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Amizades trans-viadas num espaço urbano de ... - Fazendo Gênero

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<strong>Fazendo</strong> <strong>Gênero</strong> 8 - Corpo, Violência e Po<strong>de</strong>r<br />

Florianópolis, <strong>de</strong> 25 a 28 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />

<strong>Amiza<strong>de</strong>s</strong> <strong>trans</strong>-<strong>viadas</strong> <strong>num</strong> <strong>espaço</strong> <strong>urbano</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre – RS<br />

Thais Coelho da Silva (UFRGS)<br />

Estudos culturais; juventu<strong>de</strong>; amiza<strong>de</strong>.<br />

ST 45 – Sujeitos do feminismo: políticas e teorias<br />

Ancorada no campo teórico dos Estudos Culturais, esta comunicação constitui um recorte <strong>de</strong><br />

pesquisa em andamento que procura conhecer um grupo <strong>de</strong> jovens homoafetivos – que trocam<br />

afetos com pessoas <strong>de</strong> mesmo sexo – <strong>num</strong> <strong>espaço</strong> <strong>urbano</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre – RS. Para problematizar<br />

suas práticas, compus as análises utilizando-me <strong>de</strong> observações, diários <strong>de</strong> campo, fotografias,<br />

entrevistas, imagens, sons, músicas, vestimentas, a<strong>de</strong>reços, conversas, documentos e alguns<br />

materiais impressos diversos que circularam pelo local on<strong>de</strong> tal grupo se reúne. Tais materiais me<br />

conduziram a atentar para a busca <strong>de</strong> pertencimentos <strong>de</strong>ntre seus pares, on<strong>de</strong> não apenas atribuem<br />

significados aos seus fazeres individuais e coletivos, como (com)partilham dos mesmos,<br />

produzindo-se no interior <strong>de</strong>stas relações.<br />

O grupo que investigo é composto, predominantemente, por jovens homoafetivos da<br />

periferia urbana da cida<strong>de</strong> e se reúne nos arredores <strong>de</strong> um shopping center, nas tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> domingo.<br />

A entrada e freqüência <strong>de</strong>stes jovens no Shopping vêm sendo barradas, pois seus comportamentos,<br />

especialmente afetivos, são consi<strong>de</strong>rados ‘ina<strong>de</strong>quados’ – exagerados, extravagantes, ofensivos –<br />

pela direção do estabelecimento. Dessa forma, acabam por ocupar a própria rua, utilizando as<br />

pare<strong>de</strong>s das casas, os carros estacionados, o ponto <strong>de</strong> ônibus, o meio-fio, <strong>de</strong>sfilando sob as luzes dos<br />

postes públicos, dos faróis dos carros, alvo <strong>de</strong> olhares passantes: palco perfeito para o que<br />

<strong>de</strong>nominei ser uma juventu<strong>de</strong> <strong>trans</strong>-viada.<br />

Inspirei-me no filme Juventu<strong>de</strong> Transviada (Rebeld without a cause) estrelado por James<br />

Dean, em 1955, para tratar <strong>de</strong> uma juventu<strong>de</strong> que não apenas <strong>trans</strong>ita, mas <strong>trans</strong>-figura tal lugar<br />

através <strong>de</strong> performances homoafetivas. Opto por usar aqui o termo <strong>trans</strong>-viada referindo-me não<br />

apenas à palavra <strong>trans</strong>viado, que se refere àquele que não obe<strong>de</strong>ce aos padrões comportamentais<br />

vigentes, mas tencionando arriscar uma aproximação do prefixo <strong>trans</strong>, <strong>de</strong> <strong>trans</strong>gressão, trânsito,<br />

<strong>trans</strong>gênero, <strong>trans</strong>exual, com o termo usual pejorativo viado, comumente usado para <strong>de</strong>signar<br />

sujeitos homossexuais masculinos. Trago este termo para me referir a estes jovens que <strong>trans</strong>gri<strong>de</strong>m<br />

os comportamentos em relação aos prazeres do corpo, às afetivida<strong>de</strong>s, às sexualida<strong>de</strong>s. Afirmo que<br />

eles não são ‘rebel<strong>de</strong>s sem causa’, mas jovens que procuram resistir às práticas e políticas<br />

hegemônicas, marcando um lugar, tornando-se visíveis, dando-se voz.


Aqui é o nosso point: aqui tem gays, lésbicas e bissexuais, tudo se agarrando no<br />

meio da rua... A gente fica na rua, compra alguma coisa pra beber, se arranja,<br />

conversa com todo mundo, namora na rua, beija na boca na rua... Aqui todo mundo<br />

vê e é visto, a gente só quer o nosso <strong>espaço</strong>.<br />

Através do excerto acima, <strong>de</strong> conversa com um dos jovens <strong>de</strong>ste estudo, po<strong>de</strong>-se inferir que<br />

neste lugar, os jovens <strong>trans</strong>-viados fazem questão <strong>de</strong> aparecer, <strong>de</strong> se mostrar, <strong>de</strong> configurar seus<br />

afetos na forma <strong>de</strong> performance: ver e serem vistos. Eles ocupam, marcam, territorializam a rua<br />

através <strong>de</strong> suas práticas. A rua torna-se vitrine, <strong>num</strong>a comunicação entre os que olham e os que são<br />

olhados, e nesse sentido, Canevacci (2005, p. 7) sublinha que as culturas juvenis escapam das<br />

lógicas tradicionais, <strong>de</strong>senhando “constelações móveis” <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadas, <strong>de</strong> faces múltiplas, que<br />

passam pela metrópole. Velocida<strong>de</strong>, imagem, sensação, sociabilida<strong>de</strong>, experiência, <strong>espaço</strong>,<br />

performance. Juventu<strong>de</strong> afetiva, imprevisível, provocativa.<br />

Nesse sentido, trago Pais (2006, p. 8) ao propor que entre muitos jovens, as <strong>trans</strong>ições entre<br />

uma fase e outra da vida encontram-se atualmente sujeitas às culturas performáticas que emergem<br />

das ‘ilhas <strong>de</strong> dissidência’ em que se têm constituído os cotidianos juvenis. Ou seja, as culturas<br />

juvenis são fortemente performáticas porque os jovens nem sempre se enquadram ou se i<strong>de</strong>ntificam<br />

com ou nas culturas prescritivas que a socieda<strong>de</strong> lhes impõe. Frente a crescente flui<strong>de</strong>z das<br />

estruturas sociais, os jovens po<strong>de</strong>m perceber suas vidas marcadas por instabilida<strong>de</strong>s e oscilações,<br />

que para o autor, se configuram em movimentos <strong>de</strong> ‘vaivém’, nutrindo, assim, uma espécie <strong>de</strong> culto<br />

da sensação multiplicada que glorifica a extravagância, a aventura, o experimentalismo. É nessa<br />

lógica ‘experimentalista’ que se geram muitas das novas sensibilida<strong>de</strong>s juvenis.<br />

A procura <strong>de</strong> contato é também uma busca <strong>de</strong> si, uma vez que as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

individuais se constituem como resultado <strong>de</strong> experiências individuais, embora<br />

surgidas <strong>de</strong> ritualizações próprias <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s coletivas (PAIS, 2006, p.18).<br />

Segundo este autor, importa pensarmos nas relações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação que se estabelecem no<br />

panorama das culturas juvenis, on<strong>de</strong> as ‘buscas <strong>de</strong> si’ aspiram também a um reconhecimento ante os<br />

<strong>de</strong>mais, atribuindo-lhes marcações simbólicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, uma vez que se diferenciam entre si através<br />

<strong>de</strong> atributos distintivos. As conversas que tive com estes jovens me direcionam a apontar que essa<br />

busca pelo outro, para o reconhecimento <strong>de</strong> si atua no nível da i<strong>de</strong>ntificação com os pares, com os<br />

‘iguais aos seus’, promovendo um modo <strong>de</strong> união aliada à busca da singularida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> certa forma,<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no grupo, geralmente através da performance, do ‘excesso’ <strong>de</strong> expressivida<strong>de</strong>.<br />

Neste grupo, distintas dinâmicas <strong>de</strong> afeto, amiza<strong>de</strong> e sociabilida<strong>de</strong> parecem estar emergindo<br />

frente a múltiplos fluxos espaciais. Penso nas práticas <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> compartilhadas neste grupo,<br />

enquanto ações que colocam a (homo)afetivida<strong>de</strong> em movimento, centradas no contato com o outro,<br />

2


na busca e na experimentação <strong>de</strong> seus pares, como sugere Foucault (2007): a soma <strong>de</strong> todas as<br />

coisas por meio das quais um e outro po<strong>de</strong>m se dar prazer.<br />

Assistimos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a segunda meta<strong>de</strong> do século XX, afirma Ortega (2002), mais<br />

especificamente a partir da década <strong>de</strong> 1960, a uma aparente <strong>de</strong>cadência da instituição familiar – a<br />

tão mencionada “crise da família” (p. 157): a família estaria se <strong>de</strong>compondo, ou em vias <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sfazer-se, abandonando a idéia <strong>de</strong> soli<strong>de</strong>z e soberania institucional. Para o autor, nossa socieda<strong>de</strong><br />

possui um caráter ‘familial’, nossas instituições estão carregadas <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia familialista, em<br />

que “os valores familiares são constantemente evocados como cura para todos os males do<br />

cotidiano, <strong>de</strong>sempenhando um papel fundamental na organização das instituições”. Nesse sentido,<br />

tal imagem valorizada <strong>de</strong> ‘ninho’ familiar, o lugar da proteção absoluta, po<strong>de</strong> levar ao <strong>de</strong>sprezo <strong>de</strong><br />

outras formas <strong>de</strong> existência, tidas como pouco atrativas.<br />

No entanto, o autor comenta que no contexto contemporâneo a família se configura como<br />

uma relação permeada por instabilida<strong>de</strong>s e inconstâncias. Com isso, a distância entre a realida<strong>de</strong> e a<br />

imagem sonhada <strong>de</strong> família i<strong>de</strong>al, centrada na estabilida<strong>de</strong> do casal, acaba por disseminar<br />

frustrações e insatisfações. “Uma socieda<strong>de</strong> como a nossa que concentra as fontes <strong>de</strong> segurança<br />

psíquica e <strong>de</strong> suporte material na família, dificulta a invenção <strong>de</strong> outras formas <strong>de</strong> vida” (ORTEGA,<br />

2002, p. 160). Assim, o autor propõe que pensemos em apostar em outras formas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> –<br />

como a amiza<strong>de</strong> – não para substituir a família, mas para coexistir com esta e fornecer um apoio<br />

material, emocional e cognitivo que permita uma ‘superação solidária dos riscos’. “Somente um<br />

<strong>de</strong>slocamento da i<strong>de</strong>ologia familialista po<strong>de</strong> promover a varieda<strong>de</strong>, a experimentação <strong>de</strong> formas <strong>de</strong><br />

vida e <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>, e a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhas” (p.161).<br />

A amiza<strong>de</strong> é um fenômeno público, precisa do mundo e da visibilida<strong>de</strong> dos<br />

assuntos humanos para florescer. Nosso apego exacerbado à interiorida<strong>de</strong>, a<br />

intimida<strong>de</strong>, não permite o cultivo <strong>de</strong> uma distância necessária para a amiza<strong>de</strong>, já<br />

que o <strong>espaço</strong> da amiza<strong>de</strong> é o <strong>espaço</strong> entre indivíduos, do mundo compartilhado, das<br />

ruas, das praças, dos passeios, dos teatros, dos cafés, e não o <strong>espaço</strong> dos nossos<br />

condomínios fechados e nossos shoppings centers, meras próteses que prolongam a<br />

segurança do lar. (ORTEGA, 2002, p. 162)<br />

O autor aponta para o caráter público da amiza<strong>de</strong>, para a necessida<strong>de</strong> do cultivo <strong>de</strong> um<br />

<strong>espaço</strong> entre os sujeitos e <strong>de</strong> um <strong>espaço</strong> que seja compartilhado, visibilizado, para que o elemento<br />

<strong>trans</strong>gressor da amiza<strong>de</strong> possa emergir. Nesse sentido, a amiza<strong>de</strong> po<strong>de</strong> representar uma<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> utilizar o <strong>espaço</strong> aberto pela perda <strong>de</strong> vínculos orgânicos, <strong>de</strong> experimentar com a<br />

multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> vida possíveis, talvez mesmo a invenção <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> vida até agora<br />

inexistente. Penso aqui, nos jovens <strong>trans</strong>-viados <strong>de</strong>ste estudo, que, ao ocuparem a própria rua, a<br />

<strong>trans</strong>formam em lugar <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, afetivida<strong>de</strong>, experimentação, levando-me a inferir que<br />

experimentam, como ressalta o autor, um elemento criativo na elaboração <strong>de</strong> novas relações.<br />

3


A amiza<strong>de</strong> representa uma procura e uma experimentação <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong><br />

relacionamento e <strong>de</strong> prazer; uma forma <strong>de</strong> respeitar e intensificar o prazer próprio e<br />

do amigo (ORTEGA, 1999, p.150).<br />

O autor propõe tomarmos, a partir do pensamento foucaultiano, o sado-masoquismo como<br />

metáfora para enten<strong>de</strong>rmos as relações <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>: como um encontro permeado <strong>de</strong> relações <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r, mas que não se <strong>trans</strong>formam <strong>num</strong> estado <strong>de</strong> dominação; um jogo intenso, às vezes arriscado,<br />

em que as regras são estabelecidas pelos parceiros no momento mesmo <strong>de</strong> jogar e são apenas<br />

válidas para esse jogo. Uma intensificação <strong>de</strong> prazer, uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experimentar com a<br />

multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> vida possíveis, talvez mesmo a invenção <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> vida até agora<br />

inexistente.<br />

Neste estudo, as práticas observadas por mim conduzem meu olhar ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

experimentação nestes jovens, levando-os a estabelecer uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações,<br />

compartilhadas naquele lugar. Na esteira <strong>de</strong>ste argumento, vejo como produtivo utilizar-me das<br />

proposições <strong>de</strong> Michel Foucault (2007) acerca da amiza<strong>de</strong> enquanto modo <strong>de</strong> vida, para pensar nos<br />

modos como estes jovens se relacionam. O autor salienta que há certa confusão entre<br />

homossexualida<strong>de</strong> e amor entre os jovens, mas que po<strong>de</strong>ríamos pensar em quais relações po<strong>de</strong>m ser<br />

estabelecidas através da homossexualida<strong>de</strong> que não sejam apenas na forma <strong>de</strong> um casal. Segue o<br />

autor afirmando que o modo <strong>de</strong> vida homossexual, muito mais do que o ato sexual mesmo, torna<br />

‘perturbadora’ a sexualida<strong>de</strong>, inquieta as pessoas que os sujeitos comecem a se amar. Inquieta o<br />

afeto, carinho, amiza<strong>de</strong>, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, coleguismo, companheirismo, aos quais uma socieda<strong>de</strong> um<br />

pouco <strong>de</strong>strutiva não po<strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r <strong>espaço</strong> sem temer que se formem alianças, que se tracem linhas <strong>de</strong><br />

força imprevistas.<br />

A amiza<strong>de</strong>, então, po<strong>de</strong> ser vista como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimentar as relações sociais e<br />

construir novas subjetivida<strong>de</strong>s, que venham a <strong>trans</strong>gredir os rígidos mo<strong>de</strong>los apresentados a nós. A<br />

amiza<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser assim, protagonista na criação <strong>de</strong> novos modos <strong>de</strong> vida, escolhas <strong>de</strong> existência,<br />

em relações abertas ao <strong>de</strong>vir, <strong>num</strong>a experimentação <strong>de</strong> múltiplas formas <strong>de</strong> vida que se oponham às<br />

limitações e simplificações das relações contemporâneas. A partir da relação com o outro, tais<br />

relações se abririam para o novo, para novos, mesmo que provisórios, posicionamentos.<br />

Foucault (2007) concentrou-se nas possibilida<strong>de</strong>s disponíveis na cultura homossexual para<br />

inventar novas formas <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, pois, para ele, ser homossexual significa ‘ser em <strong>de</strong>vir’. As<br />

<strong>de</strong>cisões sexuais possuem uma dimensão existencial, atravessam a totalida<strong>de</strong> da vida e são passíveis<br />

<strong>de</strong> <strong>trans</strong>formá-la. Por isso, o problema da homossexualida<strong>de</strong> <strong>trans</strong>forma-se no problema da<br />

amiza<strong>de</strong>. Nesse sentido, a forma <strong>de</strong> vida (homossexual) e amiza<strong>de</strong> permitem recusar toda uma<br />

cultura homossexual concentrada sobre a libertação do <strong>de</strong>sejo e a procura da ‘própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

sexual’, em favor do uso da homossexualida<strong>de</strong> para a criação <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> existência, a<br />

relações intensas que não se assemelham a nenhuma relação institucionalizada.<br />

4


Para o autor, a amiza<strong>de</strong> representa uma relação com o outro que não tem a forma nem <strong>de</strong><br />

‘unanimida<strong>de</strong> consensual’, nem <strong>de</strong> ‘violência direta’, uma provocação permanente, um <strong>de</strong>safio e<br />

uma incitação recíproca, mas não uma submissão ao outro. Falar <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> é falar <strong>de</strong> pluralida<strong>de</strong>,<br />

multiplicida<strong>de</strong>, liberda<strong>de</strong>, intensida<strong>de</strong> e experimentação. Desigualda<strong>de</strong>, hierarquia e ruptura são<br />

componentes importantes da amiza<strong>de</strong>, esta representa uma alternativa às formas <strong>de</strong> relacionamento<br />

prescritas e institucionalizadas.<br />

A gente vem aqui pra encontrar os amigos, a gente conversa, vê pessoas, fica aos<br />

beijos, paquera, beija um, beija outro...aqui é um círculo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, as pessoas<br />

aqui trocam telefone, ficam, conhecem novas pessoas, isso aqui é um parque <strong>de</strong><br />

diversões pra gente curtir, rir e brincar, enten<strong>de</strong>u?<br />

O excerto acima, extraído <strong>de</strong> conversa com um dos jovens, aponta para a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

práticas produzidas naquele lugar, para a sociabilida<strong>de</strong>, o contato com o outro, a busca dos iguais.<br />

Importa a diversão, o prazer, a experimentação <strong>de</strong> afetos. Tomo tais práticas como práticas <strong>de</strong><br />

amiza<strong>de</strong> e penso com Foucault, ao ver a amiza<strong>de</strong> como forma <strong>de</strong> vida, cuja importância resi<strong>de</strong> nas<br />

inúmeras formas que esta po<strong>de</strong> assumir.<br />

Segundo Ortega (1999), Foucault pensava a amiza<strong>de</strong> como reciprocida<strong>de</strong>, na forma <strong>de</strong> uma<br />

relação afetiva, ‘instersubjetiva’, capaz <strong>de</strong> respeitar o prazer do outro. Uma relação que po<strong>de</strong>ria ser<br />

reabilitada mediante a introdução do componente eros (recusado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong>), sem a<br />

supressão das relações sexuais, mas não implicando que toda a amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong>vesse ter um caráter<br />

sexual. Segue afirmando o autor, que a amiza<strong>de</strong> tem, para Foucault, principalmente o sentido <strong>de</strong><br />

uma amiza<strong>de</strong> homossexual, concentrando-se, principalmente, nas possibilida<strong>de</strong>s disponíveis na<br />

cultura homossexual para criar novas formas <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> que contribuíssem para a tarefa <strong>de</strong> auto-<br />

elaboração, para a recriação <strong>de</strong> si e <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> existência, sem no entanto, prescrever um<br />

único modo como correto.<br />

Foucault localizava a função da amiza<strong>de</strong>, como salienta Ortega (1999), na possível criação<br />

<strong>de</strong> relações sociais, sublinhando que não existe nada dado nem necessário em nossa pertença a<br />

<strong>de</strong>terminados grupos sociais. A amiza<strong>de</strong> representa, então, uma relação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r com o outro, uma<br />

relação que é ao mesmo tempo incitação mútua e luta, tratando-se não tanto <strong>de</strong> uma oposição frente<br />

a frente quanto <strong>de</strong> uma provocação contínua. Penso aqui nas múltiplas formas <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> viver<br />

<strong>de</strong>sses jovens, nas práticas territorializantes, nas relações que estabelecem, nas trocas afetivas, nas<br />

experimentações como amiza<strong>de</strong>s <strong>trans</strong>-<strong>viadas</strong>, como relações que rompem fronteiras <strong>de</strong> morais<br />

vigentes e os levam a <strong>trans</strong>formarem sua existência na presença do outro.<br />

A amiza<strong>de</strong> representa segundo Ortega (1999, p. 171), uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> constituir a<br />

comunida<strong>de</strong> e a socieda<strong>de</strong> no nível individual <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> relação livre e não institucionalizada,<br />

assumindo uma dimensão coletiva na constante tarefa <strong>de</strong> (re)invenção <strong>de</strong> si. Na recusa das formas<br />

impostas <strong>de</strong> relacionamento e <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>, então, a dimensão <strong>trans</strong>gressiva da amiza<strong>de</strong>.<br />

5


Argumento então, que os jovens <strong>de</strong>ste estudo utilizam os homoafetos para chegarem a uma<br />

multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações, talvez relações ainda sem forma, mas pautadas pela experimentação,<br />

pelo prazer, na criação <strong>de</strong> relações ‘não-formais’, <strong>num</strong>a experimentação <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> vida que se<br />

oponham às limitações e simplificações contemporâneas. A partir do contato com o outro,<br />

estabelecem-se relações abertas ao <strong>de</strong>vir, possibilitando a construção <strong>de</strong> novas subjetivida<strong>de</strong>s que<br />

possam se opor às classificações das relações contemporâneas institucionalizadas.<br />

Referências bibliográficas<br />

CANEVACCI. Massimo. Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: DP&A, 2005.<br />

FOUCAULT, Michel. Da amiza<strong>de</strong> como modo <strong>de</strong> vida. De l’amitié comme mo<strong>de</strong> <strong>de</strong> vie. Entrevista<br />

a R. <strong>de</strong> Ceccaty, J. Danet e J. lê Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, n° 25, abril <strong>de</strong> 1981, pp. 38-<br />

39. Tradução <strong>de</strong> Wan<strong>de</strong>rson Flor do Nascimento. Disponível em:<br />

http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/amitie.html, acesso em: 21 fev., 2007.<br />

ORTEGA, Francisco. Amiza<strong>de</strong> e estética da existência em Foucault. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Edições Graal<br />

Ltda., 1999.<br />

______. Genealogias da amiza<strong>de</strong>. São Paulo: Iluminuras, 2002.<br />

PAIS, José Machado. Buscas <strong>de</strong> si: expressivida<strong>de</strong>s e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s juvenis. In: ALMEIDA, Maria<br />

Isabel Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong>; EUGENIO, Fernanda (orgs.). Culturas jovens: novos mapas do afeto. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.<br />

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