Ruídos na Representação da Mulher ... - Fazendo Gênero
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<strong>Ruídos</strong> <strong>na</strong> <strong>Representação</strong> <strong>da</strong> <strong>Mulher</strong> (Preconceitos e estereótipos <strong>na</strong> literatura e em outros<br />
discursos) ST. 13<br />
Júlio César Lobo<br />
Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia (UNEB)<br />
Palavras-chave: Nordestinos. Chancha<strong>da</strong> carioca - História e Crítica - Psicologia Social dos<br />
Estereótipos.<br />
Feroz per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong><br />
nem importa qual seja<br />
a raça dessa lâmi<strong>na</strong>:<br />
faca mansa de mesa,<br />
feroz per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>.<br />
João Cabral de Melo Neto, Uma faca só lâmi<strong>na</strong>.<br />
Sou nega, nega baia<strong>na</strong><br />
Revolucionária <strong>da</strong>s caatingas do sertão<br />
Sou bamba, no bamboleio<br />
Ô, minhas comi<strong>da</strong>s é entre os sol<strong>da</strong>dos do batalhão.<br />
De faca per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong><br />
Não vejo home <strong>na</strong> minha frente<br />
Não vejo não!<br />
Ary Barroso, "Nega Baia<strong>na</strong>" (1930)<br />
I<br />
Essa comunicação visa a<strong>na</strong>lisar representações <strong>da</strong> migrante nordesti<strong>na</strong> no ciclo <strong>da</strong><br />
chancha<strong>da</strong> como uma mulher que se destaca primordialmente pela valentia, <strong>na</strong> esteira <strong>da</strong><br />
estigmatização, via mpb, tipo "Paraíba masculi<strong>na</strong>, mulher-macho, sim, sinhô". Toma-se como<br />
corpus filmes estrelados ou co-estrelados pela atriz cearense Nancy Wanderley, a saber: O Camelô<br />
<strong>da</strong> Rua Larga (1958), No Mundo <strong>da</strong> Lua (1958), Quem Roubou meu Samba? (1959) e Eu Sou o Tal<br />
(1960). Esse texto faz parte de uma pesquisa, inicia<strong>da</strong> em 2002, e que tem por título "Paraíbas,<br />
baianos e can<strong>da</strong>ngos (Análise de representações do migrante nordestino em filmes ambientados no<br />
Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília, 1952-2006)".<br />
Por que se estu<strong>da</strong>r as representações de uma identi<strong>da</strong>de social regio<strong>na</strong>l fora de sua<br />
origem através de uma análise de estereótipos? Essa in<strong>da</strong>gação talvez fosse mais funcio<strong>na</strong>l para o<br />
nosso uso aqui se assim reformula<strong>da</strong>: para que servem os estereótipos Há várias respostas, a saber:<br />
a) o estereótipo comporta um conjunto de "imagens de segun<strong>da</strong> mão" (LIPPMANN, 1973:149-159),<br />
que mediatizam nossas relações com o real através do que a nossa cultura nos definiu previamente.<br />
Essas imagens compõem figurações invariáveis, artificiais e superficiais, que se repetem<br />
automaticamente ao infinito (STARFIELD, 1993); b) os estereótipos fornecem também ao<br />
indivíduo uma espécie de aju<strong>da</strong> psicológica para uma rápi<strong>da</strong> apreciação de situações (e rápi<strong>da</strong><br />
justificativa) porque, sendo eles estruturações prontas, si<strong>na</strong>lizam como certas situações devem ser<br />
padroniza<strong>da</strong>s pelos indivíduos numa situação identifica<strong>da</strong> especificamente ou não.
A pertinência de uma análise de estereótipos para o objeto que se pretende construir aqui<br />
lastreia-se <strong>na</strong>s pressuposições de que, segundo Stam (1995:70-84): a) o estudo <strong>da</strong> estereotipia<br />
revela formas opressivas de preconceito, formas que, em um primeiro momento, podem ter parecido<br />
fenômeno casual e inócuo; b) esse tipo de análise destaca a devastação psíquica, inflingi<strong>da</strong> por<br />
retratos sucessivamente negativos de grupos sistematicamente atacados, seja pela interiorização<br />
desses estereótipos ou por meio dos efeitos negativos de sua dissemi<strong>na</strong>ção; c) esse tipo de análise<br />
assi<strong>na</strong>la a funcio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de social dos estereótipos, evidenciando o fato de que eles não são erros de<br />
recepção, mas, sim, uma forma de controle social.<br />
Ao estabelecermos como o objetivo principal dessa comunicação a análise de uma <strong>da</strong><strong>da</strong><br />
identi<strong>da</strong>de regio<strong>na</strong>l, no caso a nordesti<strong>na</strong>, gostaríamos de destacar mais algumas perspectivas<br />
teórico-metodológicas que nos informam. Para Bourdieu (1989: 113), o poder de se destacar, em<br />
determi<strong>na</strong>dos grupos, uma identi<strong>da</strong>de étnica ou regio<strong>na</strong>l, com a conseqüente estigmatização, é parte<br />
<strong>da</strong>s lutas de classificações, que se corporificam <strong>na</strong> disputa pelo monopólio de fazer ver e fazer crer,<br />
de <strong>da</strong>r a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima <strong>da</strong>s divisões do mundo<br />
social e, por este meio, de fazer e desfazer os grupos sociais. Para Hall (2000:109), as identi<strong>da</strong>des<br />
surgem no interior <strong>da</strong>s "mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des específicas de poder", estando, desse modo, mais como o<br />
produto <strong>da</strong> marcação <strong>da</strong> diferença e <strong>da</strong> exclusão do que estando no lugar do signo de uma<br />
identi<strong>da</strong>de idêntica, <strong>na</strong>turalmente constituí<strong>da</strong>, de uma 'identi<strong>da</strong>de' em seu significado tradicio<strong>na</strong>l.<br />
Os nordestinos têm se apresentado como perso<strong>na</strong>gens principais ou secundárias, com<br />
alguma relevância, majoritariamente em quatro momentos de nossa cinematografia. O primeiro<br />
desses momentos é <strong>na</strong> comédia musical carioca, a chancha<strong>da</strong>. Nesta, estereotipados elementos de<br />
composição de tipos "nordestinos" pareciam funcio<strong>na</strong>r em direção à revali<strong>da</strong>ção positiva de uma<br />
identi<strong>da</strong>de social regio<strong>na</strong>l. O segundo momento desse tipo de representação dá-se principalmente <strong>na</strong><br />
primeira metade dos anos 60 quando o Cinema Novo mais politizado buscou no Nordeste, mais<br />
propriamente em sua zo<strong>na</strong> rural, composições "positivas" de uma "brasili<strong>da</strong>de" para não dizer<br />
"<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo". O terceiro momento, a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade dos 70, domi<strong>na</strong>do por dramas,<br />
pode ser marcado por processos de estereotipação que se estruturam sob um vetor de negativi<strong>da</strong>de<br />
com representações <strong>na</strong> direção <strong>da</strong> discrimi<strong>na</strong>ção e ao preconceito, em última forma. O último<br />
momento ain<strong>da</strong> se desenrola, apeli<strong>da</strong>do de "Retoma<strong>da</strong>", mas ain<strong>da</strong> é cedo para se traçar mesmo que<br />
provisoriamente um perfil desse ciclo no recorte que propomos.<br />
O nosso recorte aqui trafega <strong>na</strong> trilha dos deslocamentos e contrastes entre o primeiro e o<br />
terceiro momento. Desconta<strong>da</strong> a distância de déca<strong>da</strong>s e a mu<strong>da</strong>nça de gênero <strong>na</strong>rrativo domi<strong>na</strong>nte,<br />
uma in<strong>da</strong>gação que parece emergir a uma certa recepção crítica é a seguinte, parafraseando Ferro<br />
(2002:202): de que reali<strong>da</strong>des esses filmes são a imagem?
II<br />
1950. A Casa Civil do presidente Eurico Dutra encomen<strong>da</strong> um jingle para promover a<br />
candi<strong>da</strong>tura de José Américo de Almei<strong>da</strong> a gover<strong>na</strong>dor <strong>da</strong> Paraíba. Tratava-se de "Paraíba" (L.<br />
Gonzaga - H. Teixeira), cujo refrão se popularizou imediatamente: Paraíba, masculi<strong>na</strong> / Muiémacho,<br />
sim, sinhô! Esses versos buscavam enfatizar o posicio<strong>na</strong>mento <strong>da</strong>quele Estado durante a<br />
Revolução de 30 quando a ci<strong>da</strong>de de Princesa (Isabel) - depois, João Pessoa -, chefia<strong>da</strong> por José<br />
Pereira Lima, declarou-se território livre e resistiu às tropas do gover<strong>na</strong>dor Álvaro Pereira de<br />
Carvalho, incapaz de domi<strong>na</strong>-la. Inicialmente, o citado refrão foi considerado como um insulto à<br />
mulher paraiba<strong>na</strong>, criando-se um tumulto quando a canção foi apresenta<strong>da</strong> em um comício.<br />
Independente dessa reação, Emilinha Borba, uma <strong>da</strong>s "rainhas do rádio", a gravou com enorme<br />
sucesso ain<strong>da</strong> em 1950.<br />
1952. No ano em que Luiz Gonzaga faz o seu próprio registro <strong>da</strong>quele sucesso, uma ágil<br />
chancha<strong>da</strong>, <strong>na</strong> on<strong>da</strong> do sucesso regio<strong>na</strong>l de "Paraíba", toma o estereótipo criado por ele como<br />
inspiração para a caracterização <strong>da</strong> Ma<strong>da</strong>me Pau-Pereira (Violeta Ferraz), protagonista do filme É<br />
Fogo <strong>na</strong> Roupa, dir. Watson Macedo. Tão logo se encerra a seqüência de abertura (créditos), um<br />
mestre-de-cerimônias do Hotel Quintandinha (Petrópolis, RJ) apresenta publicamente a presidente<br />
do Primeiro Congresso <strong>da</strong>s Esposas em Defesa <strong>da</strong> Fideli<strong>da</strong>de Conjugal. A primeira aparição dela já<br />
a caracteriza fortemente: ela surge em ce<strong>na</strong> vesti<strong>da</strong> de paletó e gravata, fumando um charuto e com<br />
gestos grosseiros, configurando o estereótipo fácil de homossexual femini<strong>na</strong> em comédias. Para o<br />
que se busca problematizar aqui, tor<strong>na</strong>-se difícil precisar o que teria mais efeito <strong>na</strong> generalização <strong>da</strong><br />
"Paraíba masculi<strong>na</strong>" se a canção de Gonzagão ou se essa chancha<strong>da</strong> de difícil acesso.<br />
O fato é que os traços marcados por Violeta Ferraz vão se eternizar <strong>na</strong> chancha<strong>da</strong> <strong>na</strong><br />
composição de migrantes nordesti<strong>na</strong>s, ora nuançados por uma valentia que surge no lugar de uma<br />
espera<strong>da</strong> masculini<strong>da</strong>de, que falhou em um par ou em um casal, ou acentua<strong>da</strong> por pura grosseira,<br />
quando não em uma inusita<strong>da</strong> ce<strong>na</strong> de tortura. Para o espaço de que dispomos aqui, vamos nos<br />
concentrar numa amostra de chancha<strong>da</strong> protagoniza<strong>da</strong>s pela cearense Nancy Wanderley, como<br />
per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>... uma feroz per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>, por si<strong>na</strong>l. Os filmes são O Camelô<br />
<strong>da</strong> Rua Larga (RJ, 1958), dir. E. Ramos; Quem Roubou Meu Samba? (RJ, 1958), dir. J.C.<br />
Burle ; No Mundo <strong>da</strong> Lua (RJ, 1958), dir. Roberto Farias; e Eu Sou o Tal (RJ, 1960) , dir. E.<br />
Ramos.<br />
Nancy Wanderley interpreta uma costureira de uma buate e eter<strong>na</strong> noiva do camelô do<br />
título em O Camelô <strong>da</strong> Rua Larga. Após uma confusão nos bastidores <strong>da</strong>quele local, a perso<strong>na</strong>gemtítulo<br />
troca a sua mala de muamba por uma outra idêntica, contendo dinheiro falso. Ignorando o<br />
fato, ele não se aproveita <strong>da</strong> súbita fortu<strong>na</strong>, que é descoberta pela do<strong>na</strong> <strong>da</strong> pensão em que reside. O<br />
camelô-protagonista vive a fugir do "rapa", dos margi<strong>na</strong>is, a quem pertence a mala ve<strong>na</strong>l, e do<br />
assédio <strong>da</strong> sua eter<strong>na</strong> noiva. No momento em que os margi<strong>na</strong>is buscam recuperar sua mala, trava-se
uma briga no bastidores, e o camelô arreme<strong>da</strong> um discurso de valentia, enunciando-o juntamente<br />
com a sua <strong>na</strong>turali<strong>da</strong>de: Num baiano decidido, ninguém bota a mão: vai tudo virar mungunzá. O<br />
que se segue é o citado camelô fugindo à luta. Enquanto ele arrota valentia, ela, discreta, é quem é<br />
valente e bastante dura com ele, aplicando-lhe safanões quando ele tenta assediar as corista <strong>da</strong><br />
buate. Tem-se aqui ain<strong>da</strong> um ato curioso: a auto-identificação não vem associa<strong>da</strong> a uma autoestereotipação<br />
positiva, mas, sim, com uma inversão, que aponta para uma covardia...de um baiano.<br />
A valorização de uma valentia, que seria típica de uma <strong>na</strong>turali<strong>da</strong>de, está presente também em um<br />
outro filme com Nancy Wanderley. Em Quem Roubou meu Samba ?, essa atriz cearense é a<br />
enfermeira Iolan<strong>da</strong>, eter<strong>na</strong> noiva de um atrapalhado agente artístico, interpretado por Ankito. Ela se<br />
envolve em um briga com seqüestradores de um compositor, saindo-se bem <strong>na</strong> empreita<strong>da</strong>. Ao ser<br />
elogia<strong>da</strong> em sua performance pugilística por um de seus colegas com êta,baia<strong>na</strong>!, ela prontamente<br />
lhe responde: Baia<strong>na</strong>, vírgula. Eu sou é per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>.<br />
Em No Mundo <strong>da</strong> Lua, Nancy faz parte de uma quadrilha que põe um agricultor potiguar<br />
(interpretado pelo gaúcho Walter D'Ávila) no lugar de um sósia seu, o proprietário de uma fábrica<br />
de cimento. Esse nordestino está vindo ao Rio de Janeiro em busca de uma mulher, que conhece<br />
ape<strong>na</strong>s por correspondência, sendo acompanhado <strong>na</strong> viagem por um sanfoneiro (o fluminense<br />
Regi<strong>na</strong>ldo Faria). A função de Nancy no bando é estratégica, mas suas falas buscam realçar uma<br />
propensão à grossura e a uma proposta de truculência física, como se tem nesses trechos: Guarde<br />
essa valentia aí, ô, palhaço! (para um comparsa); "e não grita comigo, não, ô, careca, se não vai<br />
acabar conhecendo o gostinho de chumbo quente (para o violento chefe). Em um outro momento <strong>da</strong><br />
<strong>na</strong>rrativa, ela defen<strong>da</strong> a tortura do seqüestrado. Nesse filme, como em muitos outros, Nancy é a vilã<br />
e caracteriza<strong>da</strong> como per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>, mas, em nenhum dos outros, ela aparece como seqüestradora e<br />
torturadora. A grossura <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>gem interpreta<strong>da</strong> por Nancy<br />
para a qual chamamos a atenção em No Mundo <strong>da</strong> Lua reaparece em Eu Sou o Tal. Aqui, ela divide<br />
a virulência com Chico Anysio. Ela se identifica como a psiquiatra Honori<strong>na</strong> Camucim. Seu<br />
parceiro no consultório é Republicano Nepomuceno de Aragão. Ambos atendem um inocente<br />
paciente (Vagareza) aos berros, impedindo grosseiramente que ele se manifeste. Eles ain<strong>da</strong> brigam<br />
à frente do paciente, batem nele e empurram-no tanto que esse se manifesta apreensivo em localizar<br />
um ortopedista. Aqui, novamente, Nancy é caracteriza<strong>da</strong> mais uma vez como enérgica, tensa e rude,<br />
mas a estereotipagem que se destaca não é mais a de uma essencial valentia <strong>da</strong> mulher<br />
per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>, tipo que ela eternizou <strong>na</strong>s chancha<strong>da</strong>s, mas a formação do deboche a propósito do<br />
ensino universitário no Nordeste.<br />
Além <strong>da</strong>s "paraíbas" ou ferozes per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>s que consagraram Nancy Wanderley, há pelo menos<br />
mais uma fora do seu currículo e, curiosamente, interpreta<strong>da</strong> pela carioca Sônia Mamede em<br />
Garotas e Samba (RJ, 1957). Duas amigas de um ponto indefinido do Nordeste (Mamede e<br />
Adelaide Chiozzo) sonham em fazer sucesso no rádio e <strong>na</strong>s buates do Rio de Janeiro. A trama se
complica quando a perso<strong>na</strong>gem interpreta<strong>da</strong> por Adelaide se apaixo<strong>na</strong> por um galã do rádio<br />
(Francisco Carlos), mas é assedia<strong>da</strong> pelo assistente de produção de uma emissora (Jece Valadão).<br />
Em certo ponto <strong>da</strong> história, a perso<strong>na</strong>gem de Mamede minimiza o objeto de sua viagem e passar a<br />
cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> sua amiga, revelando uma inespera<strong>da</strong> valentia e referências à sua peixeira de estimação. A<br />
propósito dos papéis de Mamede <strong>na</strong>s chancha<strong>da</strong>s, Bastos (2001) observa que ela representava<br />
aquelas nordesti<strong>na</strong>s, que não possuíam nenhuma ingenui<strong>da</strong>de, li<strong>da</strong>ndo com maestria com<br />
malandros e paqueradores mais ousados.<br />
III<br />
Uma <strong>da</strong>s evidências <strong>da</strong> amostra que se tem aqui é a dissemi<strong>na</strong>ção de uma estereotipia <strong>na</strong><br />
contramão de uma outra: o "cabra macho" nordestino. Nesse último aspecto, a nossa música popular<br />
é rica em matrizes para essa estereotipação como se tem em trechos <strong>da</strong>s seguintes canções:<br />
"Forro de Caruaru" ( Zé Dantas): No forró de Sá Joaninha/ No Caruaru/ Cumpadre Mané Bento/ Só fartava<br />
tu/ Nunca vi meu cumpadre/ Forgansa tão boa/ tão cheia de brinquedo, de animação/ Bebendo <strong>na</strong> função/<br />
Nós <strong>da</strong>nsemo sem pará/ Num galope de matá/ Mas arta madruga<strong>da</strong>/ Pro mode uma <strong>da</strong><strong>na</strong><strong>da</strong>/ Qui vei de<br />
Tacaratu/ Matemos dois sor<strong>da</strong>do/ Quatro cabo e um sargento/ Cumpadre Mané Bento/ Só fartava tu.<br />
"Cumpadre João" (R. Cavalcanti - J. do Pandeiro): Lá <strong>na</strong> Paraíba, briguei em Princesa/ Minha <strong>na</strong>tureza não<br />
sofreu abalo / Briguei em São Paulo <strong>na</strong> Revolução/ Aju<strong>da</strong>ndo os paulistas quatrocentão/ Cheguei em Caxias<br />
num dia de feira/ Me fiz <strong>na</strong> peixeira e não vi valentão.<br />
"Forró em Limoeiro" (E. Ferreira): Eu fui pra Limoeiro/ E gostei do forró de lá/ Eu vi um caboclo brejeiro/<br />
Tocando a sanfo<strong>na</strong>, entrei no fuá. No meio do forró, houve um tereré/ Disse o mano, agüenta o pagode/ Todo<br />
mundo pode, gritou o Teixeira/ Quem não tem peixeira, briga no pé.<br />
Peixeira pra lá, peixeira pra cá, esse instrumento acabou por servir como peça de (mais)<br />
estigmatização de nordestinos <strong>na</strong> mpb, no caso aqui em uma <strong>da</strong>s canções do ítalo-paulistano<br />
Adorniram Barbosa, "Tiro ao Álvaro": Teu olhá mata mais/ do que bala de carabi<strong>na</strong>/ que venenos<br />
estriquini<strong>na</strong>/ que peixeira de baiano...<br />
Albuquerque Jr. (2005:32-36), ao a<strong>na</strong>lisar o estereótipo do machão nordestino,<br />
contraparti<strong>da</strong>, por si<strong>na</strong>l, <strong>da</strong>s perso<strong>na</strong>gens de Nancy Wanderley aqui discuti<strong>da</strong>s, chama a nossa<br />
atenção para os seguintes aspectos que contribuiriam para a sua formação: a influência de Euclides<br />
<strong>da</strong> Cunha <strong>na</strong> difusão de atributos relacio<strong>na</strong>dos à coragem, destemor, valentia e virili<strong>da</strong>de; a<br />
associação desse 'último dos machos' com as representações mais corriqueiras do coronel, do<br />
jagunço e do cangaceiro; e a perigosa associação "ser nordestino é ser macho". Ao fi<strong>na</strong>l do seu<br />
ensaio, jocosamente intitulado de "Cabra <strong>da</strong> peste!", esse historiador nordestino adverte:
Alimentar o mito do 'cabra macho' é contribuir para a permanência, inclusive, <strong>da</strong> violência contra<br />
as mulheres e, ao mesmo tempo, alimentar um modelo de masculini<strong>da</strong>de, que tenta manter um tipo de<br />
relação entre homens e mulheres que viria desde o período colonial e que, por isso mesmo, é vista como<br />
<strong>na</strong>tural, como eter<strong>na</strong>. Este modelo vitima os próprios homens, já que os coloca em constantes situações de<br />
risco e deles exige renúncias afetivas e emocio<strong>na</strong>is importantes, como a do exercício <strong>da</strong> paterni<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />
expressão de sentimentos e emoções. Em outras palavras, a macheza nordesti<strong>na</strong> faz os homens infelizes<br />
(p.36)<br />
A menção no argumento acima à obra euclidia<strong>na</strong> faz com que tragamos à to<strong>na</strong> mais um<br />
exemplo de caracterização de uma essencial valentia <strong>na</strong> mulher nordesti<strong>na</strong> em mais uma chancha<strong>da</strong>,<br />
Sai Dessa, Recruta (RJ, 1960), dir. E. Ramos. Antes de uma seqüência em que será obrigado a<br />
demonstrar publicamente a sua valentia, um cabo do Exército ( Mário Tupi<strong>na</strong>mbá) antecipa o seu<br />
desempenho, citando historicamente as mulheres nordesti<strong>na</strong>s:<br />
- Na Bahia, a gente acostumamos (sic) a acor<strong>da</strong>r as criança com tiro de garruncha e <strong>da</strong>r bala pra ela chupar.<br />
E, <strong>na</strong> guerra de Canudos, Antônio Conselheiro, que o Senhor do Bonfim o tenha em bom lugar, precisou<br />
implorar pras mulheres baia<strong>na</strong>s pra não sentar praça porque a mulher baia<strong>na</strong> não tem ape<strong>na</strong>s a beleza de<br />
Marta Rocha, tem muita corage e se as mulher (sic) tem muita corage, o que não dirá <strong>da</strong> corage do sol<strong>da</strong>do<br />
baiano?<br />
IV<br />
É claro que nordesti<strong>na</strong>s <strong>na</strong>s chancha<strong>da</strong>s não se resumiram a valento<strong>na</strong>s, interpreta<strong>da</strong>s por<br />
Nancy Wanderley, Violeta Ferraz ou por Sônia Mamede. Havia as "mocinhas" sobre as quais nota<br />
Dias (1993:91)<br />
A mocinha <strong>da</strong>s chancha<strong>da</strong>s será a expressão <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s, pois<br />
estarão inseri<strong>da</strong>s no universo público: trabalharão fora, serão atrizes, cantoras, funcionárias públicas. No<br />
entanto, em termos de padrões morais e comportamentais, essa mocinha será presa aos estereótipos <strong>da</strong><br />
mulher recata<strong>da</strong>, jovem, alegre, ingênua, cândi<strong>da</strong>, prestativa, amorosa. Eram esses os requisitos<br />
indispensáveis a to<strong>da</strong>s as mocinhas <strong>da</strong>s chancha<strong>da</strong>s <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 50.<br />
Dias (op. cit) também já apontou para o fato de que, apesar <strong>da</strong>s estereotipações de<br />
nordesti<strong>na</strong>s <strong>na</strong>s chancha<strong>da</strong>s, a recepção dessa migrante no Rio de Janeiro é vista como positiva,<br />
pois é <strong>na</strong> metrópole, entre outras coisas, que ela, sendo artista, obtém sucesso e reconhecimento.<br />
Mas ela faz uma importante ressalva: Isto não significa que as chancha<strong>da</strong>s falassem de um Brasil<br />
que não existia [mas sim] que a socie<strong>da</strong>de presente <strong>na</strong>s chancha<strong>da</strong>s articulava um mundo oposto<br />
aos <strong>da</strong>s classes e elites domi<strong>na</strong>ntes desse País <strong>na</strong> déca<strong>da</strong> de 50 (102). No entanto, Chaia (1980:96)<br />
já havia ressaltado a especifici<strong>da</strong>de desse "sucesso": Na chancha<strong>da</strong>, configura-se quase sempre o
trabalho margi<strong>na</strong>l. Ou se é trabalhador margi<strong>na</strong>l ou descaracterizado ou desempregado. Não há<br />
valorização do trabalho como fator de produção capitalista.<br />
Voltando ao problema que se procurou destacar, a representação estereotipa<strong>da</strong> de<br />
nordestinos e nordestinos, como valentes, "cabras machos", "paraíbas" ou "feroz per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>",<br />
em nosso entendimento, essa hegemonia caricatural <strong>na</strong>s chancha<strong>da</strong>s pode tender a acentuar em uma<br />
leitura, mesmo que no campo <strong>da</strong>s artes, de um recusa por parte dos estereotipados aqui a um<br />
mínimo de racio<strong>na</strong>lismo, a um mínimo de uma postura conciliatória, o que, entre outras coisas,<br />
pode justificar, <strong>na</strong>s telas, uma domi<strong>na</strong>ção também do lado de fora dos cinemas.<br />
Referências<br />
ALBUQUERQUE JR., D. Cabra <strong>da</strong> peste! Nossa História, Rio de Janeiro, II, 17, mar. 2005, p.32-<br />
36.<br />
BASTOS, M. Tristezas não Pagam Dívi<strong>da</strong>s (Cinema e política nos anos <strong>da</strong> Atlânti<strong>da</strong>). São<br />
Paulo:Olho D'Água, 2001.<br />
BOURDIEU, P. A identi<strong>da</strong>de e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia<br />
de região. In O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.<br />
CHAIA, M. O Tostão Furado. São Paulo: FFLCH-USP, mimeografado, 1980.<br />
DIAS, R O Mundo como Chancha<strong>da</strong>. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.<br />
FERRO, M. O filme, uma contra-análise <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de? In LE GOFF, J. (dir.) História: Novos<br />
Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.<br />
HALL, S. Quem precisa de identi<strong>da</strong>de? In SILVA, T. (org.) Identi<strong>da</strong>de e Diferença. Belo<br />
Horizonte: Autêntica, 2002.<br />
LIPPMANN, W. Estereótipos. In ROSENBERG, B. (ed.) Cultura de Massa. São Paulo: Cultrix,<br />
1973.<br />
STAM, R. Estereótipo, realismo e representação racial. Imagens, 5, 1996, p.6-11.<br />
1996.<br />
STARFIELD, P. Le Stéréotype au Cinéma. Paris: Universi<strong>da</strong>de de Paris VII, 1993.