Mónica Calle - Fonoteca Municipal de Lisboa
Mónica Calle - Fonoteca Municipal de Lisboa
Mónica Calle - Fonoteca Municipal de Lisboa
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Sexta-feira<br />
25 Março 2011<br />
www.ipsilon.pt<br />
Maria Gabriela Llansol Aquaparque Jérôme Bel Manuel Baptista Souad Massi<br />
Mónica <strong>Calle</strong><br />
Viagem ao fundo do teatro<br />
numa sala do Cais do Sodré<br />
MIGUEL MANSO ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7657 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
DIRECÇÃO ARTÍSTICA<br />
LUÍSA TAVEIRA<br />
ROMEU<br />
E JULIETA<br />
COREOGRAFIA JOHN CRANKO<br />
MÚSICA SERGEI PROKOFIEV<br />
ARGUMENTO JOHN CRANKO<br />
SEGUNDO WILLIAM SHAKESPEARE<br />
CENOGRAFIA JOÃO MENDES RIBEIRO<br />
FIGURINOS ANTÓNIO LAGARTO<br />
IMAGENS DANIEL BLAUFUKS<br />
DESENHO DE LUZ CRISTINA PIEDADE<br />
LISBOA,<br />
TEATRO CAMÕES<br />
MARÇO 2011<br />
dias 17, 18, 19, 25 e 26 às 21h<br />
TARDES FAMÍLIA dias 20 e 27 às 16h<br />
ABRIL 2011<br />
dias 01 e 02 às 21h<br />
TARDE FAMÍLIA dia 03 às 16h<br />
ESCOLAS dias 24 e 31 <strong>de</strong> Março às 15h<br />
BILHETES €5 A €25<br />
TEATRO CAMÕES DIAS DE ESPECTÁCULO // 21 892 34 77<br />
TEATRO NACIONAL DE SÃO CARLOS SEGUNDA A SEXTA DAS 13H ÀS 19H // 21 325 30 45 / 6<br />
TICKETLINE WWW.TICKETLINE.PT // 707 234 234<br />
LOJAS ABREU, FNAC, WORTEN, EL CORTE INGLÉS, C.C.DOLCE VITA<br />
Apoios à divulgação:<br />
www.cnb.pt M/6<br />
facebook.com/cnbportugal
Flash<br />
Sumário<br />
Mónica <strong>Calle</strong> 6<br />
Um caso <strong>de</strong> estudo, e <strong>de</strong><br />
espanto, do teatro português<br />
Jérôme Bel 10<br />
A vida <strong>de</strong> um bailarino<br />
também é um espectáculo<br />
Aquaparque 14<br />
Um mundo novo<br />
em português<br />
Maria Gabriela Llansol 20<br />
Ela morreu, os llansolianos<br />
continuam<br />
Judaica 24<br />
Tudo o que sempre quisemos<br />
ler sobre o judaísmo<br />
Semih Kaplanoglu 29<br />
A Turquia da sua infância<br />
Manuel Baptista 31<br />
Objectos “bigger than life”<br />
Ficha Técnica<br />
Directora Bárbara Reis<br />
Editor Vasco Câmara,<br />
Inês Nadais (adjunta)<br />
Conselho editorial Isabel<br />
Coutinho, Óscar Faria, Cristina ina<br />
Fernan<strong>de</strong>s, Vítor Belanciano<br />
Design Mark Porter, Simon<br />
Esterson, Kuchar Swara<br />
Directora <strong>de</strong> arte Sónia Matos<br />
Designers Ana Carvalho,<br />
Carla Noronha, Mariana Soares<br />
Editor <strong>de</strong> fotografia<br />
Miguel Ma<strong>de</strong>ira<br />
E-mail: ipsilon@publico.pt<br />
Russ Meyer vai ter<br />
um “biopic”?<br />
Os Óscares têm coisas <strong>de</strong>stas – um<br />
realizador que andava pelas ruas da<br />
amargura torna-se <strong>de</strong> repente no<br />
homem do momento, e às vezes<br />
nem é preciso ganhar-se um<br />
prémio. É o caso <strong>de</strong> David O.<br />
Russell, cujo “The Fighter – Último<br />
Round” <strong>de</strong>u a Christian Bale e<br />
Melissa Leo as estatuetas <strong>de</strong> actores<br />
secundários e literalmente o<br />
ressuscitou do longo purgatório por<br />
on<strong>de</strong> andou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o insucesso <strong>de</strong><br />
“Os Psico-Detectives”.<br />
À meia-dúzia <strong>de</strong> bolas que Russell<br />
anda a segurar neste momento –<br />
entre as quais pelo menos dois<br />
projectos com a sua “alma gémea”<br />
Mark Wahlberg, uma adaptação do<br />
jogo vi<strong>de</strong>o “Uncharted: Drake’s<br />
Fortune” e “Cocaine Cowboys”,<br />
história verídica ambientada no<br />
tráfico <strong>de</strong> droga dos anos 70 – vem<br />
agora juntar-se mais uma. Trata-se<br />
<strong>de</strong> uma biografia do infame autor<br />
<strong>de</strong> filmes <strong>de</strong> “exploitation” Russ<br />
Meyer, o homem <strong>de</strong> “Faster,<br />
Pussycat! Kill! Kill!” e da trilogia das<br />
“Vixens”, o cineasta que sabia que<br />
os homens preferem os seios. O<br />
filme será baseado na aclamada<br />
biografia que Jimmy McDonough<br />
fez <strong>de</strong> Meyer, “Big Bosoms and<br />
Square Jews”.<br />
A notícia, avançada pelo “site”<br />
Deadline New York, aponta que a<br />
Fox Searchlight estará à beira <strong>de</strong><br />
assegurar os direitos do projecto<br />
especificamente para Russell o<br />
dirigir. A “cereja” no topo do bolo é<br />
que o argumentista por trás da<br />
adaptação é Merritt Johnson, que<br />
escreveu igualmente uma biografia<br />
<strong>de</strong> Linda Lovelace<br />
actualmente em<br />
pré-<br />
produção, e que foi<br />
assistente <strong>de</strong><br />
Russell<br />
em “Três Reis”.<br />
No entanto, nada<br />
disto é certo: são<br />
incontáveis os<br />
projectos a<br />
que<br />
Russell tem<br />
estado<br />
ligado, mas nos<br />
sete anos<br />
que<br />
<strong>de</strong>correram <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
“Os Psico-<br />
Detectives” só<br />
“The Fighter”<br />
seguiu em frente.<br />
Convirá por isso<br />
dar algum<br />
<strong>de</strong>sconto aos<br />
relatos...<br />
A mítica protagonista<br />
<strong>de</strong> “Faster, Pussycat!<br />
Kill! Kill!”<br />
O cineasta<br />
que sabia que<br />
os homens<br />
preferem<br />
os seios po<strong>de</strong><br />
estar em vias<br />
<strong>de</strong> dar um<br />
filme<br />
“A Solidão dos<br />
Números Primos”<br />
na maior festa <strong>de</strong><br />
sempre do cinema<br />
italiano<br />
“A Solidão dos Números<br />
Primos”, adaptação do<br />
“best-seller” <strong>de</strong> Paolo<br />
Giordano por Saverio<br />
Costanzo, é o primeiro<br />
filme anunciado para o<br />
cartaz da quarta 8 ½ – Festa<br />
do Cinema Italiano. A<br />
edição 2011 do certame, a<br />
<strong>de</strong>correr <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> Abril a 8<br />
<strong>de</strong> Maio, traz uma série <strong>de</strong><br />
novida<strong>de</strong>s em relação a<br />
anos anteriores: alarga o<br />
seu raio <strong>de</strong> acção à<br />
Ma<strong>de</strong>ira, entra em parceria<br />
com a Cinemateca<br />
Portuguesa e com o Curtas<br />
Vila do Con<strong>de</strong>, aposta na<br />
exibição <strong>de</strong> telediscos e<br />
documentários.<br />
Apresentada em estreia a<br />
concurso em Veneza 2010,<br />
“A Solidão dos Números<br />
Primos” conta com Alba<br />
Rohrwacher (“Eu Sou o<br />
Amor”, “Que Mais Quero<br />
Eu”) e Luca Marinelli nos<br />
papéis principais dos dois<br />
jovens traumatizados por<br />
episódios da sua infância<br />
cujos percursos se cruzam<br />
ao longo das décadas. Tratase<br />
da terceira longa <strong>de</strong><br />
Saverio Costanzo, um dos<br />
mais idiossincráticos jovens<br />
realizadores transalpinos,<br />
cuja obra não mereceu<br />
ainda estreia comercial<br />
entre nós.<br />
É a mais ambiciosa das<br />
Festas até agora realizadas: a<br />
quarta 8 ½ dividirá a sua<br />
programação lisboeta entre<br />
o cinema Monumental e o<br />
espaço Nimas, com uma<br />
retrospectiva da comédia à<br />
italiana a <strong>de</strong>correr na<br />
Cinemateca sob o genérico<br />
Amarcord (inspirado pelo<br />
filme <strong>de</strong> memórias <strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>rico Fellini), estando já<br />
prometida a exibição <strong>de</strong> dois<br />
clássicos <strong>de</strong> Dino Risi, “Os<br />
Monstros” e “A<br />
Ultrapassagem”. Para além<br />
da secção competitiva – que<br />
contará este ano no júri com<br />
dois músicos <strong>de</strong> jazz ligados<br />
ao cinema, Filipe Melo<br />
(igualmente criador da curta<br />
“A Solidão<br />
dos Números<br />
Primos” é a<br />
terceira longa<br />
<strong>de</strong> Saverio<br />
Costanzo,<br />
um dos mais<br />
idiossincráticos<br />
realizadores<br />
italianos, cuja<br />
obra ainda<br />
não mereceu<br />
estreia<br />
comercial em<br />
Portugal<br />
“I’ll See You in My Dreams”<br />
e da série televisiva “Um<br />
Mundo Catita”) e Bernardo<br />
Sassetti (responsável por<br />
uma longa série <strong>de</strong> bandassonoras)<br />
– e do Panorama<br />
das próximas estreias, a<br />
edição 2011 propõe<br />
igualmente duas sessões<br />
especiais; uma por ocasião<br />
dos 150 anos da unificação<br />
italiana, outra em<br />
homenagem à Fabrica<br />
Benetton. O programa<br />
completa-se, para já, com a<br />
secção documental Italia.<br />
doc, um programa <strong>de</strong><br />
curtas-metragens<br />
comissariado em parceria<br />
com Vila do Con<strong>de</strong><br />
(antecipado pela exibição,<br />
na noite Shortcutz do<br />
próximo dia 29 <strong>de</strong> Março,<br />
<strong>de</strong> “Io Sono Qui”, <strong>de</strong> Mario<br />
Piredda, no bar Bicaense),<br />
e a nova secção <strong>de</strong><br />
telediscos e música Ascolta.<br />
Em <strong>Lisboa</strong>, a Festa terá<br />
lugar <strong>de</strong> 14 a 21 <strong>de</strong> Abril,<br />
seguindo, entre 27 e 29,<br />
para Coimbra, entre 29 <strong>de</strong><br />
Abril e 1 <strong>de</strong> Maio para o<br />
Porto, e entre 5 e 8 <strong>de</strong> Maio,<br />
pela primeira vez, para o<br />
Funchal. As datas do Porto<br />
estão ainda sujeitas a<br />
confirmação e o programa<br />
irá sendo revelado<br />
emwww.festadocinemaitaliano.com<br />
.<br />
Jorge Mourinha<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 3
Flash<br />
ALAIN FONTERAY<br />
Depois <strong>de</strong>ste “Adagio”<br />
com François Mitterrand,<br />
Olivier Py tem planos para<br />
um “andante” com Jacques<br />
Chirac e um “allegro”<br />
com Sarkozy<br />
Tin<strong>de</strong>rsticks dão<br />
música a Claire Denis<br />
no Indie<strong>Lisboa</strong><br />
Os Tin<strong>de</strong>rsticks vão trazer à<br />
oitava edição do Indie<strong>Lisboa</strong>,<br />
o festival internacional <strong>de</strong><br />
cinema in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
<strong>Lisboa</strong>, uma interpretação ao<br />
vivo das bandas sonoras que<br />
criaram ao longo dos últimos<br />
13 anos para os filmes da<br />
realizadora francesa Claire<br />
Denis. Será a 11 <strong>de</strong> Maio, na<br />
Aula Magna, e os bilhetes<br />
custam entre 27 e 35 euros.<br />
Foi em 1995, numa sala <strong>de</strong><br />
espectáculos em Paris, que os<br />
Tin<strong>de</strong>rsticks travaram pela<br />
primeira vez conhecimento<br />
com Claire Denis. A banda<br />
<strong>de</strong>senvolvia um som baseado<br />
nas orquestrações múltiplas<br />
<strong>de</strong> Dickon Hinchliffe e na voz<br />
<strong>de</strong> Stuart Staples. Enquanto<br />
tocavam “My sister”, do<br />
segundo disco, a realizadora<br />
teve a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> convidar a<br />
banda para fazer a bandasonora<br />
do filme “Nénette et<br />
Boni”, que ainda estava em<br />
fase <strong>de</strong> produção. Esta<br />
parceria acabou por durar 13<br />
anos; mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
Dickon Hinchliffe ter <strong>de</strong>ixado<br />
a banda, lançou a banda<br />
sonora, então a solo, para o<br />
filme “Vendredi Soir”.<br />
Também Stuart Staples,<br />
igualmente a solo, fez a<br />
música para “L’Intrus”. O<br />
último encontro da banda<br />
com a realizadora surgiu no<br />
ano <strong>de</strong> 2009 em “White<br />
Novo disco para<br />
a Orchestre Poly-<br />
Rythmo <strong>de</strong> Cotonou<br />
A orquestra <strong>de</strong> “Poly-Rhytmo” <strong>de</strong><br />
Cotonou, uma formação histórica<br />
da República do Benim fundada<br />
em 1969, vai ter a sua primeira<br />
gran<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong> no<br />
“mainstream” internacional após<br />
40 anos <strong>de</strong> carreira: a banda<br />
conseguiu finalmente assinar com<br />
a editora Analogue para gravar um<br />
álbum.<br />
Os “Papys Groovy”, como é<br />
conhecida a orquestra “Poly-<br />
Rhytmo” na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cotonou,<br />
captaram todas as influências<br />
musicais à solta no Benim, um dos<br />
países mais pobres do mundo, e<br />
aliaram-nas à realida<strong>de</strong> ancestral<br />
das tradições <strong>de</strong> vudu africanas. O<br />
vocalista <strong>de</strong> 63 anos Ahehehinnou,<br />
formou o seu gosto com a rádio,<br />
ouvindo Brian Wilson, Elvis<br />
RICHARD DUMAS<br />
Material”. Diz Stuart Staples<br />
sobre esta inusitada parceria:<br />
“Tínhamos o sonho <strong>de</strong> fazer<br />
bandas sonoras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre,<br />
mesmo quando mal<br />
conseguíamos tocar. Na altura,<br />
a proposta (<strong>de</strong> Claire Denis)<br />
soou-nos como o caminho certo<br />
a seguir”<br />
A 11 <strong>de</strong> Maio, po<strong>de</strong>remos ver<br />
projectados em ecrã os filmes<br />
A Orchestre Poly-Rythmo<br />
<strong>de</strong> Cotonou vai ter a ajuda <strong>de</strong> dois<br />
Franz Ferdinand no novo disco<br />
Presley, Jimi Hendrix e<br />
sobretudo James Brown. A banda<br />
começou por copiar os artistas<br />
norte-americanos (apesar <strong>de</strong> não<br />
compreen<strong>de</strong>r as letras), que juntou<br />
às batidas sato e às danças<br />
tradicionais tchin koume (mas<br />
alterando um pouco ritmo, porque<br />
brincar com “o sagrado traz má<br />
sorte”, explicou o vocalista ao<br />
“The Guardian”). Apesar da<br />
popularida<strong>de</strong> local e <strong>de</strong> diversas<br />
“tournées” em África, a banda<br />
<strong>de</strong> Claire Denis, enquanto a<br />
banda interpreta os temas que<br />
os acompanham e que lhes<br />
dão sentido: “O trabalho para<br />
cada um <strong>de</strong>stes filmes sempre<br />
nos levou a avançar para o<br />
<strong>de</strong>sconhecido. No final,<br />
sentimos que isso nos mudou,<br />
que mudou a nossa música”.<br />
Antecipando este concerto,<br />
será lançada, a 26 <strong>de</strong> Abril,<br />
uma caixa com todas as<br />
bandas-sonoras, “Tin<strong>de</strong>rsticks-<br />
Claire Denis Film Scores 1996-<br />
2009”. Este ano, o Indie<strong>Lisboa</strong><br />
<strong>de</strong>corre <strong>de</strong> 5 a 13 <strong>de</strong> Maio,<br />
alternando entre o Cinema S.<br />
Jorge, a Culturgest, o Teatro do<br />
Bairro e a Cinemateca.<br />
Luís <strong>de</strong> Freitas Branco<br />
Os Tin<strong>de</strong>rsticks actuam na<br />
Aula Magna a 11 <strong>de</strong> Maio, para<br />
um concerto em que darão a<br />
ouvir as bandas-sonoras que<br />
compuseram nos últimos 13 anos<br />
sempre teve<br />
dificulda<strong>de</strong> em<br />
sobreviver através do<br />
negócio da música,<br />
lutando constantemente<br />
para conseguir manter<br />
os instrumentos e as<br />
datas <strong>de</strong> concertos.<br />
Mas tudo mudou para a<br />
Orchestre Poly-Rythmo no<br />
ano passado, com uma<br />
digressão europeia que foi<br />
um sucesso crítico e<br />
financeiro. “Honestamente,<br />
tivemos tantas promessas<br />
rompidas ao longo dos anos, que<br />
não acreditávamos que fosse<br />
mesmo acontecer”, diz<br />
Ahehehinnou. Mas <strong>de</strong>sta vez o<br />
álbum novo vai mesmo acontecer,<br />
com a já confirmada ajuda <strong>de</strong> dois<br />
membros da banda <strong>de</strong> rock<br />
escocesa Franz Ferdinand, o<br />
guitarrista Nick MacCarthy e o<br />
baterista Paul Thomson.<br />
Mitterrand sobe<br />
ao palco no “Adagio”<br />
<strong>de</strong> Olivier Py<br />
O ex-ministro da Cultura francês<br />
Jack Lang, e o antigo secretáriogeral<br />
do Eliseu, Hubert Védrine,<br />
não quiseram faltar, na semana<br />
passada, à estreia <strong>de</strong> “Adagio”, a<br />
peça <strong>de</strong> Olivier Py que encena os<br />
últimos meses <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> François<br />
Mitterrand, no Théâtre <strong>de</strong> L’O<strong>de</strong>on,<br />
em Paris. Lang e Védrine figuram,<br />
como personagens, na peça <strong>de</strong> Py,<br />
e a sua presença na sala levou a que<br />
a representação se tenha<br />
convertido numa espécie <strong>de</strong><br />
partida <strong>de</strong> ténis, com os<br />
espectadores a voltarem<br />
constantemente a cabeça para<br />
sondar o modo como ambos<br />
reagiam ao que os seus duplos<br />
diziam em palco.<br />
Bem acolhida pelo público e pela<br />
crítica, que tem <strong>de</strong>stacado a<br />
actuação <strong>de</strong> Philippe Girard no<br />
papel do ex-presi<strong>de</strong>nte francês, a<br />
peça <strong>de</strong> Py convoca ainda várias<br />
outras figuras que se moveram no<br />
círculo <strong>de</strong> Mitterrand, como o<br />
actual ministro dos Negócios<br />
Estrangeiros, Bernard Kouchner, ou<br />
o publicitário Jacques Séguéla,<br />
responsável pelas suas campanhas<br />
eleitorais.<br />
Py baseou-se em discursos do<br />
próprio Mitterrand e em diversa<br />
outra documentação, o que dá à<br />
sua peça um realismo convincente.<br />
Interessou-o a oposição entre a<br />
imagem pública e a vida privada do<br />
protagonista, entre o político e o<br />
homem que ambicionava ser<br />
romancista.<br />
O final do último mandato <strong>de</strong><br />
Mitterrand – que terminou em Maio<br />
<strong>de</strong> 1995, quando lhe restava pouco<br />
mais <strong>de</strong> meio ano <strong>de</strong> vida – foi<br />
marcado por vários momentos<br />
polémicos, quer a nível<br />
internacional, com as posições que<br />
tomou nas crises da Bósnia ou do<br />
Ruanda, quer no plano doméstico,<br />
com a revelação do seu alegado<br />
envolvimento com o governo <strong>de</strong><br />
Vichy. Py não ignora nenhuma<br />
<strong>de</strong>stas polémicas, mas evita<br />
tomar posição, <strong>de</strong>ixando<br />
que sejam as personagem <strong>de</strong><br />
Mitterrand e dos seus adversários<br />
políticos a expor os respectivos<br />
argumentos.<br />
Se “Adagio” está a <strong>de</strong>spertar<br />
natural curiosida<strong>de</strong>, Py ameaça<br />
não ficar por aqui nesta sua<br />
estratégia <strong>de</strong> fazer subir ao palco,<br />
por interpostos actores, as<br />
principais figuras da política<br />
francesa. Numa entrevista<br />
recente ao “Le Figaro”, afirma:<br />
“Gostaria <strong>de</strong> fazer como<br />
Shakespeare com Henrique IV,<br />
Henrique V e Henrique VI – <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong>ste ‘Adagio’ com François<br />
Mitterrand, fazer um ‘Andante’<br />
com Jacques Chirac e um ‘Allegro’<br />
com Nicolas Sarkozy”.<br />
Björk bio e Damon<br />
Albarn operático.<br />
On<strong>de</strong>?<br />
Em Manchester.<br />
Parece ser a cida<strong>de</strong> para se estar a<br />
partir <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> Junho. É nessa data<br />
que a cantora islan<strong>de</strong>sa aterra em<br />
Manchester, mais exactamente no<br />
Festival Internacional daquela<br />
cida<strong>de</strong> inglesa, para uma série <strong>de</strong><br />
apresentações especiais do seu<br />
novo espectáculo, “Biophilia”,<br />
nome também do seu próximo<br />
álbum. Alguma imprensa chama-lhe<br />
“residência artística” e é capaz <strong>de</strong><br />
fazer sentido. Afinal, a islan<strong>de</strong>sa vai<br />
permancer em Manchester durante<br />
três semanas, para seis<br />
apresentações, num misto <strong>de</strong><br />
instalação artística, com música,<br />
claro, mas também um imaginário<br />
multimédia com estrelas, planetas,<br />
Internet, tecnologia e natureza. Na<br />
apresentações experimentará uma<br />
panóplia <strong>de</strong> novos instrumentos e<br />
suportes digitais. O espectáculo<br />
“Biophilia” apresenta-se a 30 <strong>de</strong><br />
Junho e a 3, 7, 10, 13 e 16 <strong>de</strong> Julho.<br />
No mesmo festival, outro notável,<br />
Damon Albarn (Blur, Gorillaz)<br />
regressa à ópera. Depois <strong>de</strong> ter<br />
criado “Monkey: Journey to the<br />
West” em 2007, agora prepara-se<br />
para estrear “Doctor Dee”, peça<br />
escrita por Albarn e dirigida por<br />
Rufus Norris. A ópera será<br />
apresentada no Manchester Palace<br />
Theatre entre 1 e 9 <strong>de</strong> Julho. A<br />
história é centrada em John Dee,<br />
conselheiro médico e ciêntifico da<br />
Rainha Isabel I. Ao que parece, Dee<br />
também seria astrólogo e espião. A<br />
coisa promete. E ao contrário do<br />
que acontecia na sua ópera<br />
anterior, <strong>de</strong>sta vez Damon estará<br />
mesmo em cena.<br />
Damon Albarn<br />
vai à ópera,<br />
literalmente:<br />
o seu “Doctor<br />
Dee” terá<br />
estreia no<br />
Festival<br />
Internacional<br />
<strong>de</strong> Manchester<br />
4 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
AGENDA CULTURAL FNAC<br />
entrada livre<br />
APRESENTAÇÃO MÚSICA AO VIVO LANÇAMENTO EXPOSIÇÃO<br />
APRESENTAÇÃO<br />
A TERRA TODA<br />
Livro <strong>de</strong> José Manuel Saraiva<br />
O jornalista e escritor apresenta o seu último romance em que reflecte acerca da actualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />
forma provocadora.<br />
25.03. 19H30 FNAC BRAGA<br />
26.03. 16H00 FNAC ALMADA<br />
APRESENTAÇÃO<br />
ENCONTRO COM JACK SOIFER<br />
O reconhecido consultor económico conversa com o público acerca dos seus livros Como sair da Crise<br />
e Lucrar na Crise.<br />
31.03. 18H30 FNAC CHIADO<br />
08.04. 21H00 FNAC COIMBRA<br />
MÚSICA AO VIVO<br />
OS GOLPES<br />
G<br />
A banda dá a conhecer, no Fórum FNAC, um disco especial e <strong>de</strong> edição limitada.<br />
28.03. 18H30 FNAC CHIADO<br />
05.04. 21H30 FNAC COLOMBO<br />
MÚSICA AO VIVO<br />
THE GIFT<br />
Explo<strong>de</strong><br />
O novo álbum <strong>de</strong> originais revela-se mais eléctrico e cru, com menos orquestrações e em registo épico.<br />
31.03. 22H00 FNAC COIMBRA<br />
01.04. 18H00 FNAC CHIADO<br />
01.04. 21H30 FNAC COLOMBO<br />
02.04. 17H00 FNAC CASCAISHOPPING<br />
03.04. 15H00 FNAC ALMADA<br />
03.04. 19H30 FNAC VASCO DA GAMA<br />
08.04. 18H00 FNAC STA. CATARINA<br />
08.04. 22H00 FNAC NORTESHOPPING<br />
09.04. 17H00 FNAC GAIASHOPPING<br />
09.04. 22H00 FNAC MAR SHOPPING<br />
EXPOSIÇÃO<br />
AS INCRÍVEIS AVENTURAS DE<br />
DOG MENDONÇA E PIZZABOY<br />
Desenhos <strong>de</strong> Juan Cavia e argumento <strong>de</strong> Filipe Melo<br />
Uma selecção <strong>de</strong> imagens que recorda algumas das peripécias vividas pelos três protagonistas <strong>de</strong>ste livro<br />
<strong>de</strong> aventuras.<br />
23.03. - 25.05.2011 FNAC BRAGA<br />
apoio:<br />
Consulte a AGENDA FNAC em:<br />
http://cultura.fnac.pt
Mónica <strong>Calle</strong>, 44 anos,<br />
estreou ontem a primeira parte<br />
<strong>de</strong> um tríptico <strong>de</strong> monólogos<br />
que a faz regressar a um autor<br />
<strong>de</strong> eleição, Heiner Müller. Mas o<br />
que esta encenadora nos mostra<br />
é um modo singular (e solitário)<br />
<strong>de</strong> experimentar o teatro sem<br />
o artifício da distância.<br />
Um absoluto caso <strong>de</strong> estudo,<br />
e também <strong>de</strong> espanto.<br />
Tiago Bartolomeu Costa<br />
MIGUEL MANSO<br />
A verda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Mónica<br />
<strong>Calle</strong>, por<br />
inteiro<br />
6 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
Mónica <strong>Calle</strong>,<br />
44 anos,<br />
chegou a<br />
integrar um<br />
espectáculo<br />
do Teatro da<br />
Cornucópia<br />
quando saiu<br />
do Conservatório,<br />
mas o<br />
seu caminho<br />
foi outro,<br />
e fê-lo<br />
sozinha<br />
“O que <strong>de</strong> pior acontece <strong>de</strong> momento<br />
é que só há tempo ou velocida<strong>de</strong> ou<br />
passagem do tempo, mas não há espaço.<br />
É preciso criar espaços e ocupálos,<br />
contra esta aceleração”.<br />
É sempre daqui que a nova criação<br />
<strong>de</strong> Mónica <strong>Calle</strong> parte, <strong>de</strong>sta frase <strong>de</strong><br />
Heiner Müller. É sempre a ela que regressa.<br />
Agora, outra e mais uma vez.<br />
Não será a última: “Anúncio <strong>de</strong> Morte”<br />
é um tríptico <strong>de</strong> solos, construídos a<br />
partir da reescrita <strong>de</strong> textos do dramaturgo<br />
alemão, para apresentar até<br />
Junho: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ontem, e até 3 <strong>de</strong> Abril,<br />
há “Álbum <strong>de</strong> Família” (a partir <strong>de</strong> “A<br />
Máquina-Hamlet”), <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> Abril a 8<br />
<strong>de</strong> Maio, “Sete espelhos no quarto <strong>de</strong><br />
dormir” (a partir <strong>de</strong> “Descrição <strong>de</strong> um<br />
quadro”), e <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> Maio a 5 <strong>de</strong> Junho,<br />
“O passeio das raparigas mortas”<br />
(a partir <strong>de</strong> “Anúncio <strong>de</strong> Morte”), interpretados<br />
respectivamente por Tiago<br />
Vieira, Ana Ribeiro e Rute Cardoso.<br />
Com eles Mónica <strong>Calle</strong>, 44 anos, volta<br />
a escrever nas pare<strong>de</strong>s da sua Casa<br />
Conveniente, ao Cais do Sodré, em<br />
<strong>Lisboa</strong>, as razões pelas quais faz o que<br />
faz e que dão corpo à singularida<strong>de</strong><br />
(outra maneira <strong>de</strong> dizer solidão) do<br />
seu teatro.<br />
“Tem tudo a ver com a memória”,<br />
diz, para falar <strong>de</strong> um teatro feito <strong>de</strong><br />
espaços afectivos, como este no Cais<br />
do Sodré on<strong>de</strong> trabalha, antigo bar<br />
transformado em teatro, que, <strong>de</strong> tão<br />
físicos, se converteram num discurso<br />
artístico singular, isolado, solitário,<br />
on<strong>de</strong> importa “compreen<strong>de</strong>r a palpitação,<br />
compreen<strong>de</strong>r cada golpe, não<br />
<strong>de</strong> um modo racional mas intuitivo”.<br />
Sobreviver.<br />
Mónica <strong>Calle</strong> fez disso um modo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o seu teatro. Saída do Conservatório,<br />
figurou no Teatro da Cornucópia,<br />
em “As Três Irmãs”, mas não<br />
era bem isso que procurava. A geração<br />
a que pertencia queria criar o seu próprio<br />
espaço (ver caixa) fora do pequeno<br />
“establishment” do teatro português,<br />
e com o tempo <strong>Calle</strong> transformou-se<br />
num caso raro, <strong>de</strong> coerência<br />
e longevida<strong>de</strong>. Um caso <strong>de</strong> estudo. Ao<br />
longo dos anos, o que foi procurando,<br />
sem concessões, com uma exigência<br />
rara, foi um modo <strong>de</strong> fazer teatro que,<br />
naquele contexto <strong>de</strong> finais da década<br />
<strong>de</strong> 80 e princípios da <strong>de</strong> 90, lá fora ia<br />
sendo chamado <strong>de</strong> pós-dramático,<br />
pelo modo como se relacionava com<br />
o que ia encontrando pela frente. Em<br />
nome próprio, foi assinando trabalhos<br />
que, a partir <strong>de</strong> textos teatrais ou <strong>de</strong><br />
romances, representavam uma pesquisa<br />
atenta à relação do actor com o<br />
espaço, do texto com a leitura, do encenador<br />
que dá com o espectador que<br />
pe<strong>de</strong>. Com o tempo, o seu teatro foi<br />
<strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser marginal e tornou-se<br />
uma referência fundamental para <strong>de</strong>finir<br />
o potencial da cena nacional (distinguido<br />
em 2010 pela Associação<br />
Portuguesa <strong>de</strong> Críticos <strong>de</strong> Teatro).<br />
Dizer, agora, que Mónica <strong>Calle</strong> criou<br />
o seu próprio espaço é, mais do que<br />
constatar que <strong>de</strong> facto inventou um<br />
teatro que fosse seu no Cais do Sodré,<br />
chamar a atenção para o facto <strong>de</strong> ter<br />
tido que abrir caminho. Procurar um<br />
espaço – “tenho a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me<br />
sentir livre no modo como faço o meu<br />
trabalho” –, e construi-lo num sítio que<br />
não <strong>de</strong>via ser um teatro mas é, permitiu-lhe<br />
chegar a este lugar <strong>de</strong> exposição<br />
crua do corpo, do texto, do olhar,<br />
da voz, da presença.<br />
“Há coisas que eu sei que não quero,<br />
nas quais não acredito. Há outras<br />
que são construídas. Po<strong>de</strong> não parecer,<br />
mas sou muito rigorosa no cuidado<br />
com a luz, na qualida<strong>de</strong> do que<br />
é dito, no <strong>de</strong>senho cenográfico”, diznos<br />
no fim <strong>de</strong> um ensaio que é só<br />
mais um, porque <strong>de</strong>pois da estreia<br />
<strong>de</strong> ontem o “trabalho vai continuar,<br />
não faz sentido fechar-se”. “Às vezes<br />
os actores dizem que não percebem,<br />
ou levam mais tempo a perceber do<br />
“Não há nenhum<br />
mérito, nem nenhum<br />
heroísmo nesta<br />
resistência. Agora<br />
que vou envelhecendo,<br />
consigo perceber<br />
o que me levou<br />
a <strong>de</strong>terminado sítio,<br />
percebo o lugar<br />
<strong>de</strong> cada coisa.<br />
Mas nada é linear<br />
nem estruturado”<br />
De cima para baixo: “Três Irmãs<br />
- Que Importância é que isto<br />
tem?”, <strong>de</strong> 2003, “A última<br />
Gravação <strong>de</strong> Krapp”, <strong>de</strong> 2007,<br />
e “Rua <strong>de</strong> Sentido Único”, <strong>de</strong><br />
2002, algumas das criações <strong>de</strong><br />
<strong>Calle</strong> para a Casa Conveniente<br />
que estou a falar. E eu reconheço alguma<br />
dificulda<strong>de</strong> em explicar o que<br />
pretendo”, diz. “Nestes últimos três<br />
anos, tenho feito muitos ‘workshops’<br />
que são espectáculos, e on<strong>de</strong> trabalho<br />
tar<strong>de</strong> e noite. É um mo<strong>de</strong>lo que<br />
me <strong>de</strong>ixa muito feliz e imensamente<br />
livre. Os actores que trabalham comigo,<br />
e que quando chegam, na sua<br />
maioria, não me conhecem, <strong>de</strong>pressa<br />
compreen<strong>de</strong>m que tem <strong>de</strong> haver<br />
uma disponibilida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>. É um<br />
investimento imediato aquele no qual<br />
se mergulha. Para todos. E é uma troca<br />
constante. Eu dou-te, tu dás, o<br />
texto dá, o espaço dá. Todos os que<br />
vão passando por aqui, numa re<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>s, vão fazendo <strong>de</strong><br />
tudo. É tudo muito concreto e, por<br />
isso, todos sentem que a coisa lhes<br />
pertence. Que é um bocadinho <strong>de</strong>las”.<br />
Elas também não são quaisquer<br />
umas: “As pessoas que me vão interessando<br />
são as que me lançam e me<br />
levam a sítios diferentes.”<br />
DANIEL ROCHA PILAR MAYORGAS<br />
JOÃO TUNA<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 7
Será também assim agora. Os<br />
espectáculos <strong>de</strong> Mónica <strong>Calle</strong> não são<br />
só <strong>de</strong> Mónica <strong>Calle</strong>. “Há uma verda<strong>de</strong><br />
que não é necessariamente minha, é<br />
<strong>de</strong> quem lá está”. E este estar lá tanto<br />
po<strong>de</strong> ser quem está a interpretar como<br />
quem está a ver. “O modo como<br />
constróis o texto, como o trabalhas,<br />
relaciona-se com o lugar on<strong>de</strong> o espectador<br />
se senta, o espaço que o<br />
envolve, o sítio para on<strong>de</strong> vai”, explica.<br />
“Eu tenho <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o que faço,<br />
e encontrar um sentido nisso quando,<br />
porque não posso fazer como<br />
quero, preciso <strong>de</strong> encontrar outras<br />
formas <strong>de</strong> fazer. On<strong>de</strong> chego é muito<br />
mais importante [do que on<strong>de</strong> queria<br />
ir], porque me obriga a pensar mais<br />
nas coisas. Eu trabalho sobre textos<br />
para <strong>de</strong>scobrir o que me dizem”, continua.<br />
MIGUEL MANSO<br />
O texto é real<br />
É também por isso que este tríptico<br />
agora em cena é um regresso a “A Missão”:<br />
o espectáculo que, em 2004,<br />
<strong>Calle</strong> estreou no antigo Bar Lusitano,<br />
que então reabria como nova Casa<br />
Conveniente, e que vai refazer, agora<br />
sozinha e por inteiro, no final do ano.<br />
Exactamente como há sete anos, mas<br />
agora com outras pare<strong>de</strong>s por construir,<br />
outro entulho no chão, outros<br />
bal<strong>de</strong>s <strong>de</strong> água, outras sacas <strong>de</strong> cimento<br />
e outros restos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras.<br />
Mas porque a memória é fundamental<br />
no trabalho da encenadora, ainda<br />
que este espectáculo seja outro é como<br />
se estivéssemos perante as mesmas<br />
pare<strong>de</strong>s, o mesmo entulho, os<br />
mesmos bal<strong>de</strong>s, as mesmas sacas <strong>de</strong><br />
cimento e os mesmos restos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras.<br />
No mesmo chão.<br />
O seu chão, a Casa Conveniente,<br />
fica numa artéria escura do Cais do<br />
Sodré, a Rua Nova do Carvalho, ao<br />
lado <strong>de</strong> outros tantos bares, <strong>de</strong> outros<br />
tantos espaços, tão ou mais teatrais<br />
do que este on<strong>de</strong> ela resiste a fazer<br />
teatro. Já é a segunda Casa Conveniente.<br />
Antes houve uma, à qual foi buscar<br />
o nome, duas ruas abaixo, na Rua dos<br />
Remolares: uma loja <strong>de</strong> utensílios <strong>de</strong><br />
pesca transformada em albergue para<br />
uma actriz que, há 19 anos, abriu<br />
as portas e foi insultada por todos os<br />
que passavam e achavam que aquela<br />
mulher que dizia poemas <strong>de</strong> Rimbaud<br />
a noite toda era só mais uma puta, só<br />
mais uma “Virgem Doida”. Foi a primeira<br />
peça, repetida noite fora, como<br />
estes solos agora serão, todos os dias<br />
até à meia-noite. Como se a história<br />
se pu<strong>de</strong>sse repetir mas fosse uma história<br />
nova, porque se po<strong>de</strong> ouvir novamente.<br />
O teatro <strong>de</strong>la, afinal, é sobretudo<br />
uma questão <strong>de</strong> presença. A do espectador,<br />
claro, a do actor, evi<strong>de</strong>ntemente,<br />
mas também a do texto. “Os textos<br />
têm que ser um prazer para quem faz<br />
e diz. Os do Heiner Müller são uma<br />
prenda para os actores. Ele está sempre<br />
a citar-se. A compreensão do que<br />
se diz tem <strong>de</strong> ser intuitiva, não po<strong>de</strong><br />
ser intelectual. O actor não se po<strong>de</strong><br />
instalar no que está a dizer. Tem <strong>de</strong><br />
estar presente, tem <strong>de</strong> ser activo”.<br />
Tem <strong>de</strong> reagir, em suma, porque “o<br />
texto existe fisicamente, está ali”. E<br />
esteve, <strong>de</strong> facto, fisicamente, por diversas<br />
vezes. Em “Três Irmãs – Que<br />
importância é que isto têm?” (2002)<br />
ou “Manifesto” (2009), eram os textos,<br />
<strong>de</strong> Tchékhov num caso, e uma<br />
compilação <strong>de</strong> escritos políticos noutro,<br />
que apareciam. Nos exercícios que<br />
levaram a composições a partir <strong>de</strong> “O<br />
Ginjal” ou “Esta Noite Improvisa-se”,<br />
o texto nunca saía da frente dos espectadores.<br />
E, invariavelmente, aos espectadores<br />
era pedido que acompanhassem<br />
na leitura. Como se isso nos<br />
permitisse voltar a acreditar no teatro<br />
enquanto ritual colectivo em permanente<br />
construção.<br />
“O texto é, para mim, algo <strong>de</strong> muito<br />
“Álbum <strong>de</strong> Família”, que se<br />
estreou ontem na Casa<br />
Conveniente, é a primeira peça<br />
<strong>de</strong> um ciclo Heiner Müller<br />
“O texto é, para mim,<br />
algo <strong>de</strong> muito real,<br />
muito concreto.<br />
É algo vivo. Os autores<br />
existem como se eu<br />
os conhecesse,<br />
não são figuras<br />
distantes <strong>de</strong> mim.<br />
Por trás daqueles<br />
textos há um autor,<br />
que é alguém que me<br />
importa que esteja<br />
presente”<br />
real, muito concreto. É algo vivo. Os<br />
autores existem como se eu os conhecesse,<br />
não são figuras distantes <strong>de</strong><br />
mim. Por trás daqueles textos há um<br />
autor, que é alguém que me importa<br />
que esteja presente”, explica, indo ao<br />
encontro <strong>de</strong> frase <strong>de</strong> Heiner Müller<br />
frequentemente citada: “Há sempre<br />
mais mortos do que vivos”.<br />
O texto, diz <strong>Calle</strong>, dialoga com ela.<br />
E isso po<strong>de</strong> levá-la, e levou-a, a ter <strong>de</strong><br />
encontrar modos <strong>de</strong> leitura que fossem<br />
conscientes das condições em<br />
que seriam encenados. Os autores vão<br />
<strong>de</strong> Stig Dagerman (“Jogos da Noite”,<br />
1993, “A loucura da normalida<strong>de</strong>”,<br />
2002), a Walter Benjamin (“Rua <strong>de</strong><br />
Sentido Único”, 2001), passando por<br />
António Lobo Antunes (“Crónicas”,<br />
1997) e Luís Fonseca (“Os dias que nos<br />
dão”, 1999) ou Peter Handke (“Luz/<br />
Interior”, 2004, menção honrosa da<br />
Associação Portuguesa <strong>de</strong> Críticos <strong>de</strong><br />
Teatro em 2005).<br />
Os clássicos, se os quisermos insultar<br />
<strong>de</strong>ssa forma, são – em vez <strong>de</strong> foram<br />
– uma constante no percurso <strong>de</strong> <strong>Calle</strong>:<br />
Heiner Müller (“A Missão” (2004)),<br />
Thomas Bernhard (“Comédia ou a<br />
Força do Hábito”, 2008 e “Minetti ou<br />
Um Retrato do Artista Quando Jovem”,<br />
2009), Anton Tchékhov (“Três Irmãs<br />
- Que importância é que isto tem?”,<br />
2002, “A Última Ceia ou sobre O Cerejal”,<br />
2007, “O Ginjal ou o sonho das<br />
cerejas”, 2010), Luigi Piran<strong>de</strong>llo (“Esta<br />
Noite Improvisa-se”, 2010), Samuel<br />
Beckett (“Um dia virá”, 2003, “Variação<br />
sobre ‘A Última Gravação <strong>de</strong> Krapp’”,<br />
2007) e August Strindberg (“Menina<br />
Júlia”, 1993, “Inferno”, 2010)<br />
foram feitos e refeitos porque “nunca<br />
houve condições”, diz. “Levei 18 anos<br />
a fazer ‘O Ginjal’ por inteiro, sem ter<br />
<strong>de</strong> inventar formas nem estratégias<br />
para o fazer”, conta. Foi no ano passado,<br />
em co-produção com diversos<br />
teatros municipais. “Não correu bem”,<br />
assume. Como não tinha corrido bem<br />
“Julietas – Cartas fragmentárias a um<br />
amor perdido”, que apresentou na<br />
Culturgest em 2005, e, por isso, <strong>de</strong>cidiu<br />
parar.<br />
“Houve alturas em que não aguentei,<br />
em que não consegui”. E nessas<br />
alturas, parou. Para perceber no que<br />
tinha falhado.<br />
Voltar atrás<br />
Quando voltou, em 2007, fez um surpreen<strong>de</strong>nte<br />
Krapp. E quando voltou<br />
outra vez, no Inverno <strong>de</strong> 2010, fez um<br />
extraordinário “Inferno”. E agora que<br />
não tem uma terceira peça consecutiva<br />
numa gran<strong>de</strong> instituição – mas<br />
sendo a Casa Conveniente não menos<br />
do que uma instituição que ela se <strong>de</strong>dica<br />
a reinventar -, faz este tríptico, <strong>de</strong><br />
regresso à base. “Percebi que havia ali<br />
toda uma máquina que implicava com<br />
o que queria fazer. Uma máquina muito<br />
gran<strong>de</strong>”, diz. Não que alguma vez<br />
tenha ambicionado trabalhar o resto<br />
da vida com lâmpadas embrulhadas<br />
em papel couché, iodines que se fun<strong>de</strong>m,<br />
roupas velhas, bal<strong>de</strong>s cheios <strong>de</strong><br />
água, inundações em cima das estreias,<br />
cabos eléctricos à vista, ca<strong>de</strong>iras<br />
puídas, sacos <strong>de</strong> cimento em vez<br />
<strong>de</strong> a<strong>de</strong>reços iguais aos outros. Mas é<br />
isso que vamos encontrando. E agora,<br />
mais uma vez. Novamente a memória<br />
a fazer as vezes do discurso artístico,<br />
que faz as vezes das condições: “Os<br />
elementos usados vão surgindo ao<br />
longo do processo. Volto a alguns <strong>de</strong>les,<br />
tal como volto atrás nos textos.<br />
Pu<strong>de</strong>sse eu e estava três anos a fazer<br />
‘O Ginjal’, a investigar, a apren<strong>de</strong>r com<br />
o texto. Muitas <strong>de</strong>stas coisas, como o<br />
gesto criativo, têm a ver com as limitações,<br />
com o que há à volta, e com o<br />
que vais elaborando à volta disso”.<br />
Uma vez mais, tal como Müller, que<br />
8 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
Lúcia Sigalho<br />
Luís Castro<br />
RUI GAUDÊNCIO<br />
Diz-se imensas vezes em<br />
relação à minha geração<br />
que éramos muito giros quando<br />
começámos, mas que agora,<br />
coitados, estamos péssimos e<br />
acabados<br />
Há uma transição que não<br />
foi feita entre as companhias<br />
institucionalizadas<br />
com subsídios muito altos e outras<br />
que<br />
já provaram, ao fim <strong>de</strong> 10<br />
e 15 anos, o que valem<br />
A geração do meio<br />
A geração <strong>de</strong> Mónica <strong>Calle</strong> foi a primeira do pós-25 <strong>de</strong> Abril a afirmar-se como mo<strong>de</strong>lo alternativo<br />
às companhias que surgiram na década <strong>de</strong> 70 e entretanto se institucionalizaram, e nisso abriu caminho<br />
para quem veio a seguir. O que queriam e o sítio a que chegaram são dois países diferentes.<br />
DULCE FERNANDES/ ARQUIVO<br />
usa e reusa os mesmos textos, as mesmas<br />
palavras, reescrevendo os sentidos,<br />
ou escarafunchando. “São sempre<br />
espectáculos muito compensadores.<br />
São espectáculos <strong>de</strong> uma<br />
liberda<strong>de</strong> imensa. Mas não há nenhum<br />
mérito, nem nenhum heroísmo nessa<br />
resistência. Agora que vou envelhecendo,<br />
olho para trás e percebo melhor<br />
porque é que algumas coisas são<br />
como são, ou foram como foram. Consigo<br />
perceber o que me levou a <strong>de</strong>terminado<br />
sítio, porque é que fiz aquilo<br />
daquela maneira, percebo o lugar <strong>de</strong><br />
cada coisa. Mas nada é linear nem estruturado”,<br />
sublinha.<br />
A sua relação com as instituições é<br />
alias, paradigmática <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong> procura permanente que não se<br />
a<strong>de</strong>qua às gran<strong>de</strong>s máquinas. Quando<br />
fez “Os paraísos do caminho vazio”,<br />
em 1998, a primeira das três peças<br />
que montou com a Culturgest, teve<br />
<strong>de</strong> sair para o anfiteatro ao ar livre<br />
para po<strong>de</strong>r respirar. Em 2003 levou<br />
para o Centro Cultural <strong>de</strong> Belém “Um<br />
dia Virá”, a partir <strong>de</strong> “À Espera <strong>de</strong> Godot”,<br />
<strong>de</strong> Beckett, mas foi como carta<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida à ex-Casa Conveniente<br />
que o espectáculo melhor resultou,<br />
ali, naquele cubículo na esquina da<br />
Rua dos Remolares, apropriadamente<br />
chamando-lhe “Esquina <strong>de</strong> uma<br />
rua”. Tal como tinha acontecido um<br />
ano antes com “O Bar da Meia-noite”,<br />
a partir <strong>de</strong> Fiama Hasse Pais Brandão,<br />
on<strong>de</strong> a mesa on<strong>de</strong> os espectadores<br />
se sentavam era tanto um espeavlho<br />
para o que se imaginava<br />
passar-se nos quartos das pensões<br />
que ro<strong>de</strong>avam a Casa<br />
Conveniente, como o reverso rso<br />
do que, nos quartos, se imaginava<br />
passar-se ali, naquele atro <strong>de</strong> esquina.<br />
te-<br />
Aquilo que Mónica <strong>Calle</strong> pro-<br />
cura é o próprio lugar do discuro<br />
da<br />
palavra, que lugar é o da arte,<br />
so artístico: “Que lugar é<br />
que lugar têm na vida. Que gar é este que se procura? É<br />
uma coisa gradual. Precisa <strong>de</strong><br />
um tempo <strong>de</strong> maturação, esta<br />
relação entre o interior e o<br />
luexterior.<br />
O tempo real e o<br />
tempo do teatro, e a consciência<br />
da simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes dois<br />
tempos são das coisas mais importantes.<br />
Eles coexistem sempre, em<br />
paralelo, o tempo real e o tempo<br />
fora do tempos”.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos na pág.<br />
37<br />
RAQUEL ESPERANÇA/ PÚBLICO<br />
LUÍS RAMOS/ PÚBLICO<br />
João Garcia Miguel<br />
A minha geração foi<br />
a primeira que se<br />
preocupou com aquilo que<br />
era importante para a<br />
criação <strong>de</strong> um corpo do<br />
teatro português, que nos<br />
foi negado pelo peso das<br />
companhias que nos<br />
precediam<br />
Diogo Infante<br />
“De uma<br />
forma<br />
hipócrita, até, a<br />
geração anterior<br />
tinha muito a<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
colectivo: o<br />
indivíduo não<br />
contava, nem<br />
havia<br />
estrelas”<br />
“Diz-se imensas vezes em<br />
relação à minha geração que<br />
éramos muito giros quando<br />
começámos, mas que agora,<br />
coitados, estamos péssimos<br />
e acabados. Que somos muito<br />
auto-complacentes”. A frase<br />
não é <strong>de</strong> hoje, mas <strong>de</strong> 2006,<br />
e foi dita por Lúcia Sigalho,<br />
encenadora e actriz, à revista<br />
“Sinais <strong>de</strong> Cena”. Descrita em<br />
2003 num artigo do britânico<br />
“The Guardian” como “uma<br />
persuasiva contestatária cujo<br />
estilo anárquico <strong>de</strong> teatro físico<br />
parece brotar naturalmente da<br />
sua personalida<strong>de</strong> exuberante”,<br />
Sigalho é (foi?), com Mónica<br />
<strong>Calle</strong>, “um dos pilares gémeos<br />
do ressurgimento do teatro<br />
português dos anos 90”, dizia<br />
ainda o mesmo artigo.<br />
Sigalho está, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há uns<br />
anos, afastada do teatro, ela<br />
que foi, efectivamente, um<br />
dos rostos mais afirmativos<br />
da segunda geração do teatro<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte português. Não<br />
é caso único. “Achei que íamos<br />
aguentar todos”, diz <strong>Calle</strong>. “Sinto<br />
uma enorme tristeza porque<br />
fico com a sensação <strong>de</strong> que a<br />
minha geração <strong>de</strong>sapareceu, por<br />
variadíssimas razões”.<br />
“De uma forma hipócrita,<br />
até, a geração anterior tinha<br />
muito a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> colectivo: o<br />
indivíduo não contava, nem<br />
havia estrelas”, analisa Diogo<br />
Infante. Hoje à frente do Teatro<br />
Nacional D. Maria II como<br />
director artístico, Infante diz que<br />
“olhava para as instituições com<br />
alguma <strong>de</strong>sconfiança porque<br />
todas elas pareciam muito<br />
inacessíveis”. Ainda se lembra<br />
<strong>de</strong> ter dito numa entrevista,<br />
a propósito da atribuição <strong>de</strong><br />
subsídios a novos criadores:<br />
“Novo sou eu e a mim ninguém<br />
me dá nada”. Na altura, Lúcia<br />
Sigalho dizia o mesmo: “Quando<br />
comecei a fazer teatro, vi uma<br />
geração inteira a bater com a<br />
cabeça nas portas e ninguém<br />
entrava”. “Nós reclamámos um<br />
espaço primordial. Queríamos<br />
ser vinculadores <strong>de</strong> um qualquer<br />
movimento que nos aproximasse<br />
do público, com o qual agora<br />
temos uma relação privilegiada.<br />
É um público que cresceu<br />
connosco”, continua Infante.<br />
Ao contrário da dança, que<br />
em 1991 é exposta à montra<br />
internacional da Europália e aí<br />
se vê organizada e transformada<br />
num movimento (a “Nova Dança<br />
Portuguesa”), o novo teatro<br />
português nunca foi bem um<br />
fenómeno colectivo.<br />
Cristina Carvalhal, actriz<br />
e encenadora que esteve na<br />
formação da Escola <strong>de</strong> Mulheres,<br />
é bem disso o exemplo: “Nunca<br />
tive uma estratégia, nem<br />
nunca ambicionei fazer uma<br />
companhia. Queria sobretudo<br />
ser actriz”. Com o aparecimento<br />
das televisões privadas, que<br />
necessitavam <strong>de</strong> actores para<br />
os seus projectos, foi “tendo<br />
oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r escolher<br />
o que queria fazer no teatro,<br />
sobrevivendo através <strong>de</strong><br />
trabalhos <strong>de</strong> actriz na televisão”.<br />
Foi no meio disso que foi<br />
encenando: “Quando enceno<br />
é mais solitário, são impulsos<br />
aos quais respondo, meus ou <strong>de</strong><br />
outros”. Infante partilha a i<strong>de</strong>ia:<br />
“Não consigo <strong>de</strong>finir uma linha<br />
que seja claramente a minha.<br />
Sou volátil e imprevisível. Sou-o<br />
porque gosto <strong>de</strong> ser assim”.<br />
Mas há, ainda assim, uma<br />
geração. Uma geração que,<br />
para Miguel Seabra, actor,<br />
encenador e director do<br />
Teatro Meridional, este ano<br />
distinguido com o Prémio Novas<br />
Realida<strong>de</strong>s Teatrais Europeias,<br />
reagiu e trilhou um caminho<br />
pulverizado, vários caminhos. O<br />
Meridional constituiu-se como<br />
companhia nómada, com ramos<br />
em Portugal, Espanha e Itália,<br />
e é, com o Teatro da Garagem,<br />
que Carlos J. Pessoa fundou,<br />
parte do mesmo contexto <strong>de</strong> que<br />
saíram companhias como as <strong>de</strong><br />
<strong>Calle</strong>, Sigalho (Sensurround),<br />
João Garcia Miguel (Olho) e<br />
Luís Castro (Karnart), só para<br />
falar <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. As diferenças<br />
são a característica maior<br />
<strong>de</strong>sta geração, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Diogo<br />
Infante: “Há uma linha ténue<br />
que nos divi<strong>de</strong>, mas estamos<br />
unidos na mesma paixão e no<br />
mesmo compromisso. Os nossos<br />
objectivos é que são distintos”.<br />
Por isso, falar <strong>de</strong> correntes, <strong>de</strong><br />
discursos comuns ou <strong>de</strong> famílias<br />
é, para os entrevistados, algo<br />
estranho. Sigalho dizia mesmo:<br />
“Não me sinto em corrente<br />
nenhuma. Sei que, às vezes, o<br />
trabalho que faço lança pistas<br />
“Sinto uma enorme<br />
tristeza porque fico<br />
com a sensação <strong>de</strong><br />
que a minha geração<br />
<strong>de</strong>sapareceu, por<br />
variadíssimas razões”<br />
Mónica <strong>Calle</strong><br />
que <strong>de</strong>pois são aproveitadas,<br />
anos <strong>de</strong>pois, num outro sítio”.<br />
O que caracteriza o teatro<br />
português é aquilo que os<br />
artistas portugueses conseguem<br />
fazer individualmente”, diz João<br />
Garcia Miguel. Mas Luís Castro<br />
acha que falta fazer justiça ao<br />
trabalho <strong>de</strong>senvolvido pela sua<br />
geração: “Há uma transição<br />
que não foi feita entre as<br />
companhias institucionalizadas<br />
com subsídios muito altos e<br />
outras que já provaram, ao fim<br />
<strong>de</strong> 10 e 15 anos <strong>de</strong> trabalho, o que<br />
valem”. O encenador não hesita<br />
em apontar o <strong>de</strong>do às condições<br />
estruturais, que estão na origem<br />
da fragilida<strong>de</strong> da evolução<br />
dos discursos artísticos. “A<br />
legislação que suporta a cultura<br />
é frágil. Os apoios <strong>de</strong>viam ser<br />
mais abrangentes”.<br />
Os problemas, contrapõe João<br />
Garcia Miguel, também estão<br />
na classe: “O tecido artístico<br />
é até bastante ingrato para<br />
com o país on<strong>de</strong> vive e ingrato<br />
para si próprio. Consi<strong>de</strong>ro que<br />
a maior parte dos criadores<br />
portugueses tem pouca noção da<br />
sua importância em termos <strong>de</strong><br />
exemplo. A classe dos agentes<br />
culturais é bastante piegas e<br />
constantemente autofágica”,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>. O fim da companhia<br />
que dirigiu, o Olho, marco<br />
fundamental na renovação<br />
do discurso teatral português<br />
no fim do século XX, explica-o<br />
assim: “Não tivemos engenho<br />
suficiente para conciliar os<br />
nossos sonhos com a realida<strong>de</strong> e<br />
a solução foi adormecê-lo. Ainda<br />
bem que temos a facilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> esquecer porque, se não<br />
tivermos, o peso do passado será<br />
incomensurável”.<br />
Ainda assim, a geração <strong>de</strong><br />
<strong>Calle</strong>, Sigalho e Garcia Miguel<br />
conquistou um território: “A<br />
minha geração foi a primeira<br />
que se preocupou com aquilo<br />
que era importante para a<br />
criação <strong>de</strong> um corpo do teatro<br />
português, que nos foi negado<br />
pelo peso das companhias que<br />
nos precediam”. E tem, como as<br />
anteriores e as que seguiram,<br />
um futuro pela frente: “Aquilo<br />
que fazemos nunca é o mais<br />
importante <strong>de</strong> tudo. O mais<br />
importante é o que ainda vamos<br />
fazer. Não posso dizer que não<br />
tenha tido momentos e sensação<br />
<strong>de</strong> perda agudos. Mas acho que<br />
o importante é perceber que faz<br />
parte <strong>de</strong> uma existência, em que<br />
há coisas que se per<strong>de</strong>m para<br />
se ganhar outras”, resume o<br />
encenador. T.B.C.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 9
ICARE SINGEL INTERNATIONAL ARTS CAMPUS<br />
Do lado <strong>de</strong> cá, o do público, “Pichet<br />
Klunchun and Myself” parece uma<br />
invasão da privacida<strong>de</strong>. É como se<br />
todos os que estão sentados na plateia<br />
– sejam 180 num teatro em Nova Iorque,<br />
sejam 290 num auditório em<br />
<strong>Lisboa</strong> – se escon<strong>de</strong>ssem atrás <strong>de</strong> uma<br />
cortina a assistir a uma conversa entre<br />
um coreógrafo oci<strong>de</strong>ntal e um bailarino<br />
asiático, resistindo à tentação <strong>de</strong><br />
entrar no jogo e <strong>de</strong> fazer perguntas.<br />
Eles falam sobre as diferenças entre<br />
o movimento contemporâneo e a dança<br />
tradicional khon tailan<strong>de</strong>sa. E vão<br />
provando um ao outro como essas<br />
diferenças se tornam evi<strong>de</strong>ntes quando<br />
o corpo mostra o que apren<strong>de</strong>u e<br />
se mexe.<br />
O coreógrafo francês Jérôme Bel<br />
apresentou “Pichet Klunchun and<br />
Myself” em Portugal há cinco anos e<br />
regressa agora com mais um momento<br />
da série <strong>de</strong> trabalhos que tem <strong>de</strong>dicado,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004, aos “trabalhadores<br />
da dança” (a expressão é <strong>de</strong>le).<br />
Viseu (Teatro Viriato, amanhã), <strong>Lisboa</strong><br />
(Maria Matos, dias 30 e 31) e Porto<br />
(Serralves, 3 <strong>de</strong> Abril) vão receber<br />
Cédric Andrieux, bailarino <strong>de</strong> 33<br />
anos, e o solo em nome próprio que<br />
ele construiu com Bel em dois anos.<br />
Em “Cédric Andrieux” (2009) há<br />
um bailarino em palco a contar a sua<br />
história, tal como em “Véronique<br />
Doisneau” (a peça inaugural, <strong>de</strong> 2004,<br />
com uma intérprete do Ballet da Ópera<br />
<strong>de</strong> Paris), “Pichet Klunchun and<br />
Myself” (2005), “Isabel Torres” (também<br />
<strong>de</strong> 2005, com uma bailarina do<br />
Teatro <strong>Municipal</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro) e<br />
“Lutz Förster” (2009, com uma estrela<br />
da companhia <strong>de</strong> Pina Bausch).<br />
Através <strong>de</strong>sta série, <strong>de</strong> que farão ainda<br />
parte mais dois trabalhos – com<br />
uma bailarina <strong>de</strong> bharata nattyam<br />
(dança clássica do sul da Índia) e com<br />
Frédéric Seguette, um dos mais importantes<br />
intérpretes da carreira <strong>de</strong><br />
Bel –, o coreógrafo francês <strong>de</strong> 46 anos<br />
quer pôr os bailarinos a falarem da<br />
sua experiência, e dar voz a “intérpretes<br />
que habitualmente são tratados<br />
como objectos, como meros executantes,<br />
pelos coreógrafos a quem<br />
se confia quase todo o discurso sobre<br />
a dança”, explicou ao Ípsilon.<br />
Jérôme Bel quer que eles falem,<br />
mesmo que isso lhes cause <strong>de</strong>sconforto,<br />
porque acredita que, no fim, o<br />
exercício <strong>de</strong> revisão das suas carreiras<br />
acabará por ser enriquecedor. Além<br />
disso, acrescenta, estas peças autobiográficas<br />
– que em última análise<br />
passam sempre pelo próprio coreógrafo,<br />
o “produtor” e editor <strong>de</strong>stas<br />
vidas que se expõem em palco – aproximam<br />
os bailarinos <strong>de</strong> quem os ouve.<br />
“Só a partir <strong>de</strong> ‘Véronique Doisneau’<br />
o meu trabalho começou a ter sucesso<br />
junto do público. Até aí só a crítica<br />
e o meio falavam <strong>de</strong>le. E eu acho que<br />
isso aconteceu porque as pessoas se<br />
reconhecem naquelas vidas, naqueles<br />
bailarinos que não são estrelas nas<br />
suas companhias [à excepção <strong>de</strong><br />
Lutz], mesmo que a sua profissão seja<br />
conduzir um autocarro ou <strong>de</strong>senhar<br />
pontes. Isto porque todos temos patrões<br />
e problemas <strong>de</strong> dinheiro, todos<br />
temos sucessos e fracassos, todos nos<br />
sentimos humilhados um dia…”<br />
E se o público se ri, mesmo quando<br />
Cédric Andrieux recorda um momento<br />
particularmente difícil, é porque é<br />
capaz <strong>de</strong> rir <strong>de</strong> si próprio, diz Bel. E<br />
isso é bom.<br />
Sempre por acaso<br />
Jérôme Bel estava no Ballet da Ópera<br />
<strong>de</strong> Lyon para montar um dos seus espectáculos,<br />
o popular “The Show<br />
Must Go On” (2001); Cédric Andrieux<br />
era um dos bailarinos <strong>de</strong>ssa formação<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong>cidira <strong>de</strong>ixar a companhia<br />
do norte-americano Merce Cunningham<br />
(1919-2009), on<strong>de</strong> dançou<br />
oito anos. Durante a preparação do<br />
espectáculo, Bel não reparou em Andrieux<br />
– “para mim ele era apenas<br />
mais um dos 30 bailarinos com que<br />
eu estava a trabalhar”. Mas, um dia,<br />
<strong>de</strong> regresso a Paris, os dois ficaram<br />
por acaso sentados frente a frente no<br />
comboio e começaram a conversar.<br />
Foi aí que o coreógrafo soube que Andrieux<br />
trabalhara com Cunningham<br />
e ficou interessado.<br />
“Merce Cunningham foi muito importante<br />
para mim como bailarino.<br />
Descobri-o quando tinha 18 anos e aos<br />
18 tudo parece fundamental”, diz o<br />
coreógrafo, acrescentando que se<br />
i<strong>de</strong>ntificou com a hiper-tecnicida<strong>de</strong><br />
da sua linguagem. “Quando estamos<br />
no início da carreira, ainda em formação,<br />
a técnica é crucial. Os professores<br />
fazem-nos sentir que não chega ser<br />
bom, é preciso ser o melhor, ser excelente.<br />
E eu i<strong>de</strong>ntifiquei-me logo com<br />
aquele universo. Comecei a estudar<br />
o Merce, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>scobri John Cage,<br />
que se tornou muito importante para<br />
Isto é<br />
Cédric<br />
Andrieux<br />
dançou<br />
no Ballet<br />
da Ópera<br />
<strong>de</strong> Lyon<br />
e na<br />
companhia<br />
<strong>de</strong> Merce<br />
Cunningham<br />
HERMAN SORGELOOS<br />
um d<br />
Véronique<br />
Doisneau<br />
Bailarina do Ballet<br />
da Ópera <strong>de</strong> Paris<br />
Pichet<br />
Klunchun<br />
Bailarino da dança<br />
tradicional khon<br />
tailan<strong>de</strong>sa<br />
Cinco peças biográficas já concluídas, duas em preparação. Ou, se quisermos, sete momentos <strong>de</strong> u<br />
Jérôme Bel regressa a Portugal com o solo “Cédric Andrieux” para nos mostrar que os b<br />
10 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
“Na realida<strong>de</strong> estou<br />
a editar a vida<br />
do Cédric. Não se<br />
trata <strong>de</strong> ficção – não<br />
estamos a inventar<br />
nada – mas estamos<br />
a reorganizar porque<br />
uma vida não cabe<br />
numa hora e meia.<br />
É preciso olhar para<br />
estas peças como<br />
documentários<br />
ao vivo no palco<br />
<strong>de</strong> um teatro”<br />
Jérôme Bel<br />
mim. Percebi que estavam em contacto<br />
com Marcel Duchamp, Robert<br />
Rauschenberg, Bruce Nauman… Cunningham<br />
não abriu a minha cabeça<br />
apenas à dança, mas também à música<br />
e à arte contemporânea.”<br />
Andrieux chegou à companhia <strong>de</strong><br />
Cunnigham em 1999. Tinha 22 anos<br />
(o coreógrafo norte-americano 80) e<br />
mudara-se para Nova Iorque dois anos<br />
antes para viver com Leonardo, uma<br />
das gran<strong>de</strong>s histórias <strong>de</strong> amor da sua<br />
vida, conta-nos no solo. Para se manter<br />
fiel ao projecto <strong>de</strong> fazer carreira<br />
como bailarino, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma formação<br />
em França que começou nos<br />
espectáculos que via com a mãe e passou<br />
<strong>de</strong>pois por Brest e Paris, Andrieux<br />
foi empregado <strong>de</strong> mesa e mo<strong>de</strong>lo numa<br />
escola <strong>de</strong> arte. “Dançar com Merce<br />
e trabalhar neste solo moldaramme<br />
como bailarino, como performer”,<br />
diz ao Ípsilon via “email”. Foi precisamente<br />
via “email” e Skype que construiu<br />
gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> “Cédric Andrieux”,<br />
respon<strong>de</strong>ndo às perguntas<br />
<strong>de</strong> Bel, resistindo às suas sugestões.<br />
“Apesar <strong>de</strong> não termos tido nenhuma<br />
ligação especial <strong>de</strong> início, fiquei<br />
fascinado com a forma como o Jérôme<br />
falava <strong>de</strong> ‘The Show Must Go On’<br />
a 30 bailarinos. Mas, no princípio,<br />
fazer o solo foi duro porque com ele<br />
é só trabalho – Jérôme não está ali para<br />
fazer amigos, para ser simpático<br />
ou para interpretar um papel qualquer.<br />
Está ali para criar uma peça e é<br />
essa atitu<strong>de</strong>, acho, que torna o seu<br />
trabalho tão preciso e <strong>de</strong>licado.”<br />
Trocaram “emails” e conversaram<br />
durante dois anos, sem que Bel tivesse<br />
prometido que tudo aquilo daria<br />
um solo. “Nunca começo este tipo <strong>de</strong><br />
colaboração prometendo uma ‘performance’”,<br />
garante o coreógrafo.<br />
“Há muito trabalho antes disso. Fazemos<br />
pesquisa, conversamos… Sinto<br />
que a peça tem <strong>de</strong> acontecer na minha<br />
cabeça antes <strong>de</strong> ser proposta a outra<br />
pessoa. Faço-a para mim mesmo. É<br />
como se eu estivesse a fazer autoprodução.”<br />
Andrieux foi pondo a sua vida por<br />
escrito e Bel foi lendo. Depois fazia<br />
perguntas, dizia “quero isto” ou “corta<br />
aqui que é muito chato”. Tal como<br />
os outros momentos da série, “Cédric<br />
Andrieux” é, mais do que uma biografia,<br />
“a performance <strong>de</strong> uma biografia<br />
e, por isso, tem <strong>de</strong> ser interessante<br />
para o público”. “Na realida<strong>de</strong><br />
estou a editar a vida <strong>de</strong>le. Não se trata<br />
<strong>de</strong> ficção – não estamos a inventar<br />
nada –, mas estamos a reorganizar<br />
porque uma vida não cabe numa hora<br />
e meia. É preciso olhar para estas<br />
peças como documentários ao vivo<br />
no palco <strong>de</strong> um teatro.”<br />
Tudo é encenado<br />
Todos os bailarinos <strong>de</strong>ste conjunto <strong>de</strong><br />
trabalhos participaram em projectos<br />
artísticos que interessam a Bel, que<br />
diz, por isso, estar fora <strong>de</strong> questão fazer<br />
algo semelhante com intérpretes<br />
que tenham trabalhado com criadores<br />
como Jiri Kylián ou Akram Khan. As<br />
linguagens e técnicas em que se movem<br />
são diferentes, mas Klunchun,<br />
Doisneau, Torres, Förster e Andrieux<br />
têm em comum o facto <strong>de</strong> serem experientes<br />
e <strong>de</strong> terem uma história para<br />
contar que nos permite ficar a saber<br />
mais sobre a dança em geral e a vida<br />
<strong>de</strong> um bailarino em particular.<br />
“Este solo é verda<strong>de</strong>iramente autobiográfico”,<br />
diz Andrieux. “Mas isso<br />
não quer dizer que tudo esteja a ser<br />
dito. O objectivo da peça não é<br />
que as pessoas fiquem a conhecer-me,<br />
mas que fiquem<br />
a saber o que aconteceu na<br />
minha carreira. Sejam coisas comuns<br />
à maioria das pessoas, como referências<br />
da cultura popular, sejam experiências<br />
mais específicas, como o que<br />
é isto <strong>de</strong> dançar para Merce Cunningham.”<br />
Durante a peça, Andrieux executa<br />
excertos <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> Cunningham,<br />
Trisha Brown, Philippe Tréhet e do<br />
próprio Jérôme Bel. Tudo está escrito<br />
e tudo é encenado, apesar da aparente<br />
informalida<strong>de</strong>. Não há espaço para<br />
a improvisação, o que <strong>de</strong>ixa o bailarino<br />
bastante confortável. Falar, admite,<br />
já é suficientemente difícil.<br />
“Assim que subo ao palco sinto-me<br />
exposto”, explica Andrieux. “Mas neste<br />
caso sinto-o ainda mais por causa<br />
da voz. Ela diz mais sobre mim do que<br />
aquilo que estou habituado a dizer.<br />
Para um bailarino é mais difícil escon<strong>de</strong>r-se<br />
atrás da voz do que do corpo.”<br />
A voz do Cédric é fraca como instrumento<br />
teatral, mas é por não ser<br />
treinada que Bel a quer. “Cédric fala<br />
como toda a gente. Se ele soubesse<br />
falar em palco não me interessaria”,<br />
acrescenta o coreógrafo, que vê este<br />
conjunto <strong>de</strong> trabalhos biográficos como<br />
uma peça complexa que levou<br />
anos a construir e que <strong>de</strong>verá terminar,<br />
<strong>de</strong>pois da bailarina <strong>de</strong> bharata<br />
nattyam, com um solo <strong>de</strong> Frédéric<br />
Seguette, um dos intérpretes mais<br />
importantes do seu trabalho nos últimos<br />
15 anos.<br />
Seguette já começou a trabalhar<br />
nele e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler as páginas <strong>de</strong><br />
texto que escreveu, Jérôme Bel está<br />
assustado. O “seu” bailarino foi duro<br />
– o que o coreógrafo já esperava – e<br />
fê-lo perceber que, apesar <strong>de</strong> estar<br />
em todas estas peças <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “Véronique<br />
Doisneau”, este último acto é o<br />
mais arriscado. “Ele vai expor-me como<br />
o Cédric expõe o Merce e o critica…<br />
Vai ser difícil, mas não sei <strong>de</strong> que<br />
outra forma po<strong>de</strong>ria acabar esta série.<br />
Sei que o meu trabalho é muito violento<br />
e que não tenho limites. Quando<br />
estou a trabalhar não socializo, não<br />
me preocupo com a relação que estou<br />
a estabelecer com a outra pessoa. Sou<br />
um verda<strong>de</strong>iro fascista. Não estou<br />
preocupado em ser simpático. Estoume<br />
nas tintas para a maneira como<br />
me vêem. O que quero é fazer peças<br />
extraordinárias, que tragam experiências<br />
novas. O<strong>de</strong>io a superficialida<strong>de</strong>.”<br />
SÃO<br />
LUIZ<br />
ABR~11<br />
silva!<strong>de</strong>signers<br />
documentário<br />
Lutz<br />
Förster<br />
Bailarino<br />
da companhia<br />
<strong>de</strong> Pina Bausch<br />
ANNA VAN KOOIJ<br />
ORGANIZAÇÃO SLTM/ APOIO INSTITUCIONAL<br />
APOIO<br />
1, 2 E 3 ABR<br />
9.ª FESTA<br />
DO JAZZ<br />
DO SÃO LUIZ<br />
a festa do jazz português<br />
SEXTA, SÁBADO E DOMINGO<br />
SALA PRINCIPAL<br />
JARDIM DE INVERNO<br />
TEATRO-ESTÚDIO MÁRIO VIEGAS<br />
SPOT SÃO LUIZ<br />
DIRECÇÃO ARTÍSTICA<br />
CARLOS MARTINS<br />
PRODUÇÃO EXECUTIVA<br />
LUÍS HILÁRIO<br />
M/3<br />
uma mesma obra, difícil, reveladora. O coreógrafo francês<br />
s bailarinos têm muito a dizer. Lucinda Canelas<br />
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />
RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />
GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT; TEL: 213 257 640<br />
BILHETES À VENDA EM WWW.TEATROSAOLUIZ.PT,<br />
WWW.BILHETEIRAONLINE.PT E ADERENTES<br />
BILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00<br />
TEL: 213 257 650 / BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />
www.teatrosaoluiz.pt<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 11
Cédric<br />
Andrieux<br />
HERMAN SORGELOOS<br />
Quando fez “Véronique Doisneau”,<br />
Jérôme Bel não tinha em mente<br />
montar uma série <strong>de</strong> peças biográficas.<br />
Diz que estes projectos lhe “caíram<br />
em cima”, como aliás é habitual.<br />
“Sou muito preguiçoso. Detesto trabalhar.<br />
Só o faço porque é preciso.<br />
Prefiro ver o meu filho brincar, ler um<br />
livro, ir aos espectáculos dos outros<br />
ou simplesmente não fazer nada.”<br />
Isto é o que <strong>de</strong>veria constar <strong>de</strong> uma<br />
peça autobiográfica sua, diz, rindose.<br />
Os franceses Jérôme Bel e Xavier<br />
Le Roy são apenas dois dos criadores<br />
da área da dança que têm <strong>de</strong>dicado<br />
parte do seu trabalho a registos autobiográficos,<br />
ainda que <strong>de</strong> formas<br />
bem diferentes, lembra Maria José<br />
Fazenda, antropóloga e professora<br />
<strong>de</strong> História da Dança. “Estes criadores<br />
questionam a própria dança<br />
constantemente, e fazem-no a partir<br />
do ponto em que estão, da sua própria<br />
experiência”, diz Fazenda.<br />
“Este solo<br />
é verda<strong>de</strong>iramente<br />
autobiográfico.<br />
Mas isso não quer<br />
dizer que tudo esteja<br />
a ser dito”<br />
Cédric Andrieux<br />
“Neste caso, como no dos portugueses<br />
Cláudia Dias e Miguel Pereira,<br />
por exemplo, a autobiografia surge<br />
porque o coreógrafo está muito preocupado<br />
com o processo <strong>de</strong> construção,<br />
com o que está por <strong>de</strong>ntro<br />
da dança.”<br />
Para Mark Deputter, director artístico<br />
do Teatro Maria Matos, que<br />
acompanha há anos o percurso <strong>de</strong><br />
Bel, não há uma tendência natural<br />
da dança para a autobiografia, embora<br />
a incorporação <strong>de</strong> dados <strong>de</strong><br />
memórias privadas aconteça <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o início do século XX, com a Ausdruckstanz<br />
alemã. “Em rigor, penso que<br />
existem muito poucas peças <strong>de</strong> dança<br />
(auto)biográficas. O que não é<br />
espantoso, dadas as limitações que<br />
a dança tem para contar uma história.”<br />
À semelhança <strong>de</strong> Maria José Fazenda,<br />
Deputter, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que esta<br />
série do coreógrafo francês po<strong>de</strong>ria<br />
ser classificada como teatro sem qualquer<br />
problema, vê aqui a autobiografia<br />
como “instrumento <strong>de</strong> análise da<br />
própria dança e das suas condições<br />
<strong>de</strong> existência como forma <strong>de</strong> arte”.<br />
Um instrumento que se tornou uma<br />
fórmula. “[Este mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> construção]<br />
é uma armadilha. Mas uma armadilha<br />
<strong>de</strong> que eu gosto”, admite Bel,<br />
um criador que trabalha nos limites<br />
da dança e não está preocupado com<br />
os rótulos que lhe colam. “É uma fórmula<br />
que resulta para mim porque se<br />
trata da mesma peça <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004. Tenho<br />
a forma e mudo o conteúdo [o<br />
bailarino] – porquê mudar tudo ao<br />
mesmo tempo?”<br />
O que lhe interessa, diz ele, não é<br />
a novida<strong>de</strong>, mas o gesto emancipador<br />
que permite a estes intérpretes, habitualmente<br />
em silêncio, falarem durante<br />
mais <strong>de</strong> uma hora e sempre na<br />
primeira pessoa.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos na pág.<br />
37<br />
SUSANA POMBA<br />
“Susana Pomba” começa<br />
com uma música tocada<br />
ao vivo pelos PAUS<br />
A tua vida dava<br />
uma peça <strong>de</strong> teatro?<br />
A partir <strong>de</strong> terça-feira, na Sala <strong>de</strong> Ensaio do Centro Cultural<br />
<strong>de</strong> Belém, o encenador André e. Teodósio também<br />
faz biografias, mas dos amigos. “Susana Pomba” é a primeira<br />
<strong>de</strong> um ciclo <strong>de</strong> peças em que não se sabe muito bem on<strong>de</strong><br />
acaba a vida e começa o teatro. Cláudia Carvalho<br />
A tua eu não sei, mas a vida dos<br />
amigos do autor e encenador<br />
André e. Teodósio dá não uma,<br />
mas várias peças <strong>de</strong> teatro.<br />
Pelo menos este é o seu ponto<br />
<strong>de</strong> partida: registar para a<br />
posterida<strong>de</strong> o nome dos seus<br />
amigos. É quase só mesmo o<br />
nome que fica guardado, porque<br />
distinguir on<strong>de</strong> começa a<br />
realida<strong>de</strong> e on<strong>de</strong> acaba a ficção<br />
nestas peças não será uma<br />
tarefa fácil. Mas às vezes a vida<br />
também é assim, confusa.<br />
“Eu não quero usar as<br />
biografias dos meus amigos<br />
para fazer uma peça <strong>de</strong> teatro.<br />
Não tenho a ousadia <strong>de</strong> expor<br />
a vida <strong>de</strong> alguém <strong>de</strong> quem eu<br />
gosto e conheço tão bem”, diz<br />
André e. Teodósio, explicando<br />
que aquilo que vai apresentar<br />
a partir <strong>de</strong> terça-feira no Centro<br />
Cultural <strong>de</strong> Belém, com “Top<br />
Mo<strong>de</strong>ls: Susana Pomba”, a<br />
primeira <strong>de</strong> um ciclo <strong>de</strong> peças,<br />
é apenas a forma como vê e<br />
enten<strong>de</strong> essas pessoas. Mas<br />
afinal é ou não a vida <strong>de</strong>las<br />
que vemos ser representada?<br />
“O que eu tento fazer com este<br />
trabalho é perceber o que é<br />
que estas pessoas <strong>de</strong>spertam<br />
em mim, o que me faz gostar<br />
<strong>de</strong>las e admirá-las. São quase<br />
biografias que eu faço a partir<br />
dos momentos que tenho com<br />
esses amigos.” Uma ida a um<br />
concerto ou a uma galeria, um<br />
jantar em casa e até o mais<br />
banal café po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>spertar<br />
este interesse em Teodósio.<br />
“É engraçado, um dia <strong>de</strong>i por<br />
mim a escrever coisas sobre os<br />
meus amigos. Não sei porque<br />
o fazia, mas a verda<strong>de</strong> é que<br />
fazia. Inconscientemente ia<br />
escrevendo certas coisas que<br />
tinham acontecido no tal dia,<br />
ou que um amigo me tinha<br />
dito e eu achei piada”, revela<br />
o encenador, para quem fazer<br />
estes trabalhos se tornou uma<br />
evolução natural. Não se trata<br />
<strong>de</strong> ver a vida das pessoas<br />
registada no teatro, o objectivo<br />
é exactamente o contrário:<br />
transformar as pequenas coisas<br />
que caracterizam essas pessoas<br />
(o trabalho, a forma <strong>de</strong> falar<br />
e lidar com os outros ou até<br />
mesmo os gostos específicos<br />
<strong>de</strong>las) e fazer <strong>de</strong>las um<br />
espectáculo.<br />
“Comecei por escrever<br />
espectáculos sempre sobre mim<br />
e a minha apreensão do mundo,<br />
e a partir <strong>de</strong> um certo momento<br />
as pessoas começaram a dizer<br />
que eu me centrava <strong>de</strong>masiado<br />
na minha pessoa. Então tentei<br />
mudar isso”, conta Teodósio,<br />
acrescentando que, antes <strong>de</strong><br />
pegar na vida dos amigos, teve<br />
<strong>de</strong> se distanciar do seu próprio<br />
trabalho. Parece confuso, mas<br />
Teodósio explica: “Sempre<br />
tive imensas questões, a partir<br />
daquilo que via e lia, e sempre<br />
tentei passar isso para o teatro.<br />
Quando as críticas surgiram,<br />
tive esta i<strong>de</strong>ia, só que para<br />
seguir em frente tinha que<br />
me matar teatralmente. Criei<br />
algumas peças em que começo<br />
a mostrar isso mesmo e acabo<br />
por morrer numa ópera que<br />
fiz no São Carlos.” Um gesto<br />
meramente simbólico, mas que<br />
libertou Teodósio para fase<br />
seguinte: tornar os amigos<br />
protagonistas das histórias que<br />
ficaram por contar. “Susana<br />
Pomba” é símbolo disso, um<br />
misto <strong>de</strong> drama com comédia,<br />
em que Teodósio mistura<br />
música ao vivo (dos PAUS),<br />
com versos, com trocadilhos. “É<br />
tudo muito esquisito, mas quem<br />
conhecer a Susana percebe<br />
que tem a ver com ela e com o<br />
corpo <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>la”, conta,<br />
apontando o alcance do trabalho<br />
<strong>de</strong> Susana Pomba. “O que ela faz<br />
sem ninguém ver é maravilhoso.<br />
Já quase toda a gente esteve em<br />
contacto com um flyer, um jornal<br />
[é colaboradora do PÚBLICO] ou<br />
uma fotografia, tudo coisas que<br />
passam pelas suas mãos, sem<br />
perceberem o mito que está por<br />
trás. Isso fascina-me.”<br />
Talvez por isso, nesta peça<br />
a inspiração maior tenha<br />
sido a inauguração da última<br />
exposição comissariada por<br />
Susana Pomba no Lux, em<br />
<strong>Lisboa</strong>. Quem lá esteve vai<br />
perceber assim que vir a<br />
primeira cena da peça, em que<br />
“Um dia <strong>de</strong>i por mim<br />
a escrever coisas<br />
sobre os meus amigos.<br />
Não sei porque<br />
o fazia, mas a<br />
verda<strong>de</strong> é que fazia.<br />
Inconscientemente<br />
ia escrevendo”<br />
André e. Teodósio<br />
RUI GAUDÊNCIO<br />
André e.<br />
Teodósio vai<br />
continuar a<br />
biografar os<br />
amigos no<br />
teatro<br />
os PAUS tocam uma música.<br />
Não foi assim que se inaugurou<br />
a exposição? Pois, e eis que a<br />
realida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>svenda no meio<br />
<strong>de</strong> tanta imaginação <strong>de</strong> André e.<br />
Teodósio.<br />
“Esta peça saiu assim, mas<br />
as próximas já vão ser coisas<br />
completamente diferentes, tudo<br />
varia <strong>de</strong> pessoa para pessoa”,<br />
diz o encenador, contando que<br />
as próximas duas peças já têm<br />
protagonista. “A segunda será<br />
sobre a Paula Sá Nogueira e a<br />
terceira, possivelmente sobre o<br />
Manuel Reis.” Para Teodósio<br />
os requisitos são simples:<br />
“Têm que ser meus amigos.<br />
Não sei dizer como se<br />
escolhem as pessoas. Se<br />
a Susana me lembra um<br />
<strong>de</strong>terminado acontecimento,<br />
a Paula lembra-me outra<br />
coisa completamente<br />
diferente. Não<br />
sei explicar<br />
isso, como não<br />
sei sequer<br />
explicar<br />
como nos<br />
conhecemos.<br />
Foram<br />
sempre<br />
amiza<strong>de</strong>s<br />
aci<strong>de</strong>ntais”,<br />
conclui.<br />
Ver agenda<br />
<strong>de</strong> espectáculos<br />
na pág. 37<br />
12 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
O palco não era bem palco porque<br />
não existia qualquer obstáculo físico<br />
a separar o público da banda. O palco,<br />
<strong>de</strong> resto, não era necessário. A maioria<br />
dos que assistiam estava sentada<br />
no chão, quieta e atenta. No palco que<br />
não era bem palco, estavam dois músicos.<br />
Um <strong>de</strong>les cuspia palavras com<br />
as mãos nas teclas, largava as teclas e<br />
aproximava-se do povo sentado. O<br />
corpo contorcia-se enquanto as palavras<br />
se libertavam num cantar visceral,<br />
irreprimível. O corpo que cantava<br />
não era intérprete <strong>de</strong> coisa nenhuma,<br />
não se movia e não cantava assim para<br />
o público que o via e ouvia. Fazia-o<br />
para si, fazia-o porque não precisa <strong>de</strong><br />
alternativa ao “ter que fazer”.<br />
Quem cantava era Pedro Magina.<br />
Que tanto foi aquela urgência irreprimível<br />
quanto uma visão pop, tão estranha<br />
quanto reconfortante, em que<br />
se misturam e confun<strong>de</strong>m a guitarra<br />
acústica <strong>de</strong> uma intensa <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za,<br />
uma electrónica in<strong>de</strong>finida (tecno sonâmbulo?;<br />
memórias 80s <strong>de</strong>vassadas?;<br />
um ser anti-Eno preso num loop?)<br />
e teclados <strong>de</strong> sintética majestosida<strong>de</strong>.<br />
Ali, no sótão do Kolovrat 79,<br />
atelier da estilista Lidija Kolovrat, em<br />
<strong>Lisboa</strong>, os !Calhau!, que acabavam <strong>de</strong><br />
lançar o seu primeiro LP, “Quadrologia<br />
Pentacónica”, já tinham actuado.<br />
Depois <strong>de</strong>les, os Aquaparque <strong>de</strong> Pedro<br />
Magina e André Abel apresentavam<br />
o seu novo álbum, o segundo.<br />
“Pensamos a música<br />
<strong>de</strong> forma egoísta.<br />
É um processo nosso.<br />
E nasce <strong>de</strong> uma<br />
necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> nos estimularmos.<br />
Aborrecemo-nos<br />
facilmente”<br />
Pedro Magina<br />
Chama-se “Pintura Mo<strong>de</strong>rna” e o título<br />
assenta-lhe bem. Ouvimo-lo e<br />
sentimos esse <strong>de</strong>smoronar <strong>de</strong> certezas<br />
que o mo<strong>de</strong>rno implica. Ouvimolo,<br />
nessa in<strong>de</strong>finição/cruzamento <strong>de</strong><br />
estéticas e <strong>de</strong> memórias, ouvimos<br />
aquelas letras, da autoria <strong>de</strong> André<br />
Abel, que fluem em narrativa surpreen<strong>de</strong>nte<br />
sem cair no jogo semântico<br />
gratuito, ouvimos esta música <strong>de</strong><br />
“Pintura Mo<strong>de</strong>rna”, dizíamos, e é um<br />
sobressalto. “Não acho que o título<br />
[‘Pintura Mo<strong>de</strong>rna’] feche, que signifique<br />
‘é isto’. O título abre [várias possibilida<strong>de</strong>s].<br />
Não há nele qualquer<br />
caução conceptual. Sugeri-o porque<br />
senti que era o título i<strong>de</strong>al. Nem argumentei.”<br />
André Abel, que formou os<br />
Há um mundo novo a <strong>de</strong>scobrir nos<br />
Aquaparque<br />
Os Aquaparque <strong>de</strong> André Bel e Pedro Magina não são comparáveis a nada do que tenhamos ouvido ou que e<br />
imediata, na boa tradição pop, e só os cantaremos quando apren<strong>de</strong>rmos a ouvi-los. “Pintura Mo<strong>de</strong>rna”, o s<br />
14 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
Aquaparque com Pedro Magina em<br />
2007 (editaram o álbum <strong>de</strong> estreia,<br />
“É Isso Aí!”, dois anos <strong>de</strong>pois), põe a<br />
tónica no sítio certo.<br />
Os Aquaparque não fecham, não<br />
<strong>de</strong>finem uma nova estética. Abrem<br />
possibilida<strong>de</strong>s. Novas e estimulantes<br />
possibilida<strong>de</strong>s pop – po<strong>de</strong>ríamos dizer<br />
que, apesar da estranheza que<br />
suscitam, são música imediata, na boa<br />
tradição pop, e só os cantaremos<br />
quando apren<strong>de</strong>rmos a ouvi-los. Porque<br />
os Aquaparque são “filhos” do<br />
entusiasmo criativo espoletado há<br />
alguns anos por bandas como os Loosers,<br />
Fish & Sheep ou Frango, uma<br />
galeria como a ZDB, ou um festival<br />
como o agora consolidado Out.Fest,<br />
André Abel e Pedro Magina<br />
têm outras vidas além dos<br />
Aquaparque: Abel nos Tropa<br />
Macaca, Magina sozinho<br />
(editou há um ano o álbum<br />
“Nazca Lines”)<br />
ENRIC VIVES-RUBIO<br />
mas não emanam <strong>de</strong> uma cena e não<br />
são comparáveis ao que quer que seja<br />
que tenhamos ouvido ou estejamos<br />
a ouvir. E não vale, dizem, englobá-los<br />
na nova música portuguesa, na nova<br />
vaga que canta em português, que<br />
explora e trabalha sobre aquilo que<br />
nos é peculiar. “Por muito que tente,<br />
não consigo ver a música como sendo<br />
portuguesa ou estrangeira. Actualmente,<br />
não faz sentido. Música portuguesa<br />
é o fado, são músicas <strong>de</strong> cariz<br />
regional que têm uma cultura envolvida,<br />
muito vincada relativamente a<br />
uma terra e a uma região”, aponta<br />
Pedro Magina. Até po<strong>de</strong>mos ser assaltados,<br />
ao ouvi-lo, por reminiscências<br />
<strong>de</strong> António Variações, dos Ocaso Épico,<br />
do glamour reinventado do “Sonho<br />
azul” <strong>de</strong> Né La<strong>de</strong>iras, mas são<br />
isso mesmo, reminiscências, farrapos<br />
<strong>de</strong> uma memória comum que se materializa<br />
– <strong>de</strong> resto, também passa por<br />
ali romantismo soft-rock resgatado<br />
aos anos 70, a transversalida<strong>de</strong> dos<br />
Gang Gang Dance, resquícios dub e<br />
techno, planagens cósmicas dos alemães<br />
<strong>de</strong> outrora, <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transcendência<br />
que reconhecemos em Panda<br />
Bear. Isto para dizer que percebemos<br />
perfeitamente o que diz e porque o<br />
diz Magina.<br />
Do egoísmo como ética<br />
Os Aquaparque nascem <strong>de</strong> um espaço<br />
criativo íntimo, o espaço partilhado<br />
por Abel e Magina, amigos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
infância, músicos em bandas perdidas<br />
na memória <strong>de</strong> Santo Tirso, on<strong>de</strong> se<br />
conheceram, músicos <strong>de</strong>pois nos<br />
Dance Damage, que apanharam a revitalização<br />
pós-punk <strong>de</strong> início da década<br />
passada, antes <strong>de</strong> perceberem<br />
que prosseguir esse caminho era um<br />
beco sem saída e reformularem tudo.<br />
Ao segundo álbum dos Aquaparque,<br />
nem sabem bem como se <strong>de</strong>finir.<br />
No concerto <strong>de</strong> apresentação,o público<br />
manteve-se sereno e sentado,<br />
mesmo quando a música revelava<br />
uma força vital que o impeliria a erguer-se<br />
e a dançar. André Abel: “Não<br />
sabemos o que as pessoas que estão<br />
interessadas e que seguem o que fazemos<br />
acham ser o melhor ‘setting’<br />
para nós. Se era aquele sótão, se será<br />
um clube. Isso será <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong><br />
uma certa ambiguida<strong>de</strong> estética da<br />
música. Como é que é que tem <strong>de</strong> ser<br />
um concerto?”. Não chega a respon<strong>de</strong>r:<br />
“Em nem sei se somos mesmo<br />
uma banda. Se calhar estamos mais<br />
próximos <strong>de</strong> um duo sertanejo, como<br />
Lucas & Mateus, ou um duo tecno,<br />
como Burger & Voight”.<br />
André Abel, naquela sexta-feira em<br />
que os Aquaparque apresentaram<br />
“Pintura Mo<strong>de</strong>rna” no sótão <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira<br />
<strong>de</strong>sse espaço Kolovrat com pequena<br />
janela aberta sobre a cida<strong>de</strong>,<br />
lá ao fundo, e móveis antigos espalhados<br />
aqui e ali, era o músico à esquerda<br />
do palco. Ao contrário <strong>de</strong> Magina,<br />
manteve uma pose imperturbável.<br />
Dedilhando a guitarra, acertando as<br />
programações, tocando as teclas, cantando<br />
como um anti-Brian Ferry – nada<br />
<strong>de</strong> glamour aristocrata, todo o<br />
charme <strong>de</strong> uma serena discrição.<br />
Alguns dias <strong>de</strong>pois dos concertos<br />
(a seguir a <strong>Lisboa</strong>, actuaram no Porto,<br />
no Clubbing da Casa da Música), sentado<br />
com Magina numa esplanada,<br />
André Abel exclamará isto quando<br />
falamos do que era “É Isso Aí”, o primeiro<br />
álbum, e do que é agora “Pintura<br />
Mo<strong>de</strong>rna”: “É um bocado <strong>de</strong>sinteressante<br />
explicar o porquê. Não<br />
trabalhamos com signos e símbolos<br />
<strong>de</strong> uma forma tão <strong>de</strong>finida. Entre intenção<br />
e necessida<strong>de</strong>, escolhemos a<br />
necessida<strong>de</strong>.”<br />
É um pormenor importante. Quando<br />
editaram “É Isso Aí”, afirmaram<br />
que era “só o primeiro álbum”: “É um<br />
caminho.” Agora, continuam. Caminham<br />
caminhando. Exploram por<br />
temperamento e por necessida<strong>de</strong> –<br />
não só nos Aquaparque, assinale-se:<br />
André Abel tem também os Tropa<br />
Macaca, que partilha com Joana da<br />
Conceição, autora da arte gráfica dos<br />
Aquaparque, e Magina editou no ano<br />
passado o álbum a solo “Nazca Lines”.<br />
Exploram, portanto.<br />
Em “Pintura Mo<strong>de</strong>rna”, a guitarra<br />
acústica surgiu para transformar o<br />
tom e o temperamento da música.<br />
Surgiu porque André Abel queria,<br />
primeiro, “quebrar o mol<strong>de</strong> formulaico<br />
que o processo [criativo nos<br />
Aquaparque] estava a tomar”. Para o<br />
conseguir, pensou comprar um MPC<br />
[instrumento electrónico que processa<br />
samples], “mas não tinha dinheiro<br />
para isso”. Então, “bateu-lhe” a guitarra,<br />
Magina ouviu aquele instrumento<br />
“estranho” à banda e respon<strong>de</strong>u<br />
ao estímulo. “Pensamos a música<br />
<strong>de</strong> forma egoísta”, resume Pedro Magina.<br />
“É um processo nosso, e nasce<br />
<strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos estimularmos.<br />
Aborrecemo-nos facilmente”,<br />
confessa.<br />
Quando editaram o primeiro álbum,<br />
André já <strong>de</strong>scera <strong>de</strong> Santo Tirso<br />
até <strong>Lisboa</strong>, Pedro Magina mantinha-se<br />
a Norte. Neste momento, vivem ambos<br />
na capital. Ainda assim, “Pintura<br />
Mo<strong>de</strong>rna” foi gravado no ambiente<br />
bucólico com urbanismo próximo <strong>de</strong><br />
uma casa em Rebordões, aquela que<br />
o duo utiliza há anos para ensaios. A<br />
música, e isto somos nós a extrapolar,<br />
parece reflectir também essa in<strong>de</strong>finição:<br />
a gentileza <strong>de</strong> alguns arranjos<br />
e da guitarra acústica, contraposta ao<br />
tom mais nocturno e inquieto das<br />
programações. É, <strong>de</strong> certa forma, o<br />
mesmo que sentimos ao atravessar as<br />
letras <strong>de</strong> André Abel, que reflectem<br />
um certo “mal <strong>de</strong> viver”, um <strong>de</strong>sejo<br />
<strong>de</strong> algo que agite, que <strong>de</strong>sperte, que<br />
nos obrigue a sentirmo-nos vivos – e<br />
isso é cantado por gente que agita,<br />
que <strong>de</strong>sperta, que está certamente<br />
muito viva em toda a activida<strong>de</strong> que<br />
<strong>de</strong>senvolve.<br />
Talvez o segredo esteja então nisto<br />
que cantam em “Ultra suave”: “seguimos<br />
convictos <strong>de</strong> que nada <strong>de</strong>ste tempo<br />
nos agrada”. Se não nos <strong>de</strong>r para<br />
mergulhar na <strong>de</strong>pressão, torna-se<br />
mais fácil agir, agitar, sentirmo-nos<br />
vivos quando carregamos essa convicção.<br />
É o que nos diz e o que ouvimos<br />
nesta magnífica e surpreen<strong>de</strong>nte “Pintura<br />
Mo<strong>de</strong>rna” dos Aquaparque.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> discos pág. 40. e segs.<br />
PARCERIA APOIOS<br />
SÃO<br />
LUIZ<br />
FEV/MAR ~11<br />
27 Mar – a partir das 15h<br />
Tar<strong>de</strong> Mundial do Teatro<br />
Os públicos <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> e do Porto<br />
encontram-se no São Luiz<br />
numa festa performativa<br />
cheia <strong>de</strong> surpresas<br />
silva!<strong>de</strong>signers<br />
e estejamos a ouvir. Apesar da estranheza que suscitam, são música<br />
o seu magnífico segundo álbum, acaba <strong>de</strong> ser editado. Mário lopes<br />
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />
RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />
GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT; TEL: 213 257 640<br />
BILHETES À VENDA EM<br />
WWW.TEATROSAOLUIZ.PT,<br />
WWW.BILHETEIRAONLINE.PT E ADERENTES<br />
BILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00<br />
TEL: 213 257 650 / BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 15
Canções políticas com o mundo lá<br />
<strong>de</strong>ntro<br />
Música politizada que tanto po<strong>de</strong> expor melancolia folk como celebração afro:<br />
é assim o universo da cantora argelina Souad Massi, que actua segunda-feira<br />
na Fundação Calouste Gulbenkian, em <strong>Lisboa</strong>. Vítor Belanciano<br />
Souad Massi cresceu a ouvir o pai,<br />
operário, a cantarolar canções árabes<br />
tradicionais enquanto a mãe ouvia<br />
pela rádio James Brown e outros ícones<br />
da música americana. A sua música<br />
acaba por reflectir essa <strong>de</strong>scendência,<br />
respirando o ambiente da<br />
tradição musical magrebina misturado<br />
com a folk, o rock ou o funk. Vive<br />
há 11 anos em Paris, para on<strong>de</strong> foi <strong>de</strong>siludida<br />
com o clima político do país<br />
natal, mas visita regularmente a Argélia,<br />
on<strong>de</strong> continua a habitar parte<br />
da sua família. Canta em árabe, às vezes<br />
em francês ou em inglês, e o seu<br />
primeiro álbum, “Raoui” (2001), ren<strong>de</strong>u-lhe<br />
a implementação <strong>de</strong> uma carreira<br />
solitária como cantora, compositora<br />
e guitarrista, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido<br />
vocalista durante meia dúzia <strong>de</strong> anos<br />
<strong>de</strong> um grupo rock, os Atakor.<br />
Quatro álbuns <strong>de</strong>pois (o último, “Ô<br />
Houria”, é do ano passado) tem uma<br />
carreira estabelecida no circuito das<br />
“músicas do mundo”, apostando em<br />
canções em que a dimensão política<br />
está sempre presente. Fomos encontrá-la,<br />
no passado 8 <strong>de</strong> Março, numa<br />
vila dos subúrbios <strong>de</strong> Paris, Poissy,<br />
on<strong>de</strong> actuou, acompanhada pelos músicos<br />
Jean-François Kellner (guitarra).<br />
David Fall (tambores), Rabah Khalfa<br />
(percussões) e Stéphane Castry (baixo),<br />
perante franceses <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong><br />
que viveram com intensida<strong>de</strong> um concerto<br />
entre a melancolia e a celebração.<br />
É com os mesmos músicos que<br />
actua, na próxima segunda-feira, no<br />
gran<strong>de</strong> auditório da Fundação Calouste<br />
Gulbenkian, em <strong>Lisboa</strong>, no ciclo<br />
<strong>de</strong>dicado às Músicas do Mundo.<br />
Nas suas letras há muitas alusões<br />
à luta pelos direitos da mulher.<br />
Hoje é dia da mulher. Como é<br />
que vive este dia?<br />
Quando era jovem era um dia que me<br />
dizia muito, porque sabia que havia<br />
mulheres que se tinham revoltado,<br />
lutando pela implementação dos seus<br />
direitos. Hoje continuam a existir muitas<br />
injustiças em torno das mulheres,<br />
como as diferenças salariais em relação<br />
aos homens, embora me pareça<br />
que a situação mudou para melhor,<br />
principalmente na Europa. Mas ainda<br />
há muito a fazer.<br />
É diferente ser mulher em<br />
França ou na Argélia?<br />
Sim, embora o meu estatuto <strong>de</strong> artista<br />
em França estabeleça <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo<br />
uma diferença. Na Argélia é como se<br />
as mulheres fossem sempre fonte <strong>de</strong><br />
problemas. Aqui, apesar <strong>de</strong> haver muitos<br />
problemas, manifestam-se com<br />
uma intensida<strong>de</strong> muito diversa.<br />
Os acontecimentos recentes no<br />
mundo árabe apanharam-na<br />
<strong>de</strong>sprevenida ou pressentia que<br />
pu<strong>de</strong>ssem vir a suce<strong>de</strong>r?<br />
Foi uma surpresa, não só para mim<br />
como para toda a gente. Claro, po<strong>de</strong>-<br />
16 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
se sempre enquadrar um acontecimento<br />
<strong>de</strong>ste género, mas prevê-lo<br />
<strong>de</strong>sta forma não me parece, <strong>de</strong> todo.<br />
No início, quando a revolução tomou<br />
conta da Tunísia, parecia qualquer<br />
coisa <strong>de</strong> inacreditável. Olhávamos<br />
para as imagens mas era difícil acreditar.<br />
Ainda por cima na Tunísia, um<br />
país turístico. Sim, claro que sabia que<br />
era um país on<strong>de</strong> as pessoas não se<br />
podiam exprimir, mas parecia <strong>de</strong>masiado<br />
improvável.<br />
Na reacção política aos<br />
acontecimentos, pelo menos<br />
numa fase inicial, parece não ter<br />
existido uma mensagem clara<br />
por parte dos países europeus.<br />
Ficou surpreendida?<br />
Infelizmente, não. Parte da responsabilida<strong>de</strong><br />
do que se passa no mundo<br />
árabe é europeia, com o apoio a regimes<br />
duvidosos ou a venda <strong>de</strong> armas.<br />
Há alguma esquizofrenia nisso, porque<br />
ao mesmo tempo são esses países que<br />
ten<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>nunciar as situações <strong>de</strong><br />
conflito. É difícil enten<strong>de</strong>r essa duplicida<strong>de</strong>.<br />
Os cidadãos europeus não <strong>de</strong>viam<br />
pactuar com essa duplicida<strong>de</strong><br />
dos seus representantes políticos. Há<br />
muitos interesses em jogo. Os países<br />
mais importantes da Europa estão instalados<br />
no Magrebe, têm interesses lá,<br />
e há muitos europeus a viverem nesses<br />
países. A política dúplice dos governos<br />
europeus reflecte essa condição.<br />
Diz-se que os acontecimentos<br />
no mundo árabe têm sido<br />
fomentados por novas gerações<br />
que utilizam re<strong>de</strong>s sociais e<br />
ferramentas tecnológicas,<br />
mais difíceis <strong>de</strong> controlar pelos<br />
Governos. Revê-se nessa leitura?<br />
Sim. É uma geração que comunica<br />
pelo Skype, que está atenta ao que se<br />
passa na Internet, que está aberta ao<br />
mundo, à música, à moda, à criativida<strong>de</strong>.<br />
Esse movimento <strong>de</strong> gente consciente<br />
vai transformar o mundo árabe<br />
e, por ricochete, também chegará à<br />
Europa. Em Itália, por exemplo – tenho<br />
família lá –, aquilo que se passa é<br />
muito grave. Na Europa dizemos que<br />
os africanos são uns incultos, mas em<br />
países europeus como a Itália os escândalos<br />
vão-se suce<strong>de</strong>ndo e não<br />
acontece nada. Mas há uma geração<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das forças políticas,<br />
cultivada, consciente, que vai mudar<br />
isso. Aquilo que se passa entre nós,<br />
um certo adormecimento, não po<strong>de</strong><br />
continuar muito mais tempo.<br />
Na Argélia houve sinais <strong>de</strong><br />
agitação, mas foram abafados.<br />
A Argélia é um mundo à parte. Estamos<br />
abertos ao Oci<strong>de</strong>nte, somos africanos,<br />
somos árabes. Existe uma gran<strong>de</strong><br />
mistura <strong>de</strong> pessoas, passámos 12<br />
anos em guerra civil, vivemos num<br />
estado <strong>de</strong> psicose por isso. E as pessoas<br />
gostam muito do Presi<strong>de</strong>nte porque<br />
ele conseguiu trazer ao país alguma<br />
estabilida<strong>de</strong>, embora não gostem das<br />
pessoas que o ro<strong>de</strong>iam. Espero que,<br />
mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>, um movimento<br />
<strong>de</strong> estudantes possa fazer alguma<br />
coisa para melhorar o meu país.<br />
No meio da agitação e da<br />
“Sinto-me em casa,<br />
em França ou na<br />
Argélia. Em França<br />
sou universal: falo<br />
da paz, das mulheres,<br />
do amor. Na Argélia<br />
sou muito bem<br />
recebida também. Sei<br />
que é um cliché, mas<br />
sinto-me universal”<br />
incerteza que o mundo vive<br />
hoje, qual po<strong>de</strong> ser o papel da<br />
música?<br />
A música sensibiliza as pessoas. Uneas.<br />
Acompanha as revoluções. Ao longo<br />
da história, todas as revoluções<br />
tiveram a sua música. Des<strong>de</strong> Bob<br />
Dylan ou Joan Baez, por exemplo. É<br />
esse o po<strong>de</strong>r da música, <strong>de</strong>nunciar e<br />
sensibilizar, principalmente quando<br />
existe uma relação <strong>de</strong> confiança entre<br />
o público e o artista e este tem qualquer<br />
coisa <strong>de</strong> relevante a transmitir.<br />
A sua música reflecte muitas<br />
influências – folk, rock,<br />
afrobeat, morna, misto <strong>de</strong><br />
tradições árabes, africanas<br />
e europeias. Como <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> as<br />
roupagens para as suas canções?<br />
Não é nada <strong>de</strong> calculado. É a intuição.<br />
É a inspiração. Depen<strong>de</strong> do ambiente<br />
que quero atribuir à canção. Depen<strong>de</strong><br />
das palavras. Se a canção for muito<br />
triste talvez o fado surja como inspiração.<br />
Se for qualquer coisa frenética,<br />
talvez o afrofunk. Mas não penso nisso.<br />
Não me imponho restrições. Não<br />
digo para mim própria que não posso<br />
fazer rock. Faço o que me apetece.<br />
Não me imponho limites na música,<br />
tal como acontece quando canto sobre<br />
a guerra, a corrupção, a pobreza,<br />
a material ou moral.<br />
Nos seus espectáculos há<br />
espaço para canções intimistas<br />
e tranquilas, mas também<br />
para momentos <strong>de</strong> agitação<br />
dançante. Em qual dos registos<br />
se sente mais à vonta<strong>de</strong>?<br />
Depen<strong>de</strong> das pessoas que estão a assistir.<br />
A sério. Improviso muito. Percebo<br />
quando as pessoas querem qualquer<br />
coisa <strong>de</strong> mais doce ou quando<br />
estão mais disponíveis para ouvir<br />
mais rock. Gosto <strong>de</strong> misturar coisas<br />
melódicas com canções mais rock e<br />
outras coisas numa linha mais tradicional,<br />
<strong>de</strong> África, do Magrebe; é uma<br />
gran<strong>de</strong> mistura que me faz sentido. É<br />
ao vivo que me sinto verda<strong>de</strong>iramente<br />
livre. Gosto <strong>de</strong> sentir a energia das<br />
pessoas. É muito estimulante.<br />
É curioso, porque numa<br />
entrevista dizia que sentia<br />
sempre muito medo quando<br />
entrava em palco.<br />
É um misto <strong>de</strong> medo e <strong>de</strong> prazer.<br />
Quando se aproxima a hora vou ficando<br />
receosa, mas <strong>de</strong>pois acaba por ser<br />
um prazer.<br />
A sua audiência é<br />
essencialmente europeia, mas<br />
continua a optar por cantar<br />
predominantemente em árabe.<br />
Como é que reagem aqui em<br />
França a essa atitu<strong>de</strong>?<br />
Não gostam muito, mas é a vida. Passam<br />
o tempo a perguntar-me porque<br />
é que não canto em francês. Na tradução<br />
per<strong>de</strong>-se sempre qualquer coisa.<br />
Escrevo naturalmente em arábe.<br />
Quando o faço em francês ou inglês<br />
não me sinto tão à vonta<strong>de</strong>. Tenho<br />
que pedir a alguém que escreva por<br />
mim, o que não é a solução i<strong>de</strong>al. Acaba<br />
por ser engraçado porque as novas<br />
gerações da Argélia também nem<br />
sempre me enten<strong>de</strong>m.<br />
Vive entre França e a Argélia.<br />
Nessa situação po<strong>de</strong> haver<br />
uma fragmentação i<strong>de</strong>ntitária:<br />
olharem para si como argelina<br />
em França, e como francesa na<br />
Argélia. Sente isso?<br />
Não, sinto-me em casa, aqui ou na<br />
Argélia. Aqui sou universal: falo da<br />
paz, das mulheres, do amor, são temas<br />
universais. Quando vou à Argélia<br />
sou muito bem recebida também.<br />
Vêem-me como uma cantora que está<br />
no estrangeiro, mas relacionam-se<br />
com facilida<strong>de</strong> com a minha música.<br />
Sei que é um cliché, mas é assim que<br />
me sinto, universal.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> concertos na pág. 42<br />
e segs.<br />
Souad Massi<br />
saiu da<br />
Argélia para<br />
França<br />
<strong>de</strong>siludida<br />
com o<br />
ambiente<br />
político do seu<br />
país - um<br />
ambiente que,<br />
diz, “mais<br />
cedo ou mais<br />
tar<strong>de</strong>” vai<br />
mudar<br />
Av. Brasília, Doca <strong>de</strong> Alcântara (Norte) | 1350-352 <strong>Lisboa</strong> | Tel.: 213 585 200 | E-mail: info@foriente.pt | www.museudooriente.pt<br />
ESCREVER PAISAGEM<br />
Manuel Baptista | Desenhos<br />
1960-1970<br />
Exposição: <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> Março até 28 <strong>de</strong> Maio<br />
Horário: <strong>de</strong> quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00<br />
fundação carmona e costa<br />
Edifício Soeiro Pereira Gomes (antigo Edifício da Bolsa Nova <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>)<br />
Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºD, 1600-196 <strong>Lisboa</strong><br />
(Bairro do Rego / Bairro Santos)<br />
Tel. 217 803 003 / 4<br />
www.fundacaocarmonaecosta.pt<br />
Metro: Sete Rios / Praça <strong>de</strong> Espanha / Cida<strong>de</strong> Universitária | Autocarro: 31<br />
comissariado: João Pinharanda<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 17
GILDA-MIDANI<br />
Adriana<br />
Calcanhotto<br />
Samba em transe<br />
No seu novo disco, Adriana Calcanhotto entregou-se ao samba como se estivesse possuída por<br />
ele, ou pela alma <strong>de</strong>le. “O micróbio do samba” é um transe mágico. Nuno Pacheco<br />
Um dia, Adriana Calcanhotto sentiu<br />
um impulso irresistível <strong>de</strong> gravar os<br />
sambas que vinha compondo, como<br />
se não pu<strong>de</strong>sse compor ou gravar<br />
mais nada. Gravar para arrumá-los,<br />
tê-los juntos, ver o que valiam. Esse<br />
impulso acabou por <strong>de</strong>saguar num<br />
disco. Depois <strong>de</strong> “Maré” (2008) e <strong>de</strong><br />
“Partimpim 2” (2009), Adriana regressa<br />
com um disco singular, 12 sambas<br />
escritos por ela, gravados em trio<br />
(Domenico Lancellotti nas percussões<br />
e Alberto Continentino no contrabaixo)<br />
e com alguns, poucos, ilustres<br />
convidados: Davi Moraes, Rodrigo<br />
Amarante, Moreno Veloso. “O micróbio<br />
do samba” contagia.<br />
Disse há dias que este disco é<br />
“a fotografia <strong>de</strong> um momento”.<br />
Que momento é esse?<br />
É o momento em que me <strong>de</strong>i conta<br />
<strong>de</strong> ter alguns sambas. Falei com o Domenico<br />
[do trio +2] e disse: vamos<br />
registar esses sambas. Em vez <strong>de</strong> eu<br />
mandar lá para as pessoas da editora<br />
uma pasta com as <strong>de</strong>mos que já tinha<br />
feito quando compus cada samba,<br />
achei mais simpático ter uma gravação<br />
com os sambas todos.<br />
Embora você tenha dito que não<br />
tinha i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer um disco <strong>de</strong><br />
sambas…<br />
É, não tinha essa i<strong>de</strong>ia. Há <strong>de</strong>z anos,<br />
quando a Mariana <strong>de</strong> Moraes disse<br />
que ia fazer um disco <strong>de</strong> samba, ela<br />
pareceu um ET. Ninguém fazia discos<br />
<strong>de</strong> samba naquele momento. E <strong>de</strong><br />
uma hora para a outra começou a<br />
haver muitos discos <strong>de</strong> samba, o que<br />
é muito bom, só que eu não via a menor<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer um. Mas<br />
como tinha alguns sambas meus<br />
achei que <strong>de</strong>via registá-los para organizar<br />
essa parte da obra. Nesse momento,<br />
o tal que está “fotografado”<br />
no disco, tudo o que eu compunha<br />
saía samba. Não que eu sentasse para<br />
escrever sambas, mas saíam assim.<br />
Tanto que a Thaís Gulin, uma jovem<br />
intérprete, me pediu uma canção e<br />
eu disse: ‘Não tenho, só estou fazendo<br />
sambas’. E ela perguntou: ‘Mas<br />
não po<strong>de</strong> tentar?’ E eu tentei, mas<br />
saiu “Eu vivo a sorrir” e <strong>de</strong>pois o<br />
“Mais perfumado”. Mais sambas. Ficaram<br />
para mim [estão no disco].<br />
Vive há muito tempo no Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, mas as suas raízes <strong>de</strong><br />
Rio Gran<strong>de</strong> do Sul continuam<br />
presentes no seu trabalho. Que<br />
parte gaúcha há nestes sambas?<br />
É difícil dizer. Porque eu sou tão gaúcha<br />
que não consigo fazer a distinção.<br />
Sinto a forte influência do Lupicínio<br />
[Rodrigues, 1914-1974], que no Rio<br />
Gran<strong>de</strong> do Sul não é tão consi<strong>de</strong>rado<br />
sambista quanto é no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
é engraçado isso. No Rio, não só ele<br />
é visto como sambista como muita<br />
gente não sabe que ele é gaúcho.<br />
A frase <strong>de</strong> Lupicínio <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
tirou a i<strong>de</strong>ia do título do disco,<br />
“o micróbio do samba”, já a<br />
tinha quando começou a gravar<br />
ou foi um ponto <strong>de</strong> chegada,<br />
sintetizando a i<strong>de</strong>ia do disco?<br />
Acabou por sintetizar e por me ajudar<br />
a lançar o disco. Quando me <strong>de</strong>parei<br />
com esse <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Lupicínio,<br />
ficou irresistível para mim. Vi que re-<br />
Adriana<br />
Calcanhotto<br />
na sessão <strong>de</strong><br />
fotografias<br />
para<br />
promoção do<br />
disco. À<br />
esquerda,<br />
Davi Moraes<br />
(guitarra) e à<br />
direita, em pé,<br />
Domenico<br />
Lancellotti<br />
(percussão) e<br />
Alberto<br />
Continentino<br />
(contrabaixo)<br />
18 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
produz a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que tudo o que faço<br />
vem do samba: a minha música, o<br />
meu entendimento do ambiente sonoro<br />
do mundo, dos ruídos, enfim.<br />
Muito mais do que preten<strong>de</strong>r ser sambista,<br />
tenho esse micróbio. I<strong>de</strong>ntifiquei-me<br />
muito com essa frase.<br />
Houve um dia, num repente, em<br />
que você <strong>de</strong>safiou Domenico:<br />
vamos gravar. Quando foi?<br />
Foi no ano passado, quando fomos<br />
para estúdio registar uma canção minha<br />
que compus <strong>de</strong> encomenda para<br />
uma novela. Chamei-lhe “Canção <strong>de</strong><br />
novela”. Foi ali que eu lhe disse que<br />
tinha esse <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> botar todos os<br />
sambas num lugar, talvez numa bolachinha,<br />
num CD, para mandar lá para<br />
o pessoal da editora. Estava com <strong>de</strong>sejo<br />
<strong>de</strong> juntá-los, pelo menos.<br />
Como é que ele reagiu?<br />
O Domenico é totalmente positivo.<br />
Qualquer coisa que você diga “vamos”,<br />
vem logo. Ele é filho <strong>de</strong> um<br />
compositor que faz as canções no violão,<br />
mas toca bateria; e eu sou filha <strong>de</strong><br />
um baterista, mas faço as minhas canções<br />
no violão. Então a gente tem um<br />
negócio complementar e cúmplice.<br />
Quantas canções gravaram logo<br />
nesse dia?<br />
Oito. Gravámos no estúdio da minha<br />
casa umas quatro, cinco. O Alberto<br />
foi chamado <strong>de</strong>pois ao estúdio on<strong>de</strong><br />
gravámos a canção <strong>de</strong> novela. E ele<br />
“Qualquer coisa<br />
dos ritmos em Angola<br />
ou em Cabo Ver<strong>de</strong><br />
fica <strong>de</strong>ntro do samba<br />
<strong>de</strong> uma maneira<br />
tão natural, tão<br />
encorpada… A viola<br />
morna do Davi<br />
é um violão<br />
normal tocado<br />
a pensar em Cabo<br />
Ver<strong>de</strong>. O samba<br />
é música africana”<br />
foi, julgando que ia gravar uma faixa.<br />
Mas gravámos oito e ele perguntou:<br />
‘A gente gravou um disco?’ E aí começou<br />
essa conversa <strong>de</strong> “disco”. Fomos<br />
para Itália em “tournée”, com essa<br />
i<strong>de</strong>ia, e lá o Domenico ganhou <strong>de</strong> presente<br />
a caixa Hollywood, que tem um<br />
mecanismo que ele explora com o<br />
joelho, acciona e <strong>de</strong>sacciona a esteira<br />
da caixa enquanto toca, uma coisa<br />
incrível. E eu tinha comprado um violão<br />
muito especial, do final dos anos<br />
30, que tinha sido tocado por uma<br />
senhora da bossa nova. Por causa da<br />
caixa e do violão, fomos gravar tudo<br />
<strong>de</strong> novo. E eu, já com essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
disco, fiz mais quatro sambas.<br />
Qual foi o primeiro samba a ser<br />
escrito, o que lhe <strong>de</strong>u o mote<br />
para continuar?<br />
Foi o “Vai saber”, que a Marisa Monte<br />
gravou mas foi feito para a<br />
Mart’nália. Ela pediu-me qualquer<br />
coisa, eu fui para casa e nessa noite<br />
fiz o “Vai saber” inteiro. Mas ela não<br />
gravou, porque o disco <strong>de</strong>la não era<br />
<strong>de</strong> sambas. Depois, fiz o “Beijo sem”,<br />
um samba para Marisa que a Teresa<br />
Cristina gravou. Veja o complexo do<br />
coração <strong>de</strong> uma cantora [risos]…<br />
E esta sonorida<strong>de</strong>, baseada num<br />
trio? Tinha esse som na cabeça<br />
ou foi surgindo?<br />
Tinha, mas muito mais como influência<br />
do que como meta. Hoje em dia<br />
ouço e parece que estou reouvindo<br />
coisas que sempre estiveram na minha<br />
cabeça. Essa coisa que se po<strong>de</strong><br />
encarar como poliritmia mas <strong>de</strong>ntro<br />
do mesmo ritmo é interessantíssima,<br />
é uma tradução que o Alberto e o Domenico<br />
fazem do meu violão, da minha<br />
batida, Mostra um nível <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong><br />
que eu acho incrível.<br />
Na canção que abre o disco,<br />
“Eu vivo a sorrir”, brinca com<br />
a pronúncia: na rima sonora<br />
com “elevador”, você diz<br />
“inspiradô”, “espaçô”, “laçô”. E<br />
em fadado, você usa a pronúncia<br />
brasileira e mais adiante a<br />
portuguesa, “fadádo”. Porquê?<br />
Não sei, foi uma coisa ali da hora, do<br />
microfone, do som. Fiz, achei simpático<br />
e guar<strong>de</strong>i. E <strong>de</strong>pois, quando gravei<br />
a voz <strong>de</strong>finitiva, repeti.<br />
A escolha <strong>de</strong> Daniel Carvalho<br />
para produtor tem alguma razão<br />
especial?<br />
Tem. Eu trabalho com ele há muito<br />
tempo. Viajou comigo, veio a Portugal,<br />
fez o som do “Partimpim”. E há<br />
muito tempo que ele estava pronto<br />
para ser um produtor como foi agora.<br />
Eu acho que ele enten<strong>de</strong> tão bem tudo<br />
isso que está aqui, ajuda tanto a<br />
criar um ambiente para que essas<br />
coisas aconteçam, que estou muito<br />
orgulhosa.<br />
Na faixa “Deixa, gueixa”<br />
você volta a um fetiche seu, o<br />
Oriente, o Japão. Por um lado,<br />
a canção fala <strong>de</strong> libertação,<br />
explica dois modos <strong>de</strong> ver os<br />
hábitos sociais…<br />
Dois femininos…<br />
… e por outro lado há esta<br />
tragédia no Japão, agora. Como<br />
é que encara isso?<br />
Eu acho impressionante esse mito<br />
que é para o Japão o tsunami. Sou<br />
muito ligada ao tsunami através do<br />
Hokusai [1760-1849], tenho a “gran<strong>de</strong><br />
onda” tatuada nas minhas costas. É<br />
impressionante a força do mito e ver<br />
aquilo acontecer na vida das pessoas.<br />
Vi as imagens e fiquei muito impressionada.<br />
De todos estes sambas, quais<br />
são os que a tocam mais,<br />
pessoalmente?<br />
É tão difícil dizer isso… Porque essas<br />
coisas se alternam, na hora estamos<br />
mais ligados ao que acabámos <strong>de</strong> fazer.<br />
Mas o samba permite, talvez por<br />
causa da sua flui<strong>de</strong>z, pular <strong>de</strong> um género<br />
para outro, falar na voz <strong>de</strong> uma<br />
mulher <strong>de</strong>senganada ou <strong>de</strong>speitada,<br />
na voz <strong>de</strong> um homem cafajeste. Mais<br />
do que um ou outro samba, o conjunto<br />
<strong>de</strong> sambas permite-me trocar <strong>de</strong><br />
“persona”. E isso me divertiu muito.<br />
Algum <strong>de</strong>stes sambas foi<br />
composto em Portugal?<br />
Não. O mais ligado a Portugal é “Vivo<br />
a sorrir”, embora no “Tão chic” o<br />
Davi [Moraes] toque o cavaquinho<br />
como se fosse uma guitarra portuguesa.<br />
O “Deixa, gueixa” foi feito em Oslo,<br />
o “Tá na minha hora” em Taormina,<br />
“Você disse não lembrar” no Rio,<br />
“Eu vivo a sorrir” em Londres… É um<br />
disco estra<strong>de</strong>iro, na verda<strong>de</strong>. Um<br />
aqui, outro lá. Havia sambas meus,<br />
antes disso, uns com o Dé [Palmeira],<br />
outros que a Simone gravou. Mas esta<br />
é uma safra nova. O último foi “Deixa,<br />
gueixa”, feito em 2 <strong>de</strong> Novembro<br />
<strong>de</strong> 2010. Depois disso, não só não escrevi<br />
mais nenhum samba como não<br />
escrevi mais nada, o que me <strong>de</strong>ixa<br />
muito mais claro que era uma safra<br />
mesmo e pronto. Depois disso, não<br />
sei o que vem.<br />
Em “Tá na minha hora” sentemse<br />
a cores do semba angolano.<br />
Diz-lhe alguma coisa?<br />
Ah, muito. Qualquer coisa dos ritmos<br />
em Angola ou em Cabo Ver<strong>de</strong> fica<br />
<strong>de</strong>ntro do samba <strong>de</strong> uma maneira tão<br />
natural, tão encorpada… A viola morna<br />
do Davi é um violão normal tocado<br />
a pensar em Cabo Ver<strong>de</strong>. O samba é<br />
música africana [risos].<br />
O que gostava mais que as<br />
pessoas retivessem <strong>de</strong>ste disco?<br />
A minha compreensão da música como<br />
samba. Isso é necessário, não talvez<br />
para a fruição da minha música,<br />
mas para o entendimento do que faço.<br />
Ajuda a perceber uma coisa que eu<br />
digo nas entrevistas: que em tudo o<br />
que eu ouço está o samba. Pia pingando,<br />
máquina <strong>de</strong> lavar roupa, Daniel<br />
subindo a escada do estúdio, qualquer<br />
coisa eu ouço como samba. O Tárik<br />
<strong>de</strong> Sousa, crítico brasileiro, num dos<br />
“releases” que eu fiz, diz que isso é<br />
um exagero, mas infelizmente não é.<br />
O que fica é a origem da minha música.<br />
É o micróbio.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> discos pág. 40 e segs.<br />
APRESENTA<br />
apoios<br />
UM ESPECTÁCULO DE MADALENA VICTORINO COM MÚSICA DE CARLOS BICA<br />
Produção ARTEMREDE – TEATROS ASSOCIADOS<br />
TEATRO DA TRINDADE<br />
25, 26 e 27 <strong>de</strong> Março | 21h30<br />
No Domingo 27 haverá um programa especial <strong>de</strong> comemoração do dia mundial do teatro.<br />
Consulte www.inatel.pt ou www.vale.artemre<strong>de</strong>.pt e venha festejar<br />
com os intérpretes do Vale!<br />
Reservas: 21 342 00 00 | 92 798 28 34<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 19
AUGUSTO JOAQUIM<br />
Sobre Maria Gabriela Llansol (1931-<br />
2008) disse Eduardo Lourenço que<br />
será, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Fernando Pessoa, “o<br />
próximo gran<strong>de</strong> mito literário da literatura<br />
portuguesa”: “Nunca será uma<br />
autora fácil e consensual. É uma espécie<br />
<strong>de</strong> fenómeno misterioso. Alguém<br />
vindo <strong>de</strong> uma outra espécie <strong>de</strong><br />
planeta. Quem a encontra é difícil não<br />
ficar fascinado por essa escrita.”<br />
Esse fascínio é partilhado pelos escritores,<br />
artistas e cineastas com<br />
quem o Ípsilon falou sobre Maria Gabriela<br />
Llansol – leitura <strong>de</strong> cabeceira à<br />
qual recorrem, encantados pelo fulgor<br />
do texto, por um universo único,<br />
ou pelo <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> ler em liberda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>safiando os cânones.<br />
O que é ser llansoliano (ainda que<br />
poucos admitam sê-lo)? O llansoliano<br />
não é só o académico que estuda a<br />
obra ou que pertence ao Grupo <strong>de</strong><br />
Estudos Llansolianos, criado em Sintra<br />
ainda a escritora era viva, e que<br />
hoje preserva e divulga o seu espólio.<br />
Como explica João Barrento (um dos<br />
responsáveis pelo Espaço Llansol),<br />
ser llansoliano “é ter a<strong>de</strong>rido a um<br />
<strong>de</strong>terminado universo e a um modo<br />
<strong>de</strong> estar no mundo”.<br />
E que mito é este em torno da figura<br />
<strong>de</strong> Maria Gabriela Llansol? Diz-se<br />
que lia à luz das velas e que escrevia<br />
em torrente como um “animal <strong>de</strong> escrita”<br />
(Barrento). Da impossibilida<strong>de</strong><br />
separar o real e o texto ficou a aura<br />
<strong>de</strong> escritora inacessível, inclassificável,<br />
figura silenciosa, ro<strong>de</strong>ada por um<br />
pequeno grupo <strong>de</strong> admiradores a que<br />
Eduar-<br />
do Lourenço<br />
chamou<br />
“uma espécie<br />
<strong>de</strong><br />
seita”.<br />
PEDRO CUNHA<br />
“Nunca será uma<br />
autora fácil<br />
e consensual. É uma<br />
espécie <strong>de</strong> fenómeno<br />
misterioso.<br />
Alguém vindo<br />
<strong>de</strong> uma outra espécie<br />
<strong>de</strong> planeta. Quem<br />
a encontra é difícil<br />
não ficar fascinado”<br />
Eduardo Lourenço<br />
Hoje Llansol continua a ser uma<br />
(quase) ilustre <strong>de</strong>sconhecida em Portugal<br />
e no estrangeiro. Mas talvez a<br />
exposição que se inaugura no Centro<br />
Cultural <strong>de</strong> Belém (CCB) este domingo<br />
(que será “Dia Llansol”, com leituras<br />
e música) contribua para levantar o<br />
véu sobre esta escritora misteriosa.<br />
“Sobreimpressões. Maria Gabriela<br />
Llansol: Uma visão da Europa” é um<br />
roteiro por algumas das principais figuras<br />
europeias e pelos lugares da<br />
obra (e alguns da vida) <strong>de</strong> Llansol. Paralelamente,<br />
haverá em Abril, na Cinemateca,<br />
um ciclo sobre algumas<br />
<strong>de</strong>ssas figuras. E Llansol continua, com<br />
uma exposição <strong>de</strong> Ilda David que<br />
acompanhará a reedição <strong>de</strong> “O Livro<br />
das Comunida<strong>de</strong>s”, e o lançamento<br />
<strong>de</strong> um volume sobre a temática da Europa<br />
(Assírio & Alvim) e <strong>de</strong> outro compilando<br />
as principais recensões na<br />
imprensa da época (Mariposa Azul).<br />
Na exposição estarão trabalhos <strong>de</strong><br />
artistas com ligações à obra da Llansol,<br />
como a peça <strong>de</strong> Rui Chafes sobre<br />
a figura <strong>de</strong> Fernando Pessoa, ou a <strong>de</strong><br />
Pedro Proença sobre a metamorfose<br />
<strong>de</strong> D. Sebastião. E o texto, explica Barrento,<br />
“vai estar lá em fragmentos,<br />
com muitos papéis avulsos, peças originais<br />
dos ca<strong>de</strong>rnos, algumas nunca<br />
vistas”, à mistura com “peças da casa<br />
da autora e objectos relacionados com<br />
os seus livros”.<br />
Culto e afecto<br />
Hélia Correia, escritora: “Llansoliana na<br />
não sou porque isso implicaria uma<br />
prática <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> estudo e <strong>de</strong><br />
relação mais operacional com aquele<br />
texto, que não é a minha. Não sou<br />
uma estudiosa da obra da Llansol,<br />
mas sou uma amante, isso dá-me muidor:<br />
“Não sou llansoliano, <strong>de</strong> todo. o.<br />
to mais liberda<strong>de</strong>.”<br />
Miguel Gonçalves Men<strong>de</strong>s, realiza-a-<br />
Para mim, a Llansol é um autor que<br />
escrevia livros <strong>de</strong> que eu gosto. Há um<br />
lado <strong>de</strong> mitificação das coisas que<br />
acho até muito doentio e nem sei se<br />
ela própria simpatizaria com isso.”<br />
André e. Teodósio, encenador:<br />
“Sou um llansoliano. Reescrevo, apro-<br />
Miguel Loureiro<br />
<strong>de</strong>scobriu Maria Gabriela<br />
Llansol aos 24 anos e começou<br />
por sentir “uma certa<br />
frustração”: “O meu<br />
entendimento falhava, mas<br />
continuava a seguir as linhas.<br />
Lembro-me do que ganhei<br />
quando <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> me preocupar<br />
em perceber. Vinha formatado<br />
pela narrativa. Tinha <strong>de</strong><br />
apren<strong>de</strong>r a estar no texto”.<br />
Llansol, diz, “é um lugar muito<br />
repousante”, mas também<br />
muito inquietante: “Aquela<br />
escolha <strong>de</strong> palavras, a<br />
linguagem, dava a sensação <strong>de</strong><br />
que ela estava a sabotar tudo o<br />
que escrevia”. Os textos da<br />
escritora continuam como<br />
reserva, “ao pé da cama, para<br />
adormecer, para voltar a ler,<br />
para voltar a apren<strong>de</strong>r”.<br />
Hélia Correia não se consi<strong>de</strong>ra uma llansoliana, “porque isso<br />
implicaria uma prática <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> estudo e <strong>de</strong> relação mais<br />
operacional com aquele texto”, mas é uma amante <strong>de</strong> Maria Gabriela<br />
Llansol, cuja gata, Melissa, aliás herdou. A relação pessoal que teve com<br />
ela, “muito especial e muito privada”, é parecida com a que tem com o<br />
texto, <strong>de</strong> “gran<strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>”: “É um texto a que volto sempre. Já há<br />
muito tempo que isso não significa ler um livro completo, é abrir um<br />
livro aqui e acolá, ler passagens, como fazíamos quando nos<br />
encontrávamos. Não faço isso com mais texto nenhum”<br />
RUI GAUDÊNCIO<br />
O fulgor <strong>de</strong> Maria Gabriela Llansol<br />
contado pelos seus<br />
Criadores contemporâneos (llansolianos assumidos ou não) falam ao Ípsilon da sua relação <strong>de</strong> e<br />
escrita” que permanece misterioso. É já no domingo que o Centro Cultural <strong>de</strong> Belém i<br />
20 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
s amantes<br />
encantamento com Maria Gabriela Llansol, um “animal <strong>de</strong><br />
inaugura a exposição Sobreimpressões”. Raquel Ribeiro<br />
ENRIC VIVES-RUBIO<br />
A escritora num dos lugares<br />
llansolianos (Münster, na<br />
Alemanha, em 1982), e alguns<br />
dos manuscritos do seu espólio<br />
prio-me <strong>de</strong> frases <strong>de</strong>la. É uma das figuras<br />
que convoco sempre. Sou contingente<br />
<strong>de</strong>la. Os llansolianos po<strong>de</strong>m<br />
querer tampar-me a boca, mas eu não<br />
posso fugir a isso.”<br />
Paula Sá Nogueira, actriz: “Não diria<br />
que sou llansoliana. Sou leitora. A<br />
minha aproximação ao mundo é<br />
olhar: a Llansol é uma das coisas para<br />
que eu olho.”<br />
Aqui: afirmação e negação do que<br />
é ser llansoliano. E ainda assim todos<br />
se dizem amantes fascinados por essa<br />
força fulgurante do texto. Não é<br />
uma contradição. Como diz Hélia<br />
Correia, o culto, a ser feito, sê-lo-á<br />
“sobre o esplendor do seu texto, tão<br />
vivo como uma árvore, atravessada<br />
por uma seiva, com tanto alimento<br />
do espírito que será impossível e até<br />
in<strong>de</strong>sejável que haja um controlo a<br />
respeito <strong>de</strong>le. O texto não pe<strong>de</strong> isso.<br />
Que o culto seja um culto <strong>de</strong> luminosida<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong> afecto generoso”.<br />
Hélia Correia conheceu Maria Gabriela<br />
Llansol por via <strong>de</strong> uma amiga<br />
comum. Esse encontro “abriu caminho<br />
a uma relação muito especial e<br />
muito privada”: “Uma relação muito<br />
forte e muito preciosa para mim”,<br />
conta. Também com o texto <strong>de</strong> Llansol<br />
a relação é “<strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>”:<br />
“É um texto a que volto<br />
sempre. Já há muito tempo que isso<br />
não significa ler um livro completo, é<br />
abrir um livro aqui e acolá, ler passagens,<br />
como fazíamos quando nos encontrávamos.<br />
É um texto que está<br />
sempre presente. Não faço isso com<br />
mais texto nenhum.”<br />
A escritora admite que a existência<br />
<strong>de</strong> culto à volta do texto e da figura<br />
<strong>de</strong> Llansol não lhe “parece ofensiva”<br />
(“Compreendo e não sinto como abuso”),<br />
mas acrescenta que “essa per-<br />
Prémio Literário<br />
José Saramago<br />
1] O Prémio Literário José Saramago, instituído pela Fundação Círculo <strong>de</strong><br />
Leitores com periodicida<strong>de</strong> bienal, celebra a atribuição do Prémio Nobel<br />
da Literatura <strong>de</strong> 1998 ao escritor José Saramago e <strong>de</strong>stina-se a promover<br />
a divulgação da cultura e do património literário em língua portuguesa,<br />
através do estímulo à criação e <strong>de</strong>dicação à escrita por jovens autores da<br />
lusofonia.<br />
2] O Prémio distingue uma obra literária no domínio da ficção, romance ou<br />
novela, escrita em língua portuguesa, por escritor com ida<strong>de</strong> não superior<br />
a 35 anos, cuja primeira edição tenha sido publicada em qualquer país da<br />
lusofonia, excluindo as obras póstumas, bem como os autores que tenham<br />
já sido premiados em edições anteriores do Prémio.<br />
Nesta sétima edição, o Prémio contemplará uma obra publicada em 2009<br />
ou 2010 por escritor que à data da publicação da obra (mês e ano incluídos<br />
na ficha técnica do livro) não tenha excedido a ida<strong>de</strong> limite mencionada no<br />
corpo <strong>de</strong>ste artigo.<br />
3] O valor pecuniário do prémio a atribuir é <strong>de</strong> € 25.000,00.<br />
4] As Obras admitidas a concurso terão que ser apresentadas à Fundação<br />
Círculo <strong>de</strong> Leitores pelas Instituições representativas dos Escritores e/ou<br />
dos Editores dos países respectivos até 30 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 2011, <strong>de</strong>vendo<br />
para o efeito ser remetidos <strong>de</strong>z exemplares <strong>de</strong> cada obra concorrente,<br />
para a seguinte morada:<br />
Rua Professor Jorge da Silva Horta n.º 1, 1500-499 <strong>Lisboa</strong>.<br />
5] A Fundação Círculo <strong>de</strong> Leitores proce<strong>de</strong>rá à divulgação do Concurso<br />
através dos meios <strong>de</strong> comunicação social, bem como através das Associações<br />
representativas dos Escritores e dos Editores <strong>de</strong> todos os países<br />
da lusofonia.<br />
6] O Prémio será atribuído por um Júri composto por um mínimo <strong>de</strong> cinco<br />
e um máximo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z personalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reconhecido mérito no âmbito<br />
cultural, cabendo a Presidência ao representante da Fundação Círculo <strong>de</strong><br />
Leitores.<br />
1.º - Composição do Júri: Guilhermina Gomes (Presi<strong>de</strong>nte), Nélida<br />
Piñon, Ana Paula Tavares, Pilar <strong>de</strong>l Rio, Vasco Graça Moura.<br />
2.º - O Presi<strong>de</strong>nte do Júri <strong>de</strong>signará um Comité Executivo, que integra<br />
o Júri, constituído por três membros, Manuel Frias Martins, Maria <strong>de</strong><br />
Santa Cruz e Nazaré Gomes dos Santos, a quem compete:<br />
a) Verificar a regularida<strong>de</strong> formal das candidaturas recebidas;<br />
b) Efectuar uma primeira leitura e um resumo <strong>de</strong> cada uma das<br />
obras concorrentes;<br />
c) Emitir um comentário sobre cada uma das obras admitidas a<br />
concurso;<br />
7] O Júri <strong>de</strong>libera com total in<strong>de</strong>pendência e liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> critério, por<br />
maioria dos votos dos seus membros, cabendo ao Presi<strong>de</strong>nte o voto <strong>de</strong><br />
qualida<strong>de</strong> em caso <strong>de</strong> empate. O Prémio po<strong>de</strong>rá não ser atribuído, caso<br />
o Júri consi<strong>de</strong>re, por maioria, que as Obras apresentadas a concurso não<br />
têm a qualida<strong>de</strong> exigida. Haverá um único premiado.<br />
As <strong>de</strong>cisões do Júri são irrecorríveis.<br />
8] O Prémio será atribuído em Outubro <strong>de</strong> 2011 e a sua divulgação será<br />
efectuada através dos Órgãos <strong>de</strong> Comunicação Social. A entrega do Prémio<br />
ao Autor galardoado será efectuada em cerimónia pública, em data a fixar.<br />
9] As Edições subsequentes da obra galardoada <strong>de</strong>verão referenciar, em<br />
local <strong>de</strong>vidamente <strong>de</strong>stacado do volume e na cinta, a menção “Prémio<br />
Literário José Saramago - Fundação Círculo <strong>de</strong> Leitores”.<br />
10] Os exemplares enviados não serão <strong>de</strong>volvidos.<br />
R E G U L A M E N T O - 7 . ª e d i ç ã o<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 21
Um dos inúmeros papéis<br />
avulsos <strong>de</strong> Maria Gabriela<br />
Llansol<br />
Mesmo após a morte da<br />
escritora, em 2008, o texto <strong>de</strong><br />
Llansol continua vivo, tal como<br />
o seu culto<br />
ESPAÇO LLANSOL/ARQUIVO<br />
FERNANDO VELUDO/N-FACTOS<br />
sonagem adorada é já uma outra”.<br />
A imagem projectada por Llansol, explica,<br />
“é tão rica e tão textual, e dada<br />
a várias leituras, que há realmente<br />
uma imagem <strong>de</strong>la que se po<strong>de</strong> projectar<br />
como imagem <strong>de</strong> culto”. Hélia<br />
Correia, contudo, quer preservar o<br />
espaço íntimo da sua relação com<br />
Llansol, até fisicamente: “Defendo<br />
como um cão <strong>de</strong> guarda o meu espaço,<br />
do qual sou muito ciosa e que não<br />
quero ver atravessado por visitantes<br />
ou apreciadores da obra <strong>de</strong>la. Aí está<br />
a gran<strong>de</strong> diferença entre a minha felinida<strong>de</strong><br />
e o espaço dos estudiosos,<br />
que fazem um trabalho grandioso a<br />
que estou infinitamente grata”.<br />
Um texto que espicaça<br />
É esse afecto que une a leitora Hélia<br />
à obra “Amar um Cão”: “Nem preciso<br />
<strong>de</strong> dizer que é o meu texto. Aproprieime<br />
<strong>de</strong>le. É com ele que há uma relação<br />
<strong>de</strong> afecto, <strong>de</strong> memória.” Para<br />
além <strong>de</strong> Melissa, uma das gatas <strong>de</strong><br />
Llansol que Hélia adoptou, tudo o que<br />
era do Ja<strong>de</strong> (o cão <strong>de</strong> Llansol) ficou<br />
com ela. “Esse texto sai do conjunto<br />
grandioso da alta e perturbadora literatura<br />
que é a obra da Maria Gabriela,<br />
que eu peguei ao colo e trouxe<br />
para a minha salinha, como a Melissa<br />
e outras memórias e objectos”, diz.<br />
Para o compositor João Madureira,<br />
39 anos, autor da ópera “Metanoite”<br />
(encomenda da Gulbenkian em 2007,<br />
com libreto <strong>de</strong> João Barrento e encenação<br />
<strong>de</strong> André Teodósio), “Amar um<br />
Cão” também é a obra <strong>de</strong> eleição, “pela<br />
forma como combina simplicida<strong>de</strong><br />
e um lado mais enigmático e reflexivo<br />
da sua escrita, que parece aí encontrar<br />
um equilíbrio muito especial.” O<br />
que mais o atraiu em Llansol “foi a<br />
convicção <strong>de</strong> que a língua portuguesa<br />
necessitava absolutamente <strong>de</strong> uma<br />
reinvenção formal para exprimir as<br />
suas i<strong>de</strong>ias”. Estava perante alguém<br />
“que não reinventava a língua em que<br />
se exprimia por puro prazer ou capricho<br />
académico, mas por uma consciência<br />
profunda <strong>de</strong> que a língua com<br />
que nos exprimimos habitualmente<br />
condiciona aquilo que queremos dizer”.<br />
Musicalmente, sublinha, o texto<br />
<strong>de</strong> Llansol é muito estimulante também,<br />
“tanto no seu aspecto sintáctico,<br />
como no seu aspecto formal: por vezes<br />
ele parece articular-se como colecção<br />
<strong>de</strong> fragmentos vários constituintes<br />
<strong>de</strong> um todo, e não <strong>de</strong> uma<br />
forma puramente linear”.<br />
Este é o legado do texto <strong>de</strong> Llansol:<br />
mais do que as figuras que invoca ou<br />
do que os espaços que habita, é o processo<br />
<strong>de</strong> escrita do texto, literalmente<br />
com as costuras à mostra, que faz<br />
com que muitos vejam nela uma fonte<br />
<strong>de</strong> inspiração ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio. A realizadora<br />
Cláudia Tomaz, 38 anos, por<br />
exemplo, tem há vários anos o projecto<br />
<strong>de</strong> documentário “Os Vivos”,<br />
sobre a obra <strong>de</strong> Llansol. “Criar um<br />
filme completo que trate toda a extensão<br />
da obra <strong>de</strong> Llansol é impossível.<br />
À extensão, prefiro a profundida<strong>de</strong>.<br />
Quero fazer uma obra humana<br />
seguindo o percurso da escrita <strong>de</strong><br />
Llansol. Filmar, com o mesmo olhar<br />
com que ela escrevia. Vejo uma imagem<br />
nómada, silenciosa, <strong>de</strong> uma estranheza<br />
íntima”, explica. Não é fazer<br />
simples “ilustração nem colagens poéticas”:<br />
“Para mim a poesia tem que<br />
vir <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e é nesse caminho que<br />
encontro Llansol.”<br />
O mesmo se passa com Paula Sá Nogueira,<br />
55 anos, do grupo <strong>de</strong> teatro<br />
Cão Solteiro: “Há uma série <strong>de</strong> autores<br />
que lemos e que formam uma espécie<br />
<strong>de</strong> universo que acaba por ir parar aos<br />
espectáculos [da Cão Solteiro].” Demorou<br />
imenso tempo a lidar com a<br />
espiritualida<strong>de</strong> da autora: “Não sou<br />
católica e faço reacção a tudo o que o<br />
seja. Mas comecei a perceber que<br />
aquele texto é <strong>de</strong> uma profunda espiritualida<strong>de</strong>.”<br />
É a liberda<strong>de</strong> do universo<br />
<strong>de</strong> Llansol que a convida a entrar:<br />
“Gosto da reacção quími- ca que aquele<br />
universo provoca com o meu. Não<br />
me preocupo em saber se aquilo que<br />
estou a ler é o correcto. A escrita <strong>de</strong>la<br />
tem tanta liberda<strong>de</strong> que me permite<br />
fazer isso. Se não tudo aquilo parece<br />
um universo fechado, com metáforas<br />
difíceis. Essa é a postura <strong>de</strong> quem pega<br />
num livro para lhe explicarem alguma<br />
coisa. Isso não acontece com<br />
ela. Os livros <strong>de</strong>la espicaçam-me.”<br />
O artista plástico Manuel Santos<br />
Maia, 40 anos, acrescenta que o que<br />
o fascina em Llansol é a forma “quase<br />
catalisadora” como ela “fala nos objectos”,<br />
que “acelera o processo <strong>de</strong><br />
criação”. “É um diálogo que eu encontro<br />
com a escrita, que levanta<br />
questões e não dá certezas. Esse é que<br />
é o <strong>de</strong>safio.” Uma das peças do ta, sobre a questão do exílio e <strong>de</strong> Por-<br />
artistugal,<br />
com objectos da casa <strong>de</strong> Llansol,<br />
estará no CCB.<br />
Ler em liberda<strong>de</strong><br />
O texto continua vivo, mesmo após a<br />
morte (real) da autora. Era isso que<br />
interessava ao realizador Miguel Gonçalves<br />
Men<strong>de</strong>s, 32 anos, que, com a<br />
coreógrafa Vera Mantero, fez o documentário/performance<br />
“Curso <strong>de</strong><br />
Silêncio” para o Festival Temps<br />
d’Images (2007), a partir <strong>de</strong> “Amigo<br />
e Amiga”. “Creio que o que interessava<br />
mais à Vera era a cena fulgor. A<br />
mim, era questão da morte <strong>de</strong>le [Augusto<br />
Joaquim], e <strong>de</strong> como alguém se<br />
confronta com o mundo real e com<br />
esse luto.” O livro <strong>de</strong> Llansol permitiu<br />
a Men<strong>de</strong>s trabalhar “as contradições<br />
da mente humana”: “Estamos a falar<br />
<strong>de</strong> alguém com aquele universo ticular que a morte do marido põe em<br />
causa. É isso que torna esse livro especialmente<br />
bonito. Ela não se nega<br />
par-<br />
Manuel Santos Maia diz<br />
que a maneira como Maria<br />
Gabriela Llansol fala nos<br />
objectos é “catalisadora”,<br />
“acelera o processo <strong>de</strong> criação”.<br />
O artista plástico, que terá uma<br />
peça com objectos da casa da<br />
escritora na exposição do Centro<br />
Cultural <strong>de</strong> Belém, gosta <strong>de</strong> não<br />
encontrar certezas, apenas<br />
questões, nos textos <strong>de</strong> Llansol<br />
ADRIANO MIRANDA<br />
a si própria. Continua na sua procura<br />
do belo através do processo <strong>de</strong> criação.<br />
Faz o luto através do livro.”<br />
Em Llansol, o realizador admira “a<br />
recusa <strong>de</strong> metáforas”. Nesse sentido,<br />
Men<strong>de</strong>s reconhece que a leitura do<br />
texto llansoliano foi útil para o seu<br />
trabalho: “Naquele filme, senti que<br />
estava realmente livre através da exploração<br />
da intensida<strong>de</strong> da imagem,<br />
<strong>de</strong>ssa explosão visual. A liberda<strong>de</strong> é<br />
o gozo que a literatura <strong>de</strong>la dá, consegues<br />
ler uma página, um fragmento,<br />
e aquilo vive por si. Ler fragmentariamente<br />
é ler em liberda<strong>de</strong>.”<br />
Mas Llansol não é só livre: é real. “A<br />
escrita <strong>de</strong>la é fantástica, ensaística,<br />
poética, artística: é a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
ao máximo. Não é ficcional, é monstruosamente<br />
real. Tem a ver com a<br />
constatação do mundo, as artimanhas<br />
ficcionais do mundo e a sua monstruosida<strong>de</strong>.<br />
Está-nos sempre a tirar o tapete,<br />
para nos pôr a pensar, para nos<br />
abstrairmos. Não há voto, não há discurso;<br />
o prosaico sobre o mundo não<br />
está ali, não é metafórico”, diz André<br />
Teodósio. Os livros <strong>de</strong> Llansol, continua,<br />
não se po<strong>de</strong>m ler “como se lê uma<br />
tese, como quem procura a forma canónica<br />
da poesia ou uma fórmula matemática”.<br />
Precisamente porque o<br />
texto é livre, não se po<strong>de</strong> instaurar<br />
uma maneira <strong>de</strong> o ler. “Ela não diz: é<br />
assim. Ela constata. Sabe que o mundo<br />
está em colapso. Não usa artimanhas<br />
intelectuais.” Para Teodósio, Llansol<br />
é como Adília Lopes, “é o mesmo tipo<br />
<strong>de</strong> raciocínio e <strong>de</strong> posição no mundo,<br />
estar no mundo <strong>de</strong> uma forma contemporânea<br />
mas sem tempo, porque<br />
o tempo <strong>de</strong>las é o <strong>de</strong> <strong>de</strong>us”.<br />
Esse tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>us, um espaço<br />
místico espiritual, também seduz o<br />
actor Miguel Loureiro, 40 anos. Descobriu<br />
Llansol aos 24, com “uma paixão<br />
que vivia na altura, com quem<br />
trocava livros <strong>de</strong>la”. Comprava-os<br />
num alfarrabista, num vão <strong>de</strong> escada<br />
ao pé do Teatro da Trinda<strong>de</strong>. Foi então<br />
que <strong>de</strong>scobriu que havia “alguém<br />
no romance português que falava <strong>de</strong><br />
uma série <strong>de</strong> coisas próximas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>us”. Para Loureiro, “Llansol é um<br />
lugar muito repousante”. Quando a<br />
leu, sentiu “um enorme <strong>de</strong>scanso relativo<br />
a tudo o que tinha lido antes,<br />
“Llansol não<br />
reinventava a língua<br />
por capricho<br />
académico, mas<br />
por uma consciência<br />
profunda <strong>de</strong> que<br />
a língua condiciona”<br />
João Madureira,<br />
compositor<br />
mas ao mesmo tempo um sentimento<br />
<strong>de</strong> inquietação. Parecia que estávamos<br />
<strong>de</strong>z anos atrasados em relação<br />
ao que andávamos a ler. Aquela escolha<br />
<strong>de</strong> palavras, a linguagem, dava a<br />
sensação <strong>de</strong> que ela estava a sabotar<br />
tudo o que escrevia.” Llansol ficou-lhe<br />
como uma reserva, não como referência:<br />
alguns dos seus textos estão<br />
lá, “ao pé da cama, para adormecer,<br />
para voltar a ler, para voltar a apren<strong>de</strong>r”.<br />
A sua obra, diz, “é uma oferenda<br />
ao leitor”: “Cada vez que a leio<br />
encontro sempre coisas novas”.<br />
No fundo, é só preciso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ter<br />
medo. “Quando comecei a ler senti<br />
uma certa frustração: o meu entendimento<br />
falhava, mas continuava a seguir<br />
as linhas. Lembro-me do que<br />
ganhei quando <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> me preocupar<br />
em perceber. Vinha formatado<br />
pela narrativa. Tinha <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a<br />
estar no texto”, diz.<br />
Maria Gabriela Llansol esperou<br />
sempre pelos que estão do outro lado.<br />
Tinha um <strong>de</strong>sejo: “Encontrar alguém<br />
que me ame com bonda<strong>de</strong>, e saiba<br />
ler. (...) Alguém que <strong>de</strong>ixe espaços<br />
entre as palavras para evitar que a<br />
última se agarre à próxima que vou<br />
escrever. Alguém que admita que a<br />
cartografia dos animais e da pontuação<br />
não está ainda estabelecida. Alguém<br />
que eu possa ler diferentemente<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> me ler.”<br />
Ei-los aqui, amantes do fulgor do<br />
seu texto.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> exposições pág. 38 e segs.<br />
22 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />
RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />
GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT; TEL: 213 257 640<br />
SÃO<br />
LUIZ<br />
MAR~11<br />
BILHETES À VENDA EM WWW.TEATROSAOLUIZ.PT,<br />
WWW.BILHETEIRAONLINE.PT E ADERENTES<br />
BILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00<br />
TEL: 213 257 650 / BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />
www.teatrosaoluiz.pt<br />
Cristina<br />
Branco<br />
Não há<br />
só tangos<br />
em Paris<br />
31 Mar<br />
21h<br />
sala principal<br />
quinta-feira<br />
M/3<br />
PRODUÇÃO<br />
APOIO À DIVULGAÇÃO
Judaísmo para coleccion<br />
Não é tudo o que sempre quisemos saber<br />
sobre o judaísmo, mas quase: os seis<br />
primeiros títulos da Judaica, a nova colecção<br />
<strong>de</strong> livros da Cotovia, compõem o retrato<br />
<strong>de</strong> um mundo fascinante, e nalguns casos<br />
perdido, <strong>de</strong> Belmonte ao Cairo, <strong>de</strong> Auschwitz<br />
a Israel. Maria da Conceição Caleiro<br />
Quem viu “Fantasia Lusitana”, o magnífico<br />
documentário sobre o Estado<br />
Novo que João Canijo estreou há cerca<br />
<strong>de</strong> um ano, sentiu um mal-estar: o<br />
do nosso isolamento. Vemo-nos a comemorar<br />
a Exposição do Mundo Português<br />
<strong>de</strong> 1940 e sorrimos, condoídos<br />
dos portugueses <strong>de</strong> então, perante a<br />
Nau que, mal é lançada, se afunda.<br />
Portugueses que alegremente admiram<br />
as peças expostas (homens e artefactos)<br />
trazidas do Império, enquanto<br />
por <strong>Lisboa</strong> passa uma horda <strong>de</strong><br />
gente cosmopolita, <strong>de</strong>sesperada, à<br />
espera <strong>de</strong> um sinal para prosseguir:<br />
refugiados ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong> uma guerra que<br />
nos “poupou” graças a Salazar, que<br />
nos mantinha na periferia do mundo<br />
convulso, e à Senhora <strong>de</strong> Fátima (e à<br />
vonta<strong>de</strong> dos Aliados, claro).<br />
Tudo isto vem a propósito <strong>de</strong> judaísmo<br />
e <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us. Não teremos sido<br />
anti-semitas, apesar do fantasma da<br />
Inquisição que nos amordaçou irreparavelmente<br />
o pensamento e a <strong>de</strong>streza<br />
económica. Habilmente, na<br />
época, D Manuel recebeu os ju<strong>de</strong>us<br />
expulsos pelos reis católicos no século<br />
XV. Alguns anos <strong>de</strong>pois, não os <strong>de</strong>ixando<br />
partir, baptizou-os, <strong>de</strong>struiu<br />
os seus vestígios, materiais e imateriais,<br />
queimou os preciosos livros que<br />
haviam trazido, arrasou sinagogas<br />
(que alfacinha conhece a topografia<br />
das três que existiram em <strong>Lisboa</strong>?),<br />
fez <strong>de</strong>les cristãos-novos, alguns futuros<br />
marranos. Mas a história e a cultura<br />
judaicas contemporâneas, as<br />
suas rotas mais recentes, os crimes<br />
cometidos sobre populações da Europa<br />
Central e Oriental (seis milhões<br />
cientificamente exterminados), o gozo<br />
da música klezmer e das recriações<br />
do riquíssimo teatro iídiche, a <strong>de</strong>gustação<br />
da gastronomia asquenazita ou<br />
sefardita, tudo esteve ausente ou esbatido<br />
nas nossas vidas, nas nossas<br />
livrarias, nas nossas conversas e até<br />
na universida<strong>de</strong>. Também Salazar,<br />
segundo Irene Pimentel (Prémio Pessoa<br />
2007, autora <strong>de</strong> “Ju<strong>de</strong>us em Portugal<br />
durante a II Guerra Mundial”)<br />
reforçou, a todos os níveis, o nosso<br />
isolamento. “Algo está felizmente a<br />
mudar, o interesse e a curiosida<strong>de</strong><br />
parecem ter sido revigorados”, diz a<br />
investigadora ao Ípsilon. A colecção<br />
Judaica, que a Cotovia acaba <strong>de</strong> lançar,<br />
é disso prova: para já são seis títulos<br />
(<strong>de</strong> Samuel Schwarz a Karl Marx,<br />
<strong>de</strong> Primo Levi a Moacyr Scliar), um<br />
leque bem diversificado que André<br />
Jorge inteligentemente seleccionou,<br />
e que até fisicamente se <strong>de</strong>seja possuir.<br />
Dirigida a um público curioso,<br />
mas não necessariamente especialista,<br />
a colecção reúne obras <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us<br />
religiosos, ju<strong>de</strong>us ateus, ju<strong>de</strong>us críticos<br />
<strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us... Cada um dos livros<br />
da colecção firma uma perspectiva,<br />
é a estrela <strong>de</strong> múltiplas faces <strong>de</strong> uma<br />
constelação que será certamente expandida.<br />
No blogue da Cotovia, o editor, que<br />
nasceu numa vila perto <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> no<br />
fim da Segunda Guerra Mundial, escreve<br />
um texto programático muito<br />
pessoal, lembrando que a família,<br />
oriunda da Beira Interior, o criou sem<br />
resquícios <strong>de</strong> educação católica, sem<br />
calendário religioso, apesar da admiração<br />
que o pai tinha pelos ju<strong>de</strong>us<br />
(“Hoje pergunto-me se isso não será<br />
um traço <strong>de</strong> judaísmo, escon<strong>de</strong>r uma<br />
coisa sem se converter a outra”). “Sou<br />
ateu convicto. É verda<strong>de</strong> que tenho<br />
um can<strong>de</strong>labro judaico em casa, mas<br />
isso é um símbolo; uma homenagem<br />
aos antepassados, uma quase presença<br />
<strong>de</strong>les. Sou ateu, não tenho a menor<br />
dúvida a esse respeito. Até na doença<br />
sou ateu. Sinto que é necessário recordar<br />
sempre os gran<strong>de</strong>s crimes contra<br />
a humanida<strong>de</strong>. Todos. Esta colecção<br />
vem daí, <strong>de</strong>ssa minha necessida<strong>de</strong><br />
tornada convicção”, explica.<br />
Jorge Martins, investigador e coor<strong>de</strong>nador<br />
<strong>de</strong> outra colecção mais antiga,<br />
a Sefarad (Nova Vega), aplau<strong>de</strong><br />
a iniciativa da Cotovia: “Estão <strong>de</strong> parabéns<br />
os estudos judaicos, que têm<br />
levado algumas editoras a apostar<br />
A história e a cultura<br />
judaicas<br />
contemporâneas,<br />
os seis milhões<br />
exterminados, o gozo<br />
da música klezmer e<br />
do riquíssimo teatro<br />
iídiche, tudo esteve<br />
ausente das nossas<br />
vidas, das nossas<br />
livrarias,<br />
e até da universida<strong>de</strong><br />
Os dilemas <strong>de</strong><br />
Israel, a<br />
mítica terra<br />
prometida do<br />
povo eleito<br />
que se tornou<br />
real <strong>de</strong>pois do<br />
<strong>de</strong>finitivo<br />
“pogrom” da<br />
Segunda<br />
Guerra<br />
Mundial, é o<br />
objecto <strong>de</strong><br />
dois dos livros<br />
da nova<br />
colecção da<br />
Cotovia:<br />
“Judaísmo -<br />
Dispersão e<br />
Unida<strong>de</strong>”, <strong>de</strong><br />
Moacyr Scliar,<br />
e “Judaísmo<br />
para Todos”,<br />
<strong>de</strong> Bernardo<br />
Sorj<br />
24 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
nadores<br />
NUNO FERREIRA SANTOS<br />
5 DE MARÇO A 30 DE ABRIL DE 2011<br />
nesta temática, provando que é uma<br />
necessida<strong>de</strong> historiográfica e um projecto<br />
comercial viável. Quantas mais<br />
editoras publicarem sobre esta temática<br />
– e com esta dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lhe conce<strong>de</strong>r<br />
uma colecção própria –, mais<br />
visibilida<strong>de</strong> terão os estudos judaicos”.<br />
O entusiasmo é partilhado por<br />
Borges Coelho – autor <strong>de</strong> “A Inquisição<br />
<strong>de</strong> Évora 1533-68” (Caminho) -,<br />
Avraham Milgram, historiador do Museu<br />
do Holocausto Yad Vashem <strong>de</strong><br />
Jerusalém, que escreveu “Portugal,<br />
Salazar e os Ju<strong>de</strong>us” (Gradiva), Richard<br />
Zimler (“Os Anagramas <strong>de</strong> Varsóvia”,<br />
edição Oceanos) e Esther Mucznik<br />
(estudiosa <strong>de</strong> temas judaicos e<br />
autora <strong>de</strong> “Gracia Nasi”, Esfera dos<br />
Livros).<br />
Obras que nascem<br />
na Paisagem<br />
Saiba mais em:<br />
www.cascaisnatura.org<br />
Uma iniciativa: Media Partner: Com o apoio:<br />
De Belmonte ao Cairo...<br />
Dos livros agora editados, comecemos<br />
por Samuel Schwarz (1880-1950), autor<br />
<strong>de</strong> “Os Cristãos-novos…”, publicado<br />
originalmente em 1925. Engenheiro<br />
<strong>de</strong> minas polaco, trabalhava<br />
em Espanha e, pass(e)ando por Belmonte,<br />
<strong>de</strong>tecou um rasto judaico nalguns<br />
usos e nas orações das gentes.<br />
Abeirou-se, apresentou-se como ju<strong>de</strong>u,<br />
os habitantes foram esquivos. O<br />
medo (como diz Irene Pimentel, <strong>de</strong>via<br />
ser feita em Portugal uma História do<br />
medo...) e o silêncio sedimentados<br />
fá-los-iam recuar: ‘“Visto que preten<strong>de</strong><br />
conhecer outras orações judaicas,<br />
diferentes das ‘nossas’, diga-nos, ao<br />
menos, uma das que conhece nessa<br />
‘língua hebraica’ mque diz ser a língua<br />
dos ju<strong>de</strong>us!...’(…) Ocorreu-nos, então,<br />
a feliz i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> recitar a sublime oração<br />
<strong>de</strong> ‘Shemah Israel’, base da religião<br />
judaica (…). Notámos, quando<br />
pronunciámos a palavra ‘Adonai’, que<br />
as mulheres tapavam os olhos com as<br />
mãos e ao acabar <strong>de</strong> recitar a breve<br />
oração, a anciã, que nos tinha convidado<br />
a rezar, disse, com autorida<strong>de</strong>,<br />
para as que a cercavam: “É realmente<br />
ju<strong>de</strong>u, porque pronunciou o nome<br />
Adonai’”.<br />
A partir daí, Schwarz passa a ser<br />
admitido na comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belmonte<br />
e a fazer uma cuidada recolha, tornando-se<br />
talvez no maior conhecedor<br />
dos cristãos-novos da época mo<strong>de</strong>rna.<br />
“A sua obra constitui até hoje uma jóia<br />
sobre a cultura, os costumes e as preces<br />
dos cristaõs-novos do inicio do<br />
século passado”, sublinha Avraham<br />
Milgram. Mas é uma jóia que esteve<br />
<strong>de</strong>masiado tempo esquecida, acrescenta<br />
Esther Mucznik, lembrando<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 25
que, regressada a Portugal <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> vários anos <strong>de</strong> ausência, investigou<br />
em vários arquivos e em nenhum <strong>de</strong>les<br />
se <strong>de</strong>parou com o nome <strong>de</strong> Samuel<br />
Schwarz. Tampouco a Comunida<strong>de</strong><br />
Israelita <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> possuía os seus livros.<br />
Quando os encontrou, Mucznik<br />
percebeu que Schwarz foi “um homem<br />
importantíssimo” para o judaísmo<br />
português. “Polaco até ao fim, mas<br />
português, é um homem que compra<br />
com o seu dinheiro a sinagoga <strong>de</strong> Tomar,<br />
que na altura é um armazém, que<br />
a restaura com o seu dinheiro e que a<br />
oferece ao estado português na condição<br />
<strong>de</strong> se fazer lá um museu. Foi ele<br />
quem que revelou ao mundo o marranismo<br />
português, e a sua reedição<br />
é uma excelente iniciativa”, sublinha.<br />
António Marques <strong>de</strong> Almeida, que<br />
ocupou vários anos a cátedra <strong>de</strong> Estudos<br />
Sefarditas da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras<br />
<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, é mais pru<strong>de</strong>nte:<br />
Schwarz, argumenta, <strong>de</strong>parou-se com<br />
uma atmosfera sincrética, o criptojudaísmo,<br />
e <strong>de</strong>u-lhe um sentido. Mas<br />
“o que viu não é o que escreveu”.<br />
Da jornalista brasileira Helena Salem<br />
(1948-1999) - uma judia sefardita<br />
<strong>de</strong> origem turca que chegou a viver<br />
exilada em Portugal com o marido,<br />
dirigente do Partido Comunista Marxista-Leninista<br />
do Brasil) – publicou-se<br />
“Entre Árabes e Ju<strong>de</strong>us”. É a reportagem<br />
da Guerra do Yom Kippur que<br />
Salem realizou em jovem para o “Jornal<br />
do Brasil”, a partir do Cairo, do<br />
lado <strong>de</strong> árabes e palestinos, indignando<br />
a colónia judaica carioca: “Como<br />
judia sefardita, estava tão à vonta<strong>de</strong><br />
naquele mundo... que o meu segredo,<br />
até, ia ficando menos pesado”. Salem<br />
possui um estilo rápido, juvenil, ofegante<br />
quase, intercalado por breves<br />
memórias pessoalíssimas ou por reparos<br />
casuísticos aos sabores do mun-<br />
do em volta (inevitável pensar, ao ler,<br />
na repórter do PÚBLICO Alexandra<br />
Lucas Coelho). É quase como se o leitor<br />
tivesse acompanhado aquele “travelling”,<br />
sofrido com aquelas pessoas,<br />
e tomado como seus as ingenuida<strong>de</strong>s,<br />
as hesitações e os reparos à condição<br />
feminina <strong>de</strong> ambos os lados. “Para<br />
mim a vida <strong>de</strong>la é um acto <strong>de</strong> coragem.<br />
Coragem para ter também aquela<br />
visão, que não era a minha”, diz<br />
Mucznik, que conheceu Salem na Albânia.<br />
“A nossa amiza<strong>de</strong> foi muito<br />
bonita, ensinou-me muito. Publicar<br />
os livros <strong>de</strong>la é uma homenagem a<br />
uma mulher que foi cobrir a guerra<br />
do lado árabe”.<br />
... e <strong>de</strong> Auschwitz a Israel<br />
Moacyr Scliar (1937-2011), gran<strong>de</strong> ficcionista,<br />
já editado entre nós, que<br />
acaba <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer, e Bernardo Sorj<br />
(1948-), director do Centro E<strong>de</strong>lstein<br />
<strong>de</strong> Pesquisas Sociais e professor <strong>de</strong><br />
sociologia na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, são ambos brasileiros,<br />
são ambos <strong>de</strong> origem judaica, são ambos<br />
profundos conhecedores da história<br />
e da cultura do judaísmo. A obra<br />
<strong>de</strong> Scliar, gaúcho, filho e neto <strong>de</strong> imigrantes,<br />
nasce marcada pelo imaginário<br />
judaico-cristão e pelas estórias que<br />
a mãe, professora que o alfabetizou,<br />
<strong>de</strong>sfiava e lhe incendiavam a imaginação.<br />
Ambos traçam a história do povo<br />
ju<strong>de</strong>u, articulando o texto bíblico, o<br />
patamar sagrado, com o relato histórico.<br />
Em “Judaísmo - Dispersão e Unida<strong>de</strong>”,<br />
<strong>de</strong> Scliar, isto resulta, como<br />
seria <strong>de</strong> esperar, num timbre mais literário<br />
(tem também um capítulo sobre<br />
os ju<strong>de</strong>us no Brasil). “Judaísmo<br />
para Todos”, <strong>de</strong> Bernardo Sorj, acentua<br />
o olhar mais sociológico. Tanto um<br />
como o outro partem do começo mítico<br />
(“E disse o Senhor a Abraão…”)<br />
até à criação do Estado <strong>de</strong> Israel, investigando<br />
a origem histórica do antisemitismo<br />
- que, ao contrário do que<br />
muitas vezes se julga, não surgiu com<br />
o cristianismo mas sim com os romanos.<br />
Cada um a seu modo, levantam<br />
os problemas inerentes a Israel, país<br />
que emerge <strong>de</strong>pois do massacre irreparável<br />
<strong>de</strong> um mundo, o Holocausto,<br />
a Shoah. O novo Estado, saído <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>s-diasporização, multicultural (muito<br />
mais do que uma origem tem o cidadão<br />
<strong>de</strong> Israel), fragmentado e pósmo<strong>de</strong>rno,<br />
<strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong> construir<br />
uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> judaica secular, sem<br />
apagar a memória, mas gerando “novas<br />
narrativas e (...) práticas, sem reproduzir<br />
conteúdos xenofóbicos e<br />
alienantes das categorias <strong>de</strong> pureza e<br />
impureza, <strong>de</strong> povo escolhido, <strong>de</strong> protecção<br />
divina”, refere Sorj.<br />
Apetece dizer que tudo o que sempre<br />
quisemos saber sobre o(s)<br />
judaímo(s) começa aqui, nestes dois<br />
autores.<br />
O Estado <strong>de</strong> Israel,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Bernardo<br />
Sorj, <strong>de</strong>ve ser capaz<br />
<strong>de</strong> construir uma<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> judaica<br />
secular, “sem<br />
reproduzir conteúdos<br />
xenofóbicos das<br />
categorias <strong>de</strong> pureza<br />
e impureza, <strong>de</strong> povo<br />
escolhido, <strong>de</strong><br />
protecção divina”<br />
REUTERS<br />
Já a “A Questão Judaica”, do jovem<br />
Karl Marx (1818-1883), é um obra provocadora<br />
e passional, panfletária,<br />
pouco marxista <strong>de</strong> espírito e até antisemita.<br />
Abre assim: “Os ju<strong>de</strong>us alemães<br />
aspiram à emancipação” (leia-se<br />
igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos, direito à cidadania<br />
e à emancipação cívica e política,<br />
aspectos que no século XIX estavam<br />
na or<strong>de</strong>m do dia na França e<br />
na Alemanha). E continua “Vós, ju<strong>de</strong>us,<br />
sois ‘egoístas’ ao exigir<strong>de</strong>s uma<br />
emancipação especial para vós, enquanto<br />
ju<strong>de</strong>us (…). Devereis, sim,<br />
perceber que a vossa opressão e ignomínia<br />
não constituem uma excepção<br />
à regra, mas apenas vêm confirmar<br />
essa mesma regra”. Marx faz<br />
equivaler o ju<strong>de</strong>u ao culto a um só<br />
Deus – o da usura e da troca (<strong>de</strong> mercadorias).<br />
O ju<strong>de</strong>u em Marx é, assim,<br />
emblema do dinheiro, do capitalismo,<br />
logo <strong>de</strong> burguesia (esta sua visão terá<br />
contribuído para o anti-semitismo <strong>de</strong><br />
alguns movimentos revolucionários).<br />
Simplificando <strong>de</strong> mais: o ju<strong>de</strong>u tem<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser ju<strong>de</strong>u para que o Humano<br />
e o Estado livres da alienação<br />
possam nascer.<br />
Curiosamente, Marx tem uma raiz<br />
judaica, a arquitectura <strong>de</strong>sta cultura<br />
infiltrada. Quem sabe se o pós-ditadura<br />
do proletariado, “o mundo a<br />
seguir”, brinca Esther Mucznik, “não<br />
seria o reino messiânico?” Nada é simples,<br />
e este é um texto nuclear da história<br />
das i<strong>de</strong>ias políticas, foco irradiante<br />
<strong>de</strong> muitos outros. Gostaríamos,<br />
todavia <strong>de</strong> o ver co-adjuvado por textos<br />
<strong>de</strong> Hannah Arendt como “The Jew<br />
as Pariah ( Jewish I<strong>de</strong>ntity and Politics<br />
in the Mo<strong>de</strong>rn Age)”, <strong>de</strong> 1943, ou por<br />
outros seus sobre a temática do antisemitismo.<br />
Assim como por Gershom<br />
Scholem e a sua polemica com Arendt<br />
a propósito do controverso “Eichmann<br />
em Jerusalém”. Ou Daniel Sibony,<br />
nascido em 1942 no seio <strong>de</strong> uma<br />
família judia que habitava a Medina<br />
<strong>de</strong> Marraquexe, e chega a Paris aos 13<br />
anos... psicanalista, matemático, filósofo<br />
e muito mais, autor <strong>de</strong> variadíssimos<br />
livros que integram questões<br />
do mundo, da transmissão e da cultura<br />
judaicas e exploram a tese <strong>de</strong> que<br />
o medo, o racismo e a violência aumentam<br />
quando “o Outro” não quer<br />
viver mais no “gueto” e exige <strong>de</strong>vir<br />
juridicamente um cidadão “como os<br />
outros” (no caso dos ju<strong>de</strong>us, era o que<br />
vinha acontecendo na Europa Oci<strong>de</strong>ntal,<br />
com interregnos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />
XIX).<br />
Por fim, neste primeiro lote da colecção,<br />
há Primo Levi (1919-1987), autor<br />
dos “inteligentes e comoventes”<br />
livros que o escritor Richard Zimler<br />
sempre recomenda quando os leitores<br />
lhe pe<strong>de</strong>m sugestões <strong>de</strong> livros sobre<br />
o Holocausto. Do italiano, a Cotovia<br />
publica “O Dever <strong>de</strong> Memória”.<br />
Claro que daqui para a frente se<br />
quer sempre mais, muitos mais…<br />
Agamben, Langbein, antologia(s) <strong>de</strong><br />
poesia hebraica contemporânea, Sartre,<br />
ficção… que evoque os campos<br />
com a força da linguagem literária<br />
(como “Eine Reise” <strong>de</strong> H.G. Adler, que<br />
Canetti consi<strong>de</strong>rou “uma obra-prima,<br />
escrita numa prosa particularmente<br />
bela e pura”).<br />
Ver crítica <strong>de</strong> livros pág. 34<br />
e segs.<br />
A memória <strong>de</strong><br />
Auschwitz<br />
assombrou o<br />
italiano Primo<br />
Levi até ao<br />
final da sua<br />
vida; escreveu<br />
sobre essa<br />
experiência<br />
<strong>de</strong>formadora<br />
em “Se Isto É<br />
Um Homem...”<br />
e também em<br />
“O Dever <strong>de</strong><br />
Memória”, que<br />
a Cotovia<br />
agora publica<br />
Karl Marx aborda a questão judaica do ponto <strong>de</strong> vista do<br />
movimento mais geral <strong>de</strong> emancipação do proletariado (e com<br />
um certo anti-semitismo, apesar das suas raízes judaicas),<br />
e da sua visão da religião como “ópio do povo”: “Vós,<br />
ju<strong>de</strong>us, sois ‘egoístas’ ao exigir<strong>de</strong>s uma emancipação<br />
especial para vós, enquanto ju<strong>de</strong>us (...). Devereis, sim,<br />
perceber que a vossa opressão e ignomínia não<br />
constituem uma excepção à regra, mas apenas vêm<br />
confirmar essa mesma regra”<br />
Moacyr Scliar, filho e neto <strong>de</strong> imigrantes da<br />
Europa <strong>de</strong> Leste, cresceu no bairro judaico <strong>de</strong> Porto<br />
Alegre, o Bom Fim, cuja sombra paira sobre uma<br />
obra muito marcada pelo imaginário judaicocristão<br />
e pelas histórias contadas pela mãe,<br />
professora, que o alfabetizou. “Judaísmo - Dispersão e<br />
Unida<strong>de</strong>” é a sua evocação <strong>de</strong> Israel, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo<br />
mítico fixado pelo Antigo Testamento (“E disse o Senhor a<br />
Abraão”) às dores <strong>de</strong> crescimento do Estado mo<strong>de</strong>rno
maratona <strong>de</strong> cinema no pós-abril > sábado 2 abril<br />
cinema sem parar das 21h30 às 5h00.<br />
21h30 revolução [Ana Hatherly, 1975]<br />
as armas e o povo [Trabalhadores Da Activida<strong>de</strong> Cinematográfica, 1975]<br />
filmes que nos transportam com o corpo todo para o 25 <strong>de</strong> abril.<br />
23h20 caminhos da liberda<strong>de</strong> [Cinequipa, 1974]<br />
os lugares da revolução dos cravos filmados outra vez, agora como <strong>de</strong>stroços.<br />
00h40 terra <strong>de</strong> pão, terra <strong>de</strong> luta [José Nascimento, 1977]<br />
filme-grito que acompanha e luta com aqueles que fizeram a reforma agrária no alentejo.<br />
02h00 continua a viver ou os índios da meia-praia [António Cunha Telles, 1976]<br />
homens, mulheres e crianças carregam os tijolos, a massa, o cimento e até as próprias casas às costas.<br />
04h00 fatucha superstar – ópera rock… bufa! [João Paulo Ferreira, 1976]<br />
recriação queer da história <strong>de</strong> fátima e seus pastorinhos. (tirei o que estava a seguir)<br />
05h00 que farei eu com esta espada? [João César Monteiro, 1975]<br />
uma alegoria mordaz à presença ameaçadora da nato ao largo <strong>de</strong> lisboa, que chega,como nosferatu, pela noite.<br />
<strong>de</strong>bate sobre o prec<br />
o panorama - 5ª mostra do documentário português convida quatro blogs - arrastão, albergue espanhol,<br />
31 da armada e 5dias - a <strong>de</strong>bater o prec, com mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> pedro mexia.<br />
sexta-feira, 25 <strong>de</strong> março, às 19h30 na casa da achada (perto da praça da figueira).<br />
o <strong>de</strong>bate é aberto ao público.
Depois <strong>de</strong> “Yumurta” (2007), regresso<br />
<strong>de</strong> um poeta à sua terra natal após<br />
a morte da mãe, e <strong>de</strong> “Süt” (2008),<br />
retrato <strong>de</strong> um adolescente dividido<br />
entre a escrita e o pobre trabalho que<br />
sustenta a sua família, Semih Kaplanoglu<br />
fecha a sua trilogia sobre Yussuf<br />
(personagem que é também o seu<br />
alter-ego) com “Mel”, retrato da<br />
emancipação <strong>de</strong> uma criança na Turquia<br />
rural, que foi Urso <strong>de</strong> Ouro em<br />
Berlim em 2010.<br />
Continuando a olhar para trás, Kaplanoglu<br />
mostra-nos <strong>de</strong>sta vez a infância<br />
em estado puro que guardamos<br />
pela vida fora: a curiosida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>scoberta<br />
dos sentidos, a vonta<strong>de</strong> da<br />
expressão individual e a timi<strong>de</strong>z<br />
que a impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> se soltar, e o<br />
eterno elo <strong>de</strong> admiração da<br />
criança pelo seu pai, sob<br />
o olhar atento da mãe.<br />
O pai <strong>de</strong> Yussuf, apicultor,<br />
procura novas<br />
fontes <strong>de</strong> mel<br />
para o sustento<br />
familiar, pequenas<br />
incursões<br />
feitas na companhia do filho, <strong>de</strong><br />
olhos e ouvidos abertos para cada<br />
gesto. Mas será após uma partida solitária<br />
para longe que, na ausência da<br />
referência paterna, os sentidos <strong>de</strong><br />
Yussuf se abrirão mais ao confronto<br />
entre o isolamento interior no seu<br />
diminuído lar, o encontro com as palavras<br />
na escola e o puro estado da<br />
natureza que circunda a casa.<br />
Há um mundo que o<br />
chama e que ele<br />
abraça, na<br />
<strong>de</strong>scoberta<br />
da vida e da ausência.<br />
“Em 2005”, diz-nos Kaplanoglu,<br />
“escrevi um conto sobre um aspirante<br />
a poeta <strong>de</strong> 18 anos que vivia no campo<br />
e enviava os seus poemas a jornais<br />
literários [segmento da história que<br />
filmaria em “Süt”, segunda parte da<br />
trilogia]. Mas perguntei-me o que<br />
A “Trilogia Yussuf”<br />
é a história do<br />
crescimento invertido<br />
<strong>de</strong> um homem<br />
que foi criança<br />
aconteceria a essa personagem na sua<br />
ida<strong>de</strong> adulta e na sua infância, se po<strong>de</strong>ria<br />
continuar a escrever poemas<br />
com 40 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> ou se teria <strong>de</strong><br />
fazer outra coisa para ganhar a vida”.<br />
A história da “Trilogia Yussuf”, que<br />
tem o seu ponto alto em “Mel”, é, portanto,<br />
a do crescimento invertido <strong>de</strong><br />
um homem que foi criança, a <strong>de</strong> um<br />
longo caminho <strong>de</strong> emancipação face<br />
à presença espiritual do pai e o amor<br />
presente da mãe. A luta <strong>de</strong> Yusuf pela<br />
in<strong>de</strong>pendência confun<strong>de</strong>-se com a<br />
procura da sua forma <strong>de</strong> expressão<br />
no mundo — a poesia e o uso das palavras.<br />
“Ao falar com Orçun, o meu<br />
co-argumentista, e com Han<strong>de</strong>, o<br />
meu montador, pensámos numa<br />
trilogia”, diz-nos o realizador.<br />
É uma trilogia ao<br />
contrário: “Decidi começar<br />
do ponto que<br />
conhecia melhor —<br />
os 40 anos —, por<br />
estar a passar<br />
por problemas<br />
semelhan-<br />
Yussuf<br />
Yussuf, o pequeno protagonista da trilogia que “Mel” agora<br />
encerra, é um alter-ego do realizador Semith Kaplanoglu<br />
quando for pequeno<br />
“Mel” encerra a “Trilogia Yussuf” <strong>de</strong> Semih Kaplanoglu. Continuamos a andar para trás: <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> já ter sido quarentão e adolescente, Yussuf é agora um miúdo em crescimento na Turquia<br />
rural. O princípio, diz Kaplanoglu, é aquilo que fica connosco até ao fim. Francisco Valente<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 29
tes [retratados em “Yumurta”]. Depois<br />
<strong>de</strong> uma certa ida<strong>de</strong>, concentramo-nos<br />
mais no passado do que no<br />
futuro, talvez por haver uma aproximação<br />
à morte ou porque o tempo<br />
que já vivemos ser maior do que aquele<br />
que vamos viver”, explica.<br />
Atrás da cortina<br />
Além <strong>de</strong> um reflexo dos seus dilemas<br />
posteriores, a infância <strong>de</strong> Yusuf é também<br />
a <strong>de</strong>scoberta do mundo que alimentará<br />
os sentidos: a imensa floresta<br />
on<strong>de</strong> se situa a sua casa abre o caminho<br />
para a aprendizagem das<br />
sensações e das palavras que as <strong>de</strong>screvem.<br />
Apesar <strong>de</strong> ser o último filme<br />
da trilogia, “Mel” é também o primeiro:<br />
os outros dois filmes começam<br />
aqui, quando Yusuf era pequeno.<br />
Mas dizer Yusuf é outra maneira <strong>de</strong><br />
dizer Semith. A poesia não é apenas<br />
a forma <strong>de</strong> expressão do protagonista:<br />
é a forma <strong>de</strong> expressão do próprio<br />
realizador. “Uso um método <strong>de</strong> simplificação<br />
nos meus filmes que aprendi<br />
com a poesia. Penso muitas vezes<br />
em como tornar a poesia relevante<br />
numa forma <strong>de</strong> arte como o cinema.<br />
A expressão poética dos meus filmes<br />
é uma consequência <strong>de</strong>sse esforço”,<br />
diz ao Ípsilon. Toda a “Trilogia Yussuf”<br />
revela uma paciente busca do<br />
tempo certo <strong>de</strong> expressão, uma relação<br />
cuidada entre a exposição <strong>de</strong> um<br />
sentimento e a escolha <strong>de</strong> a<strong>de</strong>reços e<br />
<strong>de</strong> palavras numa paisagem natural<br />
<strong>de</strong> imagens. “A poesia é aquilo que<br />
fazemos das nossas experiências a<br />
partir do que guardamos na nossa<br />
linguagem. Não se trata só <strong>de</strong> colocar<br />
os nossos sentimentos em palavras,<br />
tem também a ver com o silêncio.”<br />
Através da infância <strong>de</strong> Yussuf, Kaplanoglu<br />
tentou ir ao encontro do sentido<br />
inicial que se per<strong>de</strong> ao longo da<br />
vida. “A vida põe uma cortina à frente<br />
dos nossos sentidos, impe<strong>de</strong>-nos <strong>de</strong><br />
UM ESPECTÁCULO DE DINARTE BRANCO, LUIS MIGUEL CINTRA E CRISTINA REIS<br />
Tradução: Regina Guimarães<br />
Interpretação: Judas Dinarte Branco; Voz Luis Miguel Cintra<br />
CURTA SÉRIE DE REPRESENTAÇÕES<br />
24, 25, 26, 27 e 31 <strong>de</strong> MARÇO 1, 2 e 3 <strong>de</strong> ABRIL TEATRO DO BAIRRO ALTO<br />
De 5.ª a Sábado às 21.30h. Domingo às 16.00h<br />
M/12<br />
R.Tenente Raul Cascais, 1A. 1250-268 <strong>Lisboa</strong><br />
<br />
Telef: 213961515/Fax 213954508<br />
<br />
<br />
2011<br />
O olhar sobre<br />
a paisagem<br />
natural, a<br />
busca do<br />
tempo certo<br />
<strong>de</strong> expressão,<br />
e a gestão<br />
da palavra e<br />
do silêncio<br />
são traços<br />
comuns ao<br />
protagonista<br />
e ao realizador<br />
<strong>de</strong> “Mel”<br />
tocar, cheirar e ver. Quando fiz o filme,<br />
tentei encontrar uma maneira <strong>de</strong> remover<br />
essa cortina, queria <strong>de</strong>screver<br />
não só a infância <strong>de</strong> Yussuf mas também<br />
a da humanida<strong>de</strong>. Pensei muito<br />
em como <strong>de</strong>screver essa pureza, pois<br />
julgo que a per<strong>de</strong>mos nas nossas relações.<br />
Falamos muito não por nos darmos<br />
bem, mas porque não conseguimos<br />
estabelecer uma verda<strong>de</strong>ira ligação<br />
uns com os outros”, sublinha.<br />
O esforço do realizador turco passa<br />
também por um método <strong>de</strong> filmagem<br />
assente ainda nas suas formas naturais:<br />
sem pós-produção, através <strong>de</strong><br />
uma rodagem integrada no seu ambiente<br />
natural — a província <strong>de</strong> Rize,<br />
na Turquia —, procurando uma conjugação<br />
natural <strong>de</strong> luz e vida nos elementos<br />
que compõem a imensidão<br />
da paisagem e da floresta. “Interessome<br />
muito pela natureza”, afirma o<br />
realizador, “observo-a e tento envolver-me<br />
com ela. O sentido do tempo,<br />
o nascer e o pôr do sol, as estações,<br />
tudo isso tem um efeito em mim. Sinto<br />
que não consigo criar se não traduzir<br />
isso naquilo que faço.”<br />
Todo o seu trabalho vai no sentido<br />
<strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong><br />
e <strong>de</strong> <strong>de</strong>puração que é o contrário<br />
da vida mo<strong>de</strong>rna, urbana que nos<br />
aliena dos sentidos. “A nossa percepção<br />
não está apenas relacionada com<br />
o cinema, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> também da quantida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> poesia que lemos, do nosso<br />
envolvimento com a arte e a filosofia,<br />
e da nossa relação com a espiritualida<strong>de</strong>.<br />
A vida mo<strong>de</strong>rna não nos permite<br />
questionar a nossa existência e<br />
a criação, há uma indolência dominante<br />
em relação a isso”, argumenta<br />
Kaplanoglu.<br />
Um cinema da esperança<br />
Os contornos da “Trilogia Yussuf”<br />
relembram os <strong>de</strong> uma outra <strong>de</strong>scoberta<br />
— a do mundo <strong>de</strong> Apu, jovem<br />
personagem do cinema do indiano<br />
Satyajit Ray. Também Apu era um aspirante<br />
a escritor dividido entre um<br />
profundo e <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> criação e as responsabilida<strong>de</strong>s<br />
da vida diária, <strong>de</strong> que<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a sobrevivência familiar. A<br />
procura <strong>de</strong> uma paz <strong>de</strong> espírito entre<br />
os acessórios materiais da vida é comum<br />
ao cinema <strong>de</strong> Ray e Kaplanoglu.<br />
Contudo, é num cinema mais metafísico<br />
e já distante <strong>de</strong> Ray que Kaplanoglu<br />
acaba por encontrar as suas<br />
influências mais <strong>de</strong>cisivas. “‘O Espelho’<br />
(1975), <strong>de</strong> Tarkovski, teve um<br />
gran<strong>de</strong> impacto em mim: as sementes<br />
e as i<strong>de</strong>ias do que queria fazer no cinema<br />
vêm daí, tal como <strong>de</strong> ‘Andrei<br />
Rublev’ (1966)”, diz o realizador. “Foram<br />
filmes que marcaram a minha<br />
relação com o cinema.”<br />
“A vida põe uma<br />
cortina à frente<br />
dos nossos sentidos.<br />
Tentei encontrar uma<br />
maneira <strong>de</strong> remover<br />
essa cortina.<br />
Julgo que per<strong>de</strong>mos<br />
a pureza nas nossas<br />
relações. Falamos<br />
muito não por nos<br />
darmos bem,<br />
mas porque<br />
não conseguimos<br />
estabelecer uma<br />
verda<strong>de</strong>ira ligação<br />
uns com os outros”<br />
Semih Kaplanoglu<br />
Mas se é o movimento <strong>de</strong> Tarkovski<br />
que marca o tempo do cinema <strong>de</strong> Kaplanoglu<br />
e a sua busca <strong>de</strong> abstracção,<br />
o realizador turco refere ainda a porta<br />
aberta pelos filmes <strong>de</strong> Ingmar Bergman:<br />
“Ao criar as minhas personagens,<br />
fiz referência à forma <strong>de</strong> ver <strong>de</strong><br />
Bergman. Ele coloca as questões mais<br />
substanciais e dolorosas sobre a existência<br />
do homem mo<strong>de</strong>rno. Os seus<br />
filmes provam que o cinema po<strong>de</strong><br />
contar a história da sua insuficiência<br />
espiritual, não apenas vagueando pelos<br />
corredores sombrios da alma humana,<br />
mas dando-nos uma esperança<br />
que faz parte do mundo e que nos<br />
leva para a própria essência da criação.”<br />
Como Bergman, Kaplanoglu vai até<br />
à raiz <strong>de</strong> uma vida. Na sua inocência,<br />
Yussuf mostra-nos que aquilo que nos<br />
forma nunca nos abandonará. Ele sabe<br />
que po<strong>de</strong>rá sempre encontrar<br />
aquilo que procura na árvore on<strong>de</strong> o<br />
pai ia buscar o mel para levar para<br />
casa.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> filmes na pág. 44 e segs.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 30
Os objectos nasceram<br />
ENRIC VIVES-RUBIO<br />
Des<strong>de</strong> criança que o pintor Manuel Baptista gosta <strong>de</strong> brincar com formas. Os objectos<br />
fantásticos que imaginou, e <strong>de</strong>senhou, ficaram guardados décadas em pequenos ca<strong>de</strong>rnos.<br />
Agora tornaram-se realida<strong>de</strong>. E nasceram muito gran<strong>de</strong>s. Alexandra Prado Coelho<br />
Manuel Baptista passeia-se maravilhado<br />
entre os enormes objectos espalhados<br />
pelo Museu da Electricida<strong>de</strong>,<br />
em <strong>Lisboa</strong>, na exposição “Fora <strong>de</strong><br />
Escala”. Não se cansa <strong>de</strong> olhar para<br />
eles. Há, por exemplo, esta falésia<br />
amarela, inspirada nas falésias dos<br />
Verões da sua infância, em Albufeira,<br />
e ele só lamenta que as pessoas não<br />
vejam por trás. Damos a volta. “Está<br />
a ver? É uma maravilha, com todas<br />
estas linhas <strong>de</strong> corte, as marcas da<br />
cola, do betume…”.<br />
As falésias, os novelos <strong>de</strong> lã gigantes,<br />
os envelopes dos quais saem formas<br />
líquidas e ver<strong>de</strong>s, as camisas com<br />
gravatas em versão pop, as formas<br />
ondulantes recortadas em ma<strong>de</strong>ira,<br />
em alumínio, em acrílico colorido –<br />
todos eles são objectos que viveram<br />
durante décadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rnos<br />
fechados. Sempre que tinha uma<br />
i<strong>de</strong>ia, que via uma forma que o inspirava,<br />
Manuel Baptista <strong>de</strong>senhava. E<br />
foi guardando esses <strong>de</strong>senhos, sem<br />
nunca <strong>de</strong>sistir da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um dia os<br />
ver transformados em realida<strong>de</strong>.<br />
“Des<strong>de</strong> os anos 50 que me habituei<br />
a registar o meu pensamento plástico<br />
em livros ou em papéis”, conta.<br />
“Quando era miúdo [nasceu em 1936]<br />
tinha um fascínio muito gran<strong>de</strong> por<br />
<strong>de</strong>senhos animados. Lembro-me que<br />
em Faro, on<strong>de</strong> vivia, na véspera <strong>de</strong><br />
Natal, pela manhã, havia sempre uma<br />
sessão para as crianças, e eu ficava<br />
fascinado pelos <strong>de</strong>senhos animados<br />
do Walt Disney, o Bugs Bunny, o Gato<br />
Silvestre…”.<br />
Na escola, durante as aulas, ia <strong>de</strong>senhando<br />
nos ca<strong>de</strong>rnos pequenas<br />
molduras. “O que me interessava não<br />
era tanto o exercício que lá estava,<br />
mas a moldura que andava à volta,<br />
com gatos, ratos.” Numa vitrina no<br />
início da exposição estão vários ca<strong>de</strong>rnos<br />
(já dos anos 60 e 70) em que<br />
Manuel Baptista continua a fazer molduras<br />
e a enchê-las <strong>de</strong> formas. “Agarrava<br />
numa i<strong>de</strong>ia e <strong>de</strong>senvolvia-a em<br />
várias hipóteses. Depois chegava a<br />
uma altura em que era como se tivesse<br />
esgotado essa i<strong>de</strong>ia, e continuava<br />
com outra”.<br />
- e cresceram<br />
Manuel<br />
Baptista na<br />
sua falésia<br />
amarela<br />
“Lembro-me<br />
que em Faro,<br />
on<strong>de</strong> vivia, na véspera<br />
<strong>de</strong> Natal, pela manhã,<br />
havia sempre uma<br />
sessão para as<br />
crianças, e eu ficava<br />
fascinado pelos<br />
<strong>de</strong>senhos animados<br />
do Walt Disney”<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 31
ENRIC VIVES-RUBIO<br />
Em 1957, saiu <strong>de</strong> Faro para frequentar<br />
o curso <strong>de</strong> Arquitectura na<br />
Escola Superior <strong>de</strong> Belas-Artes <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />
(que mais tar<strong>de</strong> abandona para<br />
se <strong>de</strong>dicar à pintura). Mas é em 1963<br />
que o mundo se abre verda<strong>de</strong>iramente.<br />
Com uma bolsa da Gulbenkian,<br />
parte para Paris. E o menino que se<br />
encantava com os <strong>de</strong>senhos da Disney<br />
vai <strong>de</strong>scobrir que o mundo tem muito<br />
mais para oferecer. “Foi um <strong>de</strong>slumbramento.<br />
Naqueles anos havia<br />
um fervilhar <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias em Paris… Assisti<br />
à abertura da galeria americana<br />
Ileana Sonnabend, ia a todas as inaugurações<br />
e via o [Robert] Rauschenberg,<br />
o Andy Warhol, imagens fortíssimas,<br />
pop. Curiosamente, nas inaugurações<br />
estava meia dúzia <strong>de</strong><br />
pessoas. Ninguém dava muita importância<br />
à arte americana em Paris. Mas<br />
eu ficava fascinado”.<br />
Os artistas americanos faziam performances<br />
e <strong>de</strong>ixavam os franceses<br />
sem saberem o que pensar. Manuel<br />
Baptista lembra-se <strong>de</strong> ir pelo Boulevard<br />
Saint-Germain, entre os carros,<br />
<strong>de</strong> olhos vendados. E lembra-se <strong>de</strong><br />
um bal<strong>de</strong> on<strong>de</strong>, num ritmo sempre<br />
igual, caía um pingo <strong>de</strong> água enquanto<br />
se ouvia uma voz gravada que dizia<br />
“sois pas triste, sois pas triste”. “As<br />
pessoas estavam chocadíssimas, mas<br />
eu estava <strong>de</strong>lirante, porque era tudo<br />
novo, era outra coisa”.<br />
Vivia num pequeno quarto <strong>de</strong> hotel,<br />
tomava o pequeno-almoço mas<br />
saltava o almoço para poupar dinheiro<br />
e po<strong>de</strong>r ir jantar a um bar <strong>de</strong> jazz<br />
“on<strong>de</strong> se comia esparguete à bolonhesa<br />
e se podiam ouvir os músicos”.<br />
Manuel Baptista estava em Paris “para<br />
comer cultura”. E não perdia tempo.<br />
Saía <strong>de</strong> manhã, percorria todas as<br />
galerias, ouvia concertos, frequentava<br />
cafés míticos como o Flore ou o<br />
Deux Magots – “cheguei a ver o [Jean-<br />
Paul] Sartre e a [Simone <strong>de</strong>] Beauvoir;<br />
naquela altura na mesa ao lado podiam<br />
estar os gran<strong>de</strong>s pensadores, era<br />
uma atmosfera extraordinária”.<br />
Em Paris percebeu que não é preciso<br />
impor limites à imaginação. Tudo<br />
parecia possível. E nos ca<strong>de</strong>rnos os<br />
<strong>de</strong>senhos multiplicavam-se. “Já os<br />
pensava como objectos”. Aponta para<br />
um dos ca<strong>de</strong>rnos abertos na vitrina.<br />
“Pensava nos materiais da época,<br />
a que eu tinha acesso. Como esta ca<strong>de</strong>ira<br />
que está aqui, toda envolvida<br />
em tubos <strong>de</strong> plástico”. Cores, formas,<br />
materiais – estava tudo ali. Mas o ano<br />
em Paris estava a acabar e o regresso<br />
a Portugal foi também um regresso à<br />
realida<strong>de</strong>. As condições não permitiam<br />
que aqueles <strong>de</strong>senhos saíssem<br />
das páginas dos ca<strong>de</strong>rnos. “Desenhava-os<br />
na esperança <strong>de</strong> um dia os fazer,<br />
mas era uma coisa longínqua, não<br />
havia mercado, eu não sabia como.<br />
Ainda an<strong>de</strong>i à procura <strong>de</strong> carpinteiros,<br />
mas era difícil, eles não estavam<br />
interessados, o que queriam era fazer<br />
coisas para a construção”.<br />
Mania das gran<strong>de</strong>zas<br />
Foi um tempo <strong>de</strong> escolhas. E Manuel<br />
Baptista escolheu a pintura, porque<br />
era o que o mercado pedia. Um convite<br />
para ser assistente na Escola <strong>de</strong><br />
Belas-Artes levou-o a <strong>de</strong>cidir regressar<br />
a Portugal. “Eu consi<strong>de</strong>ro que tenho<br />
vários heterónimos. Podia ter feito<br />
variadíssimas coisas. Até na pintura,<br />
podia ter sido vários pintores, e podia<br />
tê-lo assumido, mas nunca tive coragem<br />
para isso.”<br />
O artista com<br />
um dos seus<br />
envelopes em<br />
acrílico<br />
“Tenho vários<br />
heterónimos.<br />
Podia ter feito<br />
variadíssimas coisas.<br />
Até na pintura,<br />
podia ter sido vários<br />
pintores, e podia tê-lo<br />
assumido, mas nunca<br />
tive coragem para<br />
isso”<br />
Continuou sempre a registar os<br />
seus “pensamentos visuais”, muitas<br />
vezes nas toalhas <strong>de</strong> papel dos restaurantes<br />
que frequentava com artistas<br />
amigos. Às vezes olhava para os guardanapos<br />
organizados em leque, achava<br />
piada, “começava a <strong>de</strong>senhar e os<br />
guardanapos transformavam-se numa<br />
planta”. Alguns dos <strong>de</strong>senhos po<strong>de</strong>m<br />
ser vistos agora no Museu da Electricida<strong>de</strong>,<br />
mas muitos outros estarão<br />
expostos a partir <strong>de</strong> amanhã na Fundação<br />
Carmona e Costa, em <strong>Lisboa</strong><br />
(on<strong>de</strong> estão previstas duas conversas<br />
sobre a obra <strong>de</strong> Manuel Baptista, uma<br />
a 9 <strong>de</strong> Abril, às 17h, com o filósofo<br />
José Gil, e outra a 27, às 18h, com o<br />
artista plástico Pedro Cabrita Reis).<br />
Se calhar havia um tempo certo para<br />
os objectos que imaginara nascerem.<br />
Um dia, João Pinharanda, consultor<br />
para as Artes da Fundação EDP,<br />
foi ao atelier <strong>de</strong> Manuel Baptista em<br />
Faro. “Viu os ca<strong>de</strong>rnos e ficou muito<br />
entusiasmado com este lado escultórico<br />
do meu trabalho”. De repente,<br />
as condições que não tinham existido<br />
nos anos 60 e 70, tornaram-se realida<strong>de</strong>.<br />
“Começámos a trabalhar, a ter<br />
reuniões, surgiu uma equipa <strong>de</strong> produção<br />
fantástica.”<br />
Os objectos começaram a ganhar<br />
uma vida própria. João Pinharanda<br />
sugeriu fazê-los gran<strong>de</strong>s. Muito gran<strong>de</strong>s.<br />
“Inicialmente não tinha nenhuma<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> escala”, confessa o artista.<br />
“Ou melhor, era uma escala mais<br />
intimista. Eram objectos que se podiam<br />
pôr numa casa. Na época estávamos<br />
muito preocupados com o<br />
mercado que existia, o mercado da<br />
casa do comprador, que não era muito<br />
gran<strong>de</strong>. E agora, <strong>de</strong> repente, parecia<br />
não haver limites. “O João Pinharanda<br />
dizia ‘faz maior, maior’, e eu<br />
dizia ‘Maior? Calma, calma’”.<br />
Maravilhado, foi vendo como a equipa<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>signers transformava o seu<br />
“<strong>de</strong>senho espontâneo” e lhe dava “rigor,<br />
medidas exactas”. Paramos junto<br />
a um enorme novelo <strong>de</strong> corda enrolado<br />
em torno <strong>de</strong> um eixo: “Em alguns<br />
objectos, como estes feitos em corda,<br />
eu tinha uma i<strong>de</strong>ia inicial, mas quando<br />
começámos a pensar a escala o próprio<br />
objecto foi-se impondo.”<br />
Aponta para outro novelo, com<br />
uma forma diferente. “Era o novelo<br />
<strong>de</strong> lã que a minha mãe tricotava, e eu<br />
abria as mãos assim [exemplifica],<br />
para a ajudar. Quando o executámos<br />
andámos ali às voltas para ver como<br />
fazíamos. O Jorge Rodrigues, o artista<br />
que o executava, tinha um novelo <strong>de</strong><br />
corda grossa que eu achei que não<br />
funcionava. Eu dizia ‘não é possível<br />
fazer isto’, e ele dizia ‘não há impossíveis’.<br />
Achei isso extraordinário.”<br />
Deslumbrado, ia visitar a fábrica<br />
que faz as peças para o Carnaval <strong>de</strong><br />
Torres Vedras e on<strong>de</strong> estava a nascer<br />
a sua falésia amarela. “Deu-me um<br />
gran<strong>de</strong> gozo acompanhar a execução.<br />
Foi fascinante a <strong>de</strong>scoberta dos materiais.<br />
Nunca tinha entrado num sítio<br />
como aquela fábrica, on<strong>de</strong> havia <strong>de</strong><br />
tudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o rato Mickey a personalida<strong>de</strong>s<br />
da política. É um mundo fascinante.”<br />
No texto que escreveu para o catálogo,<br />
Pinharanda <strong>de</strong>screve a obra escultórica<br />
<strong>de</strong> Manuel Baptista como<br />
uma “metáfora do confronto entre<br />
uma sensibilida<strong>de</strong> melancólica e lírica,<br />
humorada e crítica e o <strong>de</strong>slumbramento<br />
provocado pelo glamour <strong>de</strong><br />
uma socieda<strong>de</strong> ainda inexistente em<br />
Portugal”. E levanta uma questão:<br />
“Mas qual é, afinal, o tempo histórico<br />
<strong>de</strong>stas peças? Os anos 1960/70 e seguintes,<br />
em que não foram vistas se<br />
não pelo artista […]? Ou a actualida<strong>de</strong>?”.<br />
Pinharanda interroga-se sobre<br />
quais teriam sido as consequências,<br />
“nesse tempo nacional <strong>de</strong> pequenez,<br />
<strong>de</strong>sta provocadora afirmação <strong>de</strong> ‘mania<br />
das gran<strong>de</strong>zas’?”<br />
Teriam estes objectos sido diferentes<br />
se tivessem sido construídos nos<br />
anos 60? Provavelmente sim, acredita<br />
Manuel Baptista. “Eles são feitos<br />
com a minha experiência <strong>de</strong> artista<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que me conheço e toda essa<br />
minha experiência está posta aqui.<br />
Isso também conta muito.” Mas há<br />
uma coisa que o <strong>de</strong>ixa orgulhoso:<br />
“Olho hoje para esta exposição e, apesar<br />
<strong>de</strong> as peças terem sido pensadas<br />
nos anos 60 e 70, acho-as contemporâneas.<br />
Sinto-as completamente integradas<br />
nas i<strong>de</strong>ias que hoje fervilham.”<br />
Olha mais uma vez em volta, para<br />
as suas falésias, os seus novelos <strong>de</strong> lã,<br />
os seus envelopes. Está absolutamente<br />
feliz, mas a pergunta – como teria<br />
sido? – ficará sempre. “Fiquei maravilhado<br />
<strong>de</strong>pois da montagem. Sentime<br />
um espectador <strong>de</strong> mim próprio.<br />
Fiquei muito comovido com o resultado.<br />
E pensei, ‘caramba, podia ter<br />
feito isto há 50 anos’”.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> exposições na pág. 38<br />
e segs.<br />
32 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
Knut<br />
Hamsun<br />
“Victoria”: um romance fundador<br />
da literatura mo<strong>de</strong>rna europeia<br />
finalmente publicado<br />
em Portugal Pág. 34<br />
Ricardo<br />
Rocha<br />
Um génio da guitarra<br />
portuguesa ao vivo<br />
no Maria Matos<br />
Pág. 42<br />
HO/ AFP DANIEL ROCHA<br />
Milan<br />
Kun<strong>de</strong>ra<br />
Ganhou-se<br />
um ensaísta<br />
em “Um Encontro”<br />
Pág. 36<br />
AUDITÓRIO<br />
26 e 27 MARÇO 21.30H<br />
M/18<br />
BILHETES À VENDA NA SALA DO ESPECTÁCULO / FNAC / WORTEN / WWW.BILHETEIRAONLINE.PT / WWW.TICKETLINE.PT<br />
INFO: 214 416 200 WWW.UGURU.NET<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 33
Livros<br />
Não foi sem<br />
razão que<br />
escritores<br />
como Thomas<br />
Mann ou Isaac<br />
Bashevis<br />
Singer<br />
consi<strong>de</strong>raram<br />
Knut Hamsun<br />
o fundador<br />
da literatura<br />
mo<strong>de</strong>rna<br />
Ficção<br />
Um vento<br />
murmura<br />
nas roseiras<br />
Como o génio transforma<br />
uma história simples<br />
numa narrativa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
intensida<strong>de</strong> psicológica e<br />
dramática. Um clássico da<br />
literatura europeia.<br />
José Riço Direitinho<br />
Victoria<br />
Knut Hamsun<br />
(Trad. Carlos Aboim <strong>de</strong> Brito)<br />
Cavalo <strong>de</strong> Ferro<br />
mmmmm<br />
Com 15 anos, Knut<br />
Hamsun (1859-<br />
1952) – Prémio<br />
Nobel da<br />
Literatura em<br />
1920 – empregouse<br />
num armazém<br />
<strong>de</strong> secagem <strong>de</strong><br />
arenques<br />
numa vila<br />
do norte<br />
Na<br />
televisão<br />
Salman Rushdie está a<br />
escrever uma série <strong>de</strong><br />
televisão para o canal<br />
americano por cabo<br />
Showtime. “Next People”,<br />
anunciou a estação,<br />
dissecará “a velocida<strong>de</strong><br />
radical da transformação<br />
da Noruega. De acordo com o<br />
biógrafo Ingar Sletten Kolloen – em<br />
“Soñador y Conquistador” (Nórdica,<br />
2009) –, foi por essa altura que o<br />
jovem Knut viu pela primeira vez (e<br />
<strong>de</strong> imediato se apaixonou por ela) a<br />
rapariga que lhe serviria <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo<br />
para alguns dos livros que viria a<br />
escrever; chamava-se Laura, e era a<br />
filha do patrão, o rei do comércio do<br />
arenque. Passado pouco tempo, e<br />
com o <strong>de</strong>créscimo da pesca, o jovem<br />
Knut teve <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a região e fazerse<br />
à vida por outras paragens. Mas<br />
Laura ficaria para sempre na sua<br />
memória. Os seus primeiros escritos<br />
datam <strong>de</strong>ssa época.<br />
Em 1878, com 19 anos, publicou,<br />
ainda sob o seu verda<strong>de</strong>iro nome,<br />
Knud Pe<strong>de</strong>rsen, uma noveleta com o<br />
título “Bjørger” (mais tar<strong>de</strong> retirá-laia<br />
da sua bibliografia) em que conta<br />
a história <strong>de</strong> um jovem poeta,<br />
Bjørger, rapaz inteligente e pobre,<br />
filho <strong>de</strong> agricultores, que se<br />
apaixona pela filha (obviamente <strong>de</strong><br />
nome Laura) <strong>de</strong> um homem rico;<br />
esse amor está con<strong>de</strong>nado ao<br />
fracasso <strong>de</strong>vido ao facto <strong>de</strong> os<br />
amantes pertencerem a diferentes<br />
classes sociais.<br />
Vinte anos mais tar<strong>de</strong> – já <strong>de</strong>pois<br />
da publicação <strong>de</strong> “Fome”, a sua<br />
obra-prima –,numa altura em que<br />
era já reconhecido um pouco por<br />
toda a Europa como um dos autores<br />
mais importantes, publicou o<br />
romance “Victoria”, inspirado nessa<br />
sua história juvenil. A personagem<br />
feminina trocou o nome Laura pelo<br />
<strong>de</strong> Victoria, mas o tema é o mesmo:<br />
“Eu era apenas um pobre camponês,<br />
um urso, um bárbaro que, na minha<br />
juventu<strong>de</strong>, ousara invadir a coutada<br />
real.”<br />
Depois <strong>de</strong> “Fome”, cuja acção<br />
<strong>de</strong>corre em Oslo, Hamsun voltou às<br />
histórias <strong>de</strong> ambiente campestre,<br />
estival, quase numa espécie <strong>de</strong> culto<br />
panteísta – com flores, animais e<br />
pessoas em agitação febril pela<br />
quase ausência <strong>de</strong> noites –, da sua<br />
formação literária, inspirada pelo<br />
mais notável narrador norueguês da<br />
época, Bjørnstjerne Bjørnson<br />
(Prémio Nobel da Literatura em<br />
1903) – que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algumas<br />
traduções para português nos anos<br />
50, não tornou a ser por cá editado,<br />
o que é imerecido.<br />
O romance “Victoria”, que<br />
<strong>de</strong>pressa se tornou um clássico da<br />
literatura europeia – e que é pela<br />
primeira vez traduzido para a nossa<br />
língua – conta-nos a história <strong>de</strong><br />
Johannes, filho <strong>de</strong> um moleiro, e <strong>de</strong><br />
Victoria, a filha <strong>de</strong> um aristocrata<br />
que vive numa mansão próxima a<br />
que todos chamam “castelo”. Pela<br />
primeira vez na sua obra literária,<br />
Hamsun dá um passado às suas<br />
personagens; e assim o leitor<br />
acompanha alguns anos das suas<br />
vidas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final da infância até já<br />
entrados na ida<strong>de</strong> adulta. Johannes<br />
vai para a cida<strong>de</strong> e torna-se num<br />
escritor conhecido, sempre com o<br />
sonho amoroso como fonte <strong>de</strong><br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
da vida americana<br />
contemporânea - da<br />
política à raça, passando<br />
pela tecnologia, a ciência<br />
e a sexualida<strong>de</strong>”. Há<br />
já algum tempo que o<br />
autor procurava um<br />
contrato com a televisão,<br />
inspiração: “O<br />
amor é um<br />
vento que<br />
murmura nas<br />
roseiras e<br />
<strong>de</strong>pois<br />
abranda.”<br />
Todos os<br />
livros que<br />
Johannes<br />
escreve são<br />
para Victoria, ela<br />
é a musa que lhe<br />
renova o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
conquistar o seu<br />
afecto.<br />
Parece ser um amor<br />
impossível. Mas quando um dia se<br />
encontram ambos na cida<strong>de</strong>,<br />
Johannes, ao ver que Victoria traz<br />
um anel <strong>de</strong> comprometida, confessalhe<br />
o seu amor; Victoria, por sua<br />
vez, também lhe diz que o ama,<br />
apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar claro que a<br />
felicida<strong>de</strong> não é possível para os<br />
dois. Nessa noite, a inspiração chega<br />
em torrente a Johannes, que escreve<br />
até <strong>de</strong> manhã, altura em que abre a<br />
janela e canta e grita <strong>de</strong> alegria,<br />
importunando os vizinhos que ainda<br />
dormiam. “A minha inspiração era<br />
como um longo relâmpago. Uma vez<br />
vi um relâmpago que seguia ao longo<br />
<strong>de</strong> um fio telegráfico. Meu Deus, era<br />
como um campo <strong>de</strong> fogo. Da mesma<br />
maneira, as palavras fizeram uma<br />
trovoada em mim esta noite.”<br />
Este Johannes faz lembrar um<br />
pouco, em algumas passagens, a<br />
personagem meio alucinada <strong>de</strong><br />
“Fome”, os seus actos irreflectidos,<br />
fora da razão, quando se <strong>de</strong>ixa<br />
tomar pela paixão. Entretanto o<br />
tempo vai passando e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
alguma troca <strong>de</strong> ofensas entre<br />
ambos os amantes, chega o dia em<br />
que é anunciado o noivado <strong>de</strong><br />
Victoria com Otto, um jovem tenente<br />
rico que po<strong>de</strong>rá salvar da miséria a<br />
família da rapariga. Mas o <strong>de</strong>stino<br />
tem guardadas outras vonta<strong>de</strong>s…<br />
Num ambiente <strong>de</strong> “conto <strong>de</strong><br />
fadas”, Knut Hamsun consegue, com<br />
o seu génio, transformar uma<br />
história aparentemente simples<br />
numa narrativa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
intensida<strong>de</strong> psicológica e dramática.<br />
Não por tratar <strong>de</strong> um amor obsessivo<br />
e <strong>de</strong> uma possessão contrariada,<br />
mas pela maneira como expõe a<br />
essência das suas personagens<br />
(normalmente introvertidas), entre<br />
erupções frenéticas <strong>de</strong> carácter e<br />
espasmos dolorosos, para logo<br />
<strong>de</strong>pois parecerem <strong>de</strong>svanecer-se<br />
numa inesperada frieza <strong>de</strong> coração.<br />
Não foi sem razão que escritores<br />
como Thomas Mann ou Isaac<br />
Bashevis Singer consi<strong>de</strong>raram<br />
Hamsun o fundador da literatura<br />
mo<strong>de</strong>rna; “Victoria” é um bom<br />
exemplo disso, e também do arrojo<br />
(para a época) <strong>de</strong> introduzir na<br />
narrativa principal histórias<br />
paralelas (no caso, retiradas <strong>de</strong> livros<br />
que a personagem estava a<br />
escrever), fragmentando-a e<br />
a<strong>de</strong>nsando-a.<br />
e o presi<strong>de</strong>nte da divisão<br />
<strong>de</strong> entretenimento do<br />
Showtime, David Nevins,<br />
convenceu-o <strong>de</strong> que este<br />
era o canal certo, com<br />
os seus 16 milhões <strong>de</strong><br />
assinantes americanos.<br />
Faroeste<br />
Chileno<br />
Um falso Cristo muito<br />
realista e uma prostituta<br />
<strong>de</strong>masiado honrada.<br />
Milagres possíveis nos<br />
<strong>de</strong>sertos do Chile, se<br />
acreditarmos na escrita <strong>de</strong><br />
Hernán Rivera Letelier.<br />
Rui Lagartinho<br />
A Arte da Ressurreição<br />
Hernán Rivera Letelier<br />
(Trad. Francisco Gue<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Carvalho)<br />
Alfaguara<br />
mmmmn<br />
O “realismo<br />
estético”<br />
<strong>de</strong> Letelier<br />
só pô<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sabrochar<br />
porque o<br />
escritor<br />
cresceu entre<br />
os loucos, as<br />
prostitutas<br />
e os falsos<br />
Cristos que<br />
povoam a<br />
paisagem<br />
chilena<br />
Há uma<br />
elasticida<strong>de</strong><br />
surpreen<strong>de</strong>nte<br />
naquilo que um<br />
dia se <strong>de</strong>finiu<br />
como realismo<br />
mágico. Que é<br />
<strong>de</strong>monstrada<br />
sempre que um<br />
autor, em geral<br />
sul-americano, precisa <strong>de</strong> arranjar<br />
espaço para se arrumar <strong>de</strong>baixo do<br />
enorme chapéu-<strong>de</strong>-chuva que cobre<br />
o planeta literário entre o Chile e o<br />
México.<br />
Do Sul do <strong>de</strong>serto das pampas<br />
chileno chega a escrita <strong>de</strong> Hernán<br />
Rivera Letelier (Tarca, Chile, 1950)<br />
que foi <strong>de</strong>finida <strong>de</strong> uma forma<br />
engenhosa pelo próprio como<br />
“realismo estético”: escassa magia,<br />
uns pós <strong>de</strong> surrealismo (não é por<br />
acaso que um fotograma do filme<br />
“Simão do Deserto”, <strong>de</strong> Luis Buñuel,<br />
ocupa a capa do romance),<br />
paisagens áridas pontuadas por<br />
minas que parecem oásis e a maior<br />
parte das vezes se revelam pesa<strong>de</strong>lo,<br />
seres ocasionalmente com po<strong>de</strong>res<br />
divinos mas sempre <strong>de</strong>masiado<br />
humanos, humor <strong>de</strong>sconcertante,<br />
realida<strong>de</strong> nua e crua insuflada por<br />
um estilo <strong>de</strong> transcendência<br />
barroca.<br />
Tudo isto se po<strong>de</strong> encontrar em<br />
“A Arte da Ressurreição” o seu mais<br />
DANIEL MORDZINSKI<br />
34 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
ecente romance, Prémio Alfaguara<br />
2010. “Domingo Zárate Veja,<br />
conhecido por todos como o Cristo e<br />
Elqui, não tinha consciência da<br />
enorme comoção que a sua figura<br />
bíblica <strong>de</strong>spertava no ânimo das<br />
multidões que o seguiam e<br />
veneravam nas al<strong>de</strong>ias e cida<strong>de</strong>s do<br />
país, sobretudo junto dos<br />
<strong>de</strong>serdados da Terra, sempre os<br />
mais reverentes perante qualquer<br />
personificação que transmitisse um<br />
pingo <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> ou<br />
misticismo” (p. 54). Este eremita<br />
peregrino que acredita reencarnar<br />
Jesus Cristo (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, no Vale <strong>de</strong><br />
Elqui, teve uma visão logo a seguir à<br />
morte da mãe) procura uma<br />
discípula disposta a comer na sua<br />
companhia o pó das estradas. Em La<br />
Piojo, quando finalmente se<br />
encontra face a face com a mulher<br />
que as lendas da região cantavam, a<br />
prostituta Magalena Mercado,<br />
comerciante honrada capaz <strong>de</strong><br />
per<strong>de</strong>r a cabeça e trabalhar grátis<br />
solidária com os mineiros em greve,<br />
o problema parece ter sido<br />
resolvido. Desjejuam e falam <strong>de</strong><br />
amor às oito da manhã, que segundo<br />
Magalena é a hora <strong>de</strong> as pessoas<br />
<strong>de</strong>centes se levantarem: “Nem muito<br />
cedo para uma rameira nem muito<br />
tar<strong>de</strong> para uma beata.” Começa uma<br />
dialéctica <strong>de</strong> fluidos e <strong>de</strong> pérolas.<br />
Magalena apren<strong>de</strong> com o Cristo <strong>de</strong><br />
Elqui que “quando nós os crentes<br />
falamos com Deus estamos a rezar,<br />
mas quando Deus nos fala, então<br />
somos uns loucos esquizofrénicos.”<br />
Apren<strong>de</strong> também a alargar os<br />
horizontes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um país<br />
“comprido e <strong>de</strong>lgado em forma <strong>de</strong><br />
figo”. Começam as viagens e os<br />
sobressaltos, as virgens <strong>de</strong> pau que<br />
se embrulham à pressa e a que se<br />
tapam os olhos para que não vejam<br />
os pecados do mundo, o cruzamento<br />
cinematográfico com as personagens<br />
dos pequenos po<strong>de</strong>res, com o<br />
maluquinho oficial <strong>de</strong> La Piojo que<br />
aqui se chama Anónimo, o louco da<br />
Vassoura: Com a sua cabeça rapada<br />
como um moicano, as suas orelhas<br />
triangulares e o nariz adunco dos<br />
gran<strong>de</strong>s esquizofrénicos da história,<br />
mais o seu anacrónico e untuoso<br />
colete elegante que não tirava por<br />
nada nem ninguém”.<br />
Percebe-se que este realismo<br />
estético só pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>sabrochar porque<br />
o autor cresceu por aqui e guardou<br />
disso memória viva: dos loucos, das<br />
prostitutas, dos falsos Cristos que<br />
povoaram esta paisagem chilena em<br />
carne e em alma enquanto Letelier<br />
se tornava homem.<br />
Com “A Arte da Ressureição”,<br />
todo este faroeste chileno dos anos<br />
40 do século passado se agiganta em<br />
cenas épicas <strong>de</strong> conjunto <strong>de</strong>scritas<br />
realisticamente ou em personagens<br />
pícaras mais solitárias encaixadas<br />
entre a fé e a sobrevivência.<br />
Alucinadamente escaldados: “Toda<br />
a abóbada celeste era uma solidão<br />
azul, sem a mais remota<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nuvenzinha<br />
perdida, extraviada do seu rebanho<br />
branco. Era domingo na pampa e o<br />
dia, ainda cru, ameaçava ar<strong>de</strong>r por<br />
todos os lados.”<br />
Tudo o que se escreve com areia,<br />
no meio da areia, <strong>de</strong>saparece.<br />
Ensaio<br />
Nus como<br />
um ovo<br />
sem casca<br />
Primo Levi, uma das mais<br />
militantes testemunhas da<br />
experiência do Holocausto,<br />
num livro-entrevista.<br />
Maria da Conceição<br />
Caleiro<br />
O Dever <strong>de</strong> Memória<br />
Primo Levi<br />
(Trad. Esther Mucznik)<br />
Cotovia<br />
mmmmn<br />
“Sinto que é<br />
necessário<br />
recordar sempre<br />
os gran<strong>de</strong>s crimes<br />
contra a<br />
humanida<strong>de</strong>”.<br />
Essa necessida<strong>de</strong><br />
tornou-se<br />
convicção <strong>de</strong><br />
André Jorge,<br />
editor da Cotovia, que agora lança a<br />
colecção Judaica, <strong>de</strong> que “O Dever<br />
<strong>de</strong> Memória”, <strong>de</strong> Primo Levi (1919-<br />
1987), é a pedra <strong>de</strong> toque. Nome e<br />
título paradigmáticos, porque Levi<br />
(<strong>de</strong> que já foram publicadas entre<br />
nós obras até mais significativas,<br />
como “Se Isto é um Homem” ou “A<br />
Trégua”) é a testemunha por<br />
excelência. Quando regressa <strong>de</strong><br />
Auschwitz, conta incansavelmente a<br />
todos o que sofreu, para que não<br />
volte a acontecer<br />
Levi nasce no seio <strong>de</strong> uma família<br />
judia do Piemonte, assimililada,<br />
laica, se bem que lhe tenha sido<br />
transmitida alguma cultura judaica<br />
(fez o seu “bar mitzvah”, estudou<br />
um pouco <strong>de</strong> hebraico). Frequenta<br />
círculos <strong>de</strong> estudantes<br />
antifascistas, ascistas, ju<strong>de</strong>us e não ju<strong>de</strong>us.<br />
Conclui em 1941 a licenciatura em<br />
Química, constando do seu<br />
diploma a menção “<strong>de</strong> raça<br />
judaica”. Em 1942,<br />
integra o Partido <strong>de</strong><br />
Acção<br />
Clan<strong>de</strong>stina.<br />
Será preso com<br />
outros os<br />
Em “O Dever <strong>de</strong> Memória”,<br />
camaradas em<br />
Primo Levi anula-se como<br />
1943, e<br />
testemunha por excelência<br />
acabará ará do Holocausto para ser apenas<br />
levado para<br />
uma entre as muitas vítimas<br />
Auschwitz:<br />
da máquina <strong>de</strong> morte nazi<br />
Auschwitz III, Monowitz (laboratório<br />
da IG Farben). O seu conhecimento<br />
do alemão (suficiente para enten<strong>de</strong>r<br />
or<strong>de</strong>ns), o facto <strong>de</strong> ser engenheiro<br />
químico e ainda o acaso e a sorte<br />
poupam-no. Durante quase um ano,<br />
ele, corpo franzino, nunca adoece;<br />
quase no fim, quando os russos se<br />
aproximavam, em Janeiro <strong>de</strong> 45, e os<br />
alemães <strong>de</strong>struíam resquícios,<br />
contrai escarlatina, não tendo por<br />
isso acompanhado “o que restava”<br />
na Marcha da Morte.<br />
“O Dever <strong>de</strong> Memória” resulta <strong>de</strong><br />
uma entrevista que Primo Levi<br />
conce<strong>de</strong>u a Anna Bravo e Fe<strong>de</strong>rico<br />
Cereja em 1983. Ele é uma das 220<br />
vozes <strong>de</strong> <strong>de</strong>portados do Piemonte.<br />
Sendo já uma figura pública, Levi<br />
fala como uma voz que se dilui entre<br />
outras: “Para muitos <strong>de</strong> nós, ser<br />
entrevistado era uma coisa única e<br />
memorável, o acontecimento,<br />
porque <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia da libertação<br />
<strong>de</strong>u um sentido à nossa própria<br />
libertação”. Fala com muita clareza<br />
e simplicida<strong>de</strong> como se fosse<br />
“ninguém”, apagando-se: mais do<br />
que uma vez diz “nós”. Testemunha<br />
a realida<strong>de</strong> daquilo que viveu e viu.<br />
E, como se sabe, a verda<strong>de</strong> do que<br />
aconteceu e o sentido do<br />
acontecimento não coinci<strong>de</strong>m<br />
(Hannah Arendt). Anota o<br />
intestemunhável, isto é, a morte por<br />
<strong>de</strong>ntro, a morte em si, ou a morte<br />
sem morte, o silêncio do corpo<br />
anónimo caído, o muçulmano que<br />
ninguém quer ver. Levi tem<br />
consciência da especifida<strong>de</strong> do<br />
Holocausto. Não por serem mais ou<br />
menos os mortos do que nos<br />
“gulags” soviéticos, mas por terem<br />
sido fabricados cadaveres em série<br />
num processo industrial que a<br />
indústria alemã sustentava, e<br />
reciclava, uma linha <strong>de</strong> produção<br />
perfeita, a escola nazi.<br />
O autor serve-se da memória<br />
como havia acontecido na escrita <strong>de</strong><br />
“Se Isto é um Homem”. Desculpa-se<br />
pela eventualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se estar a<br />
repetir, <strong>de</strong> repisar o que vem nos<br />
seus livros que, reconhece, décadas<br />
passadas, lhe servem <strong>de</strong> memória<br />
artificial. Dar testemunho, para uma<br />
geração formada “malgré tout” na<br />
senda das Luzes, como a <strong>de</strong> Levi, foi<br />
um sinal <strong>de</strong> força <strong>de</strong> vida<br />
<strong>de</strong> um<br />
sobrevivente que não<br />
cessará talvez <strong>de</strong> se<br />
sentir culpado (terá<br />
sido essa a razão do<br />
seu suicídio em 1987) e<br />
responsável por<br />
transmitir a<br />
memória.<br />
Fazia-o nas escolas,<br />
mantinha alerta o <strong>de</strong>ver.<br />
É pungente imaginá-lo a<br />
dizer: “Já não tenho<br />
muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir às<br />
escolas. Estou<br />
cansado <strong>de</strong> ouvir as<br />
mesmas perguntas.<br />
Tenho a impressão <strong>de</strong><br />
que a minha<br />
linguagem se tornou<br />
insuficiente, <strong>de</strong> que<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 35
Livros<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
falo uma lingua diferente. E<br />
<strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>vo confessar que fiquei<br />
profundamente marcado por uma<br />
das últimas experiências. Duas<br />
crianças lançaram-me num tom sem<br />
réplica:’Porque vem mais uma vez<br />
contar-nos a sua história, 40 anos<br />
<strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>pois do Vietname, <strong>de</strong>pois<br />
dos campos <strong>de</strong> Estaline…? Fiquei<br />
encurralado na minha condição <strong>de</strong><br />
sobrevivente a todo o custo, e<br />
respondi que falava do que tinha<br />
visto”.<br />
Com os dois interlocutores, o<br />
escritor cruza, ou <strong>de</strong>ixa que se<br />
cruzem na sua voz serena, que não<br />
ajuíza, assuntos nucleares seus e que<br />
os entrevistadores suscitam. Alguns<br />
temas <strong>de</strong>sdobram-se noutros; às<br />
vezes inquieta-se, às vezes, como<br />
“bom ju<strong>de</strong>u”, respon<strong>de</strong> a uma<br />
pergunta com outra pergunta. Um<br />
dos traços aflorados é o<br />
indispensável “savoir-vivre” num<br />
campo, o não falar da morte, o não<br />
falar das câmaras <strong>de</strong> gás nem dos<br />
crematórios (Levi nunca foi a<br />
Birkenau). O pensamento da morte<br />
era recalcado, como na vida normal.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Não havia suicídios porque o<br />
suicídio é inerente ao Homem, os<br />
animais não se suicidam: o “savoirvivre”<br />
dos campos está aquém do<br />
que se diz ser a moral, aquém <strong>de</strong><br />
qualquer solidarieda<strong>de</strong> (só se<br />
emprestava a colher, indispensável,<br />
a alguém <strong>de</strong> extrema confiança).<br />
Geria-se a sobrevivência,<br />
mantinham-se rotinas, como o<br />
escovar com as mãos a roupa. “O<br />
importante era passar o dia, o que se<br />
comia, se estava frio, saber que<br />
tarefa, que trabalho teríamos que<br />
fazer, chegar à noite, em resumo”.<br />
Sobreviver, perceber as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
corrupção, que as havia, assim como<br />
<strong>de</strong> resistência. Foi esse<br />
embotamento que permitiu a<br />
salvação, que permitiu ao homem<br />
transformar-se no não-homem<br />
(talvez por isso o <strong>de</strong>portado que<br />
sobrevive sente vergonha e culpa).<br />
Primo Levi volta a aludir aqui ao<br />
que <strong>de</strong>signou como “zona cinzenta”:<br />
o testemunho <strong>de</strong> um<br />
“son<strong>de</strong>rkommando”, um ju<strong>de</strong>u que<br />
raramente sobrevive e cuja função é<br />
retirar os corpos da câmara <strong>de</strong> gás,<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
PRO.DANÇA<br />
Companhia<br />
Olga Roriz<br />
lavá-los, retirar-lhes algum <strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
ouro e os cabelos, <strong>de</strong>pois colocá-los<br />
no crematório e limpar as cinzas.<br />
Este, Nyiszli, diz ter assistido<br />
durante uma “pausa” do seu<br />
trabalho a um jogo <strong>de</strong> futebol entre<br />
SS e membros do Son<strong>de</strong>rkommando.<br />
Quem assiste - SS e membros ju<strong>de</strong>us<br />
da equipa especial dos<br />
Son<strong>de</strong>rkommando - toma partido,<br />
aplau<strong>de</strong>, fazem-se apostas,<br />
encorajam-se os jogadores, como se<br />
ele se <strong>de</strong>senrolasse num campo da<br />
al<strong>de</strong>ia, em vez <strong>de</strong> ser às portas do<br />
inferno. É possível que alguns<br />
tenham visto neste jogo um breve<br />
momento <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> no meio<br />
<strong>de</strong> um infinito horror. “Aos meus<br />
olhos, como aos das testemunhas<br />
<strong>de</strong>sta partida, esse intervalo <strong>de</strong><br />
normalida<strong>de</strong> é, ao invés, o<br />
verda<strong>de</strong>iro horror dos campos”. A<br />
marca in<strong>de</strong>strutível da “zona<br />
cinzenta”.<br />
Alhures<br />
Do particular para o<br />
universal, encontros e<br />
<strong>de</strong>sencontros <strong>de</strong> um<br />
“déraciné”.<br />
Eduardo Pitta<br />
Um encontro<br />
Milan Kun<strong>de</strong>ra<br />
(Trad. Isabel St. Aubyn)<br />
Dom Quixote<br />
mmmmn<br />
Gosto <strong>de</strong><br />
escritores que<br />
dialogam com<br />
outras artes e, em<br />
particular, dos<br />
que se me<strong>de</strong>m<br />
com os seus<br />
pares. Um dos<br />
meus “atritos”<br />
com Torga releva<br />
do facto <strong>de</strong> só se medir com Camões.<br />
Milan Kun<strong>de</strong>ra (n. 1929) publicou em<br />
2009 uma recolha <strong>de</strong> ensaios a que<br />
chamou “Une Rencontre”. O livro foi<br />
agora traduzido, chegando às<br />
livrarias acompanhado da reedição<br />
do último romance que publicou: “A<br />
Ignorância” (2000).<br />
Exilado em França <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1975,<br />
cidadão francês <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1980,<br />
Kun<strong>de</strong>ra tornou-se mundialmente<br />
conhecido com “A Insustentável<br />
Leveza do Ser” (1984). Em Portugal<br />
estão traduzidos todos os seus<br />
romances, uma peça <strong>de</strong> teatro e dois<br />
volumes <strong>de</strong> ensaio. Na poesia <strong>de</strong>ste<br />
expatriado ainda ninguém pegou. É<br />
pena. Os poemas que publicou entre<br />
1953 e 1957 foram, naqueles anos <strong>de</strong><br />
chumbo, a resposta possível ao<br />
realismo socialista.<br />
“Um Encontro” junta reflexões<br />
sobre Bacon, Dostoiévski,<br />
Schönberg, Roth e outros. À medida<br />
que avanço na sua leitura, penso nos<br />
Milan<br />
Kun<strong>de</strong>ra, o<br />
checo francês,<br />
é aqui o<br />
ensaísta que<br />
escreve sobre<br />
Philip Roth<br />
e os “salões”<br />
franceses,<br />
Francis Bacon<br />
e Coco Chanel<br />
ensaios sobre Machado <strong>de</strong> Assis,<br />
Danilo Kis e outros que Susan Sontag<br />
juntou em “Where the Stress Falls”<br />
(2001). Em ambos, a judia <strong>de</strong><br />
Manhattan e o checo que <strong>de</strong>veio<br />
francês, o “gesto brutal” da<br />
admiração.<br />
É <strong>de</strong>sse modo que Kun<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>fine<br />
a pintura <strong>de</strong> Bacon: “Há em cada um<br />
<strong>de</strong> nós o gesto brutal, o movimento<br />
da mão que ultraja o rosto do<br />
outro...”. O que parece uma frase <strong>de</strong><br />
efeito releva da <strong>de</strong>riva totalitária.<br />
Após o malogro da Primavera <strong>de</strong><br />
Praga (1968), os intelectuais<br />
reformistas voltaram a ser<br />
perseguidos pela polícia política.<br />
Num dia <strong>de</strong> 1972, Kun<strong>de</strong>ra tem<br />
“ren<strong>de</strong>z-vous” marcado com uma<br />
rapariga que fora interrogada a seu<br />
respeito e, <strong>de</strong> repente, ela aparece à<br />
sua frente “dilacerada, como o<br />
corpo fendido <strong>de</strong> uma vitela<br />
suspensa <strong>de</strong> um gancho num talho.”<br />
Bacon obriga-o a recuar a esse dia<br />
em que quis “possuí-la por inteiro<br />
[...], o vestido impecável e as tripas<br />
em revolta, a razão e o medo, o<br />
orgulho e o infortúnio.”<br />
Os textos mais estimulantes são os<br />
que partem do particular para o<br />
universal. Como quando, a pretexto<br />
<strong>de</strong> Philip Roth (“o gran<strong>de</strong> historiador<br />
do erotismo americano... o poeta da<br />
estranha solidão do homem<br />
abandonado ao seu corpo”),<br />
Kun<strong>de</strong>ra chama a atenção para a<br />
velocida<strong>de</strong> da História, quebrando<br />
“a continuida<strong>de</strong> e a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
uma vida”. Ao meditar sobre<br />
Tchékhov ou Kafka, o escritor, Roth<br />
ou outro qualquer, mais do que<br />
honrar pre<strong>de</strong>cessores, preserva o<br />
“tempo passado”.<br />
O <strong>de</strong> Brno (Morávia), por exemplo.<br />
Vera Linhartová, “poetisa <strong>de</strong> uma<br />
prosa meditativa, hermética,<br />
inclassificável”, me<strong>de</strong> cada palavra:<br />
“Escolhi, pois, o país on<strong>de</strong> queria<br />
viver mas escolhi igualmente a língua<br />
que queria falar. [...] O escritor não é<br />
prisioneiro <strong>de</strong> uma única língua.”<br />
Tendo <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> ser uma escritora<br />
checa, nem por isso passou a ser uma<br />
escritora francesa. Ficou alhures,<br />
“como outrora Chopin [...] como<br />
mais tar<strong>de</strong>, cada um à sua maneira,<br />
Nabokov, Beckett, Stravinski,<br />
Gombrowicz [...], cada um vive o<br />
exílio à sua maneira inimitável...”<br />
Vera Linhartová será um caso limite.<br />
Entra aqui porque, melhor do que<br />
ninguém, “ilustra” Kun<strong>de</strong>ra.<br />
Um dos textos mais divertidos<br />
respeita às “listas negras”, norma<br />
francesa ainda em vigor (lá como cá)<br />
e “gran<strong>de</strong> paixão das vanguardas”<br />
há mais <strong>de</strong> cem anos. Quem as<br />
inventou? Os salões: “Em nenhuma<br />
parte do mundo <strong>de</strong>sempenham um<br />
papel tão importante como em<br />
França.” Por oposição a elas,<br />
Barthes figura à cabeça <strong>de</strong> todas as<br />
“listas <strong>de</strong> ouro”. Para perceber o<br />
fenómeno, Kun<strong>de</strong>ra lê o Anatole<br />
France <strong>de</strong> “Les Dieux Ont Soif”<br />
(1912), obra-prima sobre o Terror. A<br />
posterida<strong>de</strong> não lhe perdoa a<br />
imagem dos “peraltas estúpidos e<br />
fanatizados” que queimam<br />
Robespierre (o manequim que o<br />
representa) enquanto “enforcam a<br />
efígie <strong>de</strong> Marat”. Paradigma: “- Qual<br />
o seu compositor preferido? / - Saint-<br />
Saëns, não com certeza!” É só<br />
adaptar à realida<strong>de</strong> portuguesa.<br />
Aimé Césaire, quem se lembra<br />
<strong>de</strong>le? Césaire lutou contra a<br />
ocupação colonial francesa,<br />
escreveu “Cahier d’un retour au<br />
pays natal” (1939), que Breton<br />
consi<strong>de</strong>rou o maior monumento<br />
lírico do século XX, inventou a<br />
noção <strong>de</strong> negritu<strong>de</strong>, fundou a revista<br />
“Tropiques” (1941-45), moldou a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural da Martinica...<br />
Kun<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>dica-lhe páginas justas. O<br />
mesmo se diga das que, a partir do<br />
“point <strong>de</strong> vue” francês, reportam ao<br />
<strong>de</strong>sconcerto das relações da Europa<br />
com a literatura, a filosofia e a arte<br />
em geral: “É com alívio que<br />
preferimos Coco Chanel e a<br />
inocência dos seus vestidos a esses<br />
corifeus culturais [Eliot, Hei<strong>de</strong>gger,<br />
Larkin, Brecht, etc.] comprometidos<br />
com o mal do século, a sua<br />
perversida<strong>de</strong>, os seus crimes.”<br />
E mais, muito mais.<br />
Decididamente, prefiro o Kun<strong>de</strong>ra<br />
ensaísta ao ficcionista várias vezes<br />
laureado.<br />
AFP<br />
36 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
Teatro/Dança<br />
Dia<br />
Mundial<br />
do<br />
Teatro<br />
Meter ou não<br />
meter, eis<br />
a questão<br />
A PELE leva a violência<br />
doméstica ao Ciclo <strong>de</strong> Teatro<br />
do Porto?, que acaba no<br />
domingo com uma maratona<br />
<strong>de</strong> apresentações. Sara Dias<br />
Oliveira<br />
Meto a Colher?!<br />
Pela PELE. Direcção artística <strong>de</strong><br />
Hugo Cruz. Com Eva Fernan<strong>de</strong>s,<br />
João Pedro Correia, Manuel<br />
Magalhães, Maria João Mota.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Lg. do Pica<strong>de</strong>iro. Dia 27/03. Dom. das 16h15<br />
às 20h. Entrada gratuita.<br />
Ciclo <strong>de</strong> Teatro do Porto? Tar<strong>de</strong><br />
Mundial do Teatro.<br />
As diferentes formas <strong>de</strong> violência<br />
doméstica – a mulher chique que<br />
passa o tempo ao telemóvel, ou com<br />
os olhos colados às revistas <strong>de</strong> moda,<br />
sem paciência para o marido que lhe<br />
pe<strong>de</strong> atenção, ou a mulher <strong>de</strong> bata e<br />
chinelos que <strong>de</strong>finha numa banca <strong>de</strong><br />
cozinha com as constantes<br />
insinuações e reprovações do marido<br />
– acontecem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um cubo<br />
construído com plástico opaco. Lá<br />
<strong>de</strong>ntro, dois espaços distintos são<br />
alternadamente ocupados, conforme<br />
as histórias que se vão contar: uma<br />
casa pobre e uma casa rica separadas<br />
por uma mesa dividida ao meio por<br />
uma toalha, meta<strong>de</strong> branca bordada,<br />
meta<strong>de</strong> florida <strong>de</strong> plástico. Há<br />
também um can<strong>de</strong>eiro no tecto que<br />
faz essa separação entre a família rica<br />
– do computador portátil, da sala<br />
monocromática, do sofá da moda – e<br />
a família pobre – dos móveis baratos,<br />
das sacas das compras pousadas no<br />
chão, da bacia da roupa suja.<br />
“Meto a Colher?!” é uma instalação<br />
que resulta do cruzamento <strong>de</strong><br />
diversas experiências que os<br />
elementos da PELE_Espaco <strong>de</strong><br />
Contacto Social e Cultural, do Porto,<br />
tiveram ao longo dos últimos cinco<br />
anos em vários projectos - ora com<br />
vítimas, ora com agressores. Essas<br />
vivências não podiam ficar entre as<br />
quatro pare<strong>de</strong>s da Fábrica da Rua da<br />
Alegria. E assim nasceu uma<br />
performance que retrata vários<br />
episódios <strong>de</strong> violência doméstica – há<br />
também a neta que não consegue<br />
aturar o avô e a mãe que bate nos<br />
filhos - e que se apresenta este<br />
domingo, Dia Mundial do Teatro, no<br />
Teatro São Luiz, em <strong>Lisboa</strong>, das 16h15<br />
às 20h, sem interrupções. O cubo<br />
estará montado no Largo do<br />
Pica<strong>de</strong>iro. A 2 <strong>de</strong> Junho, a<br />
performance mostra-se também no<br />
FITEI – Festival Internacional <strong>de</strong><br />
Teatro <strong>de</strong> Expressão Ibérica, no<br />
Porto.<br />
Domingo é Dia<br />
Mundial do<br />
Teatro e por<br />
todo o país,<br />
<strong>de</strong> Bragança<br />
a Loulé, há<br />
espectáculos <strong>de</strong> graça (ou quase)<br />
para assinalar a data. Em <strong>Lisboa</strong>, a Companhia<br />
do Chapitô oferece ao público a entrada em<br />
“Cemitério dos Prazeres”, a nova encenação <strong>de</strong><br />
John Mowatt, com Jorge Cruz e Tiago Viegas. O<br />
espectáculo é às 22h, nas instalações do Chapitô<br />
(à Rua da Costa do Castelo).<br />
Agenda<br />
Teatro<br />
Estreiam<br />
Susana Pomba<br />
De André e. Teodósio. Pelo Teatro<br />
Praga.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Sala <strong>de</strong> Ensaio.<br />
Pç. Império. De 29/03 a 03/04. 3ª a Sáb. às 21h.<br />
Dom. às 16h. Tel.: 213612400. 10€.<br />
Ver texto na pág. 12.<br />
Seis Peças Biográficas<br />
Direcção <strong>de</strong> Rui Catalão.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Turim. Estrada <strong>de</strong> Benfica, 723 A.<br />
De 25/03 a 29/03. 2ª, 3ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Dom.<br />
às 16h. Tel.: 217606666. 6€.<br />
O Álbum <strong>de</strong> Família<br />
De Rui Herbon.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Aberto - Sala Vermelha. Pç.<br />
Espanha. De 31/03 a 29/05. 4ª a Sáb. às 21h30.<br />
Dom. às 16h. Tel.: 213880089. 7,5€ a 15€.<br />
Um Homem Falido<br />
De David Lescot. Pelos Artistas<br />
Unidos.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Instituto Franco-Português. Av. Luís Bívar,<br />
91. De 29/03 a 09/04. 3ª a Sáb. às 21h30. Tel.:<br />
213111400. 5€ a 10€.<br />
Continuam<br />
Anúncio <strong>de</strong> Morte: Álbum <strong>de</strong><br />
Família<br />
De Heiner Müller. Encenação <strong>de</strong><br />
Mónica <strong>Calle</strong>. Com Tiago Vieira.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Casa Conveniente. R. Nova do Carvalho,<br />
11. Até 03/04. 2ª a Dom. das 20h às 0h. Tel.:<br />
964407007. 7€.<br />
Ver texto na pág. 6 e segs.<br />
Frida Frida<br />
De Mónica Garcez. Pela Karnart.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria Monumental. Cp. Mártires da<br />
Pátria, 101. Até 03/04. 3ª a Dom. às 22h. Tel.:<br />
213533848. 8€ a 15€.<br />
Long Distance Hotel Revisited<br />
De Gilles Polet, Goran Sergej<br />
Pristas, Tónan Quito, entre outros.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos - Sala<br />
Principal. Av. Frei Miguel Contreiras, 52. Até 27/03.<br />
5ª a Dom. às 21h30. Tel.: 218438801. 6€ a 12€.<br />
Brilharetes<br />
De Antonio Tarantino. Encenação<br />
<strong>de</strong> Jorge Silva Melo.<br />
Cartaxo. Centro Cultural. R. 5 <strong>de</strong> Outubro. De 25/03<br />
a 26/03. 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.: 243701600. 4€.<br />
Holiday<br />
De Raimondo Cortese. Pelo Ranters<br />
Theatre.<br />
Porto. Estúdio Zero. R. Heroísmo, 86. Até 27/03.<br />
5ª a Dom. às 21h30. Tel.: 225373265. 8€.<br />
Dança<br />
Estreiam<br />
Cédric Andrieux<br />
De Cédric Andrieux, Jérôme Bel.<br />
Viseu. Teatro Viriato. Lg. Mouzinho<br />
Albuquerque. Dia 26/03. Sáb. às 21h30. Tel.:<br />
232480110. 7,5€ a 15€.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos - Sala<br />
Principal. Av. Frei Miguel Contreiras, 52. De 30/03<br />
a 31/03. 4ª e 5ª às 21h30. Tel.: 218438801. 15€.<br />
Ver texto na pág. 10 e segs.<br />
Continuam<br />
Babel<br />
De Sidi Larbi Cherkaoui, Damien<br />
Jalet.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Gran<strong>de</strong><br />
Auditório. Pç. Império. De 25/03 a 26/03. 6ª e<br />
Sáb. às 21h. Tel.: 213612400. 5€ a 20€.<br />
JM FURTADO<br />
“Meto a Colher?!”<br />
obriga o espectador<br />
a tomar uma posição<br />
acerca das histórias<br />
encenadas <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> um cubo<br />
<strong>de</strong> plástico opaco<br />
Durante quatro horas, oito<br />
famílias disfuncionais habitam esse<br />
cubo. As palavras não se ouvem,<br />
prevalece a força dos gestos e das<br />
expressões. Os diálogos fazem-se<br />
com o corpo, os olhos, o rosto, as<br />
mãos, as louças, os objectos. As<br />
histórias existem, mas o improviso é<br />
a matéria-prima dos intérpretes. Há<br />
também música ao vivo para<br />
acompanhar os passos dos actores e<br />
sons que lembram o quotidiano das<br />
varinhas mágicas, dos choros, dos<br />
aspiradores, dos <strong>de</strong>sabafos, das<br />
canções <strong>de</strong> embalar.<br />
Eva Fernan<strong>de</strong>s, João Pedro Correia,<br />
Manuel Magalhães e Maria João Mota<br />
vestem a pele <strong>de</strong>sses casais que se<br />
distanciam na violência. O resto da<br />
família pertence à comunida<strong>de</strong> local.<br />
Hoje, dois dias antes da apresentação<br />
pública, a PELE trabalhará com oito<br />
pessoas <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, que farão parte da<br />
instalação, num laboratório artístico.<br />
Meter a colher? Sim, essa é a<br />
questão. Os actores rasgam o plástico<br />
do cubo para entrar e sair e o público<br />
não entra. Para ver o que acontece, é<br />
necessário abrir as frechas <strong>de</strong>sse<br />
plástico opaco com uma colher, que é<br />
entregue por um polícia – para<br />
lembrar que a<br />
violência doméstica também é crime<br />
público. Meter ou não a colher fica,<br />
assim, à consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> quem<br />
passa. É como espreitar pelo buraco<br />
da fechadura.<br />
“O cubo é uma estrutura que<br />
simboliza a esfera privada em<br />
contraponto com a esfera pública. E<br />
quem passa vai optar por espreitar<br />
ou não espreitar, por meter ou não a<br />
colher”, refere Hugo Cruz, director<br />
artístico da PELE. “Nesta instalação,<br />
abordamos diferentes tipos <strong>de</strong><br />
violência, entre marido e mulher,<br />
entre filhos e pais, entre jovens e<br />
idosos. Há famílias pobres e ricas,<br />
para mostrar que a violência é<br />
transversal a toda a socieda<strong>de</strong>. Evitase<br />
a palavra e a violência é muito<br />
física”, acrescenta.<br />
“Meto a Colher?!” integra a Tar<strong>de</strong><br />
Mundial do Teatro que encerra o Ciclo<br />
<strong>de</strong> Teatro do Porto? do São Luiz. Além<br />
da PELE, mostrarão o seu trabalho na<br />
maratona <strong>de</strong> domingo, a partir das<br />
15h, as companhias Teatro Meia<br />
Volta..., Erva Daninha, Palmilha<br />
Dentada, Radar 360º, Teatro <strong>de</strong><br />
Ferro, Tenda <strong>de</strong> Saias e Teatro do Frio.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 37
Expos<br />
Manuela Marques monta<br />
uma coreografia do visível<br />
e do invisível a partir<br />
<strong>de</strong> um parque <strong>de</strong> São Paulo<br />
dominado pelo tráfico<br />
e pelo consumo <strong>de</strong> crack<br />
Uma<br />
exposição <strong>de</strong><br />
fotografia<br />
O prémio BESphoto alargou<br />
a sua geografia ao mundo<br />
lusófono e o resultado é<br />
sedutor. José Marmeleira<br />
BES Photo 2010<br />
De Carlos Lobo, Kiluanji Kia Henda,<br />
Manuela Marques, Mário Macilau,<br />
Mauro Restiffe.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. Império. Tel.:<br />
213612878. Até 13/06. 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª e Dom. das<br />
10h às 19h. Sáb. das 10h às 22h.<br />
Fotografia.<br />
mmmmn<br />
Lá fora<br />
Quem entrar na exposição do<br />
BESPhoto 2011, no Museu Berardo,<br />
será tentado a dizer que o Prémio tem<br />
mais “fotografia”, mais fotógrafos.<br />
Que os artistas seleccionados fazem<br />
da fotografia a sua prática central ou<br />
mesmo exclusiva. Que os trabalhos<br />
expostos (embora propondo coisas<br />
distintas) apresentam objectos ou<br />
interesses similares, como a<br />
paisagem, o real, os espaços públicos,<br />
“o exterior”.<br />
São observações legítimas. Nas<br />
obras <strong>de</strong> Carlos Lobo, Manuela<br />
Marques, Kiluanji Kia Henda, Mário<br />
Macilau e Mauro Restiffe (os<br />
seleccionados), a fotografia não é um<br />
meio entre outros. É o meio. E a tal<br />
constatação po<strong>de</strong>mos acrescentar<br />
De 1 <strong>de</strong> Junho a 5 <strong>de</strong><br />
Setembro, Leonor<br />
Antunes (<strong>Lisboa</strong>,<br />
1972) intervirá<br />
em alguns espaços<br />
do Centro <strong>de</strong> Arte<br />
Reina Sofia, em<br />
Madrid, no quadro do programa Fisuras. As suas<br />
esculturas, lê-se já no “site” do museu, revelam-se<br />
“enquanto obras, mas também como ferramentas<br />
para interpretar a natureza contingente do real”.<br />
outra: prevalece nas obras <strong>de</strong>stes<br />
artistas uma tendência mais<br />
documental/antropológica em<br />
<strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> uma outra, mais<br />
expandida ou multidisciplinar. Dito<br />
<strong>de</strong> outro modo, o BESphoto 2011 está<br />
mais “Aperture” do que “Frieze”.<br />
África é o tema nas fotografias <strong>de</strong><br />
Mário Macilau (Moçambique, 1984) e<br />
Kiluanji Kia Henda (Angola, 1979). O<br />
primeiro apresenta-se com<br />
“Maziones” (2010), que regista os<br />
rituais dos zionistas, um grupo<br />
religioso moçambicano, e “Wood<br />
Work” (2010), sobre a vida numa<br />
favela construída sobre água nos<br />
arredores <strong>de</strong> Lagos, na Nigéria. São<br />
duas séries distantes (pela cor, pelas<br />
realida<strong>de</strong>s fotografadas), mas que<br />
<strong>de</strong>svelam o envolvimento (físico e<br />
emocional) do fotógrafo com o seu<br />
objecto, coisa rara, portanto preciosa.<br />
Kiluanji Kia Henda percorre outros<br />
trilhos com “Há dias que <strong>de</strong>ixo o<br />
coração em casa...”. A sua fotografia<br />
exuberante, “preparada”, compõe<br />
uma viagem aos pesa<strong>de</strong>los e traumas<br />
<strong>de</strong> Angola ou às paisagens inusitadas<br />
do nosso mundo global (da África do<br />
Sul a Sines). Alguns trabalhos foram<br />
apresentados anteriormente, outros<br />
são inéditos e neles subsiste, num<br />
primeiro momento, um mistério, logo<br />
<strong>de</strong>rrotado pelo humor violento e<br />
caído dos títulos (“Big Bang” é a<br />
marca <strong>de</strong> um obus numa pare<strong>de</strong>,<br />
“Natureza Quase Morta” é uma<br />
paisagem <strong>de</strong>sertificada pela<br />
exploração <strong>de</strong> diamantes na região <strong>de</strong><br />
Lunda Sul) ou por certos pormenores<br />
(um letreiro, um homem a dormir na<br />
estrada). Cor e angústia.<br />
Nas fotografias <strong>de</strong> Carlos Lobo<br />
(Guimarães, 1974) também há cor, e<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
marcas da guerra, mas a angústia está<br />
fora <strong>de</strong> campo. Em vez <strong>de</strong> seguirmos<br />
a reconstrução dolorosa <strong>de</strong> uma<br />
biografia possível (<strong>de</strong> um artista ou <strong>de</strong><br />
um lugar), atravessamos, como<br />
passageiros <strong>de</strong> um “road movie”, uma<br />
cida<strong>de</strong>, Beirute, no Líbano. Não<br />
vemos imagens <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>vastação,<br />
antes o que lhe sobreviveu. Edifícios,<br />
ruas, árvores, pinturas murais<br />
resgatadas pela fotografia e<br />
introduzidas na vida do espectador:<br />
atente-se na natureza tridimensional<br />
<strong>de</strong> algumas imagens ou na resistência<br />
poética que nelas o quotidiano<br />
insinua.<br />
Manuela Marques (Ton<strong>de</strong>la, 1959) e<br />
Mauro Restiffe (Brasil, 1970) são<br />
provavelmente os artistas com as<br />
propostas mais fortes. A portuguesa<br />
monta uma coreografia do visível e do<br />
invisível a partir <strong>de</strong> um parque da<br />
cida<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong> São Paulo<br />
dominado pelo tráfico e pelo<br />
consumo <strong>de</strong> crack. O que olhamos –<br />
uma sucessão <strong>de</strong> planos picados,<br />
“close-ups” e quase sequências –<br />
nunca nos <strong>de</strong>volve, todavia, uma<br />
verda<strong>de</strong>, uma “realida<strong>de</strong>”. Há corpos<br />
que se tocam como se prestes a iniciar<br />
uma dança (na maravilhosa “Contact<br />
I”), objectos inusitados (sacos<br />
pendurados numa árvore, uma tábua<br />
<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira suspensa sobre ramos)<br />
paisagens <strong>de</strong> uma aparente placi<strong>de</strong>z<br />
que apenas se altera quando<br />
movemos o corpo para voltar a ver.<br />
As fotografias a preto e branco <strong>de</strong><br />
Mauro Restiffe operam um<br />
<strong>de</strong>slocamento temporal e, tal como as<br />
<strong>de</strong> Manuela Marques, “apropriam-se”<br />
<strong>de</strong> referências pictóricas (a pintura<br />
histórica ou <strong>de</strong> paisagem) e,<br />
sobretudo, cinematográficas.<br />
Realizadas em Acapulco, no México,<br />
cobertas <strong>de</strong> luz e <strong>de</strong> escuridão, a série<br />
“La Noche” (um campo/contracampo)<br />
e a fabulosa “Cliff Divers”<br />
podiam ser “stills” <strong>de</strong> “A Dama <strong>de</strong><br />
Xangai”, <strong>de</strong> Orson Welles. Eis uma<br />
possibilida<strong>de</strong> que encanta e<br />
confun<strong>de</strong>, ampliada pela dimensão<br />
histórica e artesanal da fotografia a<br />
preto e branco e pela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> história<br />
como paisagem, aspectos que<br />
reencontramos na série “Tlatelolco”,<br />
“travelling” <strong>de</strong>dicado à Plaza<br />
Tlatelolco da Cida<strong>de</strong> do México. É<br />
uma fotografia <strong>de</strong> uma resistência<br />
melancólica.<br />
O observatório i<strong>de</strong>al<br />
Reflexões sobre a paisagem<br />
no Pavilhão Branco do<br />
Museu da Cida<strong>de</strong>. Luísa<br />
Soares <strong>de</strong> Oliveira<br />
Aqui e Além<br />
De Michael Biberstein, Rui Sanches.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Pavilhão Branco do Museu da Cida<strong>de</strong>. Cp.<br />
Gran<strong>de</strong>, 245. Tel.: 217513200. Até 10/04. 3ª a Dom.<br />
das 10h às 18h.<br />
mmmnn<br />
Michael Biberstein e Rui Sanches<br />
Michael Biberstein,<br />
pintor, e Rui Sanches,<br />
escultor, dialogam entre<br />
si, e com a paisagem,<br />
em “Aqui e Além”<br />
necessitam <strong>de</strong> poucas<br />
apresentações. Ambos são artistas<br />
que souberam criar um percurso e<br />
uma obra importante <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
década <strong>de</strong> 80. Ambos, também,<br />
sabem que o trabalho que fazem<br />
possui um ritmo próprio, não se<br />
compa<strong>de</strong>cendo com a ânsia <strong>de</strong><br />
expor e <strong>de</strong> ocupar os primeiros<br />
lugares na plateia das artes. Assim,<br />
uma exposição <strong>de</strong> qualquer um<br />
<strong>de</strong>les ou, melhor ainda, uma<br />
exposição que resulta <strong>de</strong> um<br />
projecto em comum, como é agora o<br />
caso, é <strong>de</strong>certo razão suficiente para<br />
<strong>de</strong>spertar o interesse e as visitas.<br />
“Aqui e Além” parte, <strong>de</strong> facto, da<br />
própria iniciativa <strong>de</strong> Michael<br />
Biberstein e <strong>de</strong> Rui Sanches. O lugar,<br />
o Pavilhão Branco do Museu da<br />
Cida<strong>de</strong>, um edifício mo<strong>de</strong>rnista <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s pare<strong>de</strong>s envidraçadas sobre<br />
o jardim, adapta-se particularmente<br />
bem à obra <strong>de</strong> cada um. Biberstein,<br />
pintor, tem sistematicamente<br />
abordado o conceito <strong>de</strong> paisagem,<br />
trabalhando os limites do espaço da<br />
tela (quase sempre <strong>de</strong> dimensões<br />
consi<strong>de</strong>ráveis) e a questão da<br />
profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> campo pelo recurso<br />
a subtis evocações <strong>de</strong> nuvens e<br />
atmosferas aéreas. Quanto a Rui<br />
Sanches, escultor, convoca os<br />
géneros académicos da arte –<br />
natureza-morta, pintura <strong>de</strong> história,<br />
retrato – através da acumulação <strong>de</strong><br />
peças <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e outros materiais,<br />
operando uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>capagem<br />
das aparências para chegar ao âmago<br />
dos conceitos. Por isso, à partida,<br />
ambas as obras possuem esse<br />
<strong>de</strong>nominador comum necessário<br />
para construir diálogos, arquitectar<br />
respostas, e por fim motivar o<br />
visitante para uma reflexão sobre a<br />
pertinência actual das disciplinas e<br />
dos géneros artísticos.<br />
Assim, toda a exposição se articula<br />
nesta espécie <strong>de</strong> conversa silenciosa<br />
entre escultura e pintura, paisagem e<br />
retrato ou natureza-morta,<br />
sofisticação cromática e ru<strong>de</strong>za dos<br />
tons da ma<strong>de</strong>ira ou do metal. Se as<br />
pinturas <strong>de</strong> Biberstein quase<br />
38 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
Pedro Amaral<br />
no Museu<br />
do Neo-Realismo<br />
<strong>de</strong> Vila Franca<br />
<strong>de</strong> Xira<br />
“K”, <strong>de</strong> André<br />
Sier, na Appleton<br />
Square<br />
“Não Somos<br />
Desenhadores<br />
Perfeitos”:<br />
diários gráficos<br />
no Museu da Cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Almada<br />
Agenda<br />
sistematicamente provêm <strong>de</strong> séries já<br />
com alguns anos, as esculturas <strong>de</strong><br />
Sanches são todas recentes,<br />
<strong>de</strong>monstrando uma maior<br />
complexida<strong>de</strong> formal no seu<br />
processo <strong>de</strong> trabalho habitual. Os<br />
contraplacados, que o artista<br />
pontualmente sobrepõe em<br />
estratigrafias tridimensionais, isolamse<br />
nestas peças em caixas que<br />
multiplicam os lugares possíveis <strong>de</strong><br />
exposição no interior do pavilhão.<br />
Há, no primeiro andar, uma peça<br />
que foi feita em conjunto pelos dois<br />
artistas. Trata-se <strong>de</strong> “Aqui e Além” (o<br />
nome é o mesmo da exposição), uma<br />
instalação composta por um<br />
pequeno observatório em ma<strong>de</strong>ira,<br />
ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> troncos <strong>de</strong> árvore, on<strong>de</strong><br />
se abre uma janela sobre uma pintura<br />
<strong>de</strong> Biberstein. A parte escultórica<br />
<strong>de</strong>sta peça não possui a<br />
complexida<strong>de</strong> do trabalho <strong>de</strong><br />
Sanches, o que leva a crer numa<br />
colaboração efectiva entre ambos os<br />
artistas. Contudo, a sua disposição,<br />
mesmo em frente a uma das gran<strong>de</strong>s<br />
vidraças do edifício – e,<br />
consequentemente, do jardim<br />
oitocentista do palácio que é hoje o<br />
Museu da Cida<strong>de</strong> -, ignora por<br />
completo essa paisagem bem real<br />
que interfere com autorida<strong>de</strong> na<br />
montagem <strong>de</strong> todas as exposições<br />
que aqui se realizam. Como está,<br />
“Aqui e Além” abstrai da<br />
reconstrução minuciosa e cuidada da<br />
natureza que todo o jardim, no<br />
fundo, é, para se concentrar nas<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conjugação entre<br />
uma pintura e uma escultura que<br />
trabalham sobre a história da arte.<br />
Ou seja, dito <strong>de</strong> outro modo, esta<br />
exposição exemplifica dois modos<br />
distintos <strong>de</strong> observar a arte, embora<br />
seja feita num lugar que é, ele<br />
próprio, um observatório da<br />
paisagem. Não necessitava do<br />
Pavilhão Branco para se concretizar.<br />
A menos que esse feixe <strong>de</strong> ligações<br />
ausentes entre o lugar e as obras<br />
fique a cargo do espectador, uma<br />
presença actuante em qualquer<br />
instalação contemporânea.<br />
Inauguram<br />
Sobreimpressões. Maria<br />
Gabriela Llansol: Uma visão da<br />
Europa<br />
<strong>Lisboa</strong>. CCB - Galeria Mário Cesariny. Pç. Império.<br />
Tel.: 213612400. Até 17/04. 2ª a 6ª das 14h às 18h.<br />
Sáb., Dom. e Feriados das 14h às 20h. Inaugura<br />
27/03 às 15h.<br />
Pintura, Escultura, Fotografia, Outros.<br />
Ver texto na pág. 20 e segs.<br />
Escrever Paisagem: Manuel<br />
Baptista - Desenhos 1960-1970<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação Carmona e Costa. R. Soeiro<br />
Pereira Gomes L1 - 6º A/C/D. Tel.: 217803003. De<br />
26/03 a 28/05. 4ª a Sáb. das 15h às 20h. Inaugura<br />
26/3 às 17h.<br />
Desenho.<br />
Ver texto na pág. 31 e segs.<br />
O Passado e o Presente - Outro<br />
Olhar Sobre a Colecção do<br />
Museu do Neo-Realismo<br />
De Pedro Amaral, José Maçãs <strong>de</strong><br />
Carvalho, Carla Filipe, entre outros.<br />
Vila Franca <strong>de</strong> Xira. Museu do Neo-Realismo. R.<br />
Alves Redol, 45. Tel.: 263285626. De 26/03 a 22/05.<br />
3ª a 6ª das 10h às 19h. Sáb. das 12h às 19h. Dom.<br />
das 11h às 18h. Inaugura 26/3 às 16h.<br />
Pintura, Desenho, Escultura.<br />
K.<br />
De André Sier.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Appleton Square. R. Acácio Paiva, 27 - r/c.<br />
Tel.: 210993660. De 31/03 a 06/04. 3ª a Sáb. das<br />
15h às 20h. Inaugura 31/3 às 22h.<br />
Instalação.<br />
Continuam<br />
Livre Circulação - Obras da<br />
Colecção da Fundação <strong>de</strong><br />
Serralves<br />
De Bruce Nauman, Gerhard Richter,<br />
Helena Almeida, entre outros.<br />
Algés. Centro <strong>de</strong> Arte Manuel <strong>de</strong> Brito. Al. Hermano<br />
Patrone. Tel.: 214111400. De 19/03 a 30/06. 3ª a<br />
Dom. das 11h30 às 18h.<br />
Pintura, Escultura, Desenho, Ví<strong>de</strong>o.<br />
Família<br />
De Vasco Araújo.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Ermida <strong>de</strong> Nossa Senhora da Conceição. Tv.<br />
Marta Pinto, 12. Tel.: 213637700. De 19/03 a 15/05.<br />
3ª a 6ª das 11h às 17h. Sáb. e Dom. das 14h às 18h.<br />
Desenho.<br />
1+1+1=3<br />
De Hermann Pitz, Michael Snow,<br />
Bernard Voïta.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Culturgest. R. Arco do Cego. Tel.: 217905155.<br />
Até 08/05. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª das 11h às 19h. Sáb., Dom.<br />
e Feriados das 14h às 20h.<br />
Fotografia, Ví<strong>de</strong>o.<br />
Gedi Sibony<br />
<strong>Lisboa</strong>. Culturgest. R. Arco do Cego - Ed. da CGD.<br />
Tel.: 217905155. Até 08/05. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª das 11h às<br />
19h. Sáb., Dom. e Feriados das 14h às 20h.<br />
Instalação.<br />
Observadores - Revelações,<br />
Trânsitos e Distâncias<br />
De Vito Acconci, Augusto Alves da<br />
Silva, João Onofre, entre outros.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. Império. Tel.:<br />
213612878. Até 29/05. Sáb. das 10h às 22h. 2ª a 6ª,<br />
Dom. e Feriados das 10h às 19h.<br />
Pintura, Escultura, Instalação, Ví<strong>de</strong>o.<br />
O Modo Como Não Foi<br />
Porto. Culturgest. Av. dos Aliados, 104 - Ed. da CGD.<br />
Tel.: 222098116. Até 16/04. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª das 11h às<br />
19h. Sáb., Dom. e Feriados das 14h às 20h.<br />
Documental, Outros.<br />
My Choice - Obras Seleccionadas<br />
por Paula Rego na Colecção do<br />
British Council<br />
De David Hockney, Madame<br />
Yevon<strong>de</strong>, Lucian Freud, entre outros.<br />
Cascais. Casa das Histórias - Paula Rego. Av. da<br />
República, 300. Tel.: 214826970. Até 12/06. 2ª a<br />
Dom. das 10h às 18h.<br />
Pintura, Fotografia, Outros.<br />
Lecture/Audience/Camera<br />
De Wen<strong>de</strong>lien van Ol<strong>de</strong>nborgh.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Carpe Diem Arte e Pesquisa. R. <strong>de</strong> O Século,<br />
79. Até 21/05. 4ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />
Ví<strong>de</strong>o, Instalação.<br />
Os Jardins <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />
De Gabriela Machado.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Carpe Diem Arte e Pesquisa. R. <strong>de</strong> O Século,<br />
79. Até 21/05. 4ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />
Pintura.<br />
The Best of All Possible World<br />
De Bettina Lockemann, Claudia<br />
Fischer, entre outros.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Carpe Diem Arte e Pesquisa. R. <strong>de</strong> O Século,<br />
79. Até 21/05. 4ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />
Fotografia, Ví<strong>de</strong>o.<br />
Paisagens VI<br />
De Maria Caldas Ribeiro.<br />
Porto. Serpente - Galeria <strong>de</strong> Arte Contemporânea.<br />
Rua Miguel Bombarda, 558. Tel.: 226099440. Até<br />
16/04. 3ª a Sáb. das 15h às 19h.<br />
Pintura.<br />
Mundo Aardman<br />
Vila do Con<strong>de</strong>. Solar - Galeria <strong>de</strong> Arte Cinemática.<br />
Tel.: 252646516. Até 05/06. 3ª a 6ª das 10h às 18h.<br />
Desenho, Objectos, Outros.<br />
Detritos<br />
De Alexandre Farto.<br />
Porto. Galeria Presença. R. Miguel Bombarda, 570.<br />
Tel.: 226060188. Até 23/04. 2ª a 6ª das 10h às<br />
19h30. Sáb. das 15h às 19h30.<br />
Instalação, Outros.<br />
Porto Interior<br />
De Inês d’Orey.<br />
Porto. Centro Português <strong>de</strong> Fotografia Cp. Mártires<br />
da Pátria. Tel.: 222076310. Até 15/05. 3ª a 6ª das<br />
10h às 18h. Sáb., Dom. e Feriados das 15h às 19h.<br />
Fotografia.<br />
Porto Íntimo<br />
De Aurélio Paz dos Reis.<br />
Porto. Centro Português <strong>de</strong> Fotografia. Cp. Mártires<br />
da Pátria. Tel.: 222076310. Até 15/05. 3ª, 4ª, 5ª e 6ª<br />
das 10h às 18h. Sáb., Dom. e Fer. das 15h às 19h.<br />
Fotografia.<br />
Operações Especiais<br />
De Jorge Mol<strong>de</strong>r.<br />
Castelo Branco. Antigo Edifício dos CTT. Lg. da Sé.<br />
Até 15/05. 2ª a 6ª das 14h às 19h. Sáb. e Dom. das<br />
10h às 19h.<br />
Fotografia.<br />
Quatro<br />
De Sofia Areal, Manuel Casimiro,<br />
Jorge Martins, Nikias Skapinakis.<br />
Aveiro. Museu. Av. Santa Joana. Tel.: 234423297.<br />
Até 30/04. 3ª a Dom. das 10h às 17h30.<br />
Pintura.<br />
Makulatur<br />
De Paulo Nozolino.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria Quadrado Azul. Lg. Stephens, 4.<br />
Tel.: 213476280. Até 21/04. 3ª a Sáb. das 13h às 20h.<br />
Fotografia.<br />
Muros <strong>de</strong> Abrigo<br />
De Ana Vieira.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Centro <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna - José <strong>de</strong> Azeredo<br />
Perdigão. R. Dr. Nicolau Bettencourt. Tel.:<br />
217823474. Até 03/04. 3ª a Dom. das 10h às 18h.<br />
Instalação, Outros.<br />
Diários Gráficos Em Almada:<br />
Não Somos Desenhadores<br />
Perfeitos<br />
De Clara Marta, Eduardo Salavisa,<br />
Francisco Vidal, entre outros.<br />
Cova da Pieda<strong>de</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Almada. Pç.<br />
João Raimundo. Tel.: 212734030. Até 16/04. 3ª a<br />
Sáb. das 10h às 18h.<br />
Desenho.<br />
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />
RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />
GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT; TEL: 213 257 640<br />
SÃO<br />
LUIZ<br />
ABR~11<br />
BILHETES À VENDA EM WWW.TEATROSAOLUIZ.PT,<br />
WWW.BILHETEIRAONLINE.PT E ADERENTES<br />
BILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00<br />
TEL: 213 257 650 / BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />
14 A 17 ABR<br />
QUINTA A SÁBADO ÀS 21H00<br />
DOMINGO ÀS 17H30<br />
SALA PRINCIPAL M/6<br />
TEXTO<br />
JOÃO MONGE<br />
MÚSICA<br />
ALFREDO MARCENEIRO<br />
MÚSICA INCIDENTAL, ARRANJOS<br />
E DIRECÇÃO MUSICAL<br />
JOSÉ PEIXOTO<br />
ENCENAÇÃO<br />
MARIA JOÃO LUÍS<br />
INTERPRETAÇÃO<br />
MANUELA AZEVEDO<br />
MARIA JOÃO LUÍS<br />
www.teatrosaoluiz.pt<br />
CO-PRODUÇÃO<br />
estrutura apoiada por<br />
APOIO À DIVULGAÇÃO<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 39
Discos<br />
Clássica<br />
Viagem<br />
intemporal<br />
A violoncelista Sonia<br />
Wie<strong>de</strong>r-Atherton constrói<br />
uma dramaturgia sonora<br />
que convoca contrastes e<br />
afinida<strong>de</strong>s entre o século<br />
XVI e o século XX. Cristina<br />
Fernan<strong>de</strong>s<br />
Vita<br />
Monteverdi / Scelsi<br />
Sonia Wie<strong>de</strong>r-Atherton<br />
Naïve<br />
mmmmn<br />
O primeiro nome<br />
avançado para o Festival<br />
Med, que <strong>de</strong>corre em Loulé<br />
entre 22 e 25 <strong>de</strong> Junho,<br />
escon<strong>de</strong>, afinal, dois<br />
nomes: a Balkan Brass<br />
Battle (que é como quem<br />
diz duas orquestras <strong>de</strong><br />
sopros balcânicas numa<br />
batalha em palco) coloca<br />
No seu último<br />
disco, a<br />
violoncelista<br />
francesa Sonia<br />
Wie<strong>de</strong>r-Atherton,<br />
que se apresenta<br />
amanhã na Culturgest, combina com<br />
audácia a música <strong>de</strong> dois<br />
compositores separados por quatro<br />
séculos: Claudio Monteverdi (1567-<br />
1643), a figura que inaugura com<br />
enorme pujanaça criativa a era do<br />
barroco musical ao mesmo tempo<br />
que sintetiza a tradição herdada, e<br />
Giacinto Scelsi (1905-1988), uma<br />
personalida<strong>de</strong> isolada na música<br />
do século XX, com um percurso<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das correntes<br />
mais em voga, apaixonado pelas<br />
culturas orientais e<br />
pelas exploração<br />
das qualida<strong>de</strong>s<br />
intrínsecas do<br />
som.<br />
1638) e um excerto da ópera<br />
“L’Incoronazione di Poppea” foram<br />
objectos <strong>de</strong> arranjos para trio <strong>de</strong><br />
violoncelos realizados pela própria<br />
Sonia Wie<strong>de</strong>r-Atherton e por Franck<br />
Krawczyk e são intercalados com<br />
andamentos da trilogia “As Três<br />
Ida<strong>de</strong>s do Homem”, <strong>de</strong> Scelsi<br />
(“Triphon”, “Dithome” e “Ygghur”).<br />
A violoncelista constrói uma<br />
dramaturgia à qual une a história <strong>de</strong><br />
duas personagens <strong>de</strong> tempos<br />
diferentes (a Angioletta dos madrigais<br />
<strong>de</strong> Monteverdi e a Angel do<br />
imaginário <strong>de</strong> Scelsi). A combinação<br />
é pouco convencional, mas é<br />
sustentada pela profundida<strong>de</strong><br />
emocional e pela ousadia da<br />
linguagem.<br />
Mais do que possíveis traços<br />
comuns na sensibilida<strong>de</strong> estética dos<br />
dois compositores, é a abordagem<br />
interpretativa que dá coerência a este<br />
diálogo <strong>de</strong> tempos diferentes. Logo<br />
no início, com a famosa “Lettera<br />
amorosa”, <strong>de</strong> Monteverdi, Wie<strong>de</strong>r-<br />
Atherton faz o violoncello cantar e<br />
falar em múltiplas inflexões,<br />
discretamente acompanhado por<br />
Sarah Iancu e Matthieu Lejeune,<br />
enquanto nos madrigais o trio<br />
estabelece um vivo diálogo. Sempre<br />
presente encontra-se a tentativa <strong>de</strong><br />
esculpir o som numa abordagem que<br />
é mais intemporal do que a procura<br />
das raízes estilísticas <strong>de</strong> Monteverdi.<br />
É porém nos fragmentos <strong>de</strong> Scelsi<br />
que Sonia Wie<strong>de</strong>r-Atherton é mais<br />
convincente, mostrando uma técnica<br />
apurada e a forte afinida<strong>de</strong> com a<br />
música do século XX que faz <strong>de</strong>la a<br />
<strong>de</strong>stinatária <strong>de</strong> tantas obras<br />
contemporâneas. A varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
técnicas e efeitos usados por Scelsi —<br />
diversos tipos <strong>de</strong> “vibrato”, gran<strong>de</strong>s<br />
saltos melódicos, distorção do som<br />
com a ajuda <strong>de</strong> uma surdina <strong>de</strong><br />
metal, “scordatura”, polifonias com<br />
espectros harmónicos fora do vulgar,<br />
etc. — é integrada num discurso<br />
fluído e contínuo, que por vezes<br />
atinge a imaterialida<strong>de</strong>, mergulhando<br />
o ouvinte num universo misterioso.<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
baleia” em “É isso<br />
aí”, o álbum <strong>de</strong><br />
estreia, os que<br />
confundiram e<br />
entusiasmaram em<br />
medidas iguais,<br />
chamam ao novo disco “Pintura<br />
Mo<strong>de</strong>rna”. Porém, não <strong>de</strong>vemos<br />
esperar <strong>de</strong>les o enunciar <strong>de</strong> um<br />
programa estético a cumprir para,<br />
<strong>de</strong>sculpem-nos o termo técnico,<br />
“partir esta merda toda”.<br />
Esta música <strong>de</strong> sintetizadores e<br />
vozes em alvoroço (principalmente a<br />
<strong>de</strong> Pedro Magina, que se expõe sem<br />
receio), esta amálgama <strong>de</strong> memórias<br />
sonoras que nos assalta <strong>de</strong> forma<br />
difusa, qual caleidoscópio <strong>de</strong><br />
referências que nunca<br />
<strong>de</strong>scodificaremos <strong>de</strong>vidamente (e<br />
por isso apreciamos a vista e<br />
seguimos em frente: consegui-lo é<br />
gran<strong>de</strong> parte do segredo dos<br />
Aquaparque), não necessita <strong>de</strong><br />
legenda aposta às canções para ser<br />
legitimada e fruída. Estas nove<br />
canções, mais essa <strong>de</strong>lícia anacrónica<br />
chamada faixa escondida, é uma<br />
peça pop na melhor tradição<br />
progressista do género.<br />
O ambiente criado pelos<br />
sintetizadores aponta aos anos 80 <strong>de</strong><br />
sofisticação, por exemplo, Roxy<br />
Music – mas não é nada disso. A<br />
guitarra <strong>de</strong> André Abel ora tem a<br />
ternura da nostalgia revisitada do<br />
“Sonho azul” <strong>de</strong> Né La<strong>de</strong>iras, ora se<br />
refugia em melancolia bucólica – mas<br />
também não é nada disso. Os loops<br />
corroem a placi<strong>de</strong>z pop e rasgam o<br />
fato muito elegante, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sign<br />
impecável, <strong>de</strong> cada uma das canções,<br />
atirando senhores muito bem<br />
<strong>de</strong>scansados ao pôr-do-sol <strong>de</strong> um dia<br />
<strong>de</strong> Verão para caves on<strong>de</strong> ressoa<br />
pelas pare<strong>de</strong>s a electrónica mais<br />
p p p ç<br />
frente a frente a romena<br />
Fanfare Ciocarlia e a sérvia<br />
Boban & Marko Markovic<br />
Orchestra. Por uma questão<br />
<strong>de</strong> orgulho,<br />
nenhuma<br />
quer fazer<br />
a primeira<br />
parte da<br />
outra e,<br />
Festival<br />
Med<br />
exploratória do nosso século – e, não,<br />
ainda não é isto. Os Aquaparque que<br />
nos diziam “É isso aí!” não são<br />
exactamente nada daquilo.<br />
Sanguíneos e sedutores,<br />
introspectivos ou exuberantes,<br />
Variações ou Brian Ferry ou Ariel<br />
Pink ou Panda Bear, surpreen<strong>de</strong>m<br />
por serem pau na engrenagem da<br />
genealogia pop, obrigando-nos a<br />
rever as certezas, e surpreen<strong>de</strong>m<br />
pela lírica, tão evocativa quanto fora<br />
da norma – prova 1: “por sermos tão<br />
inibidos, trengos coloridos /<br />
passamos sem ninguém nos ver a<br />
ficar parados”, em “Ultra suave”;<br />
prova 2: “o teu corpo tem-te feito<br />
bem? Tens cumprido com o teu<br />
corpo? Tens seduzido alguém com o<br />
teu corpo?”, em “Castigo o teu<br />
nudismo”.<br />
Tudo somado? A langui<strong>de</strong>z da<br />
harmónica em “Espelhado no céu”,<br />
<strong>de</strong>z minutos <strong>de</strong> canção pop que é<br />
porta <strong>de</strong> entrada perfeita em “Pintura<br />
Mo<strong>de</strong>rna”. A classe do single “Para<br />
além do bronze”, daquelas músicas<br />
que tanto po<strong>de</strong>ríamos apresentar à<br />
mãe como ao amigo criador <strong>de</strong><br />
Brooklyn. A carga visceral <strong>de</strong><br />
“Esperar que sim”, crescendo em<br />
fúria até <strong>de</strong>saparecer abruptamente<br />
(que faremos com aquele zumbido<br />
que nos fica?), e o tropicalismo digital<br />
<strong>de</strong> “Emblema”, que celebra calor e<br />
luxúria e que avança até se<br />
transformar em tecno mutante<br />
enfurecido - o conforto é muito<br />
bonito mas os Aquaparque não nos<br />
querem <strong>de</strong>masiado confortáveis. E<br />
ainda bem. Ainda bem que existe esta<br />
“Pintura Mo<strong>de</strong>rna”. Pop nova que<br />
não está interessada em afirmá-lo. De<br />
facto, a existência <strong>de</strong>stas canções é<br />
mais do que suficiente enquanto<br />
proclamação <strong>de</strong>ssa evidência.<br />
Sonia Wie<strong>de</strong>r<br />
Atherton, uma<br />
fortíssima<br />
executante<br />
da música<br />
do século XX,<br />
está amanhã<br />
na Culturgest<br />
Madrigais<br />
do VIII<br />
Livro <strong>de</strong><br />
Monteverdi<br />
(“Madrigali<br />
guerrieri ed<br />
amorosi”,<br />
Pop<br />
O sereno<br />
alvoroço dos<br />
Aquaparque<br />
Uma peça pop na melhor<br />
tradição progressista do<br />
género. Mário Lopes<br />
ENRIC VIVES-RUBIO<br />
Aquaparque<br />
Pintura Mo<strong>de</strong>rna<br />
Aquaboogie; distri. Mbari<br />
mmmmn<br />
Não percamos tempo a chamar novo<br />
ao que novo é. Os Aquaparque, os<br />
que gravaram “De <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />
Sanguíneos e sedutores, introspectivos ou exuberantes,<br />
os Aquaparque do segundo álbum continuam a fazer uma pop<br />
completamente nova
portanto, sobem juntas<br />
ao palco. Tocam na noite<br />
<strong>de</strong> encerramento do Med,<br />
passando antes pela Casa<br />
da Música, Porto, a 17 <strong>de</strong><br />
Maio, e <strong>de</strong>pois por <strong>Lisboa</strong>,<br />
a 24 <strong>de</strong> Junho. No final,<br />
diz-se que o público <strong>de</strong>verá<br />
pronunciar um vencedor.<br />
The Vaccines: tínhamos sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um álbum <strong>de</strong> guitarras <strong>de</strong>scomprometido, honesto e mo<strong>de</strong>radamente talentoso<br />
ROGER SARGENT<br />
VANDA NORONHA<br />
Mais do que assinalar on<strong>de</strong> estão Os Golpes, “G” aponta para on<strong>de</strong> vão<br />
Vá lá,<br />
senhores<br />
Ouvir o álbum intermédio<br />
d’Os Golpes é como espreitar<br />
para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um comboio<br />
em andamento. Gonçalo<br />
Frota<br />
Os Golpes<br />
G<br />
AmorFúria; distri. Arthouse<br />
mmmnn<br />
Eles sabiam que ia<br />
correr bem. Só não<br />
sabiam quanto.<br />
Sabiam que “Vá lá<br />
senhora” não era<br />
uma canção como<br />
as outras, que algo a dotava <strong>de</strong> armas<br />
mais capazes para se bater na<br />
fratricida luta pelo espaço hertziano.<br />
E sabiam que ter Rui Pregal da Cunha<br />
– o há muito ausente dos palcos exvocalista<br />
dos Heróis do Mar, LX-90 e<br />
Kick Out the Jams – traria sobre eles<br />
uma atenção redobrada. Mas não<br />
sabiam que a música se enrolaria <strong>de</strong><br />
tal forma nos ouvidos dos<br />
portugueses (essa entida<strong>de</strong> abstracta<br />
a que só se referem discursantes<br />
políticos e participantes em “reality<br />
shows”) que acabariam 2010 a tocá-la<br />
na Gala <strong>de</strong> Natal da TVI ou a partilhála<br />
com os alunos da Operação<br />
Triunfo. Não sabiam tanto.<br />
“G”, um momento <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scompressão entre o primeiro e o<br />
segundo álbum, e <strong>de</strong> oferta limitada<br />
para os fãs, ganhou a sua própria<br />
ambição e não se satisfez com a<br />
condição <strong>de</strong> filho menor que o<br />
formato EP lhe conferia. Não sendo<br />
propriamente um álbum <strong>de</strong> pleno<br />
direito, “inchou” duas músicas – a<br />
versão que agora segue para as lojas<br />
junta aos cinco temas iniciais uma<br />
versão e um inédito – e é bem capaz<br />
<strong>de</strong> ser o único material novo que<br />
vamos ouvir aos Golpes durante 2011.<br />
É como espreitar para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />
comboio em andamento e perceber o<br />
que se passa lá <strong>de</strong>ntro. Ou seja: muito<br />
embora se faça valer <strong>de</strong> trunfos como<br />
“Vá lá senhora” e conte com uma<br />
óptima visita ao tema popular “Tenho<br />
barcos, tenho remos” (conforme<br />
cantado por Zeca Afonso), a verda<strong>de</strong><br />
é que não são as novas “Paixão” (dos<br />
Heróis do Mar) e “A Brasileira” a<br />
aproximar “G” da mesma<br />
consistência <strong>de</strong> álbum que tinha<br />
“Cruz Vermelha Sobre Fundo<br />
Branco”. Percebe-se que este não será<br />
este um ponto <strong>de</strong> chegada, mas antes<br />
um estudo e um ensaio bastante<br />
acabados daquilo que se imagina vir a<br />
ser o segundo álbum do grupo.<br />
Mas há uma dose <strong>de</strong> audácia e<br />
mesmo <strong>de</strong> insolência que <strong>de</strong>vemos<br />
saudar n’Os Golpes. A versão <strong>de</strong><br />
“Paixão”, evoluída a partir daquela<br />
que prepararam para os concertos <strong>de</strong><br />
apresentação, brinca com o fogo,<br />
como é evi<strong>de</strong>nte. Sendo bastante<br />
digna e suficientemente<br />
personalizada (mais a<strong>de</strong>quada para<br />
palcos <strong>de</strong> guitarra em punho do que<br />
para as discotecas <strong>de</strong> keytar –<br />
também conhecido por teclado à Da<br />
Vinci – à tiracolo), a verda<strong>de</strong> é que Os<br />
Golpes já têm em si suficiente <strong>de</strong><br />
Heróis do Mar para que a escolha<br />
possa soar redundante e incapaz <strong>de</strong><br />
tocar a alta fasquia do original.<br />
“G” é, ainda assim, um motivo<br />
pertinente para percebermos por<br />
on<strong>de</strong> andam estes Golpes que<br />
apareceram a unir o pop/rock<br />
português dos anos 80 ao rock novaiorquino<br />
dos anos 00 (ler: The<br />
Strokes). Mais do que isso até, serve<br />
mais para anteciparmos para on<strong>de</strong><br />
vão.<br />
Adriana Calcanhotto<br />
O Micróbio do Samba<br />
Valentim <strong>de</strong> Carvalho<br />
mmmmn<br />
Se há micróbios<br />
bem-vindos, este é<br />
um. Adriana<br />
Calcanhotto assina<br />
um disco<br />
inspirado, simples<br />
e complexo a um só tempo, que exala<br />
uma subtil frescura e que a cada<br />
audição se torna quase viciante. O<br />
que ela queria dizer através do<br />
samba, disse-o sem mimetizar as<br />
bases tradicionais do género. E no<br />
entanto o samba está lá, é ele o<br />
micróbio. Sob as inteligentes<br />
camadas sonoras construídas por<br />
Adriana (que toca violão, caixa <strong>de</strong><br />
fósforos, cuíca, ban<strong>de</strong>ja <strong>de</strong> chá e até<br />
uma guitarra eléctrica à beira da<br />
distorção em “Po<strong>de</strong>-se remoer”) e<br />
pelos seus dois fantásticos<br />
companheiros <strong>de</strong> aventura:<br />
Domenico Lancellotti em múltiplas<br />
percussões (o bombo da bateria<br />
trocou-o por um surdo <strong>de</strong>itado e essa<br />
mudança é daquelas que marcam<br />
positivamente o disco) e Alberto<br />
Continentino no contrabaixo. Além<br />
<strong>de</strong> participações pontuais <strong>de</strong> Davi<br />
Moraes (guitarra, cavaquinho e viola<br />
“morna”), Rodrigo Amarante<br />
(guitarra) e Moreno Veloso (prato e<br />
faca). Nas canções, Adriana<br />
<strong>de</strong>smultiplica-se em vozes alheias, <strong>de</strong><br />
mulheres mas também a <strong>de</strong> um<br />
homem, porque o samba é um teatro<br />
<strong>de</strong> personagens e histórias e foi assim<br />
que ela se entregou ao samba sem<br />
ser, nem querer ser, sambista. Como<br />
ela diz em “Eu vivo a sorrir”, que está<br />
a ser usada como canção-chave do<br />
trabalho, o acaso estava num bom dia<br />
quando Adriana <strong>de</strong>cidiu fazer um<br />
disco assim. Quem o ouvir perceberá<br />
porquê. Nuno Pacheco<br />
Adriana Calcanhotto<br />
entregou-se ao samba<br />
sem ser (nem querer<br />
ser) sambista<br />
The Vaccines<br />
What Did You Expect From The<br />
Vaccines?<br />
Columbia; distri. Sony Music<br />
mmmnn<br />
Os Vaccines fazemnos<br />
acreditar<br />
novamente na<br />
Inglaterra pop com<br />
guitarras em<br />
frutuosa animação,<br />
memória histórica bem trabalhada e<br />
discurso ora angustiado, ora altivo<br />
sobre as gran<strong>de</strong>s questões da<br />
juventu<strong>de</strong> e, consequentemente da<br />
Humanida<strong>de</strong>: “A lack of<br />
un<strong>de</strong>rstanding” e “Post break-up<br />
GILDA-MIDANI<br />
sex”, títulos <strong>de</strong> duas<br />
canções, resumem parte da coisa -<br />
andávamos há muito órfãos disto,<br />
mergulhados no mar <strong>de</strong> inanida<strong>de</strong>s<br />
que se suce<strong>de</strong>ram aos Libertines, já lá<br />
vai quase uma década.<br />
Ora o quarteto londrino, erguido a<br />
“next big thing” pela imprensa<br />
britânica, não reinventa a roda neste<br />
álbum <strong>de</strong> estreia. Limita-se a ser<br />
absurdamente clássico, bebendo o<br />
indispensável dos Un<strong>de</strong>rtones ou dos<br />
Jam e transformando-o em canções<br />
com a energia rock’n’roll e a sageza<br />
pop necessárias para entusiasmar os<br />
nossos corações se<strong>de</strong>ntos <strong>de</strong> um<br />
pedaço da “good old Brittania”.<br />
Dancemos então: “It’s ok if you<br />
wanna come back to me”.<br />
Entreguemo-nos à aceleração <strong>de</strong><br />
guitarras reverberantes <strong>de</strong><br />
“Norgaard”. Confirmemos que este<br />
pessoal sabe da arte da simplicida<strong>de</strong>:<br />
está tudo em “Post break-up sex”,<br />
cruzamento do <strong>de</strong>sencanto dos<br />
Smiths com o aborrecimento<br />
afectado dos Strokes.<br />
Não é <strong>de</strong>slumbrante a propalada<br />
“next big thing”? Pois não. Mas é o<br />
suficiente para nos fazer acreditar<br />
que, porra, tínhamos sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
um álbum pop <strong>de</strong> guitarras, vindo<br />
daqueles lados, que fosse<br />
<strong>de</strong>scomprometido, honesto e<br />
mo<strong>de</strong>radamente talentoso.<br />
Celebremos então. Mo<strong>de</strong>radamente.<br />
Mas celebremos. M.L.<br />
Jazz<br />
A forma das<br />
estrelas<br />
Regresso <strong>de</strong> Rob Mazurek<br />
e banda com novo registo<br />
superlativo. Rodrigo<br />
Amado<br />
Exploding Star Orchestra<br />
Stars Have Shapes<br />
Delmark<br />
mmmmn<br />
O trompetista Rob<br />
Mazurek dirige<br />
a orquestra mais<br />
“cool” do planeta<br />
Utilizando <strong>de</strong><br />
forma quase<br />
imperceptível<br />
gravações <strong>de</strong><br />
campo que<br />
incluem o<br />
som da chuva a<br />
cair na Amazónia brasileira, o<br />
som <strong>de</strong> bicicletas em Copenhaga, o<br />
ruído <strong>de</strong> insectos, ou a sobreposição<br />
<strong>de</strong> inúmeros trompetes processados<br />
por filtros analógicos, e integrando<br />
esses elementos numa sofisticada e<br />
orgânica orquestra <strong>de</strong> 14 elementos,<br />
o trompetista e compositor norteamericano<br />
Rob Mazurek dá<br />
continuida<strong>de</strong> à construção <strong>de</strong> um<br />
universo sonoro que é só seu.<br />
Originário <strong>de</strong> Chicago e actualmente<br />
a residir no Brasil, Mazurek é o<br />
mentor e impulsionador <strong>de</strong> projectos<br />
tão variados quanto os Isotope 217, as<br />
constelações em duo, trio ou<br />
quarteto dos Chicago Un<strong>de</strong>rground,<br />
ou ainda esta Exploding Star<br />
Orchestra, com a qual gravou já os<br />
extraordinários “We Are All From<br />
Somewhere Else” e “Bill Dixon &<br />
Exploding Star Orchestra”. Reunindo<br />
alguns dos mais vibrantes músicos da<br />
cena <strong>de</strong> Chicago – entre eles a<br />
flautista Nicole Mitchell, o saxofonista<br />
Matt Bau<strong>de</strong>r, o trombonista Jeb<br />
Bishop, o clarinetista Jason Stein, ou<br />
o baterista Mike Reed –, Mazurek<br />
contrói um álbum feito <strong>de</strong> ambientes<br />
cinematográficos e puras texturas<br />
sonoras on<strong>de</strong> se acumulam, em<br />
sucessivas camadas <strong>de</strong> som, as<br />
referidas gravações <strong>de</strong> campo,<br />
drones <strong>de</strong> origem misteriosa,<br />
“feedbacks” analógicos e frequências<br />
geradas por maquinaria digital. Sons<br />
que povoam um expectro sonoro que<br />
é <strong>de</strong>pois invadido pelos instrumentos<br />
acústicos em arranjos que privilegiam<br />
o todo e nunca o discurso solista. Aos<br />
nove minutos do primeiro tema,<br />
“Ascension ghost impression #2”,<br />
surge um arranjo clássico <strong>de</strong><br />
orquestra, que po<strong>de</strong>ria bem ser a <strong>de</strong><br />
Glenn Miller, perturbando por breves<br />
momentos o maelstrom sónico que<br />
caracteriza todo o registo. Sem<br />
atingir a excelência dos dois registos<br />
anteriores, “Stars Have Shapes” não<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma<br />
adição notável à<br />
discografia<br />
da<br />
orquestra<br />
mais<br />
“cool”<br />
do<br />
planeta.
Concertos<br />
AGENDA CULTURAL FNAC<br />
entrada livre<br />
AO VIVO<br />
CUCA ROSETA<br />
01.04. 22H00 FNAC CASCAISHOPPING<br />
Todos os eventos culturais FNAC em http://cultura.fnac.pt<br />
Ver Ricardo Rocha sozinho em palco, com a sua genial guitarra<br />
portuguesa, é um acontecimento para lá <strong>de</strong> bissexto<br />
Pop<br />
A guitarra<br />
imperdível<br />
<strong>de</strong> Ricardo<br />
Rocha<br />
Um génio da guitarra<br />
portuguesa num concerto<br />
raro. Mário Lopes<br />
Ricardo Rocha<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos - Sala<br />
Principal. Av. Frei Miguel Contreiras, 52. 3ª, 29, às<br />
22h. Tel.: 218438801. 6€ a 12€.<br />
Ricardo Rocha é um génio da<br />
guitarra portuguesa e não <strong>de</strong>vemos<br />
ter qualquer pudor em afirmá-lo.<br />
“Volupturária” e “Luminismo”, os<br />
seus álbuns a solo, aqueles em que<br />
<strong>de</strong>finiu a sua linguagem no<br />
instrumento <strong>de</strong> Pare<strong>de</strong>s,<br />
procurando oferecer-lhe uma<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para além do fado, têm o<br />
seu lugar na História e justificam o<br />
adjectivo. Genial, portanto. E<br />
Ricardo Rocha, criador <strong>de</strong> relação<br />
conflituosa com o seu instrumento<br />
– “é tudo em vão”, disse ao Ípsilon<br />
no final <strong>de</strong> 2009, quando editou<br />
“Luminismo” -, raramente dá<br />
concertos. Acompanha<br />
regularmente Carlos do Carmo e vai<br />
tocando a guitarra para as funções<br />
que, diz, ela tão bem foi construída<br />
originalmente – para acompanhar, lá<br />
está -, mas vê-lo em palco, entregue<br />
à sua obra, isso é acontecimento<br />
para além <strong>de</strong> bissexto. Don<strong>de</strong> se<br />
conclui que o concerto que dará no<br />
Teatro Maria Matos, na próxima<br />
terça-feira, é um acontecimento<br />
imperdível. O neto <strong>de</strong> Fontes Rocha,<br />
par <strong>de</strong> Carlos Pare<strong>de</strong>s e Pedro<br />
Cal<strong>de</strong>ira Cabral na procura <strong>de</strong> um<br />
caminho in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte para a<br />
guitarra portuguesa, interpretará na<br />
íntegra a sua obra a solo. Sofrerá a<br />
cada minuto com aquele<br />
instrumento que lhe veio parar às<br />
mãos em tenra ida<strong>de</strong> e que ele, que<br />
gosta tanto do piano (mas chegou<br />
tar<strong>de</strong>), não mais conseguiu largar. O<br />
que ouviremos: os temas originais, a<br />
revisita ao património <strong>de</strong> Pare<strong>de</strong>s ou<br />
<strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>ira Cabral, a passagem pelo<br />
adorado Alexan<strong>de</strong>r Scriabin, o<br />
compositor romântico russo a quem<br />
<strong>de</strong>dicou o segundo CD, preenchido<br />
<strong>de</strong> composições ao piano, do duplo<br />
“Luminismo”. Imperdível,<br />
repetimos. A “maldição” <strong>de</strong>ste<br />
criador e intérprete <strong>de</strong> excepção é a<br />
nossa bênção. Ouçamo-lo. Em palco.<br />
Sem re<strong>de</strong>.<br />
Reencontro com<br />
o inesperado<br />
Tiago Sousa<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 -<br />
Bairro Alto. Amanhã, às 23h. Tel.: 213430205. 6€.<br />
O disco só é posto à venda em Abril,<br />
mas para todos os efeitos é já<br />
amanhã, na ZDB, em <strong>Lisboa</strong>, que se<br />
faz o lançamento do segundo álbum<br />
<strong>de</strong> Tiago Sousa. Chama-se “Wal<strong>de</strong>n<br />
Pond’s Monk” e sairá através da<br />
editora americana Immune<br />
Recordings, com distribuição<br />
mundial pela influente Thrill Jockey.<br />
É também, <strong>de</strong> alguma forma, um<br />
disco <strong>de</strong> confirmação do talento <strong>de</strong><br />
Sousa, <strong>de</strong>pois do excelente<br />
“Insónia” (2009). Em termos <strong>de</strong><br />
conceito, foi composto sob<br />
influência directa do i<strong>de</strong>alismo e do<br />
espírito revolucionário <strong>de</strong> Henry<br />
David Thoreau, no sentido do<br />
respeito pela liberda<strong>de</strong> e das<br />
potencialida<strong>de</strong>s do homem. Do<br />
ponto <strong>de</strong> vista sónico, é um disco<br />
que mantém a mesma aproximação<br />
intuitiva ao piano que o seu<br />
antecessor, em quatro longas peças<br />
instrumentais – com cânticos<br />
colectivos numa <strong>de</strong>las – que voltam a<br />
surpreen<strong>de</strong>r pela sua simplicida<strong>de</strong>,<br />
maturida<strong>de</strong> e força dramática. Vê-lo<br />
ao vivo tem sempre qualquer coisa<br />
<strong>de</strong> inesperado, mas também <strong>de</strong><br />
reencontro com qualquer coisa que<br />
estava lá mas não sabíamos que<br />
estava. Vão ver e perceberão melhor.<br />
Vítor Belanciano<br />
Jazz<br />
I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
própria<br />
Quinze anos <strong>de</strong> Lokomotiv<br />
Trio na Culturgest. Rodrigo<br />
Amado<br />
Carlos Barretto Trio: Lokomotiv<br />
Com Carlos Barretto (contrabaixo),<br />
Mário Delgado (guitarra), José<br />
Salgueiro (bateria).<br />
Tiago Sousa apresenta o novo disco amanhã na ZDB<br />
<strong>Lisboa</strong>. Culturgest - Gran<strong>de</strong> Auditório. R. Arco do<br />
Cego. Hoje, às 21h30. Tel.: 217905155. 18€.<br />
Os Lokomotiv, trio que o<br />
contrabaixista Carlos Barretto<br />
mantém com o guitarrista Mário<br />
Delgado e o baterista José Salgueiro,<br />
celebram hoje os seus 15 anos <strong>de</strong><br />
activida<strong>de</strong> num concerto que se<br />
adivinha memorável. Consi<strong>de</strong>rada<br />
unanimemente uma das gran<strong>de</strong>s<br />
formações do jazz português, os<br />
Lokomotiv foram um dos principais<br />
responsáveis, juntamente com<br />
projectos <strong>de</strong> Bernardo Sassetti, João<br />
Paulo Esteves da Silva, Carlos Bica ou<br />
Mário Laginha, pelo <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, no que<br />
ao jazz diz respeito. Trio po<strong>de</strong>roso e<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvoltura rítmica, os<br />
Lokomotiv estilhaçam influências<br />
oriundas dos mais variados<br />
quadrantes musicais, do rock ao funk,<br />
do jazz <strong>de</strong> vanguarda às músicas do<br />
mundo. Se Carlos Barretto foi, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
sempre, um músico que procurou<br />
conhecer e integrar no seu discurso<br />
as mais diversas linguagens musicais,<br />
nos Lokomotiv estas ganham uma<br />
exuberância própria, <strong>de</strong>stiladas com<br />
paixão, virtuosismo e muita emoção.<br />
Uma celebração que assinala uma<br />
fase <strong>de</strong> notável vitalida<strong>de</strong> para o jazz<br />
nacional, com as melhores<br />
perspectivas para o futuro. A não<br />
per<strong>de</strong>r.<br />
Clássica<br />
A construção<br />
do futuro<br />
Com o programa “Futuros<br />
2.2”, a OrchestrUtopica<br />
dá hoje a conhecer no<br />
CCB obras <strong>de</strong> cinco jovens<br />
compositores portugueses.<br />
Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />
OrchestrUtopica<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Pedro<br />
Figueiredo.<br />
OrchestrUtopica dá voz à mais<br />
recente geração <strong>de</strong> compositores<br />
portugueses, procurando mostrar a<br />
sua diversida<strong>de</strong> estética e vitalida<strong>de</strong><br />
através <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> cinco<br />
obras <strong>de</strong> câmara escritas nos últimos<br />
<strong>de</strong>z anos. “Fragmentos <strong>de</strong> luz<br />
quebrada”, <strong>de</strong> António Breintenfeld<br />
<strong>de</strong> Sá Dantas (n. 1989), e “Moto<strong>de</strong>scontínuo”,<br />
<strong>de</strong> Filipe Esteves (n.<br />
1978), são encomendas da<br />
OrchestrUtopica, que terão a sua<br />
estreia no concerto <strong>de</strong>sta noite (às<br />
21h, no Pequeno Auditório do Centro<br />
Cultural <strong>de</strong> Belém); “De queda em<br />
queda”, <strong>de</strong> João Godinho (n. 1976), é<br />
apresentada numa nova versão. Será<br />
ainda possível ouvir o 1º e o 3º<br />
andamentos <strong>de</strong> “Ca<strong>de</strong>rnos” (para<br />
vibrafone solo), <strong>de</strong> Andreia Pinto-<br />
Correia (n. 1971), e “Periodically<br />
Apperiodical/Apperiodically<br />
Periodical”, <strong>de</strong> Patrício da Silva (n.<br />
1973).<br />
Filipe Esteves, João Godinho e<br />
Patrício da Silva formaram-se na<br />
Escola Superior <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>,<br />
tendo <strong>de</strong>pois seguido percursos e<br />
experiências diversas, que nalguns<br />
casos contemplam também outras<br />
músicas — como o jazz no caso <strong>de</strong><br />
João Godinho — ou especializações<br />
no estrangeiro. Patrício da Silva<br />
doutorou-se nos Estados Unidos e<br />
António Breintenfeld <strong>de</strong> Sá Dantas<br />
estuda composição e direcção <strong>de</strong><br />
orquestra na Faculda<strong>de</strong> das Artes <strong>de</strong><br />
Graz. Andreia Pinto-Correia,<br />
compositora resi<strong>de</strong>nte da<br />
OrchestrUtopica ao longo <strong>de</strong>ste ano,<br />
tem feito uma apreciável carreira nos<br />
Estados Unidos e encontra-se neste<br />
momento a realizar o doutoramento<br />
no Conservatório <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Nova<br />
Inglaterra.<br />
Vocacionada para a promoção da<br />
nova música, a OrchestrUtopica foi<br />
criada em 2001 pelos compositores<br />
Carlos Caires, José Júlio Lopes, Luís<br />
Tinoco e António Pinho Vargas e pelo<br />
Carlos Barreto, Mário Delgado e José Salgueiro<br />
constituem uma das gran<strong>de</strong>s formações do jazz nacional<br />
<strong>Lisboa</strong>. CCB - Pequeno Auditório. Pç. Império. Hoje,<br />
às 21h. Tel.: 213612400. 10€.<br />
Futuros. Obras <strong>de</strong> António Dantas,<br />
Filipe Esteves, João Godinho, Andreia<br />
Pinto-Correia e Patrício da Silva.<br />
No ano em que comemora uma<br />
década <strong>de</strong> existência, a<br />
O futuro segundo a OrchestrUtopica<br />
BERNARDO SASSETTI<br />
42 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
Dupla<br />
Brad Mehldau e Anne Sofie<br />
von Otter apresentam-se<br />
amanhã na Casa da Música<br />
para apresentar “Love Songs”.<br />
Neste projecto, o pianista<br />
e a celebrada cantora<br />
lírica interpretam<br />
canções <strong>de</strong> autores<br />
tão variados como<br />
Johannes Brahms,<br />
Richard Strauss,<br />
Paul McCartney ou<br />
Joni Mitchell. É às 22h.<br />
na Sala Suggia, e os<br />
bilhetes custam 30 euros.<br />
Os Hot Chip,<br />
versão DJ,<br />
no Lux<br />
Cristina Branco em Estarreja e <strong>Lisboa</strong><br />
maestro Cesário Costa. Além da<br />
estreia <strong>de</strong> obras e <strong>de</strong> programas<br />
temáticos, tem feito experiências que<br />
questionam o formato tradicional do<br />
concerto e colaborado com diversas<br />
áreas artísticas, sendo actualmente<br />
um dos grupos resi<strong>de</strong>ntes do CCB. No<br />
concerto <strong>de</strong>sta noite, dirigido por<br />
Pedro Figueiredo, participam a<br />
flautista Katharine Rawdon, o<br />
clarinetista Nuno Pinto, o violinista<br />
José Pereira, o violoncelista Jed<br />
Barahal, o percussionista Marco<br />
Fernan<strong>de</strong>s e a pianista Elsa Silva.<br />
O virtuosismo<br />
<strong>de</strong> Volodos<br />
Arcadi Volodos e Orquestra<br />
Gulbenkian<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Lawrence<br />
Foster.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação Calouste Gulbenkian - Gran<strong>de</strong><br />
Auditório. Av. Berna, 45A. 5ª, 31, às 21h. 6ª, 1, às<br />
19h. Tel.: 217823000. 15€ a 40€.<br />
Obras <strong>de</strong> Brahms e Dvorák.<br />
Arcadi Volodos está <strong>de</strong> regresso à<br />
Gulbenkian nos próximos dias 31 e 1<br />
para interpretar o Concerto para<br />
Piano e Orquestra nº2, op. 83, <strong>de</strong><br />
Brahms, obra lapidar do repertório<br />
concertante estreada pelo<br />
compositor em Budapeste em 1881. O<br />
virtuosismo espectacular que<br />
caracteriza habitualmente as<br />
interpretações do pianista russo terá<br />
<strong>de</strong> se aliar neste caso ao rigor e à<br />
<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> da construção<br />
arquitectónica da composição <strong>de</strong><br />
Brahms. Na segunda parte, a<br />
Orquestra Gulbenkian apresenta a<br />
famosa Sinfonia “Do Novo Mundo”,<br />
<strong>de</strong> Dvorák, sob a direção do maestro<br />
Lawrence Foster.<br />
Consi<strong>de</strong>rado um dos her<strong>de</strong>iros da<br />
tradição interpretativa da escola russa,<br />
Arcadi Volodos (São Petersburgo, 1972)<br />
formou-se nos Conservatórios <strong>de</strong><br />
Moscovo e Paris e na Escola Superior<br />
<strong>de</strong> Música Rainha Sofia, em Madrid,<br />
on<strong>de</strong> foi aluno <strong>de</strong> Dimitri Bashkirov. O<br />
seu primeiro álbum, editado em 1997,<br />
causou sensação, reunindo uma série<br />
<strong>de</strong> exuberantes transcrições e<br />
paráfrases para piano <strong>de</strong> obras<br />
célebres, algumas <strong>de</strong>las realizadas<br />
pelo próprio pianista. Em 1999 a Sony<br />
publicou a gravação da sua estreia no<br />
Carnegie Hall, distinguida com vários<br />
prémios, seguindo-se registos <strong>de</strong> obras<br />
<strong>de</strong> Schubert, Rachmaninov,<br />
Tchaikovski e Liszt, entre outros. O CD<br />
“Volodos plays Liszt” (2007) foi<br />
também objecto <strong>de</strong> importantes<br />
prémios da crítica internacional e o<br />
seu álbum mais recente (Volodos<br />
in Viena”, com obras <strong>de</strong><br />
Scriabin, Ravel, Schumann e<br />
Liszt) foi distinguido com o<br />
prémio Gramophone <strong>de</strong><br />
2010 na categoria <strong>de</strong><br />
“Melhor Gravação<br />
Instrumental”.<br />
C.F.<br />
Um virtuoso da escola russa<br />
Agenda<br />
Sexta 25<br />
Hot Chip<br />
<strong>Lisboa</strong>. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique, às 23h.<br />
Tel.: 218820890. Consumo obrigatório.<br />
Pop Dell’Arte<br />
Sines. Centro <strong>de</strong> Artes <strong>de</strong> Sines. R. Cândido dos Reis,<br />
às 22h. Tel.: 269860080. 10€.<br />
David Fonseca<br />
Beja. Teatro Pax-Júlia. Lg. São João, às 21h30. Tel.:<br />
284315090. 12,5€.<br />
PAUS<br />
Portalegre. Centro <strong>de</strong> Artes PAUS<br />
do Espectáculo. Pç.<br />
Republica, 39, às 23h. Tel.:<br />
245307498. 3€.<br />
The Glockenwise<br />
+ Me Dá Só<br />
Sangue<br />
<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova<br />
do Carvalho, 24, às 0h.<br />
Tel.: 213430107. 8€.<br />
Mazgani<br />
Arcos <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>vez. Casa das Artes. Jardim dos<br />
Centenários, às 23h. Tel.: 258520520. 8€.<br />
Rodrigo Leão<br />
Tavira. Cine-Teatro António Pinheiro. R. Dr.<br />
Marcelino Franco,10, às 21h30. Tel.: 281322671.<br />
Abztraqt Sir Q<br />
<strong>Lisboa</strong>. <strong>Fonoteca</strong> <strong>Municipal</strong>. Pç. Duque <strong>de</strong> Saldanha<br />
- Dolce Vita Monumental, Loja 17, às 21h30. Tel.:<br />
213536231. Entrada gratuita.<br />
Norton<br />
Castelo Branco. Cine-Teatro Avenida. Av. General<br />
Humberto Delgado, às 21h30. Tel.: 272349560.<br />
5€.<br />
Dazkarieh<br />
Porto. Hard Club - Sala 2. Pç. Infante, 95, às 22h30.<br />
Tel.: 707100021. 8€.<br />
Orquestra Clássica <strong>de</strong> Espinho<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Pedro Neves.<br />
Espinho. Auditório <strong>de</strong> Espinho. R. 34, 884, às<br />
21h30. Tel.: 227340469. 7€.<br />
Javier Artigas<br />
<strong>Lisboa</strong>. Igreja <strong>de</strong> São Roque. Lg. Trinda<strong>de</strong> Coelho,<br />
às 21h30. Tel.: 213235383. Entrada gratuita.<br />
XIII Festival Internacional <strong>de</strong> Órgão<br />
<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>.<br />
Sábado 26<br />
Sonia Wie<strong>de</strong>r-Atherton<br />
<strong>Lisboa</strong>. Culturgest - Palco do Gran<strong>de</strong> Auditório. R.<br />
Arco do Cego, às 18h. Tel.: 217905155. 10€.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> discos na pág, 40.<br />
Cristina Branco<br />
Estarreja. Cine-Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Estarreja. R.<br />
Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>mouro, às 22h. Tel.: 234811300.<br />
10€ a 15€.<br />
Rodrigo Leão<br />
Estoril. Casino. Pç. José Teodoro dos Santos, às<br />
21h30. Tel.: 214667700. 25€.<br />
Javier Artigas<br />
<strong>Lisboa</strong>. Igreja <strong>de</strong> S. Vicente <strong>de</strong> Fora. Lg. S. Vicente,<br />
às 21h30. Tel.: 218824400. Entrada gratuita.<br />
XIII Festival Internacional <strong>de</strong> Órgão<br />
<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>.<br />
Ricardo Barceló<br />
Braga. Museu Nogueira da Silva. Av. Central, 61, às<br />
18h. Tel.: 253601275. 5€.<br />
Shall I Vote For Elvis?<br />
Com António Olaio e João Taborda.<br />
Guarda. Teatro <strong>Municipal</strong> - Café-Concerto. R.<br />
Batalha Reis, 12, às 22h. Tel.: 271205241. Entrada<br />
gratuita.<br />
David Fonseca<br />
Alcochete. Fórum Cultural <strong>de</strong> Alcochete. Estrada<br />
<strong>Municipal</strong> 501, às 21h30. Tel.: 212349640. 15€.<br />
Carminho<br />
Arcos <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>vez. Casa das Artes. Jardim dos<br />
Centenários, às 22h30. Tel.: 258520520. 10€.<br />
Linda Martini<br />
Vale <strong>de</strong> Cambra. CC <strong>de</strong> Macieira <strong>de</strong> Cambra. Pç.<br />
República, às 22h. Tel.: 256428400. 8€.<br />
Sean Riley & The Slowri<strong>de</strong>rs<br />
Fafe. Teatro Cinema <strong>de</strong> Fafe. R. Monsenhor Vieira<br />
<strong>de</strong> Castro. Sáb. às 21h30. 5€.<br />
Dazkarieh<br />
Caldas da Rainha. CC e Congressos. R. Doutor<br />
Leonel Sotto Mayor, às<br />
21h30. Tel.: 262889650.<br />
10€.<br />
A Caruma +<br />
Rambostellar<br />
<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova<br />
do Carvalho, 24, às 0h.<br />
Tel.: 213430107. 8€.<br />
Vitalic +<br />
Expan<strong>de</strong>r +<br />
Thinkfreak<br />
Ofir. Pacha. Lugar das Pedrinhas, às 23h. Tel.:<br />
253989100. 10€ a 15€.<br />
Dimitri From Paris + SDC<br />
Porto. Trintaeum. Rua do Passeio Alegre, 564, às<br />
23h. Tel.: 919134339.<br />
Domingo 27<br />
Jesse Sparhawk + Eric<br />
Carbonara<br />
Porto. Café Au Lait. R.Galeria <strong>de</strong> Paris, 46, às 19h.<br />
Tel.: 222025016. Entrada gratuita.<br />
Rodrigo Leão<br />
Estoril. Casino Estoril. Pç. José Teodoro dos Santos,<br />
às 21h30. Tel.: 214667700. 25€.<br />
Orquestra Sinfónica do Porto<br />
Casa da Música<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Takuo Yuasa.<br />
Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho<br />
<strong>de</strong> Albuquerque, às 12h. Tel.: 220120220. 5€.<br />
Segunda 28<br />
Souad Massi<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação Calouste Gulbenkian - Gran<strong>de</strong><br />
Auditório. Av. Berna, 45A. 2ª às 21h00. Tel.:<br />
217823000. 15€ a 20€.<br />
Ver texto na pág. 16 e segs.<br />
Asian Dub Foundation<br />
<strong>Lisboa</strong>. Santiago Alquimista. R. Santiago, 19, às 21h.<br />
Tel.: 218884503. 22€.<br />
Terça 29<br />
Asian Dub Foundation<br />
Porto. Hard Club - Sala 1. Pç. Infante, 95, às 21h.<br />
Tel.: 707100021. 22€.<br />
Quarta 30<br />
Slayer + Mega<strong>de</strong>th + W.A.K.O.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Pavilhão Atlântico. Pq. Nações, às 21h. Tel.:<br />
218918409. 27,5€ a 45€.<br />
Quinta 31<br />
Expensive Soul & Jaguar Band<br />
Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho<br />
<strong>de</strong> Albuquerque, às 22h. Tel.: 220120220. 10€.<br />
Cristina Branco<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> S. Luiz. R. Antº Maria<br />
Cardoso, 38-58, às 21h. Tel.: 213257650. 12€ a 25€.<br />
Os Golpes + Samuel Úria<br />
Coimbra. Teatro Académico <strong>de</strong> Gil Vicente. Pç.<br />
República, às 21h30. Tel.: 239855636. 10€.<br />
Rodrigo Leão<br />
Porto. Hard Club - Sala 1. Pç. Infante, 95, às 22h.<br />
Tel.: 707100021. 25€.<br />
António Chainho<br />
Leiria. Teatro José Lúcio da Silva. R. Dr. Américo<br />
Cortez Pinto, às 21h30. Tel.: 244834117. 7,5€.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 43
Cinema<br />
Estreiam<br />
A via sacra<br />
e a via láctea<br />
Primeira gran<strong>de</strong> surpresa<br />
<strong>de</strong> 2011, “Camino” invoca<br />
o espírito <strong>de</strong> Luis Buñuel<br />
numa sátira <strong>de</strong>vastadora (em<br />
todos os sentidos da palavra)<br />
ao fundamentalismo<br />
religioso. Jorge Mourinha<br />
Camino<br />
Camino<br />
De Javier Fesser,<br />
com Nerea Camacho, Carme Elias,<br />
Mariano Venancio, Manuela Vellés.<br />
M/12<br />
MMMMn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia Monumental: Sala 1: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 16h20, 19h00, 21h40,<br />
00h15<br />
Ponto prévio: todas as pragas que se<br />
possam rogar à distribuidora<br />
responsável não serão suficientes<br />
para lhe perdoar. Ter “Camino” em<br />
carteira há mais <strong>de</strong> dois anos sem o<br />
estrear po<strong>de</strong>-se perceber – é difícil<br />
saber o que fazer com um objecto tão<br />
“fora” -, mas se era para o <strong>de</strong>ixar<br />
num limbo estreia-não-estreia mais<br />
valia não o ter comprado.<br />
Supostamente, quando uma<br />
distribuidora adquire os direitos <strong>de</strong><br />
um filme é porque acredita que existe<br />
um público para ele – e “Camino”<br />
está muito longe <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar incólume<br />
quem o vê, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> se<br />
gostar ou não.<br />
Ainda por cima, a terceira longa <strong>de</strong><br />
Javier Fesser chegou <strong>de</strong> Espanha<br />
como triunfador da cerimónia dos<br />
prémios Goya (os Óscares locais) <strong>de</strong><br />
2009 e com controvérsia incluida, ou<br />
não se inspirasse no caso verídico <strong>de</strong><br />
uma menina espanhola que está em<br />
processo <strong>de</strong> canonização, cuja família<br />
se ergueu em armas contra o filme.<br />
Talvez estejamos a olhar para as<br />
coisas <strong>de</strong> modo um pouco forçado,<br />
mas sem querer comparar o<br />
incomparável a verda<strong>de</strong> é que<br />
sentimos em “Camino” qualquer<br />
coisa <strong>de</strong> Buñuel a passar. Ou, antes,<br />
<strong>de</strong> dois Buñuel: o Buñuel “mexicano”<br />
que subvertia a todo o momento as<br />
regras clássicas do melodrama, e o<br />
Buñuel corrosivo e anti-clerical <strong>de</strong><br />
“Viridiana”, que não hesita em<br />
<strong>de</strong>nunciar a hipocrisia que se<br />
escon<strong>de</strong> por trás do<br />
fundamentalismo.<br />
Porque o que torna “Camino” tão<br />
murro no estômago é precisamente o<br />
modo como Fesser habita as<br />
convenções do melodrama religioso<br />
com um respeito enorme, ao mesmo<br />
tempo que as critica e <strong>de</strong>scarna sem<br />
pieda<strong>de</strong>. É um filme que está sempre<br />
a funcionar em dois graus <strong>de</strong> leitura<br />
simultânea, com uma lealda<strong>de</strong><br />
absoluta para com o espectador, e<br />
consegue chegar ao fim sem nunca<br />
escon<strong>de</strong>r nem trair nenhum <strong>de</strong>les. E<br />
isso é obra quando está a fazer<br />
humor (negro, é certo), com coisas<br />
muito sérias.<br />
As coisas muito sérias são, aqui, os<br />
últimos meses <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> uma<br />
Sexta, 25<br />
A Quermesse Heróica<br />
La Kermesse Héroique<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
menina <strong>de</strong>vota, filha <strong>de</strong> uma família<br />
muito religiosa da Opus Dei, a quem é<br />
diagnosticado um cancro terminal<br />
muito avançado no exacto momento<br />
em que se apaixona à primeira vista<br />
pelo primo <strong>de</strong> uma colega. O filme<br />
vai e vem entre as fantasias<br />
tecnicoloridas <strong>de</strong> Camino, que sonha<br />
ser feliz com o seu novo amor (que,<br />
pormenor muito importante,<br />
também se chama Jesus, abrindo<br />
uma dúvida metódica que o filme não<br />
se coíbe <strong>de</strong> explorar), e a sua<br />
dolorosa via sacra, que não se limita<br />
às operações e a tratamentos brutais,<br />
mas <strong>de</strong>screve também uma vida<br />
familiar rigidamente religiosa,<br />
comandada com mão <strong>de</strong> ferro por<br />
uma mãe fundamentalista à qual o<br />
pai não tem forças para se impor.<br />
Que não se pense que a irrisão<br />
subversiva <strong>de</strong> Fesser torna “Camino”<br />
num panfleto – o realizador<br />
(igualmente argumentista e<br />
montador) prefere transformá-lo<br />
numa sátira brutalmente corrosiva ao<br />
fundamentalismo, venha ele <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
venha, e ao preço que ele cobra em<br />
termos pessoais; que questiona até<br />
on<strong>de</strong> o sacrifício em nome <strong>de</strong> uma<br />
Cinemateca Portuguesa R. Barata Salgueiro, 39 <strong>Lisboa</strong>. Tel. 213596200<br />
De Jacques Fey<strong>de</strong>r.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Vertigo - A Mulher<br />
Que Viveu Duas Vezes<br />
Vertigo<br />
De Alfred Hitchcock.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Meeting Woody Allen/JLG Meets<br />
Woody Allen + Soft And Hard (A<br />
Soft Conversation Between Two<br />
Friends On a Hard Subject)<br />
Meeting Woody Allen/JLG Meets<br />
Woody Allen<br />
De Jean-Luc Godard, Anne-Marie<br />
Miéville.<br />
19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Atenção à Direita<br />
Soigne ta Droite<br />
De Jean-Luc Godard.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Sábado, 26<br />
Desilusões do Palco<br />
Upstage<br />
De Monta Bell.<br />
19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
O que torna<br />
“Camino”<br />
tão murro no<br />
estômago é o<br />
modo como<br />
habita as<br />
convenções<br />
do melodrama<br />
religioso com<br />
um respeito<br />
enorme,<br />
ao mesmo<br />
tempo que as<br />
<strong>de</strong>scarna sem<br />
pieda<strong>de</strong><br />
causa justifica a supressão da<br />
individualida<strong>de</strong>. Camino não tem<br />
liberda<strong>de</strong> para se divertir como as<br />
colegas do colégio, e uma vez a sua<br />
doença diagnosticada essa<br />
possibilida<strong>de</strong> é-lhe retirada para<br />
sempre; o estado <strong>de</strong> absoluta<br />
clausura, quase inquisitorial, que<br />
Fesser pinta nas relações dos<br />
Fernán<strong>de</strong>z com a Igreja, a hipocrisia<br />
e o calculismo que vêm ao <strong>de</strong> cima a<br />
espaços, são os elementos mais<br />
perturbadores do filme, embora o<br />
cineasta resista sempre a converter<br />
os beatos em monstros <strong>de</strong>sumanos<br />
(permitindo a quase todos eles<br />
momentos <strong>de</strong> dúvida e humanida<strong>de</strong>).<br />
Interpretado extraordinariamente<br />
por um elenco notável e dirigido com<br />
gran<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> e inteligência,<br />
“Camino” é um filme duplamente<br />
po<strong>de</strong>roso, pelo modo como pega<br />
num tema duríssimo “pelos cornos”<br />
e <strong>de</strong>le faz uma espantosa afirmação<br />
<strong>de</strong> vida e amor sem per<strong>de</strong>r a<br />
violência <strong>de</strong> uma sátira atenta,<br />
resistindo sempre ao golpe baixo.<br />
Esta estreia quase clan<strong>de</strong>stina é a<br />
primeira gran<strong>de</strong> surpresa que chega<br />
às salas em 2011.<br />
Delícia turca<br />
Semih Kaplanoglu<br />
<strong>de</strong>monstra uma capacida<strong>de</strong><br />
imaculada para se colocar<br />
entre o olhar dos adultos e<br />
o do miúdo protagonista,<br />
neste pertinente retrato da<br />
Turquia profunda.<br />
Luís Miguel Oliveira<br />
Mel<br />
Bal<br />
De Semih Kaplanoglu,<br />
com Bora Altas, Erdal Besikçioglu,<br />
Tülin Özen . M/12<br />
Os Alegres Namorados<br />
Summer Holiday<br />
De Rouben Mamoulian.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
À Beira do Mar Azul<br />
U Samogo Sinyego Morya<br />
De Boris Barnet, S. Mardanin.<br />
22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Segunda, 28<br />
O Homem Morcego<br />
The Bat<br />
De Crane Wilbur.<br />
44 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
As estrelas do Público<br />
Jorge<br />
Mourinha<br />
Luís M.<br />
Oliveira<br />
Vasco<br />
Câmara<br />
Camino mmmMn nnnnn nnnnn<br />
Chelsea Hotel mmmnn mmnnn mnnnn<br />
Copacabana mmnnn mmnnn mmnnn<br />
O discurso do Rei mmnnn mmnnn mnnnn<br />
Os 2 da (Nova) Vaga nnnnn mmmnn mmnnn<br />
Mel mmnnn mmmnn nnnnn<br />
Micmacs - Uma Brilhante Confusão mmnnn nnnnn nnnnn<br />
Poesia mmmmn mmmnn mmmnn<br />
Potiche- Minha Rica Mulherzinha mmmnn mmnnn mmnnn<br />
Somewhere-Algures mmmnn nnnnn mnnnn<br />
MMMnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia King: Sala 1: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />
13h10, 15h15, 17h20, 19h25, 21h30 6ª Sábado 2ª<br />
13h10, 15h15, 17h20, 19h25, 21h30, 24h<br />
Porto: Me<strong>de</strong>ia Cine Estúdio do Teatro Campo<br />
Alegre: Cine-Estúdio: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
4ª 18h30, 22h 3ª 18h30<br />
Urso <strong>de</strong> Ouro no Festival <strong>de</strong> Berlim<br />
do ano passado, “Mel” é o terceiro<br />
tomo da trilogia que fez <strong>de</strong> Semih<br />
Kaplanoglu o cineasta turco<br />
contemporâneo mais conhecido<br />
internacionalmente a seguir a Nuri<br />
Bilge Ceylan. Os nomes dos outros<br />
dois filmes da trilogia são tão<br />
nutritivos como o <strong>de</strong>ste: “Ovo” (que<br />
ganhou um prémio na primeira<br />
edição do Estoril Film Festival) e<br />
“Leite”. Mas é com o “Mel” que ele<br />
chega às salas portuguesas, e se ao<br />
espectador recém-chegado ficará a<br />
escapar o <strong>de</strong>senho do conjunto dos<br />
três filmes, conhecê-lo não é<br />
indispensável à fruição <strong>de</strong>ste filme.<br />
De certo modo, “Mel”, no seu<br />
conflito essencial, ilumina, ou pelo<br />
menos resume, o que está em causa<br />
na trilogia: um olhar sobre a<br />
província turca, captado na<br />
bifurcação entre um modo <strong>de</strong> vida<br />
tradicional (as coisas que a terra dá,<br />
Um olhar<br />
sobre a<br />
província<br />
turca na<br />
bifurcação<br />
entre um<br />
modo <strong>de</strong> vida<br />
tradicional e a<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
O Tesouro do Barba Ruiva<br />
Moonfleet<br />
De Fritz Lang.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Comment Ça Va?<br />
De Anne-Marie Miélville, Jean-Luc<br />
Godard.<br />
19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Nouvelle Vague<br />
De Jean-Luc Godard.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Vertigo - A Mulher Que Viveu<br />
Duas Vezes<br />
Vertigo<br />
De Alfred Hitchcock.<br />
22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Terça, 29<br />
Os Comandos<br />
Atacam ao Amanhecer<br />
The Commandos Strike at Dawn<br />
De John Farrow.<br />
ainda que por intermédio dos<br />
animais: os ovos, o leite, o mel) e a<br />
perspectiva <strong>de</strong> uma outra coisa,<br />
muito mais difusa, a que se podia<br />
chamar a “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>”. De uma<br />
maneira que o filme não resolve (e a<br />
não-resolução é o seu ponto), o<br />
miúdo protagonista simboliza esse<br />
impasse, no à-vonta<strong>de</strong> da sua<br />
relação com a natureza (as abelhas<br />
do pai, a floresta) e na falta <strong>de</strong><br />
à-vonta<strong>de</strong> com as coisas da escola (a<br />
dificulda<strong>de</strong> em apren<strong>de</strong>r a ler como<br />
uma “resistência”, digamos,<br />
atávica).<br />
Imaginamos que este conflito, que<br />
o filme expõe sem retórica nenhuma<br />
e numa subtileza a toda a prova, é<br />
pertinente enquanto retrato da<br />
profunda Turquia contemporânea.<br />
O que serve, em todo o caso, como<br />
medida da inteligência <strong>de</strong> “Mel”.<br />
Mas não é forçosamente aquilo que<br />
mais o distingue. Antes uma<br />
capacida<strong>de</strong>, imaculada, <strong>de</strong> se<br />
colocar entre o olhar dos adultos e o<br />
olhar do miúdo protagonista, para<br />
<strong>de</strong>r a ver um mundo que é sempre,<br />
ao mesmo tempo, muito misterioso<br />
e muito familiar – características que<br />
marcam, em especial, toda a relação<br />
com a natureza (a terra e as árvores,<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Allemagne Neuf Zéro<br />
De Jean-Luc Godard.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
48<br />
De Susana Sousa Dias.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Atenção à Direita<br />
Soigne ta Droite<br />
De Jean-Luc Godard.<br />
22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Quarta, 30<br />
O Leito Conjugal<br />
L’Ape Regina<br />
De Marco Ferreri.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
JLG/JLG<br />
De Jean-Luc Godard.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Radio On<br />
De Chris Petit.<br />
mas também o céu e as nuvens),<br />
com os seus silêncios mas sobretudo<br />
com os seus ruídos (os seres<br />
humanos <strong>de</strong> “Mel” falam pouco, mas<br />
em compensação a natureza palra<br />
que se farta). E Kaplanoglu<br />
confirma-se como um a<strong>de</strong>pto do<br />
plano-sequência expectante e<br />
<strong>de</strong>safectado: a cena em que dá o<br />
badagaio ao pai do miúdo é<br />
extraordinária.<br />
Continuam<br />
Potiche - Minha Rica<br />
Mulherzinha<br />
Potiche<br />
De François Ozon,<br />
com Catherine Deneuve, Gérard<br />
Depardieu, Fabrice Luchini, Karin<br />
Viard, Judith Godrèche, Jérémie<br />
Rénier. M/12<br />
MMnnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Castello Lopes - Cascais Villa: Sala 5: 5ª 2ª<br />
3ª 4ª 15h50, 18h30, 21h20 6ª 15h50, 18h30, 21h20,<br />
00h20 Sábado 13h30, 15h50, 18h30, 21h20, 00h20<br />
Domingo 13h30, 15h50, 18h30, 21h20; CinemaCity<br />
Classic Alvala<strong>de</strong>: Sala 2: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h30, 15h35, 17h40, 19h45, 21h45 6ª Sábado 13h30,<br />
15h35, 17h40, 19h45, 21h45, 23h50; UCI Cinemas - El<br />
Corte Inglés: Sala 13: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª<br />
14h10, 16h40, 19h10, 21h35, 00h05 Domingo 11h30,<br />
14h10, 16h40, 19h10, 21h35, 00h05; ZON<br />
Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 12h50, 15h20, 17h50, 20h50, 23h30<br />
Porto: Arrábida 20: Sala 4: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 13h55, 16h35, 19h15, 21h55, 00h40 3ª 4ª 16h35,<br />
19h15, 21h55, 00h40; ZON Lusomundo Dolce Vita<br />
Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 18h20,<br />
21h, 23h40<br />
Se Ozon tem alguma gran<strong>de</strong><br />
habilida<strong>de</strong>, ela está na préfabricação<br />
(mais até do que na previsão)<br />
dos espectadores dos seus<br />
filmes e, sobretudo, na condução do<br />
percurso que ele <strong>de</strong>seja que os<br />
espectadores façam através dos<br />
filmes. Continuamos a dizer: Ozon é<br />
um hitchcockiano (mas um<br />
hitchcockiano barato). “Minha Rica<br />
Mulherzinha” continua a ser isso:<br />
19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Puissance <strong>de</strong> la Parole + Les<br />
Enfants Jouent à la Russie<br />
Puissance <strong>de</strong> la Parole<br />
De Jean-Luc Godard.<br />
22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Quinta, 31<br />
Sweet Charity - A Rapariga<br />
que Queria Ser Amada<br />
Sweet Charity<br />
De Bob Fosse.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Gran Torino<br />
De Clint Eastwood.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Allemagne Neuf Zéro<br />
De Jean-Luc Godard.<br />
19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Elogio do Amor<br />
Éloge <strong>de</strong> l’’amour<br />
De Jean-Luc Godard.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
sinais cuidadosamente distribuídos,<br />
reenvio permanente, “referências” e<br />
cotoveladinhas, um filme que se faz<br />
pelas pistas <strong>de</strong> leitura que ele<br />
próprio cria (e sem as quais não<br />
seria nada). Não é nem mais nem<br />
menos grotesco do que outras coisas<br />
que Ozon já fez, embora, <strong>de</strong> facto,<br />
num registo cómico minimamente<br />
<strong>de</strong>sempoeirado a coisa se suporte<br />
um pouco melhor. Ainda que em<br />
ambivalência: é tão fácil elogiar a<br />
maneira como Deneuve e Depardieu<br />
se prestam a brincar com o seu<br />
estatuto simbólico no cinema<br />
francês como ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gritar<br />
“basta, já fizeram isto 50 vezes,<br />
inventem lá outra coisa”. L.M.O.<br />
Copacabana<br />
Copacabana<br />
De Marc Fitoussi,<br />
com Isabelle Huppert, Lolita<br />
Chammah, Aure Atika, Jurgen<br />
Delnaet. M/12<br />
MMnnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia King: Sala 3: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />
13h20, 15h30, 17h40, 19h50, 22h 6ª Sábado 2ª<br />
13h20, 15h30, 17h40, 19h50, 22h, 00h15; Me<strong>de</strong>ia<br />
Saldanha Resi<strong>de</strong>nce: Sala 5: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h50, 21h50, 00h20<br />
Porto: Arrábida 20: Sala 17: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 14h15, 16h50, 19h25, 21h55, 00h35 3ª<br />
4ª 16h50, 19h25, 21h55, 00h35<br />
Ou <strong>de</strong> como um filme anódino se<br />
torna um bocadinho menos anódino<br />
por causa <strong>de</strong> uma actriz. Sem<br />
Isabelle Huppert não se daria nada<br />
por “Copacabana”, exemplo <strong>de</strong> um<br />
cinema correcto e “profissional” que<br />
não tem mais para dar, nem <strong>de</strong>seja<br />
mais, do que reiterar e reproduzir as<br />
suas características – o que não tem<br />
nada <strong>de</strong> mal, nem nada <strong>de</strong> bom.<br />
Com Huppert, mesmo a trabalhar<br />
em modo prazenteiro, acrescenta-se<br />
uma camada extra, ao filme e à sua<br />
protagonista (e até o “gimmick” <strong>de</strong> a<br />
pôr a contracenar com a filha traz<br />
algum sentido). E “Copacabana”<br />
torna-se, até certo ponto ou a partir<br />
<strong>de</strong> certo ponto, num filme sobre o<br />
trabalho <strong>de</strong> uma actriz. Qque se<br />
possa vê-lo como tal não é, apesar<br />
<strong>de</strong> tudo, uma qualida<strong>de</strong><br />
negligenciável. L.M.O.<br />
Cineclubes<br />
para mais informações consultar www.fpcc.pt<br />
Cine-teatro S. Pedro<br />
Largo S. Pedro - Abrantes<br />
CICLO: Sangue Novo<br />
China, China <strong>de</strong> J. P. Rodrigues & J.<br />
Rui G. da Mata, 2007, M/12<br />
Rapace <strong>de</strong> João Nicolau, 2006, M/12<br />
Remains <strong>de</strong> Sandro Aguilar, 2002,<br />
M/12 30/03, 21h30<br />
Cinema Teixeira<br />
<strong>de</strong> Pascoaes<br />
Centro Comercial Santa Luzia - Amarante<br />
Um Ano Mais<br />
De Mike Leigh, 2010, M/12 25/03, 21:30h<br />
Auditório Soror<br />
Mariana<br />
Rua Diogo Cão, nº8, Évora<br />
Biutiful<br />
De Alejandro González Iñarritu,<br />
2010, M/16 30/03, 21:30h<br />
Casa das Artes <strong>de</strong><br />
Famalicão (CC Joane)<br />
Parque <strong>de</strong> Sinçães – Famalicão<br />
36 Vistas Do Monte Saint-loup<br />
De Jacques Rivette, 2009, M/12 Q<br />
31/03, 21:30h<br />
Auditório IPJ<br />
Rua da PSP, Faro<br />
Des Hommes Et Des Dieux<br />
De Xavier Beauvois, 2010, M/12<br />
28/03, 21:30h<br />
Teatro Sá da Ban<strong>de</strong>ira<br />
Rua João Afonso, n.º 7-Santarém<br />
Eu Sou O Amor<br />
De Luca Guadagnino, 2009, M/12<br />
30/03, 21:30h<br />
Cine-teatro António<br />
Pinheiro<br />
R. Guilherme Gomes Fernan<strong>de</strong>s, 5 – Tavira<br />
Biutiful<br />
De Alejandro González Iñarritu,<br />
2010, M/16 27/03, 21:30h<br />
O Verão Da Boyita<br />
De Julia Solomonoff, 2009, M/12<br />
31/03, 21:30h<br />
Teatro Virgínia<br />
Largo José Lopes dos Santos – Torres Novas<br />
A Poeira Do Tempo<br />
De Theodoros Angelopoulos,<br />
2008, M/12 30/03, 21:00h<br />
Animar6/ Teatro<br />
<strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Vila do<br />
Con<strong>de</strong><br />
Av. João Canavarro – Vila do Con<strong>de</strong><br />
Entrelaçados<br />
De Byron Howard, Nathan Greno,<br />
2010, M/6 26/03, 16:00h<br />
L’ Illusioniste<br />
De Sylvain Chomet, 2010, M/6<br />
27/03, 16:00h e 21:45h<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 45
Opinião<br />
Modo crítico<br />
Cenas da crise em São Carlos<br />
Há um inquietante efeito <strong>de</strong> actualida<strong>de</strong> em “Banksters”, incluindo até que o horizonte <strong>de</strong> bancarrota<br />
que <strong>de</strong>lineia é em particular apropriado à situação do próprio teatro em que o espectáculo ocorre.<br />
Está em cena no São Carlos uma nova<br />
produção, “Banksters”, <strong>de</strong> Nuno Côrte-Real,<br />
o que é <strong>de</strong> assinalar no estado <strong>de</strong> penúria<br />
do teatro nacional <strong>de</strong> ópera. Mas há mais<br />
factos <strong>de</strong> relevo.<br />
Trata-se <strong>de</strong> uma estreia absoluta,<br />
encomenda do São Carlos, e se Côrte-Real tem tido<br />
condições para ser o mais prolífero compositor<br />
português neste campo nos últimos anos, sendo que<br />
esta é já a sua quinta ópera – mesmo que “O Velório <strong>de</strong><br />
Cláudio” fosse um prólogo –, os colaboradores directos<br />
que teve possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escolher, Vasco Graça Moura<br />
no libreto e João Botelho na encenação, são estreantes<br />
nestas andanças.<br />
Ocorre que há um inquietante efeito <strong>de</strong> actualida<strong>de</strong><br />
em “Banksters”, incluindo até que o horizonte <strong>de</strong><br />
bancarrota que se <strong>de</strong>lineia é em particular apropriado à<br />
situação do próprio teatro em que o espectáculo ocorre.<br />
Estamos perante cenas da crise em São Carlos.<br />
O ponto <strong>de</strong> partida é um texto <strong>de</strong> José Régio, “Jacob e<br />
o Anjo”, retomando um episódio <strong>de</strong>sse livro fundador<br />
que é a Bíblia. A peça, como todo o teatro <strong>de</strong> Régio, é<br />
uma chatice incomensurável, e torna-se patente que não<br />
é do afecto particular do libretista. De modo paroxístico,<br />
foi a distância do adaptador para com o texto adaptado<br />
que propiciou a Graça Moura um trabalho (meta)textual<br />
<strong>de</strong>veras notável.<br />
“Banksters”, supõe “bank” e “gangsters”, e o quadro<br />
é o do capitalismo financeiro e da sua crise, paródia e<br />
sátira que se podiam supor <strong>de</strong> algum autor esquerdista,<br />
o que Graça Moura não é <strong>de</strong> modo algum. Os americanos<br />
inventaram as chamadas “CNN operas”, sobre figuras<br />
e factos da história contemporânea, mas esta será a<br />
primeira ópera que tem como referente a crise do<br />
capitalismo financeiro global.<br />
Eis exemplos concretos: “paraíso fiscal”, “offshore”,<br />
“injecções <strong>de</strong> capital”, “tempo <strong>de</strong> crise”, “mortgage”<br />
e mesmo “subprime”, além <strong>de</strong> outros que nos tornam<br />
presente a concreta situação portuguesa, como “Parte-se<br />
esse coração/ que eu tinha entregue à Finança/ Pra fugir<br />
ao IRS” ou “Corte no meu or<strong>de</strong>nado/ passe-me a recibos<br />
ver<strong>de</strong>s”. De acordo com as motivações do compositor<br />
na sua escolha do texto, <strong>de</strong> Régio perdura a tipologia das<br />
personagens e o motivo da “re<strong>de</strong>nção” – mas não mais.<br />
Pois que se trata <strong>de</strong> um tema<br />
cristão, e inspirado em peça do<br />
autor <strong>de</strong> “Poemas <strong>de</strong> Deus e do<br />
Diabo”, ocorreu-me que “Banksters”<br />
podia ter como epígrafe uma frase<br />
que Mikhail Bakhtin atribui a São<br />
João Crisóstomo: “As burlas e o<br />
riso não provêm <strong>de</strong> Deus, mas são<br />
uma emanação do Diabo”. E não<br />
invoco por acaso o gran<strong>de</strong> teórico<br />
russo, o estudioso <strong>de</strong> Rabelais<br />
e do carnavalesco, a propósito<br />
<strong>de</strong>ste libreto que, como a justo<br />
título diz Graça Moura, é muito<br />
(Gil) “vicentino”. Bakhtin é um<br />
dos autores a ter mais presente<br />
na análise e na pragmática da<br />
“paródia”, não apenas no sentido<br />
restrito que ele consi<strong>de</strong>ra, o <strong>de</strong><br />
sátira, como mais latamente nos<br />
termos <strong>de</strong> Linda Hutcheon em “Uma<br />
teoria da paródia - ensinamento<br />
das formas <strong>de</strong> arte do século XX”:<br />
“A paródia é, pois, repetição, mas<br />
repetição que inclui diferença; é<br />
imitação com distância crítica,<br />
cuja ironia po<strong>de</strong> beneficiar e<br />
prejudicar ao mesmo tempo. Os seus<br />
principais operadores formais são versões irónicas <strong>de</strong><br />
‘transcontextualização’ e inversão, e o âmbito do ‘ethos’<br />
pragmático vai do ridículo <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso à homenagem<br />
reverencial”. “Banksters” é um caso exemplar <strong>de</strong>ste<br />
tipo <strong>de</strong> estratégia discursiva, não faltando uma<br />
Augusto M. Seabra<br />
Afinal, o melhor <strong>de</strong><br />
Christoph<br />
Dammann ocorre<br />
agora “a posteriori”,<br />
com “Banksters”, já<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido<br />
<strong>de</strong>mitido e<br />
substituído por<br />
Martin André, que<br />
não dá sinais <strong>de</strong> um<br />
projecto<br />
surpreen<strong>de</strong>nte citação <strong>de</strong> “A rose is a rose, is a rose” <strong>de</strong><br />
Gertrud Stein.<br />
Depois <strong>de</strong> obras notáveis como “Concerto Vedras”<br />
e “Andarilhos”, o percurso <strong>de</strong> Nuno Côrte-Real temme<br />
<strong>de</strong>ixado em vários aspectos perplexo. O <strong>de</strong>sastre<br />
aconteceu com “A Montanha”, ópera adaptada <strong>de</strong><br />
Teixeira <strong>de</strong> Pascoaes pelo próprio compositor. É então<br />
<strong>de</strong> assinalar que Côrte-Real se tem mostrado tanto mais<br />
interessante quando trabalha com textos <strong>de</strong> consistência<br />
dramática (“O Rapaz <strong>de</strong> Bronze”, <strong>de</strong> José Maria Vieira<br />
Men<strong>de</strong>s, a partir do conto homónimo <strong>de</strong> Sophia e agora<br />
“Banskters”) e tanto menos quando a cena dramática<br />
não tem nexo, como em “O Velório <strong>de</strong> Cláudio”, texto<br />
<strong>de</strong> José Luís Peixoto – sendo ainda <strong>de</strong> ressalvar que o<br />
projecto <strong>de</strong> um prólogo contemporâneo a uma ópera<br />
barroca, a “Agrippina” <strong>de</strong> Haen<strong>de</strong>l, era um disparate<br />
total e foi mesmo o maior <strong>de</strong>scalabro em São Carlos nos<br />
lamentáveis anos <strong>de</strong> direcção <strong>de</strong> Christoph Dammann.<br />
É então claro que a pragmática do compositor é a<br />
<strong>de</strong> “musicar um libreto”. Dir-se-á que é uma atitu<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> subserviência, mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter consi<strong>de</strong>ráveis<br />
ganhos em termos <strong>de</strong> inteligibilida<strong>de</strong> da obra – o que é<br />
um sério problema <strong>de</strong> muitas óperas contemporâneas,<br />
tanto mais <strong>de</strong> assinalar quanto entretanto Côrte-Real<br />
foi <strong>de</strong> vários modos adquirindo rodagem <strong>de</strong> palco,<br />
e também do canto, para o qual é patente que sabe<br />
escrever. Ainda assim, essa pragmática associada ao<br />
pluriestilismo que o vem caracterizando, e que em si<br />
mesmo é um gesto <strong>de</strong> relevo, coloca um risco: o <strong>de</strong><br />
uma obra, na sua multiplicida<strong>de</strong> interna, ter muitos<br />
caracteres mas não um “carácter” musical distintivo.<br />
São muitas as referências musicais em “Banksters” e é<br />
notável a flui<strong>de</strong>z da sua integração no discurso musical.<br />
Consi<strong>de</strong>remos a referência ao “Rigoletto” <strong>de</strong> Verdi.<br />
Graça Moura, que com especial ironia paródica crismou<br />
o banqueiro <strong>de</strong> Santiago Malpago, chamou também<br />
ao anjo Angelino Rigoletto e à mulher do primeiro<br />
Mimi Kitsch, parodiando “La Bohème” <strong>de</strong> Puccini. Se a<br />
paródia a Mimi se per<strong>de</strong>, é surpreen<strong>de</strong>nte o modo como<br />
se integra a citação <strong>de</strong> “La donna è mobile”, a célebre<br />
ária do “Rigoletto” – é a “repetição que inclui diferença”<br />
e a “imitação com distância” da paródia nos termos <strong>de</strong><br />
Hutcheon.<br />
É nesses termos paródicos latos que há também a<br />
salientar o recurso a formas tradicionais, e não apenas<br />
da tradição erudita, como a valsa, a habanera ou o fado,<br />
embora me pergunte se esse recurso não é também <strong>de</strong><br />
algum modo uma dispersão, pois ocorre sobretudo no<br />
Acto II que, sendo longo <strong>de</strong> mais, é o ponto problemático<br />
da ópera. Não há pois apenas “subserviência” ao texto<br />
mas, mais importante e ponto nodal da obra, a coerência<br />
entre as estratégias do libreto e da composição. E esse é<br />
um sucesso a ser <strong>de</strong>vidamente sublinhado.<br />
Não estamos contudo perante uma obra em abstracto<br />
mas um espectáculo, que, além dos autores, assenta<br />
noutros três pilares, o encenador João Botelho, o<br />
maestro Lawrence Rennes e o protagonista Jorge Vaz <strong>de</strong><br />
Carvalho.<br />
Depois <strong>de</strong> um progressivo afunilamento e<br />
esquematismo no seu percurso, até toda a lamentável<br />
história <strong>de</strong> “Corrupção”, Botelho está em novo<br />
florescimento criativo, com o esplêndido “Filme do<br />
Desassossego” e agora esta estreia na ópera. Di<strong>de</strong>rot,<br />
que ele adaptou em “Tiago, o Fatalista”, escreveu<br />
também “O Paradoxo do Comediante”. Em Botelho há<br />
agora um “paradoxo do teatro”. Ele, cineasta austero,<br />
<strong>de</strong>ixou-se fascinar pela máxima irrealida<strong>de</strong> teatral<br />
da apoteose que é a ópera. É certo que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />
haver similitu<strong>de</strong>s entre a actualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “Banksters”<br />
e uma postura cinematográfica que tem como objecto<br />
46 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon
fundamental metáforas do Portugal contemporâneo.<br />
Mas a passagem para a ópera é um enorme e arriscado<br />
salto. Mesmo que surpreendam alguns aspectos mais<br />
berrantes, nomeadamente nas luzes, a gestão do espaço<br />
e das movimentações, o inteligente uso dos cenários <strong>de</strong><br />
fundo e sobretudo o arguto entendimento da obra e da<br />
sua musicalida<strong>de</strong> fazem <strong>de</strong>sta estreia um sucesso.<br />
Rennes dirige a obra com uma segurança e<br />
<strong>de</strong>senvoltura notáveis. E Vaz <strong>de</strong> Carvalho, que a meu ver<br />
andou anos perdido em cargos <strong>de</strong> administração cultural<br />
pública, regressa com um timbre, uma dicção e uma<br />
projecção <strong>de</strong> voz imaculados. Mas há também a referir<br />
Sara Braga Simões e um <strong>de</strong>veras equilibrado conjunto <strong>de</strong><br />
secundários.<br />
Christoph Dammann foi chamado pelo secretário <strong>de</strong><br />
Estado Mário Vieira <strong>de</strong> Carvalho para concretizar um<br />
gesto <strong>de</strong> dirigismo cultural como não havia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
processo revolucionário, a estreia <strong>de</strong> “Das Märchen”, <strong>de</strong><br />
Emmanuel Nunes. Afinal, o melhor <strong>de</strong> Dammann ocorre<br />
agora “a posteriori”, com a encomenda <strong>de</strong> “Banksters”,<br />
já <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido <strong>de</strong>mitido e substituído por Martin<br />
André, que não dá sinais <strong>de</strong> um projecto (e há também<br />
a <strong>de</strong>missão do presi<strong>de</strong>nte da empresa, Jorge Salavisa).<br />
Continua o folhetim da crise em São Carlos, com<br />
próximas cenas…<br />
P.S. – Vasco Graça Moura é um distinto poeta, ensaísta<br />
e tradutor e foi durante anos gestor cultural público.<br />
É também um colunista sectário e <strong>de</strong>magogo, que<br />
escolheu como um dos seus alvos <strong>de</strong> eleição os ditos<br />
“subsidio<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes”, os artistas que o Estado apoia<br />
para a criação contemporânea. É certo que sempre<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u uma política patrimonial pública incluindo os<br />
teatros nacionais, mas para apresentarem o reportório<br />
clássico, coisa que, como uma vez lhe ouvi, um Beckett<br />
não seria! Então agora afinal como é?<br />
ALFREDO ROCHA/CORTESIA TEATRO NACIONAL DE SÃO CARLOS<br />
Rogério Casanova<br />
James Wood,<br />
um crítico<br />
quase<br />
fanaticamente<br />
prescritivo<br />
A Vírgula <strong>de</strong> Oxford<br />
Embaraçosamente<br />
É embaraçoso dizer isto, mas nem sempre os críticos têm razão.<br />
O problema é que, quando são bons, é muito provável que estejam<br />
errados e sejam interessantes ao mesmo tempo.<br />
Isto po<strong>de</strong> ser uma enorme surpresa para os<br />
leitores do Ípsilon, habituados à sua dose<br />
semanal <strong>de</strong> infalibilida<strong>de</strong>, mas um dos segredos<br />
mais bem guardados entre a comunida<strong>de</strong> crítica<br />
é o <strong>de</strong> que os críticos, por vezes, cometem<br />
erros. A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
escon<strong>de</strong>r este segredo do povo<br />
é fácil <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
seja um crítico a explicar, pois<br />
<strong>de</strong> outra forma é praticamente<br />
impossível o povo enten<strong>de</strong>r o que<br />
quer que seja. O segredo guardase<br />
porque o crítico sofre. Já é<br />
tarefa árdua andar a lutar sozinho<br />
contra a <strong>de</strong>generação dos apetites<br />
contemporâneos e a aflitiva<br />
frivolida<strong>de</strong> dos gostos da ralé (i.e.:<br />
vocês), sem que a legitimida<strong>de</strong><br />
e a pureza do processo sejam<br />
questionadas e sabotadas <strong>de</strong>ntro<br />
das muralhas. Para <strong>de</strong>scansar<br />
as mentes mais sobressaltadas,<br />
impõe-se a ressalva <strong>de</strong> que os<br />
erros cometidos pelos críticos<br />
quase nunca são fruto <strong>de</strong><br />
incompetência (só o povo, por<br />
<strong>de</strong>finição, é incompetente, além<br />
<strong>de</strong> bárbaro e perigoso); muitos<br />
<strong>de</strong>les, aliás, são uma consequência<br />
in<strong>de</strong>sejada mas inevitável – um<br />
efeito secundário, por assim dizer<br />
– das mesmas faculda<strong>de</strong>s que<br />
tornam o crítico valioso.<br />
Um exemplo esclarecedor po<strong>de</strong><br />
ser encontrado em “How Fiction<br />
Works”, on<strong>de</strong> o crítico James<br />
Wood <strong>de</strong>dica um capítulo a exaltar<br />
as virtu<strong>de</strong>s do estilo indirecto<br />
livre como instrumento ímpar<br />
na representação <strong>de</strong> processos<br />
<strong>de</strong> consciência distintos. Um<br />
dos exemplos é retirado <strong>de</strong> uma novela <strong>de</strong> Henry<br />
James (“What Maisie Knew”), e preten<strong>de</strong> ilustrar o<br />
processo pelo qual a narração na terceira pessoa<br />
<strong>de</strong>sliza para o interior <strong>de</strong> Maisie, culminando nesta<br />
passagem: “(...) Clara Matilda, que estava no céu e<br />
também, embaraçosamente, em Kensal Green, on<strong>de</strong><br />
tinham ido todos juntos para ver a sua pequena campa<br />
aconchegada”.<br />
Wood elabora: “O génio <strong>de</strong> James concentra-se<br />
numa única palavra: ‘embaraçosamente’. É aí que toda<br />
a ênfase repousa. (…) A quem pertence a a palavra<br />
‘embaraçosamente’? A Maisie: é embaraçoso para<br />
uma criança testemunhar a mágoa dos adultos, e<br />
sabemos que Mrs. Wix se refere a Clara Matilda como a<br />
‘irmãzinha morta’ <strong>de</strong> Maisie. Po<strong>de</strong>mos imaginar Maisie<br />
ao pé <strong>de</strong> Mrs. Wix no cemitério <strong>de</strong> Kensal Green (…),<br />
<strong>de</strong>sconfortável e envergonhada, simultaneamente<br />
impressionada e com um bocadinho <strong>de</strong> medo da mágoa<br />
<strong>de</strong> Mrs. Wix”.<br />
Parece-me impossível não perceber que o<br />
“embaraçosamente” não representa nada disto. O<br />
advérbio não é uma extensão da linguagem interior<br />
<strong>de</strong> Maisie, mas sim <strong>de</strong> um capricho do autor. O que é<br />
“embaraçoso” é apenas o facto <strong>de</strong> uma pessoa, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> morta, po<strong>de</strong>r habitar simultaneamente dois lugares<br />
diferentes: o céu e um cemitério. Po<strong>de</strong>mos até admitir<br />
(com a generosida<strong>de</strong> que nos caracteriza) que James<br />
<strong>de</strong>legou a uma criança um comentário sofisticado<br />
sobre o ridículo das superstições “post-mortem” dos<br />
adultos; mas esse é o limite. Transformar um advérbio<br />
evi<strong>de</strong>ntemente intrusivo num triunfo do discurso<br />
indirecto livre é mera ofuscação: a palavra não é <strong>de</strong><br />
Maisie, personagem, mas sim <strong>de</strong> Henry James, autor,<br />
ateu e (neste caso) cómico “stand-up”.<br />
Isto não retira um semi-átomo <strong>de</strong> mérito a James<br />
Wood. “Ter razão” sempre me pareceu o mais<br />
Aa maneira mais<br />
segura <strong>de</strong> ter sempre<br />
razão é limitar a<br />
análise àquilo que é<br />
<strong>de</strong>masiado evi<strong>de</strong>nte<br />
para ser refutado ou<br />
<strong>de</strong>masiado lunático<br />
para ser <strong>de</strong>batido<br />
dispensável dos atributos críticos, até porque a maneira<br />
mais segura <strong>de</strong> ter sempre razão é limitar a análise<br />
àquilo que é <strong>de</strong>masiado evi<strong>de</strong>nte para ser refutado ou<br />
<strong>de</strong>masiado lunático para ser <strong>de</strong>batido. É no espaço<br />
entre o banal e o absurdo (e entre o cânone e a lixeira)<br />
que resi<strong>de</strong> a incerteza, e o mérito<br />
<strong>de</strong> qualquer crítico me<strong>de</strong>-se pela<br />
grau <strong>de</strong> interesse e originalida<strong>de</strong><br />
que impõe à sua movimentação<br />
nessas áreas cinzentas. O<br />
problema é quando os críticos<br />
da estirpe <strong>de</strong> Wood promovem o<br />
seu <strong>de</strong>sembaraço para negociar<br />
incertezas específicas a uma<br />
doutrina aplicável a qualquer<br />
situação genérica.<br />
Como os gramaticólogos ou<br />
sexólogos, os críticos situamse<br />
numa linha <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong><br />
entre dois pólos: o <strong>de</strong>scritivo e o<br />
prescritivo. Wood transformou-se<br />
num crítico quase fanaticamente<br />
prescritivo, o que significa que<br />
todas as suas <strong>de</strong>cisões sobre o<br />
que tem ou não valor são tomadas<br />
“a priori”, e os seus po<strong>de</strong>res <strong>de</strong><br />
observação e argumentação são<br />
distorcidos em conformida<strong>de</strong>.<br />
Como qualquer fanático, arriscase<br />
a encontrar apenas o que quer<br />
ver. O caso em questão ilustra os<br />
problemas inerentes a este <strong>de</strong>svio:<br />
o leitor tem mais probabilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> ser educado sobre o processo<br />
prescrito (o estilo indirecto livre)<br />
do que sobre o exemplo <strong>de</strong>scrito<br />
(o excerto <strong>de</strong> Henry James). Mas<br />
também <strong>de</strong>monstra que, quando<br />
há talento, é “embaraçosamente”<br />
fácil um fanático estar errado e ser<br />
interessante ao mesmo tempo.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 47