11.01.2015 Views

a homogeinização das personagens em os confundidos, de osman ...

a homogeinização das personagens em os confundidos, de osman ...

a homogeinização das personagens em os confundidos, de osman ...

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Revista Litteris – ISSN 19837429<br />

Março 2011. N. 7<br />

A HOMOGEINIZAÇÃO DAS PERSONAGENS EM OS<br />

CONFUNDIDOS, DE OSMAN LINS<br />

A HOMOGEINIZAÇÃO DAS PERSONAGENS EM OS<br />

CONFUNDIDOS, DE OSMAN LINS<br />

Rejane <strong>de</strong> Souza Ferreira ( UFTO) 1<br />

Resumo: O presente artigo discute <strong>de</strong> que modo o transtorno <strong>das</strong> <strong>personagens</strong> da<br />

narrativa Os confundid<strong>os</strong> está relacionado com a homogeneização <strong>das</strong> personalida<strong>de</strong>s e<br />

a loucura d<strong>os</strong> mesm<strong>os</strong>. Também faz uma breve análise d<strong>os</strong> el<strong>em</strong>ent<strong>os</strong> estruturais da<br />

narrativa, presentes nesse texto <strong>de</strong> Osman Lins, com maior <strong>de</strong>staque para a construção<br />

<strong>das</strong> <strong>personagens</strong>, visto que elas são o el<strong>em</strong>ento primordial do texto analisado.<br />

Palavras-chave: <strong>personagens</strong>; narrativa; ciúmes; mistura <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s; alienação<br />

mental<br />

THE HOMOGENIZATION OF THE CHARACTERS FROM OS<br />

CONFUNDIDOS, BY OSMAN LINS<br />

Abstract: This paper discusses how Os confundid<strong>os</strong>’ characters trouble is related to the<br />

homogenization of their personalities and madness. And also makes a brief analyses of<br />

structural el<strong>em</strong>ents of narrative, presented in this text from Osman Lins, with <strong>em</strong>phasis<br />

in the characters‘ building, once they are the primary el<strong>em</strong>ent in the analyzed text.<br />

Key-words: characters; narrative; jealous; i<strong>de</strong>ntity mixture; mental alienation<br />

Rejane <strong>de</strong> Souza Ferreira<br />

Este texto visa analisar <strong>de</strong> maneira geral as <strong>personagens</strong> da narrativa Os<br />

confundid<strong>os</strong>, do escritor brasileiro Osman Lins. Para tanto, primeiro m<strong>os</strong>trar<strong>em</strong><strong>os</strong> como<br />

1 Professora da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Tocantins. (Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Tocantins, Porto Nacional –<br />

TO BRASIL rejaneferreira@uft.edu.br http://lattes.cnpq.br/2762142240750530)<br />

Revista Litteris – www.revistaliteris.com.br<br />

Março 2011. N. 7


ocorre a i<strong>de</strong>ntificação <strong>das</strong> <strong>personagens</strong>, <strong>de</strong>pois tentar<strong>em</strong><strong>os</strong> m<strong>os</strong>trar como a mistura <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e a alienação mental <strong>os</strong> envolv<strong>em</strong> <strong>de</strong> forma a quase homogeneizá-l<strong>os</strong>. E, por<br />

fim, far<strong>em</strong><strong>os</strong> uma breve análise d<strong>os</strong> d<strong>em</strong>ais el<strong>em</strong>ent<strong>os</strong> estruturais da narrativa, com base<br />

nas <strong>personagens</strong>, n<strong>os</strong>so foco principal.<br />

É a homogeneização e o não reconhecer mais a si mesmo que caracterizam<br />

as <strong>personagens</strong> como confundid<strong>os</strong>. É oportuno dizer, no entanto, que doravante,<br />

enten<strong>de</strong>-se por confundido aquele que, perturbado, acaba por equivocar-se <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>termina<strong>das</strong> situações. No caso da narrativa <strong>os</strong>maniana <strong>em</strong> análise, <strong>os</strong> <strong>personagens</strong><br />

equivocam-se a respeito <strong>de</strong> si mesm<strong>os</strong> e do cotidiano <strong>em</strong> que eles viv<strong>em</strong>.<br />

Tal narrativa gira <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> um casal que se formou há oito an<strong>os</strong> e assim<br />

se mantém apesar da infelicida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>. O que se sabe sobre esses <strong>personagens</strong>,<br />

que são <strong>os</strong> únic<strong>os</strong> da história, é que o hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre suspeita da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> da esp<strong>os</strong>a e,<br />

por isso, vive fantasiando sup<strong>os</strong>tas traições. A mulher, por sua vez, queixa-se a cada<br />

suspeita do marido. T<strong>em</strong>as como amor, ciúme, p<strong>os</strong>se, monotonia da vida, mistura <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e loucura são familiares ao quotidiano <strong>de</strong>sse casal.<br />

A revelação da trama <strong>de</strong> Os confundid<strong>os</strong> acontece por meio <strong>de</strong> diálog<strong>os</strong><br />

marcad<strong>os</strong> por sinais gráfic<strong>os</strong> intercalad<strong>os</strong> por micronarrativas 2 . Os sinais d<strong>os</strong> diálog<strong>os</strong><br />

são o que muitas vezes i<strong>de</strong>ntificam as <strong>personagens</strong>, uma vez que elas são inomina<strong>das</strong>.<br />

Assim, encontram<strong>os</strong> o travessão ―—‖ para referir-se ao hom<strong>em</strong> e o travessão marcado<br />

―•—‖ para referir-se à mulher. Como é p<strong>os</strong>sível observar no seguinte trecho:<br />

•— Estou cansada. Quase meia-noite.<br />

— Continuo <strong>de</strong> férias, p<strong>os</strong>so acordar tar<strong>de</strong>.<br />

•— Mas eu, não. Afinal, que importa Suporto b<strong>em</strong> uma noite s<strong>em</strong><br />

sono. Tenho passado outras.<br />

[...]<br />

— Não fiz censuras, perguntas, não disse nada. Des<strong>de</strong> o jantar que<br />

estam<strong>os</strong> calad<strong>os</strong> (LINS, 1999, p.63).<br />

Todavia, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>os</strong> sinais são alterad<strong>os</strong>, ainda que se alter<strong>em</strong> <strong>os</strong><br />

falantes e por isso o leitor precisa encontrar outras maneiras <strong>de</strong> distinguir <strong>os</strong><br />

interlocutores. Uma opção é observar o contexto, a alternância <strong>de</strong> travessões e as<br />

flexões <strong>de</strong> gênero presentes nas falas <strong>de</strong> cada personag<strong>em</strong>. Na citação a seguir, por<br />

2 Termo utilizado por Sandra Nitrini (1987) para <strong>de</strong>signar as pequenas narrativas existentes entre <strong>os</strong><br />

diálog<strong>os</strong> <strong>de</strong> Os confundid<strong>os</strong>.


ex<strong>em</strong>plo, ainda que o diálogo seja marcado apenas pelo travessão ―—‖ i<strong>de</strong>ntifica-se,<br />

através <strong>das</strong> observações cita<strong>das</strong>, qu<strong>em</strong> é o hom<strong>em</strong> e qu<strong>em</strong> é a mulher:<br />

— Não suspeito <strong>de</strong> nada, quando n<strong>os</strong> amam<strong>os</strong>.<br />

— Como p<strong>os</strong>so saber Como p<strong>os</strong>so crer<br />

— Estou dizendo: não suspeito <strong>de</strong> nada. Alguma coisa, quando<br />

estam<strong>os</strong> junt<strong>os</strong> me restitui a confiança. Acho que assim vai ser<br />

eternamente, que toda sombra acabou e que não voltará a existir, entre<br />

nós, malda<strong>de</strong> alguma. De repente, vejo-me sozinho. E recomeço<br />

(LINS, 1999, p.64-65 – grifo n<strong>os</strong>so).<br />

Sab<strong>em</strong><strong>os</strong> pelo <strong>de</strong>senrolar do enredo que o ciumento é o marido, não a<br />

esp<strong>os</strong>a e pela flexão do léxico sozinho no gênero masculino confirmam<strong>os</strong> mais uma vez<br />

que é o hom<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> suspeita da esp<strong>os</strong>a quando se encontra só.<br />

A não padronização d<strong>os</strong> sinais n<strong>os</strong> diálog<strong>os</strong> é um d<strong>os</strong> fatores <strong>de</strong><br />

homogeneização do casal. Se o hom<strong>em</strong> e a mulher pod<strong>em</strong> ser representad<strong>os</strong> <strong>de</strong> uma<br />

mesma maneira é por que por algum motivo eles estão misturad<strong>os</strong> a ponto <strong>de</strong> se<br />

confundir<strong>em</strong>, o que acaba implicando na anulação <strong>das</strong> próprias individualida<strong>de</strong>s e/ou na<br />

anulação <strong>das</strong> individualida<strong>de</strong>s do outro.<br />

A primeira micronarrativa do texto já traz um indício da falta <strong>de</strong> clareza<br />

entre <strong>os</strong> <strong>personagens</strong>. Nessa micronarrativa, até <strong>os</strong> narradores se misturam, pois se nota<br />

um narrador como sujeito in<strong>de</strong>terminado, na terceira pessoa do singular, e um narrador<br />

como sujeito oculto, na primeira pessoa do plural (nós). Veja, também, que o narrador<br />

não sabe qu<strong>em</strong> se levantou e n<strong>em</strong> mesmo se alguém ―irá ainda levantar-se‖, o que revela<br />

a ausência da noção <strong>de</strong> si mesmo e do outro, b<strong>em</strong> como da ausência da noção do t<strong>em</strong>po:<br />

Um <strong>de</strong> nós levantou-se, ou irá ainda levantar-se, entreabrir a cortina,<br />

olhar a noite. O rumor d<strong>os</strong> veícul<strong>os</strong>, continuado, ascen<strong>de</strong>rá –<br />

ascen<strong>de</strong>u – <strong>das</strong> aveni<strong>das</strong>, regirando na sala, sobre as aquarelas <strong>em</strong><br />

seus fin<strong>os</strong> caixilh<strong>os</strong>, sobre as poltronas <strong>de</strong> couro com almofa<strong>das</strong><br />

vermelhas, <strong>em</strong> torno do abajur aceso. [...] Estam<strong>os</strong> <strong>de</strong> mã<strong>os</strong> da<strong>das</strong>,<br />

mas qual <strong>de</strong>stas mã<strong>os</strong> ar<strong>de</strong> ... (LINS, 1999, p.63 – grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>).<br />

A perda da noção <strong>de</strong> si, do outro e do t<strong>em</strong>po po<strong>de</strong> ser interpretada também<br />

como um tipo <strong>de</strong> loucura. Esta, inclusive, será citada <strong>de</strong> forma explícita poucas páginas<br />

após a última citação apresentada, quando no meio <strong>de</strong> uma discussão a mulher diz:<br />

―Uma vez que o louco é irredutível, não se po<strong>de</strong> escapar à loucura e viver como <strong>os</strong> sã<strong>os</strong><br />

(...) É o mal <strong>de</strong> se conviver com louc<strong>os</strong>‖... (LINS, 1999, p.68).


O fato <strong>de</strong> não se saber qu<strong>em</strong> é, o que fez, faz ou irá fazer, leva-n<strong>os</strong> a<br />

suspeitar do grau <strong>de</strong> sanida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que se encontram <strong>os</strong> <strong>personagens</strong>. A suspeita<br />

consolida-se mais ainda quando <strong>os</strong> <strong>personagens</strong> também não sab<strong>em</strong> qual <strong>das</strong> mã<strong>os</strong> ar<strong>de</strong>,<br />

se a própria mão ou se a mão a que se está segurando.<br />

Outro fator <strong>de</strong> homogeneização e loucura d<strong>os</strong> <strong>personagens</strong> po<strong>de</strong> ser<br />

percebido pela substituição do sujeito por pronomes in<strong>de</strong>finid<strong>os</strong>. Uma vez que o nome é<br />

a palavra mais a<strong>de</strong>quada para i<strong>de</strong>ntificar alguém, se trocada por um pronome in<strong>de</strong>finido,<br />

a individualida<strong>de</strong> do sujeito também ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>saparecer. E uma vez que se per<strong>de</strong> a<br />

individualida<strong>de</strong>, per<strong>de</strong>-se também a própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, já que é por meio <strong>de</strong>la que se<br />

reconhece a si mesmo e ao outro.<br />

O trecho a seguir é um ex<strong>em</strong>plo <strong>em</strong> que <strong>os</strong> pronomes in<strong>de</strong>finid<strong>os</strong> <strong>de</strong>stacad<strong>os</strong><br />

e o dêitico ―este‖, também <strong>de</strong>stacado na citação, leva-n<strong>os</strong> a crer que são marcas<br />

utiliza<strong>das</strong> pelo autor, a fim <strong>de</strong> enfatizar ainda mais a confusão e a perda <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong> que se encontra o casal da narrativa. Nessa micronarrativa não importa muito qu<strong>em</strong><br />

é qu<strong>em</strong>, tanto o hom<strong>em</strong> quanto à mulher po<strong>de</strong> ocupar o lugar d<strong>os</strong> sujeit<strong>os</strong><br />

in<strong>de</strong>terminad<strong>os</strong> <strong>em</strong> qualquer momento <strong>de</strong>ssa micronarrativa. O que parece importar é<br />

quão mistura<strong>das</strong> já estão as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> amb<strong>os</strong>, que estão tão pareci<strong>das</strong> que quase são<br />

uma só.<br />

Qu<strong>em</strong> com gest<strong>os</strong> nerv<strong>os</strong><strong>os</strong>, abre a cigarreira dourada, bate com um<br />

golpe <strong>de</strong>cidido e seco a tampa do isqueiro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> olhar a chama<br />

d<strong>em</strong>oradamente Um se levanta, anda, outro permanece sentado,<br />

<strong>de</strong>pois este se ergue, atravessam<strong>os</strong> a sala, alguém volta a sentar-se,<br />

continuam<strong>os</strong> <strong>de</strong> pé, dorso contra dorso, junt<strong>os</strong> (LINS, 1999, p.65 –<br />

grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>).<br />

A incoerência <strong>das</strong> conjugações verbais também contribui para o processo <strong>de</strong><br />

homogeneização do casal. Em vári<strong>os</strong> diálog<strong>os</strong> po<strong>de</strong>-se reparar a conjugação verbal na<br />

primeira pessoa do singular, ao invés da terceira pessoa do singular, como no ex<strong>em</strong>plo a<br />

seguir, no qual a troca do ―t<strong>em</strong>‖ pelo ―tenho‖ m<strong>os</strong>tra a necessida<strong>de</strong> do hom<strong>em</strong> se autoafirmar<br />

<strong>em</strong> algo que ele quer que a mulher entenda. Quando ele diz que quer explicar, a<br />

mulher se nega a ouvir e ele respon<strong>de</strong> que ele t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ouvir, fica encoberta a necessida<strong>de</strong><br />

que ele t<strong>em</strong> <strong>de</strong> explicar para si mesmo, como que para tentar enten<strong>de</strong>r, o próprio<br />

comportamento. Essa atitu<strong>de</strong> do hom<strong>em</strong> acaba sendo uma transferência <strong>de</strong>


personalida<strong>de</strong>, pois ele atribui à mulher uma necessida<strong>de</strong> que é <strong>de</strong>le, e não <strong>de</strong>la e por<br />

isso, uma indicação da mistura <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>s:<br />

— Quero explicar.<br />

•— Prefiro não ouvir.<br />

— Tenho <strong>de</strong> ouvir<br />

•— E por cima <strong>de</strong> tudo, ainda isto: uma ausência total <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>...<br />

(LINS, 1999, p.64 – grifo n<strong>os</strong>so).<br />

A transferência <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>, misturando <strong>os</strong> <strong>personagens</strong>, não ocorre<br />

apenas por parte do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> relação à mulher. Ao longo da narrativa, ela também<br />

altera a conjugação verbal <strong>de</strong> terceira para primeira pessoa do singular, transferindo,<br />

<strong>de</strong>ssa forma, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do marido para si, por ex<strong>em</strong>plo:<br />

— Levantei o colchão, par ver se encontrava algum outro papel,<br />

revolvi a cesta. Tentei escrever. Era imp<strong>os</strong>sível, a tentação <strong>de</strong><br />

continuar a procura não me abandonava. Deixei <strong>de</strong> lado Lawrence e<br />

suas cartas, pus-me a folhear n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> livr<strong>os</strong>. A esmo, e <strong>em</strong> seguida <strong>de</strong><br />

modo sist<strong>em</strong>ático. As mã<strong>os</strong> frias. Dizia a mim mesmo que estava<br />

cumprindo um ato injusto, mas não me continha, ia buscando, era<br />

como se eu precisasse encontrar alguma coisa. Foi um acesso, um<br />

ataque.<br />

•— Achei alguma coisa<br />

— Pétalas secas <strong>de</strong> r<strong>os</strong>a. Seriam <strong>de</strong> alguma r<strong>os</strong>a oferecida por mim<br />

(LINS, 1999, p.70 – grifo n<strong>os</strong>so).<br />

Telles (2004, p.247-248) também compactua com a idéia <strong>de</strong> que ―a <strong>em</strong>issão<br />

<strong>de</strong> um ‗eu‘ no lugar <strong>de</strong> um ‗você‘ <strong>de</strong>nota mais que uma simples troca <strong>de</strong> pronomes;<br />

revela uma confusão que se impõe <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora‖.<br />

A ―ina<strong>de</strong>quação‖ <strong>de</strong> alguns pronomes pessoais reforça a mistura <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que a incoerência <strong>das</strong> conjugações verbais provoca. Quando o marido diz<br />

―Tiv<strong>em</strong><strong>os</strong>, eu e eu, muitas horas felizes‖ (LINS, 1999, p.69 – grifo n<strong>os</strong>so). A expressão<br />

―eu e eu‖, além <strong>de</strong> incomum, é ambígua, pois faz o leitor se perguntar se o que o<br />

hom<strong>em</strong> preten<strong>de</strong> dizer é ―eu e você‖ ou se ele quer dizer ―sozinho‖. A p<strong>os</strong>sibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

se querer dizer ―sozinho‖ é ainda mais intrigante, pois levanta a suspeita da p<strong>os</strong>sível<br />

inexistência da mulher, tópico que comentar<strong>em</strong><strong>os</strong> mais <strong>de</strong>talhadamente adiante.<br />

Outro indício da mistura <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e alienação mental que quase<br />

homogeneíza <strong>os</strong> <strong>personagens</strong> é a fusão da realida<strong>de</strong> com as elucubrações do marido a<br />

respeito da esp<strong>os</strong>a. O hom<strong>em</strong> sente tamanho ciúme da mulher e <strong>de</strong>seja tanto estar


convicto <strong>de</strong> suas próprias <strong>de</strong>sconfianças que chega a ponto <strong>de</strong> acreditar <strong>em</strong> suas<br />

sup<strong>os</strong>ições como se elas f<strong>os</strong>s<strong>em</strong> verda<strong>de</strong>iras, confundindo, assim, o sup<strong>os</strong>to com o real.<br />

Na citação seguinte po<strong>de</strong>-se reparar que o hom<strong>em</strong> conjetura <strong>em</strong> qual <strong>das</strong> várias<br />

circunstâncias imagináveis sua esp<strong>os</strong>a po<strong>de</strong>ria ter marcado algum sup<strong>os</strong>to encontro com<br />

algum sup<strong>os</strong>to amante:<br />

— Um ardil para que eu não saísse e não telefonasse. Por que não me<br />

banhara se havia t<strong>em</strong>po Desejava ganhar alguns minut<strong>os</strong>, meia hora<br />

que f<strong>os</strong>se, chegar um pouco mais cedo a algum encontro ajustado há<br />

quinze dias, ou talvez combinado no hotel, num momento <strong>de</strong> ausência,<br />

talvez no cabeleireiro, ou na manicure, como se po<strong>de</strong> saber Devo<br />

dizer que não telefonei (LINS, 1999, p.67).<br />

Jardim (2004, p.144) l<strong>em</strong>bra-n<strong>os</strong> que ―na ausência, o objeto <strong>de</strong> adoração é<br />

pensado [...] como imag<strong>em</strong> substituta do real. O que vai permanecer, logo, não é mais a<br />

mulher propriamente dita, porém sua imag<strong>em</strong> pura e simples, abstraída e estereotipada,<br />

<strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> própria‖. Uma vez que o marido t<strong>em</strong> uma imag<strong>em</strong><br />

estereotipada da mulher, ela já não é mais qu<strong>em</strong> ela realmente é, ela passa a ser, pelo<br />

men<strong>os</strong>, para o esp<strong>os</strong>o, qu<strong>em</strong> ele imagina que ela seja. E como se tudo isso já não f<strong>os</strong>se<br />

o suficiente para <strong>de</strong>ixar <strong>os</strong> <strong>personagens</strong> confundid<strong>os</strong> e o leitor confuso, a mulher<br />

também t<strong>em</strong> uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> si que se difere da imag<strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> a respeito<br />

<strong>de</strong>la. O hom<strong>em</strong> atordoa tanto a esp<strong>os</strong>a, que por vezes, até, ela acaba duvidando <strong>de</strong> sua<br />

própria personalida<strong>de</strong>, como se vê nas citações a seguir:<br />

•— ―Pouco se me dá. Para mim, n<strong>em</strong> essa, ao men<strong>os</strong>, existe. Principio<br />

também a duvidar <strong>de</strong> mim mesma, já não me conheço, não sei mais<br />

qu<strong>em</strong> eu sou‖ (LINS, 1999, p.65).<br />

•— É o inferno. [...] Quero sair disto, não foi <strong>de</strong> modo algum para<br />

este sofrimento que meu corpo reagiu à morte. Mas como, se perdi a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e não sei mais qu<strong>em</strong> sou Som<strong>os</strong> como dois corp<strong>os</strong><br />

enterrad<strong>os</strong> junt<strong>os</strong>, roíd<strong>os</strong> pela terra, <strong>os</strong> <strong>os</strong>s<strong>os</strong> misturad<strong>os</strong>. Não sei mais<br />

qu<strong>em</strong> sou (LINS, 1999, p.69).<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> suas conjeturas sobre a mulher a fim <strong>de</strong><br />

tentar controlá-la, ―adivinhando‖ o que ela faz, já que na vida real ele não consegue ter<br />

esse controle, porque não confia no que ela lhe diz. Só que o marido <strong>de</strong>duz e supõe<br />

tanto que, por fim, acredita ser verda<strong>de</strong> o que é fruto <strong>de</strong> sua imaginação. A mulher, no<br />

entanto, quando se esgota <strong>das</strong> cismas e loucuras do marido, apiada-se do companheiro e<br />

admite estar louca:


Uma vez que o louco é irredutível, não po<strong>de</strong> escapar à loucura e agir<br />

como <strong>os</strong> sã<strong>os</strong>, estes con<strong>de</strong>scend<strong>em</strong> <strong>em</strong> agir como se f<strong>os</strong>s<strong>em</strong> doid<strong>os</strong>.<br />

Não por <strong>de</strong>liberação. Insensivelmente e porque não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> outro<br />

modo (LINS, 1999, p.68).<br />

•— ―Agora já me <strong>em</strong>briaguei, a<strong>de</strong>ri à loucura. Quero saber‖ (LINS,<br />

1999, p.70).<br />

A mulher teima sua inocência e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> até não suportar mais as<br />

maluquices do marido. Embora esse comportamento pareça linear, como se primeiro a<br />

mulher tentasse discutir sua inocência e <strong>de</strong>pois ela ce<strong>de</strong>sse à loucura, na realida<strong>de</strong>, é<br />

apenas uma parte <strong>de</strong> um ciclo <strong>em</strong> que a mulher ora se cansa da d<strong>em</strong>ência do esp<strong>os</strong>o, e<br />

tenta trazê-lo a luci<strong>de</strong>z, ora <strong>de</strong>siste <strong>de</strong> ser lúcida e <strong>de</strong>ixa-se vencer pela loucura alheia.<br />

A noção <strong>de</strong> narrativa circular aparece <strong>em</strong> vári<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> <strong>de</strong> Os<br />

confundid<strong>os</strong>, a começar do diálogo inicial quando a personag<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ntificada pelo sinal<br />

―•—‖ diz já ter passado outras noites s<strong>em</strong> dormir e a terminar com essa mesma<br />

personag<strong>em</strong> dizendo <strong>de</strong> forma explícita que o casal gira, gira e volta s<strong>em</strong>pre ao mesmo<br />

ponto.<br />

A idéia <strong>de</strong> ciclo <strong>em</strong> Os confundid<strong>os</strong> foi primeiro teorizada por R<strong>os</strong>ana Teles<br />

(2004). A autora é qu<strong>em</strong> melhor m<strong>os</strong>tra como a repetição <strong>das</strong> ações d<strong>os</strong> <strong>personagens</strong> e a<br />

escolha lexical r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> a idéia <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, ―ausência <strong>de</strong> divisão‖, vejam<strong>os</strong>:<br />

A simbologia da circularida<strong>de</strong> está presente <strong>em</strong> toda a narrativa. A<br />

recorrência do prefixo ―re‖ dá um caráter <strong>de</strong> ação repetida:<br />

―regirando‖, ―recomeçar‖, ―recomeço‖, ―revi-me‖, ―reencontrar‖. No<br />

caso do vocábulo ―regirando‖, além do prefixo, a própria natureza<br />

s<strong>em</strong>ântica do radical da palavra dá uma idéia <strong>de</strong> ciclicida<strong>de</strong>, esta,<br />

aliás, reforçada pelo <strong>em</strong>prego do gerúndio (TELES, 2004, p.248).<br />

Teles (2004, p.247), chama atenção, até mesmo, para o título da narrativa<br />

como ―símbolo cíclico‖, ―no qual o vocábulo ‗confundid<strong>os</strong>‘ <strong>de</strong>nota mistura, fusão. O<br />

<strong>em</strong>prego do artigo ‗<strong>os</strong>‘, inclusive, substantiva a palavra subseqüente [...], confundido<br />

não é mais uma qualida<strong>de</strong> do hom<strong>em</strong> ou da mulher, porque já se tornou a natureza, a<br />

essência <strong>de</strong>les‖.<br />

Em Os confundid<strong>os</strong>, apesar <strong>de</strong> toda falta <strong>de</strong> clareza d<strong>os</strong> <strong>personagens</strong> <strong>em</strong><br />

relação a eles mesm<strong>os</strong> e da própria falta <strong>de</strong> clareza do texto <strong>em</strong> si, sobressa<strong>em</strong>-se duas<br />

constatações: a <strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> é a personag<strong>em</strong> ciumenta que sufoca a mulher com


tanto ciúme e a <strong>de</strong> que amb<strong>os</strong> continuarão a viver junt<strong>os</strong> essa situação, visto que se trata<br />

<strong>de</strong> uma narrativa circular, como acabam<strong>os</strong> <strong>de</strong> comentar.<br />

Tal como no Novo Romance 3 , e n<strong>os</strong> d<strong>em</strong>ais text<strong>os</strong> <strong>de</strong> Nove, novena, as<br />

<strong>personagens</strong> <strong>de</strong> Os Confundid<strong>os</strong> revelam apenas suas características funcionais.<br />

Ex<strong>em</strong>plo disso são as duas citações <strong>de</strong> Lawrence, no <strong>de</strong>correr da história, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> nada<br />

mais se sabe a não ser cartas. O mesmo po<strong>de</strong>-se dizer <strong>das</strong> <strong>personagens</strong> representa<strong>das</strong><br />

pel<strong>os</strong> sinais ―—‖ e ―•—‖. Seus respectiv<strong>os</strong> nomes não são revelad<strong>os</strong> ao leitor, n<strong>em</strong> suas<br />

aparências físicas, profissões etc. O que se sabe sobre elas são apenas seus sex<strong>os</strong> e que<br />

estão casa<strong>das</strong>. Essa é a função <strong>das</strong> <strong>personagens</strong> nesse texto: a <strong>de</strong> cônjuges, nada além<br />

disso importa, n<strong>em</strong> <strong>os</strong> nomes.<br />

A insignificância d<strong>os</strong> nomes, leva-n<strong>os</strong> a pensar que, talvez, por esse motivo<br />

Lins se valha <strong>de</strong> sinais gráfic<strong>os</strong> para i<strong>de</strong>ntificá-las, visto que a essência da nomeação as<br />

i<strong>de</strong>ntificaria mais que o <strong>de</strong>sejado. Na verda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer que, o recurso <strong>de</strong> sinais<br />

gráfic<strong>os</strong> <strong>em</strong> text<strong>os</strong> <strong>de</strong> alguns autores do Novo Romance, b<strong>em</strong> como nas últimas<br />

produções <strong>de</strong> Lins, surgiram a partir da percepção da imp<strong>os</strong>sibilida<strong>de</strong> <strong>das</strong> palavras<br />

expressar<strong>em</strong> exatamente o que se <strong>de</strong>seja.<br />

Vale l<strong>em</strong>brar, com base <strong>em</strong> Nitrini (1987, 64 e 47), que ―<strong>os</strong> nov<strong>os</strong><br />

romancistas enquadram-se numa <strong>das</strong> instruções básicas do método fenomenológico<br />

husserliano que consiste <strong>em</strong> apenas <strong>de</strong>screver, não explicar, n<strong>em</strong> analisar‖. De forma<br />

que, ―a finalida<strong>de</strong> da narrativa para o Novo Romance não é mais contar uma bela<br />

história que entretenha o leitor, mas pesquisar as formas romanescas e fazer o leitor<br />

participar <strong>de</strong>ssa experiência‖. Isso justifica o aperspectivismo d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> <strong>de</strong> Nove,<br />

novena narrativas.<br />

É preciso se atentar que ao contrário da narrativa tradicional, a narrativa<br />

mo<strong>de</strong>rna mais apresenta conflit<strong>os</strong> que <strong>os</strong> solucionam, <strong>de</strong> forma que um leitor que<br />

aprecia final feliz, naturalmente rejeita esse tipo <strong>de</strong> produção. Em Os confundid<strong>os</strong>, nada<br />

se explica, n<strong>em</strong> se analisa através d<strong>os</strong> <strong>personagens</strong>, apenas se <strong>de</strong>screve. Essa narrativa é<br />

―simplesmente‖ a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um conflito matrimonial, não há história, não se sabe a<br />

trama que está por traz da pequena am<strong>os</strong>tra da vida conjugal <strong>das</strong> <strong>personagens</strong><br />

envolvi<strong>das</strong>, n<strong>em</strong> ao men<strong>os</strong> o drama <strong>de</strong>las é resolvido.<br />

3 Novo Romance é um d<strong>os</strong> muit<strong>os</strong> term<strong>os</strong> utilizad<strong>os</strong> para referir-se a alguns escritores franceses da<br />

segunda meta<strong>de</strong> do século XX.


Se inexiste preocupação com o enredo, b<strong>em</strong> como com a <strong>de</strong>lineação física e<br />

psicológica <strong>das</strong> <strong>personagens</strong>, também não há preocupação com o foco narrativo. Este,<br />

portanto, também, sofre alterações na narrativa mo<strong>de</strong>rna. Po<strong>de</strong>-se perceber <strong>em</strong> Os<br />

confundid<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> narradores como o ―eu‖ hom<strong>em</strong>, o ―eu‖ mulher e o ―nós‖ hom<strong>em</strong><br />

e mulher, <strong>de</strong> forma que, no total, a narrativa é comp<strong>os</strong>ta por três narradores.<br />

Ex<strong>em</strong>plificar<strong>em</strong><strong>os</strong> <strong>os</strong> narradores, a seguir, para melhor d<strong>em</strong>onstrarm<strong>os</strong> n<strong>os</strong>sa análise.<br />

Comec<strong>em</strong><strong>os</strong> pelo narrador masculino. Vejam<strong>os</strong> como na próxima citação há<br />

um narrador <strong>de</strong> primeira pessoa do singular dizer que vai a um mictório. Como mictório<br />

não é um lugar comum a mulheres, n<strong>em</strong> elas c<strong>os</strong>tumam urinar jat<strong>os</strong> violent<strong>os</strong> <strong>de</strong> água,<br />

po<strong>de</strong>-se concluir, que essa micronarrativa é narrada por um hom<strong>em</strong>:<br />

Levanto-me, <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> pesam <strong>de</strong> sono, vou ao mictório, levo um t<strong>em</strong>po<br />

enorme comprimindo o botão niquelado, ouvindo o jato violento da<br />

água, sentindo prazer nisso, <strong>de</strong>ito-me. Giro <strong>em</strong> torno do leito p<strong>os</strong>to no<br />

meio do quarto. Giro, int<strong>em</strong>inável giro, e este caminhar é o mesmo<br />

que beber, <strong>de</strong>vagar um vinho insinuante (LINS, 1999, p.68 – grifo<br />

n<strong>os</strong>so).<br />

A mesma conclusão não po<strong>de</strong> ser tirada na próxima micronarrativa do texto,<br />

duas páginas adiante, pois, o léxico pr<strong>os</strong>trada, que aparece duas vezes nesse mesmo<br />

trecho, revela uma narradora; um hom<strong>em</strong>, com certeza, estaria pr<strong>os</strong>trado. Observ<strong>em</strong><strong>os</strong>:<br />

Giro <strong>em</strong> redor do leito no qual estou pr<strong>os</strong>trada, respiram<strong>os</strong> com<br />

dificulda<strong>de</strong>, não com exaltação, mas fatigadamente. G<strong>os</strong>taria <strong>de</strong><br />

ignorar estes pass<strong>os</strong> que me cercam, passam <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> mim<br />

ataduras <strong>de</strong> aflição, terror, <strong>de</strong>samparo, <strong>de</strong>sejaria sentar-me, ou <strong>de</strong>itarme,<br />

<strong>de</strong>sejaria ser o que <strong>de</strong>sejo ser, estou pr<strong>os</strong>trada, falta-me ânimo até<br />

<strong>de</strong> erguer a voz, pedir que cess<strong>em</strong> <strong>os</strong> pass<strong>os</strong> (LINS, 1999, p.69 – grifo<br />

n<strong>os</strong>so).<br />

Na citação a seguir, no entanto, verificam<strong>os</strong> a presença <strong>de</strong> um narrador na<br />

primeira pessoa do plural, nós:<br />

Este silêncio e o espaço entre nós. A voz que rompe o espaço e o<br />

silêncio, com dificulda<strong>de</strong>, lenta, articulando uma hipótese<br />

perturbadora. (O amor, talvez, é uma espécie <strong>de</strong> enxerto. Não n<strong>os</strong> rins.<br />

Em outra parte qualquer, talvez na alma, e cujo êxito não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

nós. Por mais que <strong>de</strong>sej<strong>em</strong><strong>os</strong> salvá-lo, po<strong>de</strong> apodrecer e envenenarn<strong>os</strong>.)...<br />

(LINS, 1999, p.71).


Há, ainda, outras micronarrativas ao longo do texto, <strong>em</strong> que o narrador se<br />

oculta atrás <strong>de</strong> pronomes in<strong>de</strong>finid<strong>os</strong> como ―alguém‖, ―qu<strong>em</strong>‖, ―um‖, ―outro‖... mas<br />

isso não significa um quarto narrador, trata-se mais <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> androgenia, <strong>em</strong> que o<br />

narrador <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminad<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> da narrativa prefere se escon<strong>de</strong>r na neutralida<strong>de</strong><br />

para dar ênfase na confusão da ação <strong>das</strong> <strong>personagens</strong>, como é o caso da seguinte<br />

micronarrativa :<br />

Dirigi-me ao quarto <strong>de</strong> dormir, permaneço na sala, com vagar<strong>os</strong><strong>os</strong><br />

gest<strong>os</strong> ponho o négligé, afago o r<strong>os</strong>to, a barba começa a apontar, volto<br />

para junto <strong>de</strong> mim, são leves meus pass<strong>os</strong>, continuo sentado, não me<br />

levantei (LINS, 1999, p.67 – grifo do autor).<br />

No trecho apresentado é p<strong>os</strong>sível perceber a <strong>de</strong>scrição <strong>das</strong> ações tanto da<br />

mulher como do hom<strong>em</strong>. Para isso é preciso observar com bastante atenção que o<br />

alguém que se dirige ao quarto <strong>de</strong> dormir é o mesmo que põe o négligé, e que a outra<br />

pessoa, que passa a mão na barba, é a mesma que não se levantou. Visto que négligé é<br />

uma peça íntima f<strong>em</strong>inina e que mulher não t<strong>em</strong> barba, <strong>de</strong>duz-se que a mulher é qu<strong>em</strong><br />

se dirige ao quarto, e lá veste a roupa. A mesma linha <strong>de</strong> raciocínio po<strong>de</strong>-se seguir para<br />

<strong>de</strong>scobrir que o hom<strong>em</strong> é qu<strong>em</strong> acaricia a barba e continua sentado s<strong>em</strong> se levantar,<br />

permanecendo na sala, portanto. O trecho ―volto para junto <strong>de</strong> mim, são leves meus<br />

pass<strong>os</strong>‖ po<strong>de</strong> ser interpretado como <strong>os</strong> indíci<strong>os</strong> <strong>de</strong> homogeneização do casal, confusão e<br />

mistura <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, conforme já comentam<strong>os</strong> anteriormente, quando falávam<strong>os</strong> da<br />

utilização d<strong>os</strong> pronomes.<br />

Se nessa narrativa o foco narrativo é diversificado para não se privilegiar<br />

nenhum ponto <strong>de</strong> vista e o leitor po<strong>de</strong>r visualizar o que se passa no momento <strong>em</strong> que a<br />

ação acontece, o t<strong>em</strong>po e o espaço também não receb<strong>em</strong> privilégi<strong>os</strong>. Ao contrário, são<br />

revelad<strong>os</strong> através <strong>das</strong> <strong>personagens</strong> à medida que <strong>os</strong> ambientes e a necessida<strong>de</strong> do t<strong>em</strong>po<br />

se tornam importantes para elas. Em Os confundid<strong>os</strong> apenas se sabe que o casal está<br />

junto por oito an<strong>os</strong> porque o marido sentiu necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se apegar ao t<strong>em</strong>po a fim <strong>de</strong><br />

tentar confiar um pouco na esp<strong>os</strong>a. Da mesma forma, o banheiro só é citado porque o<br />

hom<strong>em</strong> o fiscaliza para ver se a mulher realmente o tinha utilizado. Assim, todo espaço<br />

e t<strong>em</strong>po revelad<strong>os</strong> não o são por acaso, ou simplesmente para preparar o leitor para a<br />

atm<strong>os</strong>fera <strong>em</strong> que as <strong>personagens</strong> estão inseri<strong>das</strong>.


Uma vez que as <strong>personagens</strong> são <strong>os</strong> el<strong>em</strong>ent<strong>os</strong> da narrativa mais <strong>de</strong>stacad<strong>os</strong><br />

<strong>em</strong> Os confundid<strong>os</strong>, retomar<strong>em</strong><strong>os</strong> n<strong>os</strong>so enfoque para a análise <strong>das</strong> mesmas. Vim<strong>os</strong> que<br />

o hom<strong>em</strong> e a mulher da narrativa exerc<strong>em</strong> o caráter funcional <strong>de</strong> cônjuges, nessas<br />

circunstâncias, fica a dúvida: seria a mulher vítima ou cúmplice <strong>de</strong> sua vida conjugal<br />

Jardim (2004), indiretamente, coloca a mulher como vítima <strong>de</strong> seu cônjuge, porém, até<br />

que ponto seria isso verda<strong>de</strong> se ela, algumas vezes, também o provoca Seja por não<br />

suportar mais o inferno da união a dois, seja por compaixão pela loucura do marido, ou<br />

por não conseguir mais controlar seus at<strong>os</strong> e falas, a mulher não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> contribuir para<br />

as suspeitas ciumentas e doentias do marido, como se vê<strong>em</strong> n<strong>os</strong> seguintes trech<strong>os</strong>:<br />

•— Por que não suspeitar quando estou presente P<strong>os</strong>so estar aqui,<br />

comigo, nua e pensando noutro hom<strong>em</strong>. Comparando <strong>em</strong> segredo o<br />

modo <strong>de</strong> abraçar-me. O jeito <strong>de</strong>... (LINS, 1999, p.65).<br />

— ... A letra é minha. Mas não me l<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> haver escrito esse<br />

en<strong>de</strong>reço. Talvez afinal um hom<strong>em</strong> a que eu ame e que me ofereça um<br />

pouco <strong>de</strong> paz. Que não me torture e que não se torture <strong>os</strong> dias tod<strong>os</strong> da<br />

vida. Com esta fome <strong>de</strong> p<strong>os</strong>se, <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>. Com estes laç<strong>os</strong>, estas<br />

armadilhas, estas navalhas <strong>de</strong> suspeita. Eu queria morrer! (LINS,<br />

1999, p.68).<br />

Jardim (2004, p.143) leva a crer na existência <strong>de</strong> uma mulher reprimida pelo<br />

marido uma vez que ―‗a pulsão <strong>de</strong> morte‘ que governa o hom<strong>em</strong>, o leva a literalmente<br />

roubar as falas da mulher como se f<strong>os</strong>s<strong>em</strong> suas [... e] toda negação do real já é um<br />

princípio <strong>de</strong> pulsão <strong>de</strong> morte‖. Acreditam<strong>os</strong>, porém, que se a personag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina não<br />

tivesse pelo men<strong>os</strong> um pouco <strong>de</strong> confiança <strong>em</strong> si mesma para perceber que ela não é<br />

qu<strong>em</strong> o marido pensa que ela é, ela também não teria razão para se confundir, afinal, se<br />

confundir com qu<strong>em</strong> Quando não se t<strong>em</strong> consciência da própria personalida<strong>de</strong>,<br />

qualquer uma serve, o que quer que se diga sobre si é acreditável.<br />

Entretanto, uma vez <strong>em</strong> que se acredita que a mulher <strong>de</strong>ixa-se reprimir pelo<br />

hom<strong>em</strong>, é coerente, também, pensar que <strong>os</strong> diálog<strong>os</strong> marcad<strong>os</strong> apenas por travessão<br />

―—‖ é um tipo <strong>de</strong> anulação da mulher. O hom<strong>em</strong> subverte tanto o discurso da esp<strong>os</strong>a e<br />

confun<strong>de</strong> tanto a realida<strong>de</strong> com as suas suspeitas que o leitor acaba sendo levado a<br />

duvidar da existência da mulher. Um leitor <strong>de</strong>satento po<strong>de</strong>, inclusive, achar que não se<br />

trata <strong>de</strong> um casal, mas apenas <strong>de</strong> uma única personag<strong>em</strong> (o hom<strong>em</strong>) que, <strong>em</strong> sua pouca<br />

luci<strong>de</strong>z, dialoga consigo mesmo ou com um ser imaginário, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> ele advinha às<br />

resp<strong>os</strong>tas.


São necessárias leituras muito cuidad<strong>os</strong>as para melhor se enten<strong>de</strong>r e<br />

perceber <strong>os</strong> text<strong>os</strong> <strong>de</strong> Osman Lins. O autor tece tão cuidad<strong>os</strong>amente a malha da<br />

confusão nessa narrativa, que ela chega a quase se homogeneizar, contudo, não o<br />

bastante para se anular a presença <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>. Equívoc<strong>os</strong> <strong>de</strong>ssa categoria são<br />

dissolvid<strong>os</strong> ao se observar às marcações <strong>de</strong> gênero, e que, <strong>em</strong>bora <strong>os</strong> sinais gráfic<strong>os</strong> se<br />

mistur<strong>em</strong>, eles ainda são diferenciad<strong>os</strong>, e não por acaso, como já apresentam<strong>os</strong><br />

anteriormente. Andra<strong>de</strong> (1987, 143), ainda, l<strong>em</strong>bra-n<strong>os</strong> da ―discordância com que são<br />

vist<strong>os</strong> <strong>os</strong> fat<strong>os</strong>‖, como outro ponto <strong>de</strong> apoio para se perceber a existência <strong>de</strong> dois<br />

interlocutores e não só <strong>de</strong> um.<br />

Essa crítica, apesar <strong>de</strong> reconhecer a existência <strong>de</strong> dois interlocutores, acaba<br />

por <strong>de</strong>finir Os confundid<strong>os</strong> como ―um monólogo a dois‖, por não acreditar que haja<br />

interação no pronunciamento <strong>das</strong> <strong>personagens</strong>. Nós, entretanto, discordam<strong>os</strong> <strong>de</strong>sse<br />

ponto <strong>de</strong> vista. Acreditam<strong>os</strong> que por mais que não haja uma interação absoluta n<strong>os</strong><br />

diálog<strong>os</strong>, eles também não são absolutamente <strong>de</strong>sconex<strong>os</strong> e por isso não <strong>de</strong>scartam<strong>os</strong> o<br />

uso da palavra ―diálog<strong>os</strong>‖.<br />

Tom<strong>em</strong><strong>os</strong> a artimanha do banheiro, por ex<strong>em</strong>plo. Sab<strong>em</strong><strong>os</strong> que o hom<strong>em</strong><br />

suspeita que a mulher mentiu que tomaria banho, mas acabou não tomando a fim <strong>de</strong><br />

ganhar t<strong>em</strong>po para se encontrar com alguém que ela sup<strong>os</strong>tamente, já havia marcado<br />

anteriormente. O diálogo que n<strong>os</strong> explicita essa ocasião, por mais <strong>de</strong>sorganizado que<br />

esteja <strong>de</strong>vido ao mau uso <strong>das</strong> concordâncias verbais, m<strong>os</strong>tra <strong>os</strong> dois interlocutores<br />

falando do mesmo ocorrido, isto é, o uso do banheiro. Portanto, é, realmente, um<br />

diálogo, vejam<strong>os</strong>:<br />

•— Tomei banho. Foi talvez o t<strong>em</strong>po que está quente.<br />

— Sim.<br />

•— E passei a flanela na banheira.<br />

— Nunca fiz isso.<br />

•— É o que s<strong>em</strong>pre faço.<br />

— Digo que o t<strong>em</strong>po estava quente. E, logo <strong>em</strong> seguida, que a<br />

banheira está seca por causa da flanela que passei. Por que as duas<br />

versões São estas mentiras que <strong>de</strong>stro<strong>em</strong>.<br />

•— Não estou mentindo.<br />

— Estou!<br />

•— Uma coisa não t<strong>em</strong> que excluir a outra. Tudo isso é um absurdo<br />

(LINS, 1999,p.65-66).


Uma vez justificado n<strong>os</strong>sa opinião <strong>em</strong> relação a<strong>os</strong> diálog<strong>os</strong> e <strong>de</strong>smascarado<br />

a falsa p<strong>os</strong>sibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se existir apenas uma personag<strong>em</strong>, concluím<strong>os</strong> n<strong>os</strong>so estudo<br />

rel<strong>em</strong>brando que uma <strong>das</strong> n<strong>os</strong>sas primeiras tarefas <strong>em</strong> n<strong>os</strong>sa análise foi reconhecer as<br />

<strong>personagens</strong> envolvi<strong>das</strong> no conflito. Tendo clara essas idéias, torna-se mais fácil<br />

compreen<strong>de</strong>r a complexida<strong>de</strong> do texto e <strong>de</strong>s<strong>em</strong>aranhar o novelo t<strong>em</strong>ático <strong>de</strong> Os<br />

confundid<strong>os</strong> <strong>em</strong> análises mais <strong>de</strong>nsas acerca <strong>das</strong> próprias <strong>personagens</strong> que são o<br />

el<strong>em</strong>ento mais intrigante <strong>de</strong>ssa narrativa.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

ANDRADE, Ana Luíza. Osman Lins: crítica e criação. Hucitec: São Paulo, 1987.<br />

LINS, Osman. Nove, novena: narrativas. Companhia <strong>das</strong> Letras: São Paulo, 1999.<br />

NITRINI, Sandra. Poéticas <strong>em</strong> confronto: nove, novena e o novo romance. Hucitec: São<br />

Paulo-Brasília, 1987.<br />

JARDIM, Adilson. A pulsão <strong>de</strong> morte <strong>em</strong> ―Os confundid<strong>os</strong>‖. In: Vitral ao sol: ensai<strong>os</strong><br />

sobre a obra <strong>de</strong> Osman Lins. Universitária da UFPE: Recife, 2004.<br />

TELES, R<strong>os</strong>ana. Visão circular do universo, uma rota do imaginário medieval <strong>em</strong><br />

narrativas <strong>de</strong> Nove, novena. In: Vitral ao sol:ensai<strong>os</strong> sobre a obra <strong>de</strong> Osman Lins.<br />

Universitária da UFPE: Recife, 2004.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!