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Aires de Almeida Santos e a invenção da Angola ( Paulo Ricardo ...

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Revista Litteris -Literatura<br />

Novembro <strong>de</strong> 2010<br />

Número 6<br />

<strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong> <strong>Santos</strong> e a invenção <strong>da</strong> <strong>Angola</strong><br />

( <strong>Paulo</strong> <strong>Ricardo</strong> Braz /UFF) 1<br />

Tratar dos tempos <strong>de</strong> guerra <strong>de</strong> libertação <strong>de</strong> <strong>Angola</strong> e <strong>da</strong> sua contemporânea produção<br />

poética correspon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma forma geral, a uma ampla abor<strong>da</strong>gem do que se enten<strong>de</strong> por poesia<br />

<strong>de</strong> resistência. A geração <strong>da</strong> Mensagem, revista publica<strong>da</strong> em inícios <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 50, prepara o<br />

terreno para uma nova poesia <strong>de</strong> cariz nacional, que, nos anos seguintes, reivindicaria sua<br />

autonomia em palavras <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> teor expressamente político, é certo, não sem ser<br />

violentamente abafa<strong>da</strong>s pela presença repressora <strong>da</strong> polícia política portuguesa.<br />

Para uma poesia que nasce sob o signo <strong>da</strong> luta parece <strong>de</strong>scabi<strong>da</strong> uma proposta <strong>de</strong> análise<br />

compreendi<strong>da</strong> a partir do que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> <strong>de</strong> essencialmente lírico <strong>de</strong>ste objeto. Uma poesia que<br />

emerge em meio a programas políticos e projetos <strong>de</strong> reforma social corre gran<strong>de</strong> risco <strong>de</strong> se<br />

fun<strong>da</strong>mentar em cego engajamento, resultando numa literatura panfletária, muitas vezes <strong>de</strong> gosto<br />

duvidoso. Entretanto, a produção angolana <strong>de</strong>ste período apresenta uma gama <strong>de</strong> autores que foge<br />

<strong>de</strong>ste paradigma; <strong>de</strong>ntre estes, encontra-se <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong> <strong>Santos</strong>, poeta mestiço que também<br />

levantará, assim como os célebres Agostinho Neto, Antonio Jacinto e Viriato <strong>da</strong> Cruz, a ban<strong>de</strong>ira<br />

do Vamos <strong>de</strong>scobrir <strong>Angola</strong>!, embora a sua lírica assuma traços específicos <strong>de</strong> uma estética que<br />

em muito transcen<strong>de</strong> um simples compromisso político <strong>de</strong> cunho partidário.<br />

Objetiva-se, com este trabalho, um encontro com a poesia <strong>de</strong> <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong>, <strong>de</strong><br />

maneira a acompanhar <strong>de</strong> um estudo acerca <strong>da</strong> poesia <strong>de</strong> resistência o fazer literário do escritor<br />

angolano. Para tanto, faz-se necessário um olhar sobre a sua produção focado, principalmente, em<br />

sua relação com o tempo e o tempo <strong>da</strong> poesia, <strong>de</strong>stacando, <strong>de</strong>ste modo, as marcas estilísticas que<br />

1 Mestrando em Literatura Portuguesa – UFF.


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Novembro <strong>de</strong> 2010<br />

Número 6<br />

caracterizam, neste caso, algumas composições <strong>de</strong> sua obra Meu amor <strong>da</strong> rua onze. Os textos <strong>de</strong><br />

Pires Laranjeira e Alfredo Bosi nortearão os percursos <strong>de</strong>sta caminha<strong>da</strong> pela <strong>Angola</strong> do poeta.<br />

A poesia <strong>de</strong> <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong> traça – como po<strong>de</strong> se observar no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua<br />

obra – caminhos os mais variados na exposição <strong>de</strong>sta lírica. Pires Laranjeira atenta, em seu texto,<br />

à frase usa<strong>da</strong> por Maurício <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong> Gomes em um poema seu: “É preciso criar a poesia <strong>de</strong><br />

<strong>Angola</strong>”. Nota-se como a poesia <strong>de</strong> resistência coaduna-se a esta i<strong>de</strong>ia expressa, revelando as<br />

imagens, cores e sons <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>. <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong> apresenta, assim como seus contemporâneos,<br />

uma nova poesia que explora paisagens, tipos sociais, passagens do cotidiano, que refletem o tom<br />

<strong>de</strong>sta poética. A obra do poeta compreen<strong>de</strong> ora a poesia liga<strong>da</strong> aos i<strong>de</strong>ais <strong>da</strong> negritu<strong>de</strong>, como em<br />

“Juro”, texto <strong>de</strong> expressão passional que beira o erotismo, ora a composição que canta a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Angola</strong>, como em “Queixa”, <strong>de</strong> notáveis ecos <strong>de</strong> um romantismo apresentado na lírica <strong>de</strong> amor.<br />

Por outro lado, há, também, uma poesia <strong>de</strong> caráter explicitamente anticolonial, como “Quem?”,<br />

que explora um evi<strong>de</strong>nte viés crítico do autor – latente em to<strong>da</strong> a sua obra – mas exposto com<br />

to<strong>da</strong>s as letras neste texto.<br />

De qualquer maneira, <strong>de</strong>ve se ressaltar que a criação <strong>de</strong>sta nova poesia não só se restringe<br />

à formação <strong>de</strong> uma estética, como também sedimenta uma cosmovisão do homem <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>; a<br />

poesia que recria as percepções <strong>de</strong>ste estar-no-mundo do natural do país africano acaba por<br />

recriar a própria <strong>Angola</strong> livre.<br />

O espírito <strong>da</strong> resistência <strong>de</strong>marcado por esta poesia nasci<strong>da</strong> em meio ao movimento<br />

“Vamos <strong>de</strong>scobrir <strong>Angola</strong>!” constrói os seus pilares <strong>de</strong> sustentação com a Geração <strong>da</strong><br />

Mensagem, sendo a palavra, durante anos, a única arma utiliza<strong>da</strong> contra a força opressora. O alvo<br />

era certo: a cultura colonialista portuguesa. Deste modo, a voz que canta a <strong>Angola</strong> – sua terra, sua<br />

cultura, sua língua – já é por si só uma forma <strong>de</strong> resistir, embora às gerações seguintes tenha sido


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necessário um pouco mais do que belos versos para <strong>de</strong>marcar o seu território. A importância <strong>da</strong><br />

Mensagem no que diz respeito aos seus projetos e à sua influência é aponta<strong>da</strong> por Pires<br />

Laranjeira:<br />

Tinha, portanto, a apoiá-la uma agremiação africanística, nativista, na linha<br />

her<strong>da</strong><strong>da</strong> dos jornalistas, polemistas e literatos <strong>de</strong> Oitocentos, não sendo um mero<br />

jogo restrito, reservado aos círculos coloniais. Esse fun<strong>da</strong>mento colectivista e<br />

associativo, com um projecto bem <strong>de</strong>limitado, se bem que ambicioso e utópico,<br />

aliado ao conteúdo <strong>de</strong> reconhecido valor, fizeram <strong>da</strong> Mensagem um órgão<br />

cultural paradigmático <strong>da</strong> angolani<strong>da</strong><strong>de</strong>, que marcou uma época e influenciou<br />

to<strong>da</strong>s as futuras realizações no campo cultural e organizacional. (LARANJEIRA,<br />

1995, p. 71).<br />

Meu amor <strong>da</strong> rua onze, obra que compila a produção poética do escritor angolano,<br />

canaliza estas propostas já assinala<strong>da</strong>s na Mensagem enquanto circunscreve as marcas <strong>de</strong> um<br />

fazer literário bem próprio ao autor. Afinal, impressiona em <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong> a sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> suplantar as paisagens <strong>de</strong> miséria e <strong>de</strong>silusão dos anos <strong>de</strong> guerra às perspectivas<br />

intrinsecamente líricas que fazem <strong>de</strong> sua terra seu doce lar. Expressa em sua poesia, em vários<br />

momentos, uma subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> lírica <strong>de</strong> atmosfera bran<strong>da</strong>, como quem convi<strong>da</strong> a caminhar por<br />

versos que aos poucos vão <strong>de</strong>scobrindo uma <strong>Angola</strong> <strong>de</strong> contornos bem particulares.<br />

Doce lar<br />

Na minha casa<br />

Tenho uma varan<strong>da</strong> compri<strong>da</strong><br />

Flori<strong>da</strong><br />

Com rosas e buganvílias<br />

Gosto <strong>de</strong> estar sentado<br />

Reclinado<br />

Numa ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> palha<br />

A fumar<br />

E a pensar em na<strong>da</strong> que valha<br />

A pena<br />

(...)<br />

O eu lírico <strong>de</strong>screve as calmas paisagens a que chama lar, referindo-as por meio <strong>de</strong><br />

veementes impressões sensitivas que ora aguçam a visão com cores <strong>de</strong> rosas e buganvílias, ora o<br />

tato, a audição e o olfato, em cenários aprazíveis.


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(...)<br />

E a brisa <strong>da</strong> praia<br />

Serena<br />

Fagueira<br />

Espalha pelo chão acimentado<br />

As flores<br />

Incolores<br />

Da mangueira<br />

Gosto também <strong>de</strong> ouvir<br />

O murmúrio<br />

Da água a correr <strong>da</strong> torneira<br />

Sentir o olor do jantar<br />

A apurar<br />

(...)<br />

A ambientação familiar trata<strong>da</strong> por esta subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> é o construto poético do locus<br />

amoenus, espaço <strong>de</strong> abrigo do eu lírico em que as manifestações sensitivas configuram-se, assim,<br />

como aspecto flagrante <strong>de</strong> uma relação afetiva entre o homem e o seu lar. Neste espaço, <strong>de</strong>lineiase<br />

um complexo <strong>de</strong> impressões que acaba por traduzir a carga sentimental atribuí<strong>da</strong> pelo<br />

enunciador ao ambiente, sendo que a “brisa <strong>da</strong> praia”, o “murmúrio <strong>da</strong> água”, o “olor do jantar”,<br />

não somente compreen<strong>de</strong>m elementos <strong>de</strong> uma manifestação estética peculiar, como acolhem, em<br />

sua significação, o i<strong>de</strong>al proposto pelo eu lírico, o seu espaço <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />

No entanto, antes <strong>de</strong> tudo, é <strong>de</strong> extrema relevância observar como a poesia <strong>de</strong> <strong>Aires</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Almei<strong>da</strong></strong> se inscreve em seu tempo e como se apresentam as relações entre passado, presente e<br />

futuro em seus textos, assim como assinala Alfredo Bosi em seu O ser e o tempo <strong>da</strong> poesia. O<br />

teórico revela em seu trabalho as diferentes conformações <strong>da</strong> poesia <strong>de</strong> resistência, em um<br />

capítulo <strong>de</strong>dicado a este tema, ressaltando os diversos processos <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ados na relação<br />

temporal concernente aos anseios do eu lírico, <strong>de</strong> maneira a constituir campos <strong>de</strong> análise<br />

relativamente <strong>de</strong>finidos. Bosi trata, com insistência, <strong>da</strong> produção mitopoética, <strong>de</strong>screvendo sua<br />

função recuperadora <strong>de</strong> mitos ou <strong>de</strong> uma memória que torna sua visão a um passado <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong><br />

com o mundo.


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Como já foi explicitado, <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong> vivia, em princípios <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 60, anos <strong>de</strong><br />

forte repressão política e a sua poesia, já então, revelava gran<strong>de</strong> apreço pelos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> libertação<br />

colonial. Não é <strong>de</strong> espantar que, neste período, tenha sido preso – como o foram tantos outros –,<br />

no entanto, é surpreen<strong>de</strong>nte a graciosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> como compõe seu fazer poético, repleto <strong>de</strong><br />

remissões líricas a um universo <strong>de</strong> beleza e amor as quais, muitas vezes, chocam por seu<br />

contraste pungente com uma <strong>Angola</strong> em meio à guerra colonial.<br />

Quem tem o canhé<br />

I<br />

Tenho sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s do tempo<br />

Em que corria <strong>de</strong>scalço<br />

Pelas areias do rio;<br />

Comigo, os meios companheiros<br />

Também <strong>de</strong>scalços, correndo,<br />

A correr ao <strong>de</strong>safio.<br />

Tenho sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s do largo<br />

On<strong>de</strong> estava a minha casa,<br />

Com mulembas altaneiras;<br />

Tenho sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s sombras<br />

Com que os seus ramos cobriam<br />

Sempre as nossas brinca<strong>de</strong>iras.<br />

(...)<br />

Assim a lírica do poeta toma <strong>de</strong> assalto os olhos acostumados do leitor. To<strong>da</strong>via, como<br />

não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, esta escrita suave, por tantas vezes nostálgica, na<strong>da</strong> tem a ver com<br />

alheamento ou alienação. Pelo contrário, a reivindicação <strong>de</strong> uma voz nacional em oposição a uma<br />

cultura estrangeira representativa <strong>de</strong> tudo que era mais abominado em meados do século XX em<br />

<strong>Angola</strong>, refletia com inegável fervor este mesmo <strong>de</strong>sejo libertário, mas se conformando (no<br />

sentido mais positivo <strong>da</strong> expressão) esteticamente sob a égi<strong>de</strong> <strong>da</strong> lira <strong>de</strong> Orfeu. Deste modo, a<br />

poesia mítica po<strong>de</strong> trabalhar a questão <strong>da</strong> infância como o ambiente propício para a evocação em<br />

contraste a um tempo presente opressor.<br />

A resposta ao ingrato presente é, na poesia mítica, a ressacralização <strong>da</strong> memória<br />

mais profun<strong>da</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. E quando a mitologia <strong>de</strong> base tradicional falha,


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ou <strong>de</strong> algum modo já não entra nesse projeto <strong>de</strong> recusa, é sempre possível son<strong>da</strong>r<br />

e remexer as cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> psique individual. A poesia trabalhará, então, a<br />

linguagem <strong>da</strong> infância recalca<strong>da</strong>, a metáfora do <strong>de</strong>sejo, o texto do Inconsciente, a<br />

grafia do sonho. (BOSI, 2000, p. 174).<br />

As “sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s” expressas pelo eu lírico são o canal por meio do qual po<strong>de</strong> se entrar em<br />

contato com este movimento <strong>de</strong>stacado no eixo presente-passado-presente. A construção<br />

hiperbólica <strong>da</strong> última estrofe reforça tal caráter temático contornado por doces mo<strong>de</strong>lações<br />

rítmicas que transferem as dores <strong>da</strong> per<strong>da</strong> senti<strong>da</strong> no presente para o alento caloroso dos tempos<br />

<strong>de</strong> infância, figurado pelos espaços e brinca<strong>de</strong>iras recuperados pela memória afetiva do eu lírico.<br />

(...)<br />

(Quem tem o canhé?<br />

És tu.<br />

Pescoço <strong>de</strong> ganso, monco <strong>de</strong> peru...<br />

Quem tem o canhé?<br />

Sou eu.<br />

Diabo, diabo, não vais p’ra o céu...)<br />

Tenho sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s, meu Deus,<br />

Tantas, tantas que nem sei<br />

Como me cabem aqui;<br />

Tenho sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> tudo,<br />

Tenho sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s, até,<br />

Das sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s que senti.<br />

Nesta primeira parte do poema Quem tem o canhé, o eu lírico compreen<strong>de</strong> esta síntese<br />

entre sujeito e objeto referi<strong>da</strong> por Bosi, <strong>de</strong> maneira que os elementos evocados do passado não só<br />

correspon<strong>de</strong>m a um tempo vivido pelo eu lírico e compartilhado com as pessoas que tornaram<br />

este momento razão <strong>de</strong> abrigo como também dizem respeito à sua mais íntima subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

lírica, impressa no texto. Deste modo, quando o enunciador fala do “quintal <strong>da</strong> minha casa”, <strong>da</strong>s<br />

“horas do serão” com “moças a namorar, / As crianças a brincar” e <strong>da</strong> Lua que “<strong>de</strong>scia / P’ra se<br />

escon<strong>de</strong>r no Sobreiro”, além <strong>de</strong> um complexo <strong>de</strong> paisagens carrega<strong>da</strong>s com forte carga afetiva<br />

que vem à tona, <strong>da</strong>s lembranças do eu lírico, tratam-se dos próprios sentimentos <strong>de</strong>ste eu lírico,<br />

imagem amalgama<strong>da</strong> nas sen<strong>da</strong>s <strong>da</strong> memória, e que, enfim, se encontra, também, presentifica<strong>da</strong>,<br />

após revolvi<strong>da</strong> do percurso temporal a que o próprio poema alu<strong>de</strong> em sua estrutura,


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experimentando, assim, as angústias e <strong>de</strong>lícias as quais o texto revela, resultado em lamento<br />

agridoce – misto <strong>de</strong> vazio e esperança como expressão <strong>de</strong> resistência a que é submetido, não só a<br />

voz enunciadora, mas todo o povo angolano oprimido: “Agora, <strong>de</strong> tudo isso, / Só me ficou o<br />

feitiço / Desta sau<strong>da</strong><strong>de</strong> sem fim. / E quando a Lua escon<strong>de</strong> / No Sombreiro / Fico sozinho na<br />

praia / À laia / Não sei <strong>de</strong> quê, / Olhando o mar, / Carpindo sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s, / A olhar, / A olhar...”.<br />

Já em sua belíssima composição Quando os meus irmãos voltarem, <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong><br />

apresenta uma outra faceta <strong>de</strong> seu fazer poético. Exprimindo <strong>de</strong> forma mais explícita seu <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> transformação, o escritor angolano po<strong>de</strong> ser visto como o poeta-profeta.<br />

Imbuído dos i<strong>de</strong>ais <strong>da</strong> negritu<strong>de</strong>, o poeta trabalha em seu poema algumas <strong>da</strong>s imagens que<br />

se consoli<strong>da</strong>ram como emblema do movimento; to<strong>da</strong> a <strong>Angola</strong> – to<strong>da</strong> a África – repleta <strong>de</strong> irmãos<br />

é invoca<strong>da</strong> para a gran<strong>de</strong> Hora, em que o cenário <strong>de</strong> dor sucumbirá frente a um novo momento <strong>de</strong><br />

plenitu<strong>de</strong> consciente.<br />

Quando os meus irmãos voltarem<br />

Quando a minha mãe vier<br />

e trouxer<br />

os meus irmãos<br />

iremos todos viver<br />

para a estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Catete.<br />

Havemos <strong>de</strong> construir com as nossas mãos<br />

Uma casita <strong>de</strong> adobe<br />

bonita,<br />

on<strong>de</strong> caberemos todos.<br />

Será vermelha,<br />

to<strong>da</strong> coberta <strong>de</strong> capim,<br />

(...)<br />

A poesia-utopia revela-se, assim, como interessante instrumento <strong>de</strong> resistência ao propor<br />

uma estrutura temporal estabeleci<strong>da</strong> no eixo presente-futuro. Tal po<strong>de</strong> ser observado nos tempos<br />

verbais utilizados e nas expressões indicativas <strong>de</strong> tempo – o futuro é invocado em represália ao<br />

presente, imagem <strong>de</strong> um momento que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>ixado para trás. É curioso notar como as


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indicações a este tempo (passado) são sempre pinta<strong>da</strong>s em cores páli<strong>da</strong>s e aponta<strong>da</strong>s por todo um<br />

campo semântico referente ao sofrimento (sangue, lágrimas, cinzas) sentido pelo eu lírico e<br />

expandido no peito <strong>de</strong> seus irmãos.<br />

(...)<br />

Vai ser fácil amassar<br />

porque o barro já está tinto<br />

<strong>de</strong> tanto, <strong>de</strong> tanto sangue<br />

há tanto tempo a correr...<br />

(...)<br />

Vai ser fácil<br />

Pois mesmo que a chuva tar<strong>de</strong><br />

serão rega<strong>da</strong>s<br />

com as lágrimas caí<strong>da</strong>s<br />

dos olhos <strong>de</strong> todos nós.<br />

(...)<br />

Quando a minha mãe vier<br />

e trouxer<br />

os meus irmãos,<br />

iremos varrer<br />

as cinzas dos que partiram à frente...<br />

(...)<br />

Em contraposição a esta perspectiva, o futuro <strong>de</strong>sejado pelo eu lírico. A poesia-utopia<br />

encara o porvir como seu espaço <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e, nesta estruturação do eixo temporal presente-futuro,<br />

não há lugar sequer para a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um porvir malfa<strong>da</strong>do – o enunciador afirma convicto:<br />

“Quando a minha mãe vier / e trouxer / os meus irmãos / iremos todos viver / para a estra<strong>da</strong> do<br />

catete...”. E este futuro encontra-se na metáfora encerra<strong>da</strong> na imagem <strong>da</strong> casa, do lar: “Havemos<br />

<strong>de</strong> construir com as nossas mãos / Uma casita <strong>de</strong> adobe / bonita, / on<strong>de</strong> caberemos todos. / Será<br />

vermelha, / to<strong>da</strong> coberta <strong>de</strong> capim...”. Vermelha é a casita; e <strong>de</strong> que outra cor po<strong>de</strong>ria ser? O<br />

engajamento com as i<strong>de</strong>ias socialistas junto à atmosfera <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>mente lírica constroem a<br />

dinâmica <strong>de</strong>ste texto, singular na obra do poeta; dinâmica esta correspon<strong>de</strong>nte a um equilíbrio<br />

entre dor e alegria, lágrimas e canto <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, súplica e reivindicação.<br />

(...)<br />

Havemos <strong>de</strong> cantar!...


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Ah! Quando a minha mãe vier<br />

e trouxer os meus irmãos,<br />

ar<strong>de</strong>rá uma fogueira<br />

à beira<br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> trilho<br />

e o brilho<br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> estrela<br />

será ain<strong>da</strong> maior...<br />

Mãezinha, ouve o teu filho.<br />

NÃO TARDES, MÃE,<br />

VEM DEPRESSA...<br />

As palavras finais do poema, maiúsculas, ressaltam o <strong>de</strong>sejo do eu lírico <strong>de</strong> ser ouvido,<br />

clamam por esta mãe que virá com seus irmãos, a sua expressão máxima <strong>de</strong> uma voz<br />

comunitária, <strong>de</strong> “um <strong>de</strong>stino comum” pelo qual todos anseiam. Deste modo po<strong>de</strong> se configurar o<br />

discurso <strong>da</strong> utopia. “Havemos <strong>de</strong> cantar!...” O canto entoado pelo eu lírico é esta ver<strong>da</strong><strong>de</strong> nova<br />

vislumbra<strong>da</strong> pelo poeta-profeta. “A poesia, se quer uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> nova, será utópica. Utopia: fora<br />

do tempo. Como a imaginação criadora”. (BOSI, 2000, p. 206). Construção estética realiza<strong>da</strong><br />

com os “signos do poema político” é este brilho <strong>de</strong> estrela que ilumina os caminhos por on<strong>de</strong><br />

passarão sua mãe e seus irmãos, para longe do jugo colonial português.<br />

A palavra do profeta, enquanto nega o eixo passado-presente, e diz o que ain<strong>da</strong><br />

não é, já significa a crise e a <strong>de</strong>struição simbólica do que já foi e do que ain<strong>da</strong> é.<br />

Paralelamente: a poesia que se <strong>de</strong>spega do fascínio <strong>da</strong>s imagens (passa<strong>da</strong>s ou<br />

presentes) está madura para a produção dos signos do futuro. Signos feitos antes<br />

<strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong> consciência e <strong>de</strong> imaginação do que <strong>de</strong> pura memória. Signos do<br />

poema prometéico. Signos do poema utópico. Signos do poema político.<br />

O “gemido <strong>da</strong> criatura opressa” não se cala por infin<strong>da</strong> que seja a espera <strong>da</strong><br />

libertação. E porque esse gemido é também protesto, altera-se, mu<strong>da</strong> <strong>de</strong> tom e <strong>de</strong><br />

timbre, vira grito, rouco <strong>de</strong>safio, duro afrontamento, até achar os ritmos <strong>da</strong><br />

poesia utópica. (BOSI, 2000, p. 207).<br />

Já na abertura <strong>de</strong> sua obra Meu amor <strong>da</strong> rua onze, <strong>de</strong>para-se com o texto À minha filha,<br />

<strong>de</strong>dicatória que se mostra neste conjunto <strong>de</strong> maneira bem relevante ao <strong>de</strong>screver, claramente, dois<br />

campos distintos, dois espaços poéticos contrastantes. Estabelecendo este encontro com a poesia<br />

<strong>de</strong> <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong>, é interessante observar, nesta mesma relação cria<strong>da</strong> pela poesia utópica,


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como é <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> a sua lírica <strong>de</strong> contornos tão suaves, situando-a num quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>silusão<br />

provoca<strong>da</strong> pela guerra.<br />

À minha filha<br />

Para ti, queri<strong>da</strong>,<br />

Rosas e mel<br />

E estrelas rutilantes.<br />

Risos gritantes<br />

Muita ternura e carinho.<br />

E o Sol<br />

Brilhando muito<br />

Em frente ao teu caminho.<br />

Deixa comigo o fel,<br />

A dor, o <strong>de</strong>sespero.<br />

Deixa que eu fira a pele<br />

Nos ásperos abrolhos<br />

Da vi<strong>da</strong>.<br />

Deixa chorar meus olhos,<br />

Deixa comigo<br />

O peso do sonho tão antigo.<br />

Para ti, queri<strong>da</strong>,<br />

Paz, amor, ternura,<br />

Estrelas rutilantes.<br />

Rosas e mel...<br />

Difere o eu lírico, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, <strong>de</strong> um quadro <strong>de</strong> dor e sonhos perdidos, um espaço <strong>de</strong><br />

beleza legado à sua queri<strong>da</strong> – sua filha. “Paz, amor, ternura” é o que <strong>de</strong>seja o eu lírico, no<br />

entanto, não a si próprio. Neste passo, fica evi<strong>de</strong>nte não apenas a distinção entre dois espaços,<br />

como, também, entre dois tempos.<br />

A lírica inventiva <strong>de</strong> <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong> aparece, em momentos vários, bor<strong>de</strong>jando as<br />

margens em que se inscreve a História <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>, reali<strong>da</strong><strong>de</strong> a que o enunciador se con<strong>de</strong>na como<br />

pena máxima: “Deixa comigo o fel, / A dor, o <strong>de</strong>sespero”. O texto, composto na Ca<strong>de</strong>ia Comarcã<br />

<strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>, aposta no futuro <strong>de</strong> “estrelas rutilantes”, não mais o seu tempo, mas o tempo <strong>da</strong>s<br />

novas gerações. A divisão <strong>da</strong>s estrofes revela esta cisão, <strong>de</strong> maneira que o universo poético criado<br />

pelo eu lírico se estabelece como uma nova reali<strong>da</strong><strong>de</strong> no tempo futuro – a poesia-utopia –, se<br />

convertendo em puro lirismo; este <strong>de</strong>sejo expresso po<strong>de</strong> ser observado na imagem do Sol que


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brilha em frente ao caminho, que, afinal, ain<strong>da</strong> não foi caminhado. O porvir faz-se o contrapolo<br />

<strong>de</strong>ste tempo passado a que o eu lírico se submete, a sua prisão: “Deixa comigo / O peso do sonho<br />

tão antigo”. Por outro lado, o tempo recriado pela poesia; o eu lírico é enfático: “Para ti, queri<strong>da</strong>,<br />

(...) Rosas e mel...”.<br />

<strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong> assenta, <strong>de</strong>ste modo, a sua poesia na História angolana ao cantar a sua<br />

<strong>Angola</strong> <strong>de</strong>seja<strong>da</strong>. À medi<strong>da</strong> que se vai tomando conhecimento dos segredos <strong>de</strong> sua lírica<br />

transformadora, compõe-se, para o leitor, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o poeta po<strong>de</strong>, enfim, manipular todo um<br />

universo imagético <strong>de</strong> referências à sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong>; caso é do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> questão do<br />

tempo em sua produção. Cria-se, assim, uma nova poesia. Faz-se <strong>Angola</strong>.


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Referências:<br />

BOSI, Alfredo. “Poesia e resistência”. In: O ser e o tempo <strong>da</strong> poesia. São <strong>Paulo</strong>: Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras, 2000.<br />

LARANJEIRA, Pires e outros. Literaturas africanas <strong>de</strong> expressão portuguesa. Lisboa:<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Aberta, 1995.<br />

SANTOS, <strong>Aires</strong> <strong>de</strong> <strong>Almei<strong>da</strong></strong>. “Meu amor <strong>da</strong> rua onze”. In: Obra poética. Luan<strong>da</strong>: Edições<br />

Maianga, 2004.

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