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Fazen<strong>do</strong> <strong>Gênero</strong> 9<br />

Diásporas, Diversidades, Deslocamentos<br />

23 a 26 de agosto de 2010<br />

FAMÍLIA E HOMOSSEXUALIDADE: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA<br />

DOMÉSTICA SOFRIDA POR JOVENS HOMOSSEXUAIS<br />

Thiago Barcelos Soliva 1<br />

Esta investigação objetiva problematizar a violência <strong>do</strong>méstica sofrida por jovens<br />

homossexuais. Para tanto, foram realizadas 20 entrevistas entre 06 de dezembro de 2006 e 22 de<br />

junho de 2007, essas entrevistas tiveram duração média de uma hora cada com algumas variações<br />

pontuais. A maioria desses jovens pertenciam ao uma mesma rede social que tivemos acesso. As<br />

outras entrevistas resultaram de indicações feitas pelos que já haviam si<strong>do</strong> solicita<strong>do</strong>s a conceder<br />

entrevista anteriormente. Ten<strong>do</strong> como eixo central às experiências de violência, entendidas como<br />

expressões da discriminação e exclusão, com particular interesse naquelas que se relacionam com a<br />

família, essas entrevistas foram gravadas, transcritas na íntegra e analisadas.<br />

Família, homossexualidade e violência<br />

A homossexualidade quan<strong>do</strong> descoberta pelos familiares torna-se um grave problema<br />

enfrenta<strong>do</strong> pelo conjunto <strong>do</strong>s jovens que entrevistamos. Muitas são as experiências frustradas que se<br />

inscrevem na relação filho (a) gay/família, dificultan<strong>do</strong> sobremaneira a ação política de assumir a<br />

homossexualidade no grupo <strong>do</strong>méstico. Essas famílias não conseguem proporcionar a esses jovens<br />

uma sensação de acolhimento que convencionalmente essa instituição deveria gerar. As agressões,<br />

ameaças e outros tantos tipos de violência comunicam a intolerância, frustração e me<strong>do</strong>s que esses<br />

familiares, comumente, exteriorizam quan<strong>do</strong> se deparam com a possível existência de um filho<br />

homossexual.<br />

Muitas vezes, tal como sinaliza Sarti (2004) essa dificuldade também pode estar relacionada<br />

com o fato <strong>do</strong>s próprios pais ou outros membros da família não se sentirem à vontade ou capazes de<br />

lidar com seus próprios me<strong>do</strong>s ou “demônios” liga<strong>do</strong>s a temas mais íntimos como sexualidade, por<br />

exemplo. Soma<strong>do</strong> a isso, esses me<strong>do</strong>s se relacionam com os projetos 2 individuais com os quais<br />

esses familiares tendem a projetar destinos sociais para os seus filhos. Nesse caso, sobretu<strong>do</strong> pais e<br />

mães, se deparam com a ruptura imediata <strong>do</strong>s “sonhos” que nutriam em relação ao filho. Como que<br />

se essa notícia por si só fizesse esvaecer por completo to<strong>do</strong> um roteiro de vida espera<strong>do</strong> para esses<br />

1 Mestran<strong>do</strong> <strong>do</strong> Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA-IFCS-UFRJ).<br />

2 Traço aqui uma aproximação com a obra <strong>do</strong> professor Gilberto Velho (1994). Para esse autor, os projetos estão no<br />

cerne da vida social. Eles são os responsáveis pela construção da identidade.<br />

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Diásporas, Diversidades, Deslocamentos<br />

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jovens ao nascer 3 . Planos como netos, casamento, continuação da “casa” são abruptamente<br />

corrompi<strong>do</strong>s e ameaça<strong>do</strong>s. O que resta é tão somente a percepção de que precisam fazer algo para<br />

resgatar esses projetos individuais. Esse processo desencadeia fortes conflitos que fazem da “casa”<br />

um espaço marca<strong>do</strong> por me<strong>do</strong>s, receios e incertezas:<br />

(...) “ele chegou muito puto, minha mãe confirmou, enfim, foi uma puta discussão, tipo, aquelas coisas, tipo,<br />

você gosta mesmo de dar o cu, sabe, enfim, preferia que você fosse bandi<strong>do</strong>, você morreu pra mim, você não é<br />

mais meu filho,(...) você tá morto pra mim”. (V.)<br />

“Aí chegan<strong>do</strong> em casa foi aquela coisa, senta aí e vamos conversar, qual é a sua? Eu quero saber, e eu joguei<br />

aberto com ele, ué você quer saber se eu sou gay, eu sou. Aí, assim, o desespero dele foi grande, ele na hora<br />

falou assim: “B. eu preferia que você me dissesse que... que era marginal, que se prostituía, que usava drogas<br />

por que tu<strong>do</strong> disso eu vi ex, mas ex gay eu não conheço e” (...) (B.)<br />

Não raras vezes, costumamos ouvir que os pais são os primeiros a ficar saben<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong> os<br />

últimos a aceitem a homossexualidade de seus filhos. Com efeito, essa assertiva não está tão<br />

descolada da realidade quanto o que poderíamos supor. Afinal, são os pais que ao longo <strong>do</strong>s anos<br />

acompanham o processo de socialização <strong>do</strong>s mais jovens. Eles que observam atentamente os<br />

comportamentos, se esses correspondem ou não ao sexo ao qual pertencem. Aliás, são eles mesmos<br />

que imprimem as primeiras interdições e prescrições <strong>do</strong> tipo ideal de performance de gênero a ser<br />

seguida. Diante desses indícios o grupo <strong>do</strong>méstico tende a operar um rígi<strong>do</strong> movimento de<br />

repressão basea<strong>do</strong> na autoridade familiar. Esse movimento de repressão parte de extremos que vai<br />

desde o silêncio interdito, até as formas mais marcantes de violência.<br />

Inúmeras perguntas em forma de queixas começam a ser formuladas diante da certeza de<br />

que algo está “erra<strong>do</strong>”. O critério da falta é o principal mote dessas indagações. Perguntas como:<br />

Cadê a namorada? Quan<strong>do</strong> você vai namorar? Quan<strong>do</strong> você vai me dar netos? São algumas das<br />

questões que emergem quan<strong>do</strong> perante o fato incontornável de que o roteiro de vida desse jovem<br />

não corresponde ao roteiro de um jovem heterossexual. Essas perguntas tornam-se tão mais<br />

coercitivas quanto mais os jovens se esquivam da trajetória que lhe se impõem.<br />

Associada a essas perguntas, encontramos a certeza de que seus desejos e aspirações não se<br />

encontram nos braços de um oposto sexual. Nessas condições, a iniciação sexual é sempre tida<br />

como um momento de afirmação desses desejos. Conversan<strong>do</strong> com alguns sobre como teria si<strong>do</strong> o<br />

primeiro beijo com outro homem, alguns me revelaram que esse teria figura<strong>do</strong> como uma espécie<br />

de divisor de águas em suas vidas. Teria consolida<strong>do</strong> a certeza de que era esse o projeto de vida o<br />

qual queriam levar adiante. A primeira ida a boate ou outro local de sociabilidade gay (bares, saunas<br />

etc) é outro forte marca<strong>do</strong>r para a construção de uma identidade homossexual. Quase sempre essa<br />

3 Como cria Elizabeth Badinter (1993) em relação a rotulações <strong>do</strong>s gêneros, esses estereótipos são construí<strong>do</strong>s a partir<br />

da ultrassom, diante <strong>do</strong> conhecimento pelos pais <strong>do</strong> sexo <strong>do</strong>s filhos. Daí começam os esforços de diferenciação que<br />

desemborcarão nesses projetos de vida para cada filho.<br />

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ida é feita sem o conhecimento <strong>do</strong>s pais. A partir desse momento algumas certezas vão se<br />

afirman<strong>do</strong>, o encontro com seus pares homossexuais torna-se uma constante nesses espaços. E são<br />

esses encontros que facultam a criação de redes de interdependência entre esses jovens.<br />

Diante dessa certeza verificamos algumas estratégias que são a<strong>do</strong>tadas por esses jovens para<br />

ocultar a sexualidade <strong>do</strong>s pais. Normalmente, uma das principais formas encontradas pelos<br />

informantes de reter a informação acerca de sua identidade real 4 (GOFFMAN, 1976), manten<strong>do</strong><br />

assim junto a seus familiares uma atmosfera menos hostil de convivência, é o recurso ao “namoro<br />

heterossexual”. Na oportunidade, encontramos frequentemente o estabelecimento de acor<strong>do</strong>s<br />

consensuais trava<strong>do</strong>s entre esses jovens e amigas de sua rede de amizades. Esses acor<strong>do</strong>s são, via de<br />

regra, uma forma de aliviar as tensões exercidas pela família em função de um suposto<br />

comportamento homossexual perceptível nesses jovens, como podemos observar no relato abaixo:<br />

(...) “não tinha namorada, não aparecia com namorada, arranjei pra...a cobrança era tão grande, arranjei uma<br />

amiga, pra levar pra casa, pra mostrar minha namorada, jantar, aquelas almoços gigantescos com toda a família<br />

‘vamos conhecer a namorada <strong>do</strong> W’, depois de tanto tempo e era, finalmente a namorada <strong>do</strong> W e foi horrível,<br />

foi péssimo, foi horripilante” (...) (S.)<br />

A “descoberta” da homossexualidade pelos pais geralmente vem acompanhada de graves<br />

tensões capazes de romper os laços de solidariedade que a família tende a amarrar. Em algumas<br />

situações, a descoberta pode ser provocada por uma atitude deliberada <strong>do</strong> filho homossexual, que se<br />

vê cerca<strong>do</strong> de dúvidas numa insuportável atmosfera de incertezas. Isso pode ocorrer por esse achar<br />

que assim estará dividin<strong>do</strong> com os pais um problema que precisa compartilhar, sain<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

ocultamento. Entretanto, esse “contar aos pais” pode não vir acompanhada das expectativas<br />

positivas esperadas por esses jovens, contribuin<strong>do</strong> para um aumento das tensões que se realizam na<br />

esfera <strong>do</strong>méstica.<br />

(...) “minha mãe sabe, né, e na época ela... enfim, chorou, chegou a me agredir, né, ela falou ‘você é uma<br />

vergonha pra família’, né, ‘ah, que se você for isso mesmo, eu vou te botar pra fora, né, de casa, enfim’, né,<br />

todas aquelas ameaças, né, e eu ficava muito constrangi<strong>do</strong> com aquilo” (...) (C.)<br />

A “revelação” pode mesmo se dar por meio de uma ritualização – uma tradicional reunião<br />

de família -, na qual pais e filhos tendem a confrontar verdades.<br />

(...) “me puxaram pelo cabresto, cheguei de um dia de trabalho comum, fui lá não sei por que, sentamos numa<br />

mesa, parecia uma reunião kardecista, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de mãos dadas, eu ‘o que é isso’, sério, horripilante” (...)<br />

(W.)<br />

Na maioria <strong>do</strong>s casos, a ruptura com os projetos que foram laboriosamente construí<strong>do</strong>s para<br />

serem encabeça<strong>do</strong>s pelo filho transgressor é respondida com muita violência. A intensidade dessas<br />

4 De acor<strong>do</strong> com Goffman, os indivíduos desempenham na interação social papéis sociais como se estivessem em um<br />

teatro. A identidade real seria a representação <strong>do</strong> eu individual, ou seja, o papel que realmente desempenhamos na<br />

sociedade inclusiva (GOFFMAN, 1976).<br />

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violências, bem como as suas consequências é o que procuramos conhecer de forma mais detida nas<br />

linhas que seguem.<br />

Partiremos da definição de violência intrafamiliar oferecida por Day (2003):<br />

Toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito<br />

ao pleno desenvolvimento de um membro da família. Pode ser cometida dentro e fora de casa, por qualquer<br />

integrante da família que esteja em relação de poder com a pessoa agredida. Inclui também as pessoas que<br />

estão exercen<strong>do</strong> a função de pai ou mãe, mesmo sem laços de sangue (DAY ET AL, 2003, p. 10).<br />

Essa violência pode assumir formas específicas, poden<strong>do</strong> dividir-se em violência física e<br />

psicológica. Para Day (2001), a violência física “ocorre quan<strong>do</strong> alguém causa ou tenta causar dano<br />

por meio de força física, de algum tipo de arma ou instrumentos que possa causar lesões internas,<br />

externas ou ambas" (DAY, 2003). Podemos perceber que dentro desse quadro estão englobadas as<br />

agressões físicas e suas expressões mais marcantes, nas quais o corpo da vítima é o locus de ação <strong>do</strong><br />

perpetra<strong>do</strong>r.<br />

Esse tipo de violência é recorrente entre os jovens gays, como pode ser percebi<strong>do</strong> nos<br />

levantamentos produzi<strong>do</strong>s por Carrara (2003, 2005, 2006) em algumas capitais brasileiras. De<br />

acor<strong>do</strong> com o autor, a agressão física aparece como forma visível de violência em cerca de 20% das<br />

respostas <strong>do</strong>s participantes. Ouvin<strong>do</strong> esses jovens, observamos que essa forma de violência esteve<br />

presente na experiência de vida de quase to<strong>do</strong>s os informantes, corroboran<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s levanta<strong>do</strong>s<br />

por Mott e Cerqueira (2003) que mostram que as principais vítimas das ações violentas dirigidas<br />

contra gays, principalmente as agressões físicas, são pessoas jovens.<br />

física.<br />

São comuns as ocasiões nas quais os familiares protagonizam cenas cruéis de violência<br />

(...) “ele descobriu que estava sain<strong>do</strong> com um menino, que tinha menti<strong>do</strong> pra ele e tal, aí foi que ele me deu um<br />

soco nas costas e tal” (...) (V.)<br />

(...) “e ela começou a me agredir, né, me bater mesmo, né, aí foi onde que me deu uma tapa na cara, né, e ela<br />

nunca tinha feito isso na vida dela, na minha criação” (...) (C.)<br />

Essas situações são, geralmente, motivadas quan<strong>do</strong> diante da certeza incontornável da<br />

homossexualidade <strong>do</strong>s filhos. Esse momento traumático é capaz de causar danos emocionais que se<br />

arrastarão por toda a trajetória de vida desses jovens, marcan<strong>do</strong> profundamente sua subjetividade,<br />

bem como suas formas de inserção social.<br />

Notamos que essas agressões são acompanhadas de fortes temores compartilha<strong>do</strong>s pelos pais<br />

e demais familiares em relação à descoberta de uma sexualidade não normativa em seus filhos. Em<br />

regra, essa descoberta deflagra os sentimentos mais diversos que se concentram nos aspectos<br />

negativos que essa sexualidade considerada “suja” (DOUGLAS, 1976) pode encerrar. O malogro da<br />

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homossexualidade desperta sentimentos de difícil lida, os quais misturam me<strong>do</strong>s e culpas num<br />

esforço premente de recuperação daqueles que transgridem. Tapas, socos, xingamentos,<br />

recriminações e ameaças fazem parte dessa terapêutica que visa única e exclusivamente trazer esse<br />

sujeito às raias da normalidade ocasionalmente rompida.<br />

A violência psicológica é outro tipo de violência com marcantes ocorrências dentro das<br />

paredes da casa. Ela pode ser descrita como, "Toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano<br />

à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa" (DAY, 2003). Sua eficácia está<br />

fortemente vinculada a qualidade das relações <strong>do</strong>mésticas, ou seja, das relações mais íntimas, nas<br />

quais a violência é absorvida de forma silenciosa, causan<strong>do</strong> danos catastróficos no processo de<br />

formação da subjetividade da vítima. Ela acaba por encerrar esses jovens em esta<strong>do</strong>s mentais<br />

marca<strong>do</strong>s por profunda solidão e sofrimento psíquico, poden<strong>do</strong> desencadear situações de<br />

vulnerabilidade (uso de drogas, depressão, alcoolismo, práticas sexuais não-protegidas). Essa<br />

violência também contribui para uma percepção negativa da homossexualidade, levan<strong>do</strong> esses<br />

jovens a uma sensação de não-pertencimento e, por conseguinte, isolamento social que, em casos<br />

mais extremos, poderá encontrar como solução o suicídio.<br />

A violência psicológica é materializada pelas agressões verbais e ameaças de agressão. Uma<br />

característica marcante desse tipo de violência é a capacidade que ela possui de, pelo uso da<br />

palavra, de difundir visões de mun<strong>do</strong>, representações e sentimentos negativos que visam gerar<br />

humilhação e constrangimentos (CASTRO, 2004). Os poucos estu<strong>do</strong>s disponíveis com grandes<br />

amostras de homossexuais evidenciam que esse é outro tipo de violência comum entre eles: 62,8%<br />

<strong>do</strong>s homossexuais que foram a parada gay de São Paulo em 2005 reportaram já terem si<strong>do</strong> assim<br />

vitimiza<strong>do</strong>s (CARRARA E COLS, 2006).<br />

Entre os nossos entrevista<strong>do</strong>s ela também foi recorrente e se manifestou de diferentes<br />

formas, como podemos ver no relato abaixo:<br />

(...) “colocan<strong>do</strong> me<strong>do</strong> em relação a AIDS, a agressão física <strong>do</strong>s vizinhos e outros amigos, então crian<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s<br />

esses sistemas de freios, entendeu, para que eu não desenvolvesse minha sexualidade de forma natural” (..) (L.)<br />

O receio de infecção pelo vírus HIV (como se essa possibilidade fosse uma realidade<br />

exclusiva para os homossexuais) é uma constante entre esses pais. Esse me<strong>do</strong> encontra apoio na<br />

ideia corrente de que os homossexuais possuem um comportamento sexual ancora<strong>do</strong> em uma<br />

dimensão he<strong>do</strong>nista liberada das preocupações com práticas sexuais protetivas. Esses temores são<br />

expressos em ações concretas como podemos observar no depoimento abaixo:<br />

(...) “minha mãe, o máximo de contato é assim, ela vai numa farmácia e compra camisinha, até hoje ela tem<br />

esse habito, vai na farmácia e compra meia dúzia de camisinha e coloca na minha gaveta de cuecas, é o<br />

máximo de discussão que a gente tem” (...) (T.)<br />

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Uma outra consequência desses temores se realiza nos próprios jovens, que passam a<br />

conceber as relações sexuais como riscos possíveis de exposição à <strong>do</strong>enças. Esses me<strong>do</strong>s funcionam<br />

como entraves a qualquer possibilidade que possam vir a ter de se engajar em uma relação amorosa<br />

qualquer. A negação por completo da atividade sexual, mesmo as não-penetrativas é em alguns<br />

jovens um traço característico desse me<strong>do</strong>. Essa questão aparece de forma bem emblemática na<br />

entrevista de P., que nos revelou nunca ter transa<strong>do</strong> por me<strong>do</strong> de pegar alguma <strong>do</strong>ença. Ainda que<br />

saiba das formas concretas de contágio, bem como das formas de se proteger, esse rapaz não<br />

consegue levar a fun<strong>do</strong> nenhuma experiência sexual. Pergunta<strong>do</strong> sobre isso ele nos revelou os<br />

me<strong>do</strong>s advinham, “De <strong>do</strong>enças e eu acho que isso me trava muito, sabe, eu tenho vontade, mas na<br />

hora eu fico, assim, não, não vou fazer” (P.).<br />

Outra dimensão dessa violência psicológica é aquela que se realiza por intermédio <strong>do</strong>s<br />

xingamentos. A utilização de termos altamente pejorativos e ofensivos como, viadinho, bicha,<br />

boiola, queima rosca, “baitola”, “mariquinha”, “traveco” entre tantos outros que aparecem nas<br />

classificações a<strong>do</strong>tadas pela cultura sexual brasileira, tem como objetivo exclusivo realizar uma<br />

difusão de uma cultura homofóbica, que objetiva acima de tu<strong>do</strong> manter os sujeitos informa<strong>do</strong>s que<br />

tais práticas não devem ser aceitas, tampouco executada pelos mesmos.<br />

Em ambas as modalidades de violência observadas o que ficou evidente foi o caráter<br />

normaliza<strong>do</strong>r que tendem a reproduzir. As punições (socos, pontapés, ameaças etc) são respostas-<br />

limite comumente empregadas quan<strong>do</strong> se trata de “resgatar” esse jovem desse “mal em si” que a<br />

homossexualidade representa. Não suficientes para dar contra dessa empresa, a violência é em<br />

muitas das vezes acompanhada das interdições. O controle sobre as ações <strong>do</strong>s filhos é outro da<strong>do</strong> de<br />

fundamental importância na tentativa de eliminar essa sexualidade transgressora.<br />

As interdições são componentes indispensáveis pelos quais os pais mantêm o controle social<br />

sobre a identidade sexual de seus filhos, após seu conhecimento. A suspensão <strong>do</strong> auxilio-financeiro<br />

ofereci<strong>do</strong> para as despesas pessoais, ou mesmo para outros gastos decorrentes da manutenção <strong>do</strong>s<br />

estu<strong>do</strong>s, nos sugerem formas de fazer valer a autoridade familiar frente a homossexualidade <strong>do</strong><br />

filho. O caso de V. se encaixa nesse modelo de interdição, V. sempre quis fazer medicina, quan<strong>do</strong><br />

diante da descoberta <strong>do</strong>s pais passou por fortes me<strong>do</strong>s de perder o acesso a escola.<br />

(...) “eu sempre soube muito ce<strong>do</strong> que eu queria fazer medicina, tinha essa idéia na cabeça e, tipo, o me<strong>do</strong> que<br />

eu tinha é de que falavam...me ameaçavam de tirar da escola, então eu tinha me<strong>do</strong>, tipo, de sair <strong>do</strong> prévestibular<br />

e não conseguir passar pra aquilo que eu queria” (...) (V.)<br />

Outra forma de exercer esse controle é infligir limites ao acesso de amigos (principalmente<br />

amigos gays) à casa. Esses limites podem se estender às relações mais amplas.<br />

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(...) “Aí ela comentan<strong>do</strong> esse descontentamento, aí eu fui perguntar, ela falou que de um tempo pra cá eu só<br />

estava andan<strong>do</strong> com gente fresca. Minha mãe, que tem um irmão gay, que ela não tem grandes problemas com<br />

a coisa; usa termos como gay, homossexual, não termos pejorativos. Aí, eu virei pra ela e falei: “ah, mãe, eu<br />

an<strong>do</strong> com essas pessoas por que eu tenho assunto com elas, sabe”, aí eu continuei, “Ah, mãe, eu sou como elas,<br />

sabe, não tenho problemas nenhum em andar com essas pessoas”, aí ela ficou inconformada, ficou naquela fase<br />

<strong>do</strong> ‘que foi que eu fiz de erra<strong>do</strong>’” (...) (E.)<br />

Travar conhecimento acerca das redes de sociabilidade desses jovens é um <strong>do</strong>s principais<br />

meios pelos quais esse processo pode vir a se consumar. Conversas telefônicas interceptadas, acesso<br />

não consenti<strong>do</strong> a computa<strong>do</strong>res, leitura não autorizada de cartas pessoais, dentre outros episódios<br />

dão início a to<strong>do</strong> um processo de investigação e, consequente correção que ambiciona conduzi-lo ao<br />

uma determinada normalidade.<br />

Quanto as justificativas a<strong>do</strong>tadas pelos pais, encontramos um sem-número de explicações<br />

que vão desde a autoexpiação até a manifestação de me<strong>do</strong>s que se relacionam a carreira<br />

homossexual. Interessante notar que em uma suposta busca de livrar os filhos das possíveis<br />

situações de violência que esses possam estar expostos no espaço da rua, ou seja, fora <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio<br />

da proteção familiar, os pais acabam por antecipar tais violências, o que na maioria <strong>do</strong>s casos,<br />

conforme já foi exposto aqui, provoca danos ainda maiores <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> perpetradas por outros<br />

sujeitos. Em outros termos, pela justificativa de que não quererem ver os filhos expostos a situações<br />

de violência esses pais infligem contra os mesmos um alto nível de violência. Esses me<strong>do</strong>s<br />

encontram eco em representações atribuídas à homossexualidade. O conteú<strong>do</strong> dessas representações<br />

geralmente é embasa<strong>do</strong> por concepções religiosas e médicas arraigadas no imaginário social.<br />

A percepção da homossexualidade como peca<strong>do</strong> ainda está presente na compreensão que os<br />

pais constroem da mesma. Esse entendimento está fortemente amarra<strong>do</strong> na noção corrente de que a<br />

homossexualidade transgride as leis divinas por não ter por projeto primordial a procriação. Prática<br />

he<strong>do</strong>nista, portanto exortada <strong>do</strong> convívio <strong>do</strong>s homens, a so<strong>do</strong>mia (homossexualidade), representada<br />

nos escritos sagra<strong>do</strong>s como uma prática nefanda, digna das mais severas penalidades <strong>do</strong>s homens<br />

que administravam a lei de Deus vem permanentemente sen<strong>do</strong> acionada quan<strong>do</strong> os pais passam a<br />

tomar conhecimento que o filho é homossexual.<br />

(...) “eu venho de uma família muito tradicional, católica. Então, assim, toda vez que esse assunto surgia na<br />

minha casa, sempre era trata<strong>do</strong> de uma forma muito pejorativa, muito negativa, né. Então, assim, eu sempre...e<br />

assim, por amar muito os meus pais, né, tinha aquele me<strong>do</strong> de decepcionar muito grande, né”. (P.)<br />

Supomos que o uso dessas percepções religiosas também é utiliza<strong>do</strong> em uma tentativa de<br />

encontrar respal<strong>do</strong> a suas angústias com relação à orientação sexual <strong>do</strong> filho, bem como o me<strong>do</strong> de<br />

possíveis reações que sua homossexualidade pode trazer sobre ele mesmo e sua família. Dessa<br />

maneira, é como se a família buscasse amparo em algo ti<strong>do</strong> como maior, de maior credibilidade,<br />

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como a Bíblia, para reforçar a necessidade <strong>do</strong> filho homossexual em “retornar” para o caminho ti<strong>do</strong><br />

como certo, no caso aqui, a heterossexualidade.<br />

Igualmente importantes são as representações da homossexualidade como <strong>do</strong>ença. Essas<br />

estão fortemente associadas às concepções higienistas muito difundidas durante o século XIX,<br />

principalmente pela psiquiatria e medicina oitocentistas, na qual a mesma era compreendida como<br />

patologia passível de cura (TREVISAN, 1986; FRY & MACRAE, 1991; GREEN, 2000).<br />

Simultaneamente, ela é também vista como um conjunto de práticas sexuais conscientemente (mal)<br />

escolhidas por um da<strong>do</strong> indivíduo a partir de um cardápio de alternativas que inclui aquelas vistas<br />

como normais e moralmente corretas. Disso deriva a idéia que a homossexualidade é “uma<br />

safadeza”. Como podemos ver abaixo, alguns entrevista<strong>do</strong>s são agredi<strong>do</strong>s pela ação simultânea<br />

dessas percepções equivocadas.<br />

(...) “meu pai achava que aquilo era <strong>do</strong>ença, é convicto de que é <strong>do</strong>ença, acho, meu pai achava que era <strong>do</strong>ença,<br />

minha mãe achava que era safadeza, era a divergência, até discutiram se era <strong>do</strong>ença ou era safadeza”. (N.)<br />

“Foi o seguinte, tipo assim, você sempre chega em casa, eu pelo menos, <strong>do</strong>u um beijo na minha tia, <strong>do</strong>u um<br />

beijo no meu tio e tal, entendeu, minha prima também que tem dez anos e é a filha deles, e...de repente, eu<br />

chegava, minha tia chegava e não falava comigo; eu chegava e meu tio se distanciava, aí minha tia não queria<br />

mais lavar minhas roupas” (...) (V.)<br />

Considerações finais<br />

Essa investigação tratou da violência intrafamiliar tal como vivida por jovens homossexuais<br />

masculinos. Vimos que as relações familiares são marcadas por tensões que são reforçadas quan<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> reconhecimento de um filho homossexual. O reconhecimento da homossexualidade pelos<br />

familiares e, sobretu<strong>do</strong> entre eles mesmos, movimenta entre esses jovens to<strong>do</strong> um conjunto de<br />

me<strong>do</strong>s que se expressam em formas concretas de violência, sofrimento psíquico e incertezas.<br />

Várias são as estratégias que os pais empregam para contornar esse “problema”. A violência<br />

física e psicológica aparecem como modalidades de violência constantemente a<strong>do</strong>tadas para esse<br />

fim. Simultaneamente, essas estratégias convivem com os sofrimentos desses jovens que se situam<br />

entre a publicização ou ocultamento da sua orientação sexual. Essas questões colocam a “casa”<br />

como espaço marca<strong>do</strong> por contradições, desconstruin<strong>do</strong> a noção corrente que faz da mesma como<br />

lugar-comum da segurança e refúgio.<br />

Por fim, esperamos contribuir para o entendimento dessa violência pouco explorada pelos<br />

estu<strong>do</strong>s de gênero no Brasil. Nossas análises buscaram dar conta de uma explicação mais detida<br />

desse grande problema social, a saber: a violência anti-gay. Confiamos ainda que com essa<br />

iniciativa mais estu<strong>do</strong>s possam ser realiza<strong>do</strong>s nessa área pouco explorada academicamente.<br />

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Referências<br />

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Diásporas, Diversidades, Deslocamentos<br />

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BADINTER, Elizabeth. XY: sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.<br />

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