Um estudo sobre as relações de gênero Arlete de - Fazendo ...
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<strong>Fazendo</strong> Gênero 8 - Corpo, Violência e Po<strong>de</strong>r<br />
Florianópolis, <strong>de</strong> 25 a 28 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Cen<strong>as</strong> <strong>de</strong> menin<strong>as</strong> e meninos no cotidiano institucional da educação infantil:<br />
<strong>Um</strong> <strong>estudo</strong> <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>relações</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong><br />
<strong>Arlete</strong> <strong>de</strong> Costa Pereira (UDESC)<br />
Educação Infantil; Gênero; Sexualida<strong>de</strong><br />
73 - Fórum especial: sociabilida<strong>de</strong>s, representações e <strong>gênero</strong><br />
No refeitório, durante o lanche, o Tedy me chamou e falou:<br />
- O tia 1 , o Roberto tem relógio <strong>de</strong> menina!<br />
Perguntei-lhe porque ele dizia que o relógio do amigo era <strong>de</strong> menina e ele<br />
respon<strong>de</strong>u:<br />
- Porque é rosa! E acrescentou:<br />
- O meu é <strong>de</strong> homem! Perguntei-lhe por que seu relógio era <strong>de</strong> homem.<br />
- Porque eu vi, a cor é <strong>de</strong> homem, ó!<br />
Olhei seu relógio “<strong>de</strong> homem” e vi que era n<strong>as</strong> cores preta com <strong>de</strong>talhes em<br />
prata. E Tedyy falou mais:<br />
- O Roberto é menina!<br />
(Jardim II, 4 anos)<br />
Recentemente, temos falado muito da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer melhor <strong>as</strong><br />
crianç<strong>as</strong> a partir <strong>de</strong>l<strong>as</strong> mesm<strong>as</strong>, do que gostam, do que fazem, do que dizem, do<br />
que pensam em todos os espaços 2 . As crianç<strong>as</strong> são ainda pouco conhecid<strong>as</strong>, uma<br />
vez que historicamente se pesquisou mais <strong>sobre</strong> el<strong>as</strong> a partir do ponto <strong>de</strong> vista dos<br />
adultos. Por enten<strong>de</strong>r que já não b<strong>as</strong>tam os conhecimentos que produzimos <strong>sobre</strong> <strong>as</strong><br />
crianç<strong>as</strong> a partir <strong>de</strong> uma visão adultocêntrica 3 , m<strong>as</strong> que é preciso um movimento no<br />
sentido <strong>de</strong> ampliar e produzir novos conhecimentos com el<strong>as</strong>, a partir <strong>de</strong>l<strong>as</strong>,<br />
apren<strong>de</strong>ndo com el<strong>as</strong>, é que a proposta <strong>de</strong>ste trabalho está centrada na perspectiva<br />
d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>, mesmo correndo riscos <strong>de</strong> muit<strong>as</strong> vezes não conseguir <strong>de</strong>spir-me d<strong>as</strong><br />
concepções adult<strong>as</strong>.<br />
Enten<strong>de</strong>r a criança enquanto sujeito social <strong>de</strong> direitos implica compreen<strong>de</strong>r<br />
que el<strong>as</strong> produzem e reproduzem cultur<strong>as</strong>, ressignificam e reinterpretam o mundo<br />
dos adultos ao seu modo. E é por isso que temos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecê-l<strong>as</strong><br />
melhor, compree<strong>de</strong>r seus mundos sociais, para então po<strong>de</strong>rmos “<strong>as</strong>sumir como<br />
válido, sério e legítimo”(FERREIRA, 2002) o que <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> têm a nos ensinar.<br />
Assumindo essa postura preten<strong>de</strong>mos então contribuir com a construção <strong>de</strong> uma<br />
ciência da educação voltada para <strong>as</strong> infânci<strong>as</strong>. Por isso, é importante conhecê-l<strong>as</strong><br />
em todos os espaços <strong>de</strong> convívio atuais, nos seus contextos culturais.<br />
Dentre os espaços sociais ocupados pel<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> na contemporaneida<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong>stacam-se <strong>as</strong> instituições coletiv<strong>as</strong> <strong>de</strong> educação e cuidado 4 . Manuel Sarmento
fala <strong>sobre</strong> a institucionalização dos “quotidianos” d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> como elemento<br />
mais marcante, e diz que no final do século XX, “praticamente tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong><br />
têm o essencial dos seus di<strong>as</strong> ligado a instituições que <strong>de</strong>l<strong>as</strong> se ocupam”<br />
(SARMENTO, 2000, p.24).<br />
Ess<strong>as</strong> instituições <strong>de</strong> atendimento infantil têm sido alvo <strong>de</strong> alguns<br />
trabalhos 5 que procuram nos mostrar <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> reais, como el<strong>as</strong> lidam com a<br />
cotidianida<strong>de</strong> na produção d<strong>as</strong> cultur<strong>as</strong> <strong>de</strong> pares 6 , na garantia dos direitos – entre<br />
eles o direito à brinca<strong>de</strong>ira –, na construção da autonomia e n<strong>as</strong> possibilida<strong>de</strong>s que<br />
<strong>as</strong> instituições oferecem para que meninos e menin<strong>as</strong> possam viver plenamente<br />
su<strong>as</strong> infânci<strong>as</strong> como cidadãos <strong>de</strong> pouca ida<strong>de</strong> que são. Ampliar o nosso<br />
conhecimento <strong>sobre</strong> o que <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> fazem nesses espaços coletivos <strong>de</strong> educação<br />
e cuidado, aprofundar <strong>as</strong> investigações <strong>sobre</strong> o cotidiano <strong>de</strong>l<strong>as</strong>, mergulhar nesses<br />
<strong>estudo</strong>s significa articular minucios<strong>as</strong> <strong>de</strong>scrições do cotidiano com perspectiv<strong>as</strong><br />
teóric<strong>as</strong> que possibilitem encontrar fios condutores que construam nexos entre os<br />
diferentes acontecimentos observados e nos permitam <strong>de</strong>stacar os fenômenos<br />
reveladores da totalida<strong>de</strong> (cuja <strong>de</strong>scrição é impossível <strong>de</strong> esgotar) a partir do<br />
exame <strong>de</strong> alguns fatos.<br />
É nesse sentido que este trabalho vem somar-se a outros, já citados<br />
anteriormente, que buscam conhecer <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> nos diferentes <strong>as</strong>pectos, estudando<br />
<strong>as</strong> diferentes questões que estão relacionad<strong>as</strong> no trato coletivo. A questão <strong>de</strong><br />
<strong>gênero</strong> é uma <strong>de</strong>l<strong>as</strong>. O que uma criança <strong>de</strong> 4 anos está nos dizendo quando fala que<br />
“O Roberto tem relógio <strong>de</strong> menina, porque é cor-<strong>de</strong>-rosa. O Roberto é<br />
menina?” Que <strong>as</strong>pectos da cultura adulta foram <strong>de</strong>terminantes para chegar a essa<br />
formulação?<br />
O <strong>gênero</strong> é um <strong>as</strong>pecto fundamental para conhecer melhor <strong>as</strong> menin<strong>as</strong><br />
e os meninos que frequentam <strong>as</strong> instituições, pois trata-se <strong>de</strong> construções sociais<br />
que foram histórica e culturalmente construíd<strong>as</strong> e que em muitos momentos<br />
influenciam ou mesmo <strong>de</strong>terminam comportamentos estereotipados. No entanto,<br />
ainda representa uma lacuna nos <strong>estudo</strong>s com crianç<strong>as</strong>, principalmente <strong>de</strong> 0 a 6<br />
anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Ana Lúcia Faria pontua essa esc<strong>as</strong>sez <strong>de</strong> pesquis<strong>as</strong> que tratam d<strong>as</strong><br />
<strong>relações</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> e vai mais adiante, dizendo que além <strong>de</strong> não abordarem <strong>as</strong><br />
diferentes ida<strong>de</strong>s e f<strong>as</strong>es da vida, como <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> pequen<strong>as</strong>, <strong>as</strong> investigações que<br />
privilegiam a infância rar<strong>as</strong> vezes fazem análises <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> (FARIA, 2002, p. 5).<br />
Por ess<strong>as</strong> razões <strong>de</strong>staca-se a relevância <strong>de</strong>sta pesquisa, que preten<strong>de</strong> saber como<br />
<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> lidam com <strong>as</strong> questões <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>, como “produzem/reproduzem, em<br />
2
su<strong>as</strong> <strong>relações</strong>, modos <strong>de</strong> ser homem e mulher, ou menino e menina, que trazem<br />
consequênci<strong>as</strong> para sua convivência com o grupo, <strong>as</strong>sim como para su<strong>as</strong> vid<strong>as</strong>”<br />
(DÉBORAH SAYÃO, 2003, p.78).<br />
Esse <strong>as</strong>pecto, ainda pouco discutido na educação infantil, precisa ser mais<br />
bem compreendido, principalmente se temos o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> contribuir para a<br />
construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> mais igualitária. Quando nos referimos ao conceito<br />
<strong>de</strong> <strong>gênero</strong>, estamos discutindo também <strong>as</strong> expectativ<strong>as</strong> que uma <strong>de</strong>terminada<br />
socieda<strong>de</strong> tem em relação às mulheres e aos homens, às menin<strong>as</strong> e aos meninos. E<br />
ess<strong>as</strong> expectativ<strong>as</strong> variam <strong>de</strong> lugar para lugar, <strong>de</strong> época para época, <strong>de</strong> cultura para<br />
cultura.<br />
Por essa razão, este trabalho tem como intuito observar menin<strong>as</strong> e meninos<br />
e perceber como expressam <strong>as</strong> questões <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> no cotidiano <strong>de</strong> uma instituição<br />
<strong>de</strong> educação infantil, pois acreditamos que isso vai nos dar elementos<br />
fundamentais para a construção da Pedagogia da Educação Infantil <strong>de</strong>fendida por<br />
Eloisa Candal Rocha (1999). Em su<strong>as</strong> teorizações, a autora argumenta que a<br />
Pedagogia da Educação Infantil caracteriza-se por sua especificida<strong>de</strong> no âmbito da<br />
Pedagogia em sentido mais amplo, uma vez que não tem sido contemplada<br />
suficientemente a educação d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> pequen<strong>as</strong> em instituições não-escolares,<br />
tais como creches pré-escol<strong>as</strong>. Ela procura estabelecer um marco diferenciador<br />
entre <strong>as</strong> instituições educativ<strong>as</strong> – escola, creche e pré-escola – a partir da função<br />
social que lhes é atribuída no contexto social. Segundo ela,<br />
[...] enquanto a escola se coloca como o espaço privilegiado para o<br />
domínio dos conhecimentos básicos, <strong>as</strong> instituições <strong>de</strong> educação<br />
infantis se põem, <strong>sobre</strong>tudo com fins <strong>de</strong> complementarieda<strong>de</strong> à<br />
educação da família. Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o<br />
aluno e como objeto fundamental o ensino n<strong>as</strong> diferentes áre<strong>as</strong>,<br />
através da aula; a creche e a pré-escola têm como objeto <strong>as</strong> <strong>relações</strong><br />
educativ<strong>as</strong> travad<strong>as</strong> num espaço <strong>de</strong> convívio coletivo que tem como<br />
sujeito a criança <strong>de</strong> 0 a 6 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> (ou até o momento que entra<br />
na escola) (ROCHA,1999, p.60).<br />
A investigação <strong>sobre</strong> o modo como menin<strong>as</strong> e meninos expressam <strong>as</strong><br />
<strong>relações</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> no cotidiano institucional po<strong>de</strong>rá contribuir principalmente para<br />
a construção <strong>de</strong> uma nova socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> meninos e menin<strong>as</strong> possam expressar-se<br />
livremente e ser respeitad<strong>as</strong> e respeitados em seus <strong>de</strong>sejos mais íntimos, livres <strong>de</strong><br />
preconceitos, com seus direitos garantidos.<br />
Enten<strong>de</strong>-se a instituição <strong>de</strong> educação infantil como um espaço generificado,<br />
um espaço on<strong>de</strong> meninos e menin<strong>as</strong> se relacionam mutuamente; m<strong>as</strong> também um<br />
3
espaço on<strong>de</strong> meninos se relacionam com meninos e menin<strong>as</strong> se relacionam com<br />
menin<strong>as</strong>, adultos com crianç<strong>as</strong> e adultos com adultos, crianç<strong>as</strong> se relacionam com<br />
objetos e também com significados culturais.<br />
As <strong>relações</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> são fundantes e estão presentes em todos os<br />
momentos e em todos os espaços. Não é preciso que um menino brinque <strong>de</strong><br />
bonec<strong>as</strong> ou uma menina <strong>de</strong> carrinhos. On<strong>de</strong> está mais <strong>de</strong> uma criança interagindo<br />
<strong>de</strong> algum modo, ali se expressam <strong>relações</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>. Aliás, <strong>as</strong> <strong>relações</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong><br />
po<strong>de</strong>m estar presentes inclusive no silêncio, na solidão da menina que brinca<br />
sozinha com sua boneca ou do menino que nunca é aceito pelo grupo para brincar.<br />
Ao investigar <strong>as</strong> expressões <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> entre <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> pequen<strong>as</strong> vou<br />
observar que expressões ligad<strong>as</strong> ao corpo e a sexualida<strong>de</strong> também estão presentes<br />
no cotidiano <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> e em muitos momentos interligad<strong>as</strong>, <strong>as</strong>pectos também<br />
consi<strong>de</strong>rados como relevantes para esta pesquisa. Refletir <strong>sobre</strong> a <strong>de</strong>scoberta do<br />
corpo, os toques e procurar compreen<strong>de</strong>r o que uma criança <strong>de</strong> 5 anos está nos<br />
dizendo ao olhar para uma fotografia <strong>de</strong> mulher nua e chamar <strong>de</strong> “gostosona”<br />
p<strong>as</strong>sou a ser importante nesse contexto.<br />
Consi<strong>de</strong>ro importante um esforço no sentido <strong>de</strong> diferenciar <strong>as</strong> expressões da<br />
sexualida<strong>de</strong> d<strong>as</strong> expressões <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>. Ao falar em <strong>gênero</strong>, estarei me referindo às<br />
<strong>relações</strong> sociais e construções culturais e simbólic<strong>as</strong> entre menin<strong>as</strong> e meninos.<br />
Mirian Pillar Grossi (1995, p.10) <strong>de</strong>fine sexualida<strong>de</strong> como “<strong>as</strong> prátic<strong>as</strong><br />
erótic<strong>as</strong> human<strong>as</strong> que são culturalmente <strong>de</strong>terminad<strong>as</strong>”. Segundo essa autora, em<br />
nossa cultura oci<strong>de</strong>ntal, costumamos <strong>as</strong>sociar a sexualida<strong>de</strong> ao <strong>gênero</strong>, como se<br />
fossem du<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> colad<strong>as</strong> uma a outra, m<strong>as</strong> é <strong>de</strong> suma importância<br />
[...] distinguir i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> <strong>de</strong> prátic<strong>as</strong> afetivo/sexuais<br />
porque a sexualida<strong>de</strong> é apen<strong>as</strong> uma d<strong>as</strong> variáveis que configura a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> em concomitância com outr<strong>as</strong> cois<strong>as</strong>, como os<br />
papéis <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> e o significado social da reprodução (GROSSI,<br />
1995, p.15).<br />
Além d<strong>as</strong> questões relativ<strong>as</strong> a <strong>gênero</strong>, corpo e sexualida<strong>de</strong>, aparecem<br />
também n<strong>as</strong> brinca<strong>de</strong>ir<strong>as</strong> d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> e em outros momentos do cotidiano,<br />
questões relativ<strong>as</strong> ao po<strong>de</strong>r. Scott (1995) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a idéia <strong>de</strong> que o <strong>gênero</strong> é um<br />
elemento constitutivo d<strong>as</strong> <strong>relações</strong> entre os sexos e também uma forma primária <strong>de</strong><br />
dar significado às <strong>relações</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. E ess<strong>as</strong> <strong>relações</strong> <strong>de</strong> hierarquia e po<strong>de</strong>r<br />
evi<strong>de</strong>nciam-se n<strong>as</strong> brinca<strong>de</strong>ir<strong>as</strong> d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>, n<strong>as</strong> <strong>de</strong>finições dos papéis que<br />
<strong>as</strong>sumem n<strong>as</strong> brinca<strong>de</strong>ir<strong>as</strong> <strong>de</strong> faz-<strong>de</strong>-conta, n<strong>as</strong> linguagens e n<strong>as</strong> postur<strong>as</strong>.<br />
4
Estudar o jeito que menin<strong>as</strong> e meninos expressam <strong>as</strong> <strong>relações</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> no<br />
cotidiano da educação infantil é tarefa b<strong>as</strong>tante complexa. Envolve um <strong>estudo</strong><br />
aprofundado da história d<strong>as</strong> mulheres e dos homens, <strong>de</strong> como el<strong>as</strong>/eles foram se<br />
organizando nos movimentos feminist<strong>as</strong>, da constituição e evolução do conceito <strong>de</strong><br />
<strong>gênero</strong> e d<strong>as</strong> implicações <strong>de</strong>sse conceito na transformação d<strong>as</strong> prátic<strong>as</strong> e dos papéis<br />
sociais <strong>de</strong>sempenhados por homens e mulheres, influenciando com isso <strong>as</strong> postur<strong>as</strong><br />
d<strong>as</strong> menin<strong>as</strong> e meninos da atualida<strong>de</strong>.<br />
Mirian Pillar Grossi (1999, p.341) diz que por <strong>de</strong>trás do <strong>gênero</strong> é possível<br />
pensar hoje que esse campo comporta, pelo menos, três gran<strong>de</strong>s abordagens: a<br />
primeira trata dos <strong>estudo</strong>s <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> mulheres e tem como objeto o <strong>estudo</strong> d<strong>as</strong><br />
mulheres em diferentes situações sociais; a segunda abordagem é aquela que se dá<br />
em torno do <strong>gênero</strong> em seu <strong>as</strong>pecto relacional, englobando <strong>as</strong> <strong>relações</strong> sociais<br />
marcad<strong>as</strong> pel<strong>as</strong> diferenç<strong>as</strong> materiais e simbólic<strong>as</strong> entre feminino e m<strong>as</strong>culino,<br />
<strong>relações</strong> entre mulheres e homens, menin<strong>as</strong> e meninos, m<strong>as</strong> também d<strong>as</strong> mulheres e<br />
dos homens, menin<strong>as</strong> e meninos entre si; e a terceira abordagem são os <strong>estudo</strong>s<br />
<strong>sobre</strong> m<strong>as</strong>culinida<strong>de</strong>, que já constituem um campo importante nos <strong>estudo</strong>s <strong>de</strong><br />
<strong>gênero</strong>.<br />
A convivência com <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> pequen<strong>as</strong> é sempre cheia <strong>de</strong> encantos e<br />
surpres<strong>as</strong>. El<strong>as</strong> nos mostram o tempo todo que não agem <strong>de</strong> acordo com nenhum<br />
padrão p<strong>as</strong>sível <strong>de</strong> enquadramento linear, por mais que os adultos <strong>de</strong> vári<strong>as</strong> áre<strong>as</strong><br />
<strong>de</strong> conhecimento insistam em enquadrá-l<strong>as</strong>. É por isso que conhecer melhor <strong>as</strong><br />
crianç<strong>as</strong> é uma tarefa por <strong>de</strong>mais complexa. E essa complexida<strong>de</strong> evi<strong>de</strong>ncia-se no<br />
brincar d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>, que ora se envolvem em <strong>de</strong>terminad<strong>as</strong> brinca<strong>de</strong>ir<strong>as</strong><br />
usufruindo do prazer <strong>de</strong> brincar, ora resistem e não aceitam essa mesma<br />
brinca<strong>de</strong>ira.<br />
Em uma turma <strong>de</strong> crianç<strong>as</strong> <strong>de</strong> quatro anos, a professora organizou os<br />
colchões formando pequen<strong>as</strong> caban<strong>as</strong> e dispôs brinquedos<br />
diversificados em vários pontos da sala. As crianç<strong>as</strong> foram pegar<br />
brinquedos para brincar n<strong>as</strong> cabaninh<strong>as</strong>. Havia entre os brinquedos<br />
uma pequena caixa <strong>de</strong> maquiagem. Logo um grupo começou a<br />
brincar <strong>de</strong> salão <strong>de</strong> beleza. A professora era a dona do salão <strong>de</strong><br />
beleza. As crianç<strong>as</strong> iam até o salão e solicitavam o atendimento.<br />
Roberto e Patrício fizeram maquiagem completa, com sombra,<br />
batom, blush e pi<strong>as</strong>tra. Tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> menin<strong>as</strong> também se maquiaram.<br />
O Alano, ao ver a brinca<strong>de</strong>ira, correu até a professora e disse:<br />
“Também vou à festa com a Carol”– por isso precisava se arrumar.<br />
Nesse mesmo dia fotografei o Alan brincando <strong>de</strong> p<strong>as</strong>sar roup<strong>as</strong>.<br />
(Jardim II)<br />
5
No início da brinca<strong>de</strong>ira, Alano ficou observando <strong>de</strong> fora, viu <strong>as</strong> menin<strong>as</strong><br />
se maquiando, viu os meninos se maquiando. Logo se interessou também em<br />
brincar com a maquiagem. Utilizou como argumento a festa. Se vai a uma festa, é<br />
preciso arrumar-se, então isso justificaria, ao menos em parte, o uso da<br />
maquiagem. Alano utilizou-se <strong>de</strong> um argumento adulto para experimentar a<br />
brinca<strong>de</strong>ira. Po<strong>de</strong>ríamos dizer que ele se apropriou criativamente da informação do<br />
mundo adulto para produzir a sua própria cultura <strong>de</strong> pares (CORSARO, 2002,<br />
p.214). Nessa brinca<strong>de</strong>ira não houve proibições, olhares <strong>de</strong> cobrança ou fal<strong>as</strong><br />
contrári<strong>as</strong>. A dona do instituto era a professora, recebia cada criança e, ro<strong>de</strong>ada<br />
por tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> outr<strong>as</strong>, faziam junt<strong>as</strong> <strong>as</strong> maquiagens. Nenhuma criança questionou o<br />
fato <strong>de</strong> os meninos usarem maquiagem. Ninguém se sentiu constrangido e todos<br />
pu<strong>de</strong>ram se divertir muito. O Alano também ficou satisfeito em brincar com a<br />
maquiagem. Em outros momentos ele não havia experimentado. Alano <strong>de</strong>monstrou<br />
resistência em brincar com maquiagem por saber que, em nossa cultura,<br />
maquiagem é própria para mulheres e menin<strong>as</strong>; m<strong>as</strong> em outra situação esse mesmo<br />
menino brincou tranqüilamente com objetos que ainda representam, em nosso<br />
meio, ativida<strong>de</strong>s voltad<strong>as</strong> para a prática doméstica.<br />
O trabalho <strong>de</strong> investigação da construção dos <strong>gênero</strong>s a partir d<strong>as</strong><br />
expressões d<strong>as</strong> menin<strong>as</strong> e meninos nessa instituição <strong>de</strong> educação infantil mostrou-<br />
se ser <strong>de</strong> uma complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong>smedida, dificultando a elaboração <strong>de</strong> conclusões e<br />
correndo o risco <strong>de</strong> sugerir mo<strong>de</strong>los ou verda<strong>de</strong>s reducionist<strong>as</strong> a partir d<strong>as</strong> análises<br />
e sínteses elaborad<strong>as</strong>. Essa preocupação intensificou-se ao perceber que <strong>as</strong><br />
expressões <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> observad<strong>as</strong> nos diversos momentos do cotidiano d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong><br />
investigad<strong>as</strong> na maioria d<strong>as</strong> vezes não seguiam uma trajetória linear, fácil <strong>de</strong> ser<br />
compreendida por nós, adult<strong>as</strong>/os.<br />
A observação do cotidiano mostrou que <strong>as</strong> menin<strong>as</strong> e meninos do CEI<br />
Lapagesse possuem gran<strong>de</strong>s habilida<strong>de</strong>s em respon<strong>de</strong>r ao que os adultos esperam<br />
<strong>de</strong>l<strong>as</strong>, reproduzindo comportamentos estereotipados quando lhes é conveniente; no<br />
entanto, imprimem su<strong>as</strong> marc<strong>as</strong>, transformando e ressignificando os conhecimentos<br />
do mundo adulto para a sua própria cultura <strong>de</strong> pares. Ao se apropriarem ativamente<br />
d<strong>as</strong> informações do mundo adulto, el<strong>as</strong> criam rotin<strong>as</strong> interativ<strong>as</strong> coerentes com<br />
essa cultura.<br />
Embora admitindo minh<strong>as</strong> limitações em traduzir o ponto <strong>de</strong> vista d<strong>as</strong><br />
crianç<strong>as</strong> numa temática que consi<strong>de</strong>ro tão fundamental para a construção <strong>de</strong> uma<br />
socieda<strong>de</strong> que respeite o universo e todos/<strong>as</strong> que <strong>de</strong>le fazem parte, saio <strong>de</strong>sta<br />
6
pesquisa com uma visão b<strong>as</strong>tante otimista, acreditando que, se tivermos humilda<strong>de</strong><br />
para apren<strong>de</strong>r com <strong>as</strong> menin<strong>as</strong> e meninos <strong>de</strong>ste mundo afora, talvez a socieda<strong>de</strong><br />
almejada não esteja tão distante. M<strong>as</strong> para isso é preciso apren<strong>de</strong>r a ousar, a<br />
sonhar, a brincar com <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> que parecem séri<strong>as</strong>, a tratar com serieda<strong>de</strong> <strong>as</strong><br />
cois<strong>as</strong> que parecem banais, é preciso apren<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>sejar, a sentir prazer – enfim, é<br />
preciso apren<strong>de</strong>r a transgredir, sempre que preciso for, para alcançar a felicida<strong>de</strong>.<br />
Bibliografia:<br />
CORSARO, William A. A reprodução interpretativa no brincar ao “faz-<strong>de</strong>-conta”d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>.<br />
In: Educação, Socieda<strong>de</strong> e Cultur<strong>as</strong>, nº 17, 2002. p. 113-134.<br />
FERREIRA, Maria Manuela Martinho. A gente aqui o que gosta mais é <strong>de</strong> brincar com os<br />
outros meninos: <strong>as</strong> crianc<strong>as</strong> como actores sociais e a (re)organização social do grupo <strong>de</strong> pares no<br />
quotidiano <strong>de</strong> um jardim <strong>de</strong> infância. 2002. (Tese <strong>de</strong> Doutorado). Universida<strong>de</strong> do Porto, Portugal.<br />
GROSSI, Miriam Pillar. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> e sexualida<strong>de</strong>. In: Antropologia em Primeira Mão.<br />
UFSC, 1995.<br />
______. A questão do m<strong>as</strong>culino e do feminino para a transformação d<strong>as</strong> <strong>relações</strong> na sala <strong>de</strong><br />
aula. In: <strong>Um</strong> novo paradigma <strong>sobre</strong> a aprendizagem. Ed. Vozes. Petrópolis, 1995.<br />
______. O m<strong>as</strong>culino e o feminino na educação. In: GROSSI, E. P. & BORDIN, Jussara. Revista<br />
Paixão <strong>de</strong> Apren<strong>de</strong>r. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.<br />
ROCHA, Eloísa Candal. A pesquisa em educação infantil no Br<strong>as</strong>il: trajetória recente e<br />
perspectiv<strong>as</strong> <strong>de</strong> consolidação <strong>de</strong> uma pedagoga. Florianópolis, UFSC, Centro <strong>de</strong> Ciênci<strong>as</strong> da<br />
Educação, Núcleo <strong>de</strong> Publicações, 1999.<br />
SARMENTO, Manuel Jacinto. PINTO, Manuel. As crianç<strong>as</strong> e a infância: <strong>de</strong>finindo conceitos,<br />
<strong>de</strong>limitando o campo. In: PINTO, Manuel. SARMENTO, Manuel Jacinto. As crianç<strong>as</strong>: contextos e<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Portugal, Centro <strong>de</strong> Estudos da Criança. Ed. Bezerra, 1997. p. 7-30.<br />
SAYÃO, Déborah Thomé. Pequenos homens, pequen<strong>as</strong> mulheres? Meninos, menin<strong>as</strong>? Algum<strong>as</strong><br />
questões para pensar <strong>as</strong> <strong>relações</strong> entre <strong>gênero</strong> e infância. In: Pro-Posições, v. 14, n. 3(42)- set./<strong>de</strong>z.,<br />
2003. P.67-87.<br />
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil <strong>de</strong> análise histórica. In: Educação e Realida<strong>de</strong>. 1995.<br />
1 O termo “tia” aparece n<strong>as</strong> fal<strong>as</strong> d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> ao se dirigirem à professora, à auxiliar ou à pesquisadora. Embora já<br />
tenham ocorrido discussões em reuniões <strong>de</strong> <strong>estudo</strong>s com <strong>as</strong> professor<strong>as</strong> <strong>sobre</strong> a questão, seu uso ainda permanece com<br />
b<strong>as</strong>tante intensida<strong>de</strong>. Sobre essa discussão, ver: FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cart<strong>as</strong> a quem ousa ensinar. 12.<br />
ed. São Paulo: Olho d’Água, 2002.<br />
2 Estudos recentes têm procurado ouvir e levar em conta os conhecimentos produzidos pel<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> no contexto<br />
coletivo <strong>de</strong> instituições educativ<strong>as</strong>. Entre eles: Búfalo (1997), Gobbi (1997), Leite (1997), Prado (1998), Batista (1997),<br />
Delgado (1998), Oliveira (2001), Coutinho (2002), Agostinho (2003).<br />
3 Márcia Gobbi (1997, p.26) faz uma relação <strong>de</strong>ste termo, que significa uma visão <strong>de</strong> mundo que consi<strong>de</strong>ra o adulto<br />
como o centro <strong>de</strong> tudo, tudo p<strong>as</strong>sa a ser visto e sentido segundo a ótica do adulto, com o termo etnocentrismo, que se<br />
caracteriza por uma visão <strong>de</strong> mundo segundo a qual o grupo a que pertencemos é tomado como centro <strong>de</strong> tudo.<br />
7
4<br />
Estou consi<strong>de</strong>rando instituições coletiv<strong>as</strong> <strong>de</strong> educação e cuidado <strong>as</strong> creches, pré-escol<strong>as</strong>, centros <strong>de</strong> educação infantil<br />
municipais, privados, filantrópicos ou comunitários.<br />
5<br />
Búfalo (1997), Gobbi (1997), Leite (1997), Prado (1998),Batista (1998), Oliveira (2000), Coutinho (2002), Agostinho<br />
(2003).<br />
6<br />
William Corsaro (2002, p.114) diz que, através da interação com os coleg<strong>as</strong> no contexto pré-escolar, <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong><br />
produzem a primeira <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> cultur<strong>as</strong> <strong>de</strong> pares n<strong>as</strong> quais o conhecimento infantil e <strong>as</strong> prátic<strong>as</strong> são transformados<br />
gradualmente em conhecimento e competênci<strong>as</strong> necessári<strong>as</strong> para participar do mundo adulto.<br />
8