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a viagem para o mundo dos mortos, no romanceiro da ... - TEL

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Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

A VIAGEM PARA O MUNDO DOS MORTOS, NO ROMANCEIRO<br />

DA INCONFIDÊNCIA, DE CECÍLIA MEIRELES 1<br />

Débora de Souza Mendes 2<br />

Ilca Vieira de Oliveira 3<br />

Neste trabalho objetivamos estu<strong>da</strong>r as imagens <strong>da</strong>s sombras e <strong>dos</strong><br />

<strong>mortos</strong>, a <strong>viagem</strong> <strong>para</strong> o <strong>mundo</strong> <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>, habitantes esses <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />

Ouro Preto, <strong>no</strong>s poemas “Fala Inicial”, “Cenário”, “Romance LXXIV ou <strong>dos</strong><br />

Cavalos <strong>da</strong> Inconfidência” e “Fala aos Inconfidentes Mortos”, de Romanceiro<br />

<strong>da</strong> Inconfidência, de 1953, de Cecília Meireles.<br />

Cecília Meireles realizou uma pesquisa histórica <strong>para</strong> a composição<br />

<strong>dos</strong> poemas de Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência, como viajante <strong>no</strong> passado<br />

histórico, <strong>no</strong> imaginário, na paisagem e <strong>no</strong> <strong>mundo</strong> <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>. Seu trabalho<br />

iniciou-se com uma <strong>viagem</strong> <strong>para</strong> Ouro Preto, em uma semana santa 4 , nesse<br />

momento a poeta pode contemplar o espaço e a religiosi<strong>da</strong>de mineira e<br />

apontar suas percepções, de pesquisadora e viajante, em seus poemas.<br />

Observamos o trecho do texto “Como escrevi o Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência”,<br />

citado pela própria autora:<br />

Deixei Ouro Preto — e seguiram comigo to<strong>dos</strong> esses<br />

fantasmas. Seguiram outros, que fui encontrar na<br />

Comarca do Rio <strong>da</strong>s Mortes: os que vivem a janela de<br />

Bárbara Eliodora, os que cercam a fonte de S. José Del<br />

Rey; os que se encontram aos altares entre anjos e santos;<br />

os que sobem aos púlpitos; os que apontam as pinturas<br />

1 Trabalho com auxílio Financeiro <strong>da</strong> FAPEMIG e CNPq. Trabalho orientado pela Professora<br />

Doutora Ilca Vieira de Oliveira, Coordenadora do Mestrado em Letras/ Estu<strong>dos</strong> Literários <strong>da</strong><br />

UNIMONTES.<br />

2 Aluna do Mestrado em Letras/ Estu<strong>dos</strong> Literários <strong>da</strong> UNIMONTES. Bolsista <strong>da</strong> Capes.<br />

e-mail: deborasouza08@yahoo.com.br<br />

3 Orientadora <strong>da</strong> autora. Coordenadora do Mestrado em Letras/ Estu<strong>dos</strong> Literários /<br />

UNIMONTES e do Projeto de pesquisa “Ci<strong>da</strong>des de Minas na poesia brasileira do século XX”/<br />

CNPq.<br />

4 Cecília Meireles viaja <strong>para</strong> Ouro Preto, na Semana Santa, na condição de pesquisadora e<br />

jornalista, desse trabalho de pesquisa resultou uma de suas crônicas “Semana Santa em Ouro<br />

Preto”, publica<strong>da</strong> em Escolha o seu sonho, de Cecília Meireles.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

cheias de intenções na casa do Vigário Toledo... 5<br />

Ao lermos essas impressões <strong>no</strong>tamos que a <strong>viagem</strong> realiza<strong>da</strong> por<br />

Cecília Meireles propiciou-lhe um encantamento e fascínio. As mortes e<br />

os mistérios que pairavam na ci<strong>da</strong>de de Ouro Preto do século XVIII, são<br />

suscita<strong>dos</strong> <strong>no</strong> século XX, quando se objetiva com projetos modernistas<br />

resgatar o passado histórico e os herois nacionais. A poeta diz que após a<br />

realização <strong>da</strong> pesquisa jornalística ela deixa Ouro Preto, mas os fantasmas<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de a perseguem.<br />

Esses “fantasmas”, “homens” construtores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Ouro Preto,<br />

sejam eles poetas, padres, arquiteto, governador, Alferes, musas e donzelas<br />

são retoma<strong>dos</strong> pela escritora <strong>para</strong> reconstrução do passado histórico de<br />

Minas e do País. Michel Onfray em seu estudo Teoria <strong>da</strong> Viagem esclarece<br />

que: “O desejo de <strong>viagem</strong> se alimenta melhor de fantasmas literários ou<br />

poéticos do que de propostas indigentes, porque semelhantes demais a<br />

uma reali<strong>da</strong>de sumária.” 6<br />

Cecília, enquanto viajante, trabalha o real e o imaginário em seus<br />

poemas, trazendo a tona a problematização <strong>da</strong> Conjuração Mineira e os<br />

poetas letra<strong>dos</strong> envolvi<strong>dos</strong> com esse movimento, <strong>para</strong> isso ela recupera os<br />

“fantasmas literários de Ouro Preto”, ou seja, os poetas árcades que lutaram<br />

pela liber<strong>da</strong>de até mesmo enfrentando a morte. Eles realizaram por fim uma<br />

<strong>viagem</strong> sem retor<strong>no</strong>, a <strong>viagem</strong> <strong>para</strong> o <strong>mundo</strong> <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>; e são recupera<strong>dos</strong><br />

pela poesia do século XX, como “fantasmas” que transitam <strong>no</strong> espaço<br />

metafísico <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Eles habitam o pla<strong>no</strong> espiritual e suas “sombras” o<br />

pla<strong>no</strong> físico, terre<strong>no</strong>.<br />

Na “Fala Inicial”, poema que abre o Romanceiro, há recorrências as<br />

mortes, que muito foram significativas na Inconfidência Mineira, o sujeito<br />

lírico faz uso de inúmeros símbolos e metáforas <strong>para</strong> indicar como elas se<br />

deram e a implicação delas <strong>para</strong> a construção <strong>da</strong> história de Minas, veja<br />

como a morte é representa<strong>da</strong>:<br />

5 MEIRELES, Cecília. Romanceiro <strong>da</strong> inconfidência [1953]. Porto Alegre, RS: L&PM , 2010. p. 19.<br />

6 ONFRAY, Michel. Teoria <strong>da</strong> Viagem: poética <strong>da</strong> Geografia. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre,<br />

RS: L & PM, 2009, p. 22.


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FALA INICIAL<br />

Não posso mover meus passos<br />

Por esse atroz labirinto<br />

De esquecimento e cegueira<br />

Em que amores e ódios vão:<br />

- pois sinto bater os si<strong>no</strong>s,<br />

percebo o roçar <strong>da</strong>s rezas,<br />

vejo o arrepio <strong>da</strong> morte,<br />

à voz <strong>da</strong> condenação;<br />

- avisto a negra masmorra<br />

e a sombra do carcereiro<br />

que transita sobre angústias,<br />

com chaves <strong>no</strong> coração;<br />

- descubro as altas madeiras<br />

do excessivo ca<strong>da</strong>falso<br />

e, por muros e janelas,<br />

o pasmo <strong>da</strong> multidão.<br />

Batem patas de cavalos.<br />

Suam sol<strong>da</strong><strong>dos</strong> imóveis.<br />

Na frente <strong>dos</strong> oratórios,<br />

que vale mais a oração<br />

(...)<br />

Quem condena, julga e pune<br />

Quem é culpado e i<strong>no</strong>cente<br />

Na mesma cova do tempo<br />

Cai o castigo e o perdão.<br />

Morre a tinta <strong>da</strong>s sentenças<br />

e o sangue <strong>dos</strong> enforca<strong>dos</strong> ...<br />

- liras, espa<strong>da</strong>s e cruzes<br />

pura cinza agora são.<br />

Na mesma cova, as palavras,<br />

e o secreto pensamento,


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as coroas e os macha<strong>dos</strong>,<br />

mentiras e ver<strong>da</strong>de estão.<br />

Aqui, além, pelo <strong>mundo</strong>,<br />

ossos, <strong>no</strong>mes, letras poeira...<br />

Onde, os rostos Onde, as almas<br />

Nem os herdeiros recor<strong>da</strong>m<br />

rastro nenhum pelo chão.<br />

Ó grandes muros sem eco,<br />

presídios de sal e treva<br />

onde os homens padeceram<br />

sua vasta solidão...<br />

(...) 7<br />

O eu lírico que vê a história como um “labirinto” cheio de fatos<br />

sem explicação, escuta também o “bater <strong>dos</strong> si<strong>no</strong>s”, que metaforicamente<br />

anunciam as mortes. Mortes que provocavam “arrepio” diante sua possível<br />

aproximação. Nos versos “e a sombra do carcereiro/ que transita sobre<br />

angústias, com chaves <strong>no</strong> coração” se verifica uma retoma<strong>da</strong> do passado<br />

histórico e a dor que possivelmente sentia o carcereiro que guar<strong>da</strong>va os<br />

poetas inconfidentes. Esse é visto como “sombra”, estava em um segundo<br />

pla<strong>no</strong> e transitava em um espaço permeado por sentimentos de dor e<br />

sofrimento, os mesmos sentimentos que antecedem a morte. A imagem <strong>da</strong><br />

“morte”, associa<strong>da</strong> ao contexto histórico <strong>da</strong> Inconfidência Mineira se faz<br />

presente em vários poemas.<br />

Em alguns poemas <strong>no</strong>tamos recorrências aos elementos simbólicos<br />

do “vento” e do “cavalo” que metaforicamente apontam a <strong>viagem</strong> <strong>para</strong><br />

o <strong>mundo</strong> <strong>dos</strong> <strong>mortos</strong>. Ruth Villela Cavalieri, em seu texto crítico Cecília<br />

Meireles: o ser e o tempo, expõe que: “O vento assume o seu papel de imagem<br />

primordial e, em sua natureza destruidora, correlata de vertigi<strong>no</strong>si<strong>da</strong>de<br />

7 MEIRELES, Cecília. Romanceiro <strong>da</strong> inconfidência [1953]. Porto Alegre, RS: L&PM , 2010,<br />

p. 39- 40.


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temporal, ele é visto como ameaça, caminho <strong>da</strong> morte.” 8 .<br />

O vento aponta <strong>para</strong> o passado, o que se perdeu <strong>no</strong> tempo, o que<br />

foi levado até a morte, verifica-se isso <strong>no</strong>s versos do primeiro “Cenário”:<br />

“Que vento, que cavalo, que bravia/ sau<strong>da</strong>de me arrastava a esse deserto,/<br />

me obrigava a adorar o que sofria”. 9 . Nesses versos a imagem do cavalo<br />

metaforiza os “grandes homens” os herois que enfrentavam tudo com<br />

“bravia”, já <strong>no</strong> verso “Batem patas de cavalo” 10 , de “Fala Inicial”, o animal<br />

equestre sentia a aproximação <strong>da</strong> morte e a anunciava a seu condutor com<br />

certo temor. Sobre esse animal Ruth postula que: “O cavalo é também ligado<br />

aos “grandes relógios naturais”, como um significante mítico do tempo.” 11<br />

Entendemos que a morte nivelou os poetas, os padres e os “grandes<br />

homens”, de Minas. Ela veio <strong>para</strong> to<strong>dos</strong> como ciclo natural de vi<strong>da</strong>, to<strong>dos</strong><br />

voltaram ao pó e a “cova” se tor<strong>no</strong>u abrigo <strong>da</strong>s palavras não ditas, <strong>dos</strong> títulos<br />

e <strong>da</strong> própria dor. Nos versos “Aqui, além, pelo <strong>mundo</strong>,/ ossos, <strong>no</strong>mes, letras,<br />

poeira...” verifica-se a presentificação <strong>dos</strong> fantasmas <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> espiritual <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de de Ouro Preto, vê se que mesmo estando os homens sepulta<strong>dos</strong>,<br />

os mesmos estão vivos <strong>no</strong>s livros, na poesia Setecentista, <strong>no</strong>s arquivos do<br />

Patrimônio Histórico e em “lápides” mesmo que simbólicas <strong>no</strong> panteão <strong>dos</strong><br />

Inconfidentes 12 . Os homens construtores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de monumento retornaram<br />

ao pó, mas habitam o pla<strong>no</strong> transcendental <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Cecília Meireles faz uso em seus poemas de uma arte criadora,<br />

própria <strong>da</strong>s viagens realiza<strong>da</strong>s pela poeta, viagens reais e imaginárias <strong>para</strong><br />

8 CAVALIERI, Ruth Villela. Cecília Meireles: o ser e o tempo na imagem refleti<strong>da</strong>. Rio de<br />

Janeiro: Achiamé, 1984, p. 30.<br />

9 MEIRELES, Cecília. Romanceiro <strong>da</strong> inconfidência [1953]. Porto Alegre, RS: L&PM , 2010, p. 41.<br />

10 MEIRELES, Cecília. Romanceiro <strong>da</strong> inconfidência [1953]. Porto Alegre, RS: L&PM , 2010,<br />

p. 39.<br />

11 CAVALIERI, Ruth Villela. Cecília Meireles: o ser e o tempo na imagem refleti<strong>da</strong>. Rio de<br />

Janeiro: Achiamé, 1984, p. 32.<br />

12 Panteão <strong>dos</strong> Inconfidentes é um espaço especial dentro <strong>da</strong> Casa <strong>da</strong> Câmara <strong>para</strong> abrigar<br />

os restos mortais <strong>dos</strong> inconfidentes. Nem to<strong>dos</strong> os conspiradores ali repousam, pois alguns não<br />

puderam ter suas tumbas localiza<strong>da</strong>s, e outros têm sua identificação duvi<strong>dos</strong>a até os dias de<br />

hoje, a despeito <strong>dos</strong> intensos esforços de estudiosos nesse sentido. Estão <strong>no</strong> Panteão os restos de<br />

treze <strong>dos</strong> vinte e quatro sentencia<strong>dos</strong> pela coroa portuguesa. Uma lápide vazia é o memorial <strong>dos</strong><br />

ausentes, entre os quais está Tiradentes, cujo corpo foi esquartejado e exposto em opróbrio.


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Minas, as quais possibilitaram a ela realizar uma <strong>viagem</strong> que transcende o<br />

passado histórico, trata-se de uma <strong>viagem</strong> interior, mas que se volta <strong>para</strong><br />

o exterior e faz com que a escritora medite sobre a condição <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

de Ouro Preto, <strong>no</strong> tempo presente, <strong>da</strong> escrita <strong>dos</strong> poemas, lançando uma<br />

reflexão sobre a efemeri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s coisas.<br />

Adolphina Portella Bonapace, em seu texto crítico Romanceiro<br />

<strong>da</strong> Inconfidência: meditação sobre o desti<strong>no</strong> do homem, tece comentário<br />

relevante sobre a <strong>viagem</strong> de Cecília Meireles <strong>para</strong> o passado histórico de<br />

Minas, pontua:<br />

O sujeito <strong>da</strong> enunciação situado <strong>no</strong> presente <strong>da</strong> narração<br />

tenta “imaginar” esse passado, cuja presença intui na<br />

própria terra em que pisa, em to<strong>da</strong>s as coisas concretas<br />

sobre as quais pousa os olhos... Logo depois, já não<br />

mais imagina: diante dele, cheios de vi<strong>da</strong>, estão seus<br />

“fantasmas”... vozes ecoam <strong>no</strong> <strong>mundo</strong> exterior e <strong>no</strong><br />

segredo <strong>dos</strong> corações. 13<br />

Nesse sentido, o sujeito <strong>da</strong> enunciação, <strong>no</strong> tempo presente,<br />

busca compreender o passado e em sua constante busca se depreende<br />

com vi<strong>da</strong>, com os “fantasmas” e suas “imagens” e “vozes” que ecoam em<br />

Ouro Preto. Sobre as descobertas e encontro do eu, Michel Onfray infere<br />

que: “a <strong>viagem</strong> solicita o desejo e o prazer <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de; não a diferença<br />

facilmente assimilável, mas a ver<strong>da</strong>deira resistência, a franca oposição, a<br />

dessemelhança maior e fun<strong>da</strong>mental.” 14 . Nos versos do poema “Cenário”,<br />

a morte é associa<strong>da</strong> às imagens de sombras e fantasmas, observemos a<br />

minuciosi<strong>da</strong>de e riqueza de detalhes:<br />

Tudo me chama: a porta, a esca<strong>da</strong>, os muros,<br />

as lajes sobre <strong>mortos</strong> ain<strong>da</strong> vivos,<br />

13 BONAPACE, Adolphina Portella. O Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência: Meditação sobre o<br />

desti<strong>no</strong> do homem. In: Tese de Mestrado em Letras. Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> UFRJ. São José:<br />

Rio de Janeiro, 1974, p. 38.<br />

14 ONFRAY, Michel. Teoria <strong>da</strong> Viagem: poética <strong>da</strong> Geografia. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre,<br />

RS: L & PM, 2009, p. 60.


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<strong>dos</strong> seus próprios assuntos inseguros.<br />

Assim viveram chefes e cativos,<br />

Um dia, neste campo, entrelaça<strong>dos</strong><br />

na mesma dor, quiméricos e altivos.<br />

E assim me acenam por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>.<br />

Porque a voz que tiveram ficou presa<br />

na sentença <strong>dos</strong> homens e <strong>dos</strong> fa<strong>dos</strong>.<br />

Cemitério <strong>da</strong>s almas... — que tristeza<br />

nutre as papoulas de tão vaga essência<br />

( Tudo é sombra de sombras, com certeza...<br />

O <strong>mundo</strong>, vaga e inábil aparência,<br />

que se perde nas lápides escritas,<br />

sem qualquer consistência ou consequência.<br />

Vão-se, as <strong>da</strong>tas e letras eruditas<br />

na pedra e na alma, sob etéreos ventos,<br />

em lúci<strong>da</strong>s venturas e desditas<br />

E são to<strong>da</strong>s as coisas uns momentos<br />

de perdulária fantasmagoria,<br />

— jogo de fugas e aparecimentos.)<br />

Das grotas de ouro a extrema esca<strong>da</strong>ria,<br />

Por asas de memória e sau<strong>da</strong>de,<br />

com o pó do chão meu sonho confundia.<br />

Armado pó que tinge eterni<strong>da</strong>de,<br />

lavra imagens de santos e profetas<br />

cuja voz silenciosa <strong>no</strong>s persuade.<br />

(...) 15<br />

15 MEIRELES, Cecília. Romanceiro <strong>da</strong> inconfidência [1953]. Porto Alegre, RS: L&PM , 2010,<br />

p. 42- 43.


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Ao tratar sobre a morte constatamos que a <strong>viagem</strong> feita pelo sujeito<br />

lírico é <strong>para</strong> um <strong>mundo</strong> fantasmagórico <strong>no</strong> qual os <strong>mortos</strong>, estão vivos como<br />

fantasmas, o que é <strong>no</strong>tável <strong>no</strong> verso “as lajes sobre <strong>mortos</strong> ain<strong>da</strong> vivos”’,<br />

o recurso estilístico do <strong>para</strong>doxo sintetiza dessa maneira, a presença <strong>dos</strong><br />

fantasmas. Eles possuem vi<strong>da</strong> e são os mesmos que transitam na ci<strong>da</strong>de e<br />

“acenam por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>.”<br />

O sujeito lírico contempla a ci<strong>da</strong>de e <strong>no</strong>tifica que a mesma é o<br />

“Cemitério <strong>da</strong>s almas” o que metaforicamente implica que os “fantasmas”,<br />

“as almas” e “as sombras” estão presentes na ci<strong>da</strong>de e possuem vi<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong><br />

que em memória e lembranças ou mesmo em espírito como “sombra”, pois<br />

“(Tudo é sombra de sombras, com certeza...”<br />

A identificação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Ouro Preto, como ci<strong>da</strong>de<br />

fantasmagórica percorre todo o Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência; pois os<br />

espectros de fantasmas adquirem vi<strong>da</strong> como sombras na ci<strong>da</strong>de, <strong>no</strong> espaço<br />

entre nuvens e montanhas, conforme percebemos em: “E são to<strong>da</strong>s as<br />

coisas uns momentos/ de perdulária fantasmagoria,/ — jogo de fugas e<br />

aparecimentos.” Essa fantasmagoria percorre os poemas do Romanceiro,<br />

e as sombras e fantasmas ora aparecem em alguns poemas, ora não são<br />

identifica<strong>dos</strong> em outros.<br />

O “pó”, elemento que se refere à morte é constantemente utilizado<br />

em muitos versos, <strong>no</strong>s versos “Armado pó que tinge eterni<strong>da</strong>de,/ lavra<br />

imagens de santos e profetas/ cuja voz silenciosa <strong>no</strong>s persuade.” Entendese<br />

que ele implica uma co<strong>no</strong>tação temporal de desti<strong>no</strong> realizado após a vi<strong>da</strong>,<br />

com a destruição <strong>dos</strong> homens fin<strong>da</strong> na morte, e os homens retornam ao pó,<br />

mas permanecem vivos <strong>no</strong> <strong>mundo</strong> cósmico <strong>dos</strong> “santos e profetas.”<br />

Cecília traz <strong>no</strong> Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência, a história de Minas e<br />

do País e <strong>para</strong> isso retoma tempos passa<strong>dos</strong> e “de antigos fatos/ de homens<br />

antigos”, homens esses, “fantasmas” que habitam na ci<strong>da</strong>de de Ouro Preto e<br />

<strong>no</strong>s poemas de Cecília. Lucia Helena Sgaraglia Manna, <strong>no</strong> trabalho filológico<br />

Pelas trilhas do Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência, tece comentário importante<br />

<strong>para</strong> esse estudo, quando se refere ao poema “Fala aos inconfidentes<br />

<strong>mortos</strong>”, diz:


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Inteiramente metafórico, este romance encerra a obra<br />

reportando-se a sua parte inicial. Nesta, as ativi<strong>da</strong>des<br />

de mineração são o tema recorrente, e o ouro é<br />

sempre causador de inúmeras desgraças, presentes<br />

e futuras. Aqui, de regresso ao seu século, o poeta<br />

torna a contemplar as montanhas mineiras, e admite a<br />

possibili<strong>da</strong>de de reviver, ain<strong>da</strong> uma vez, o “embate/ de<br />

antigas horas, / de antigos fatos, de homens antigos”<br />

(v. 33-36). Tal embate, agora, trava-se em outro <strong>mundo</strong><br />

e o fruir do tempo é a “torrente do purgatório” (v.43-44),<br />

um rio em cujos “fun<strong>dos</strong> leitos”(v.29) está depositado o<br />

“grosso cascalho/ <strong>da</strong> humana vi<strong>da</strong>” (v.12-13): inveja, ódio,<br />

orgulho, fingimento, covardia. 16<br />

A morte desencadeia o período de libertação, conforme MANNA<br />

após a morte há o período do “purgatório”, o Romanceiro, encerra-se com<br />

o poema “Fala aos Inconfidentes <strong>mortos</strong>”, <strong>no</strong> qual o sujeito lírico lança a<br />

reflexão: “Quais os que tombam,/ em crimes exaustos,/ quais os que<br />

sobem,/ purifica<strong>dos</strong>” 17 , Ilca vieira de Oliveira em sua Tese de doutorado<br />

Imagens de Gonzaga na ficção literária brasileira tece comentário relevante<br />

sobre qual o desti<strong>no</strong> final <strong>para</strong> os inconfidentes <strong>mortos</strong>, o “tombamento” e<br />

reconhecimento ou a situação de melhora provoca<strong>da</strong> pela purificação com<br />

a morte.<br />

Assim, investigamos nesses poemas e constatamos que Cecília<br />

Meireles, estabelece um diálogo com a tradição árcade, quando <strong>no</strong><br />

Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência apresenta imagens do espaço bucólico, <strong>dos</strong><br />

pastores que representam o próprio Arcadismo, e a importância <strong>dos</strong> poetas,<br />

dessa escola literária, e de seus poemas <strong>para</strong> a <strong>no</strong>ssa história, literatura e<br />

memória cultural.<br />

16 MANNA, Lucia Helena Sgaraglia. Pelas Trilhas do Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência.<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense. Niterói, 1985, p. 202.<br />

17 MEIRELES, Cecília. Romanceiro <strong>da</strong> inconfidência [1953]. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010, p. 211.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

Cecília Meireles em Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência traz a ideia de<br />

transitorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e as mortes ocorri<strong>da</strong>s <strong>no</strong> passado histórico, <strong>no</strong><br />

contexto <strong>da</strong> Inconfidência Mineira, essas são recria<strong>da</strong>s <strong>no</strong>s poemas através<br />

<strong>da</strong> rememoração <strong>dos</strong> fatos históricos, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Ouro Preto do século<br />

XVIII.<br />

Nesse sentido, averiguamos que a poeta viaja <strong>para</strong> o <strong>mundo</strong> <strong>dos</strong><br />

<strong>mortos</strong>, na escrita <strong>dos</strong> poemas do Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência e resgata os<br />

poetas inconfidentes e demais construtores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de como seres <strong>mortos</strong>,<br />

mas vivos na ci<strong>da</strong>de como “fantasmas” ou “sombras”, pois mesmo <strong>mortos</strong><br />

eles não foram esqueci<strong>dos</strong> ou apaga<strong>dos</strong> <strong>da</strong> história de Minas, a própria<br />

Cecília postula: “Sem sombra de positivismo, posso, <strong>no</strong> entanto, confirmar<br />

por experiência a ver<strong>da</strong>de de que “somos sempre e ca<strong>da</strong> vez mais governa<strong>dos</strong><br />

pelos <strong>mortos</strong>”. 18<br />

18 MEIRELES, Cecília. Romanceiro <strong>da</strong> inconfidência [1953]. Porto Alegre, RS: L&PM , 2010, p. 22.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

Bibliografia<br />

BONAPACE, Adolphina Portella. O Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência: Meditação sobre o<br />

desti<strong>no</strong> do homem. In: Tese de Mestrado em Letras. Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> UFRJ.<br />

São José: Rio de Janeiro, 1974.<br />

CAVALIERI, Ruth Villela. Cecília Meireles: o ser e o tempo na imagem refleti<strong>da</strong>. Rio de<br />

Janeiro: Achiamé, 1984.<br />

CERTEAU, Michel de. GIARD, Luce. MAYOL, Pierre. Os fantasmas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. In: A<br />

invenção do cotidia<strong>no</strong>: 2. Morar e cozinhar. 6. ed. Trad. de Efhraim Ferreira Alves.<br />

Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1996.<br />

MANNA, Lucia Helena Sgaraglia. Pelas Trilhas do Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência.<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense. Niterói, 1985.<br />

MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho (crônicas). 25. ed. Rio de Janeiro; São Paulo<br />

Record, 2002.<br />

MEIRELES, Cecília. Romanceiro <strong>da</strong> inconfidência [1953]. Porto Alegre, RS: L&PM ,<br />

2010.<br />

OLIVEIRA, Ilca Vieira de. Imagens de Gonzaga na ficção literária brasileira. 2005, 208<br />

f. In: Tese de Doutorado em Letras. Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> UFMG. Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal de Minas Gerais: Belo Horizonte, 2005.<br />

ONFRAY, Michel. Teoria <strong>da</strong> Viagem: poética <strong>da</strong> Geografia. Trad. Paulo Neves. Porto<br />

Alegre, RS: L & PM, 2009.

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