Lazer e Leitura nas Imagens de Debret - Profª Carla Mary S. Oliveira
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OLIVEIRA AND ENGLER CURY, PORTUGUESE STUDIES REVIEW 18 (1) (2011) 151-177 165<br />
musical, provavelmente feito a partir <strong>de</strong> um pedaço <strong>de</strong> bambu ou talo <strong>de</strong><br />
mamona, que traz à mão direita.<br />
Separando os dois grupos, lá está o terceiro e último menino branco,<br />
marchando compenetrado, <strong>de</strong> boca aberta, certamente cantarolando com os<br />
amigos alguma marchinha infantil. Sobre o ombro direito apoia o mastro da<br />
ban<strong>de</strong>irinha do pelotão, <strong>de</strong> listras brancas e vermelhas e diligentemente enfeitada<br />
com fitinhas. Seu chapéu é quase igual ao do negrinho “oficial”, mas<br />
suas roupas, certamente, são <strong>de</strong> melhor qualida<strong>de</strong>. Atrás <strong>de</strong>le, se amontoam<br />
os outros cinco meninos do grupo, um <strong>de</strong>les bem pequeno, parecendo ter<br />
por volta <strong>de</strong> três ou quatro anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> somente, e que mal aguenta o pedaço<br />
<strong>de</strong> bambu que segura sobre a cabeça com a mão direita, ao modo <strong>de</strong><br />
uma espada. Por trás do grupo <strong>de</strong> meninos, no segundo plano da cena, um<br />
indistinto grupo <strong>de</strong> homens adultos, todos negros, agitam objetos, que po<strong>de</strong>m<br />
ser ferramentas <strong>de</strong> trabalho ou armas, sobre suas cabeças.<br />
Vamos, então, aos possíveis sentidos submersos em cena tão inocente re -<br />
tratada na aquarela <strong>de</strong> <strong>Debret</strong>. Obviamente, fica claro que a brinca<strong>de</strong>ira em<br />
questão exclui completamente as meni<strong>nas</strong>. A elas cabia a reprodução lúdica<br />
dos fazeres femininos, eminentemente domésticos e, portanto, <strong>de</strong> modo algum<br />
praticáveis ao ar livre. Fruir das <strong>de</strong>scobertas inerentes ao contato com a<br />
natureza, <strong>de</strong>sse modo, era prerrogativa eminentemente masculina, mesmo<br />
no universo infantil. Além disso, as hierarquias sociais e simbólicas do Brasil<br />
Imperial estão ali, claramente assinaladas, sob o véu e a bruma da inocência<br />
infantil: o branco, militar, oficial graduado, senhor <strong>de</strong> escravos, proprietário<br />
rural, li<strong>de</strong>ra um séquito <strong>de</strong> subordinados, que reproduzem não só as etnias<br />
presentes em seu mundo <strong>de</strong> convivência imediata, ou seja, o branco pobre, o<br />
mestiço forro, a escravaria, como também a posição social que cada um <strong>de</strong>les<br />
<strong>de</strong>via ocupar, mesmo em se tratando <strong>de</strong> uma brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> crianças.<br />
O habitus e a estrutura da socieda<strong>de</strong> escravista estão tão arraigados em<br />
tais meninos que eles reproduzem em seu mundo lúdico as divisões e fronteiras<br />
sociais que veem cotidianamente <strong>nas</strong> relações sociais e <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong><br />
seus pais, parentes e outros conhecidos adultos. Quanto ao grupo <strong>de</strong> homens<br />
adultos por trás dos meninos, fica a incógnita <strong>de</strong> seu sentido nesta representação,<br />
talvez uma citação à condição futura <strong>de</strong>stes meninos, já na vida adulta:<br />
como sabê-lo? Vê-se, <strong>de</strong>sse modo, que por mais inocente e <strong>de</strong>spretensiosa<br />
que possa parecer, esta aquarela tem muito a nos falar do Brasil oitocentista<br />
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