, de<br />

Simões Lopes Neto (LOPES NETO, 1987). As observações de Saint-Hilaire sobre os perigos trazidos pelas “bagualadas” e<br />

sobre as formas de caçá-los demonstram que a descrição contida no conto assentava-se sobre uma prática real (SAINT-<br />

HILAIRE, 1997, p.123).<br />

Por outro lado, é impossível falar-se em estâncias, na relação entre humanos e animais, sem mencionar os cães.<br />

Mesmo porque, matilhas de cães selvagens cruzavam a Campanha e o norte da Banda Oriental desde muito tempo antes da<br />

chegada dos luso-brasileiros. Tinham a mesma origem das vacas e cavalos “cimarrones” ou “chimarrões”, aliás, ganharam o


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mesmo nome desses. Atacavam os rebanhos bovinos e foram considerados uma verdadeira praga pelos estancieiros, que os<br />

caçaram sem trégua. Seu extermínio foi obra das primeiras décadas do século <strong>XIX</strong>, quando a produção regular de gado<br />

expandia-se pela Campanha. Saint-Hilaire os avistou, em 1821, quando cruzava a fronteira do Rio Grande com a Cisplatina:<br />

“Esses animais, originalmente evadidos das habitações, nada possuem que os distinga de modo particular (...) começam a<br />

rarear entre o Rio Grande e Santa Teresa, porque os fazendeiros, cujos rebanhos eles devoram, os exterminam”. 16<br />

De outra parte, os cães domésticos acompanharam a expansão da estância. Reparavam a casa e participavam das<br />

lides pecuárias, fossem bovinas ou ovinas. Quanto às primeiras, esse fato não surpreende a qualquer um que já tenha tido a<br />

oportunidade de participar de uma atividade pecuária em muitos dos campos gaúchos, ainda hoje. Os cães pastoreiam,<br />

ajudam a conduzir o gado para o local desejado pelos homens e evitam que se evada. Em 1842, o Visconde de São<br />

Leopoldo descreve a participação dos cães nas lides campeiras, ao lado dos peões. 17 Além disso, os cães parecem ter sido<br />

essenciais na criação de ovelhas. O Conde de Piratini recomenda a seu capataz que “quando houverem ovelhas na estância,<br />

devem ser acompanhadas de cães próprios para isso (...)” (CESAR, 1978, p. 42).<br />

Cabe deixar claro que tratamos, aqui, de uma lógica importante na estruturação das estâncias, mas que essa<br />

racionalidade não era a única que compunha a modelagem daqueles estabelecimentos. Ela existiu muito mais como<br />

referência técnica do que como realidade completa no espaço agrário. Em algumas estâncias e em algumas épocas mais do<br />

que em outras, como dissemos, os muares e ovinos ganharam maior protagonismo, impondo exigências um tanto diferentes<br />

para seu manejo. Além disso, as grandes estâncias costumavam abrigar estabelecimentos agrários e casas de moradia<br />

16 SAINT-HILAIRE, August. Op. cit., 1997, p. 121.<br />

17 VISCONDE DE SÃO LEOPOLDO apud BELL, Stephen. Op. cit., 1998, p. 42.


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pertencentes a uma série de outros sujeitos: filhos do proprietário, que já haviam constituído seus próprios núcleos familiares;<br />

escravos que ganhavam direito à manter produção própria; agregados que mantinham pequenas produções com mão-de-<br />

obra familiar. Todos esses agentes tinham também suas plantações e rebanhos, ainda que, comumente, eles fossem muito<br />

mais modestos do que o do proprietário. Os rebanhos xucros de todos eles misturavam-se, podendo também juntar-se aos<br />

dos vizinhos, naquele agro sem cercas e sem divisórias precisas a marcar os limites de cada estância. Todo esse contexto,<br />

permeado de conflitos latentes e efetivos, foi o ambiente em que se instalaram, na Campanha, os direitos de propriedade<br />

privada sobre terras e gado, em meio a um universo complexo de relações sociais e a uma hierarquização social desigual<br />

(GARCIA, 2005, FARINATTI, 2010, LEIPNITZ, 2010).<br />

A produção do espaço agrário se fazia na confluência desse conjunto heterogêneo de atores e das diversificadas<br />

relações sociais que eles tramavam, combinado àquelas diversas racionalidades apontadas acima, da qual a lógica do<br />

controle sobre os graus de domesticação de vacuns e cavalares era das mais importantes.<br />

Considerações Finais<br />

Parece óbvio que a intensidade da domesticação e seu impacto no ambiente da Campanha foi muito mais evidente a<br />

partir das transformações modernizantes de fins do século <strong>XIX</strong>, e cada vez mais ao longo do século XX, até os dias atuais.<br />

Porém, a reorganização a criação de um espaço propriamente agrário, a criação de um ager em meio a um pagus no<br />

território que viria a ser a Campanha rio-grandense foi forte e efetiva já nos séculos XVII e, principalmente, XVIII com a<br />

propagação das estâncias missioneiras. Depois, a criação de estabelecimentos pecuários sob a conquista luso-brasileiras, no<br />

Oitocentos, redefiniu esse processo.


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Estabelecendo-se como um centro de domesticação, a grande estância também funcionava como um pólo difusor de<br />

uma cultura material colonial e de animais e plantas de origem extra-americana (na maior parte das vezes européia, mas<br />

também africana e asiática). Ao arrebanhar o gado que estivera sob controle missioneiro ou ao trazer animais do Rio Grande<br />

de São Pedro e, ao submetê-los ao manejo pecuário, os criadores luso-brasileiros promoveram sua reprodução e<br />

protegeram-nos dos ataques de predadores. Ao mesmo tempo, através de atividades como a castração e o pastoreio regular<br />

modificaram a estrutura das populações animais e estimularam características úteis aos propósitos humanos, como a<br />

propensão ao manejo, traduzida nos vocábulos “manso” e “xucro”. De todos os aspectos da domesticação, possivelmente a<br />

influência na nutrição dos animais tenha sido a realizada com menor intensidade, porém isso estava dentro de um sistema de<br />

organização dos recursos produtivos e do trabalho que seguia uma racionalidade própria, estando vinculada à reprodução de<br />

uma ordem social extremamente desigual.<br />

Esperamos haver ficado claro que a construção do complexo pastoril oitocentista redefiniu e remodelou muitas bases<br />

do ambiente na Campanha. Nesse sentido, as relações entre homens, animais e plantas, naquele contexto, não parecem<br />

itens que possam ser negligenciados pelos historiadores. Parece-nos claro que uma atenção dirigida a esses aspectos pode<br />

estimular reflexões importantes no que se refere à cultura, à sociedade e à economia construídas naquele contexto.<br />

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