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Mónica Calle - Fonoteca Municipal de Lisboa

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Sexta-feira<br />

25 Março 2011<br />

www.ipsilon.pt<br />

Maria Gabriela Llansol Aquaparque Jérôme Bel Manuel Baptista Souad Massi<br />

Mónica <strong>Calle</strong><br />

Viagem ao fundo do teatro<br />

numa sala do Cais do Sodré<br />

MIGUEL MANSO ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7657 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE


DIRECÇÃO ARTÍSTICA<br />

LUÍSA TAVEIRA<br />

ROMEU<br />

E JULIETA<br />

COREOGRAFIA JOHN CRANKO<br />

MÚSICA SERGEI PROKOFIEV<br />

ARGUMENTO JOHN CRANKO<br />

SEGUNDO WILLIAM SHAKESPEARE<br />

CENOGRAFIA JOÃO MENDES RIBEIRO<br />

FIGURINOS ANTÓNIO LAGARTO<br />

IMAGENS DANIEL BLAUFUKS<br />

DESENHO DE LUZ CRISTINA PIEDADE<br />

LISBOA,<br />

TEATRO CAMÕES<br />

MARÇO 2011<br />

dias 17, 18, 19, 25 e 26 às 21h<br />

TARDES FAMÍLIA dias 20 e 27 às 16h<br />

ABRIL 2011<br />

dias 01 e 02 às 21h<br />

TARDE FAMÍLIA dia 03 às 16h<br />

ESCOLAS dias 24 e 31 <strong>de</strong> Março às 15h<br />

BILHETES €5 A €25<br />

TEATRO CAMÕES DIAS DE ESPECTÁCULO // 21 892 34 77<br />

TEATRO NACIONAL DE SÃO CARLOS SEGUNDA A SEXTA DAS 13H ÀS 19H // 21 325 30 45 / 6<br />

TICKETLINE WWW.TICKETLINE.PT // 707 234 234<br />

LOJAS ABREU, FNAC, WORTEN, EL CORTE INGLÉS, C.C.DOLCE VITA<br />

Apoios à divulgação:<br />

www.cnb.pt M/6<br />

facebook.com/cnbportugal


Flash<br />

Sumário<br />

Mónica <strong>Calle</strong> 6<br />

Um caso <strong>de</strong> estudo, e <strong>de</strong><br />

espanto, do teatro português<br />

Jérôme Bel 10<br />

A vida <strong>de</strong> um bailarino<br />

também é um espectáculo<br />

Aquaparque 14<br />

Um mundo novo<br />

em português<br />

Maria Gabriela Llansol 20<br />

Ela morreu, os llansolianos<br />

continuam<br />

Judaica 24<br />

Tudo o que sempre quisemos<br />

ler sobre o judaísmo<br />

Semih Kaplanoglu 29<br />

A Turquia da sua infância<br />

Manuel Baptista 31<br />

Objectos “bigger than life”<br />

Ficha Técnica<br />

Directora Bárbara Reis<br />

Editor Vasco Câmara,<br />

Inês Nadais (adjunta)<br />

Conselho editorial Isabel<br />

Coutinho, Óscar Faria, Cristina ina<br />

Fernan<strong>de</strong>s, Vítor Belanciano<br />

Design Mark Porter, Simon<br />

Esterson, Kuchar Swara<br />

Directora <strong>de</strong> arte Sónia Matos<br />

Designers Ana Carvalho,<br />

Carla Noronha, Mariana Soares<br />

Editor <strong>de</strong> fotografia<br />

Miguel Ma<strong>de</strong>ira<br />

E-mail: ipsilon@publico.pt<br />

Russ Meyer vai ter<br />

um “biopic”?<br />

Os Óscares têm coisas <strong>de</strong>stas – um<br />

realizador que andava pelas ruas da<br />

amargura torna-se <strong>de</strong> repente no<br />

homem do momento, e às vezes<br />

nem é preciso ganhar-se um<br />

prémio. É o caso <strong>de</strong> David O.<br />

Russell, cujo “The Fighter – Último<br />

Round” <strong>de</strong>u a Christian Bale e<br />

Melissa Leo as estatuetas <strong>de</strong> actores<br />

secundários e literalmente o<br />

ressuscitou do longo purgatório por<br />

on<strong>de</strong> andou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o insucesso <strong>de</strong><br />

“Os Psico-Detectives”.<br />

À meia-dúzia <strong>de</strong> bolas que Russell<br />

anda a segurar neste momento –<br />

entre as quais pelo menos dois<br />

projectos com a sua “alma gémea”<br />

Mark Wahlberg, uma adaptação do<br />

jogo vi<strong>de</strong>o “Uncharted: Drake’s<br />

Fortune” e “Cocaine Cowboys”,<br />

história verídica ambientada no<br />

tráfico <strong>de</strong> droga dos anos 70 – vem<br />

agora juntar-se mais uma. Trata-se<br />

<strong>de</strong> uma biografia do infame autor<br />

<strong>de</strong> filmes <strong>de</strong> “exploitation” Russ<br />

Meyer, o homem <strong>de</strong> “Faster,<br />

Pussycat! Kill! Kill!” e da trilogia das<br />

“Vixens”, o cineasta que sabia que<br />

os homens preferem os seios. O<br />

filme será baseado na aclamada<br />

biografia que Jimmy McDonough<br />

fez <strong>de</strong> Meyer, “Big Bosoms and<br />

Square Jews”.<br />

A notícia, avançada pelo “site”<br />

Deadline New York, aponta que a<br />

Fox Searchlight estará à beira <strong>de</strong><br />

assegurar os direitos do projecto<br />

especificamente para Russell o<br />

dirigir. A “cereja” no topo do bolo é<br />

que o argumentista por trás da<br />

adaptação é Merritt Johnson, que<br />

escreveu igualmente uma biografia<br />

<strong>de</strong> Linda Lovelace<br />

actualmente em<br />

pré-<br />

produção, e que foi<br />

assistente <strong>de</strong><br />

Russell<br />

em “Três Reis”.<br />

No entanto, nada<br />

disto é certo: são<br />

incontáveis os<br />

projectos a<br />

que<br />

Russell tem<br />

estado<br />

ligado, mas nos<br />

sete anos<br />

que<br />

<strong>de</strong>correram <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

“Os Psico-<br />

Detectives” só<br />

“The Fighter”<br />

seguiu em frente.<br />

Convirá por isso<br />

dar algum<br />

<strong>de</strong>sconto aos<br />

relatos...<br />

A mítica protagonista<br />

<strong>de</strong> “Faster, Pussycat!<br />

Kill! Kill!”<br />

O cineasta<br />

que sabia que<br />

os homens<br />

preferem<br />

os seios po<strong>de</strong><br />

estar em vias<br />

<strong>de</strong> dar um<br />

filme<br />

“A Solidão dos<br />

Números Primos”<br />

na maior festa <strong>de</strong><br />

sempre do cinema<br />

italiano<br />

“A Solidão dos Números<br />

Primos”, adaptação do<br />

“best-seller” <strong>de</strong> Paolo<br />

Giordano por Saverio<br />

Costanzo, é o primeiro<br />

filme anunciado para o<br />

cartaz da quarta 8 ½ – Festa<br />

do Cinema Italiano. A<br />

edição 2011 do certame, a<br />

<strong>de</strong>correr <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> Abril a 8<br />

<strong>de</strong> Maio, traz uma série <strong>de</strong><br />

novida<strong>de</strong>s em relação a<br />

anos anteriores: alarga o<br />

seu raio <strong>de</strong> acção à<br />

Ma<strong>de</strong>ira, entra em parceria<br />

com a Cinemateca<br />

Portuguesa e com o Curtas<br />

Vila do Con<strong>de</strong>, aposta na<br />

exibição <strong>de</strong> telediscos e<br />

documentários.<br />

Apresentada em estreia a<br />

concurso em Veneza 2010,<br />

“A Solidão dos Números<br />

Primos” conta com Alba<br />

Rohrwacher (“Eu Sou o<br />

Amor”, “Que Mais Quero<br />

Eu”) e Luca Marinelli nos<br />

papéis principais dos dois<br />

jovens traumatizados por<br />

episódios da sua infância<br />

cujos percursos se cruzam<br />

ao longo das décadas. Tratase<br />

da terceira longa <strong>de</strong><br />

Saverio Costanzo, um dos<br />

mais idiossincráticos jovens<br />

realizadores transalpinos,<br />

cuja obra não mereceu<br />

ainda estreia comercial<br />

entre nós.<br />

É a mais ambiciosa das<br />

Festas até agora realizadas: a<br />

quarta 8 ½ dividirá a sua<br />

programação lisboeta entre<br />

o cinema Monumental e o<br />

espaço Nimas, com uma<br />

retrospectiva da comédia à<br />

italiana a <strong>de</strong>correr na<br />

Cinemateca sob o genérico<br />

Amarcord (inspirado pelo<br />

filme <strong>de</strong> memórias <strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>rico Fellini), estando já<br />

prometida a exibição <strong>de</strong> dois<br />

clássicos <strong>de</strong> Dino Risi, “Os<br />

Monstros” e “A<br />

Ultrapassagem”. Para além<br />

da secção competitiva – que<br />

contará este ano no júri com<br />

dois músicos <strong>de</strong> jazz ligados<br />

ao cinema, Filipe Melo<br />

(igualmente criador da curta<br />

“A Solidão<br />

dos Números<br />

Primos” é a<br />

terceira longa<br />

<strong>de</strong> Saverio<br />

Costanzo,<br />

um dos mais<br />

idiossincráticos<br />

realizadores<br />

italianos, cuja<br />

obra ainda<br />

não mereceu<br />

estreia<br />

comercial em<br />

Portugal<br />

“I’ll See You in My Dreams”<br />

e da série televisiva “Um<br />

Mundo Catita”) e Bernardo<br />

Sassetti (responsável por<br />

uma longa série <strong>de</strong> bandassonoras)<br />

– e do Panorama<br />

das próximas estreias, a<br />

edição 2011 propõe<br />

igualmente duas sessões<br />

especiais; uma por ocasião<br />

dos 150 anos da unificação<br />

italiana, outra em<br />

homenagem à Fabrica<br />

Benetton. O programa<br />

completa-se, para já, com a<br />

secção documental Italia.<br />

doc, um programa <strong>de</strong><br />

curtas-metragens<br />

comissariado em parceria<br />

com Vila do Con<strong>de</strong><br />

(antecipado pela exibição,<br />

na noite Shortcutz do<br />

próximo dia 29 <strong>de</strong> Março,<br />

<strong>de</strong> “Io Sono Qui”, <strong>de</strong> Mario<br />

Piredda, no bar Bicaense),<br />

e a nova secção <strong>de</strong><br />

telediscos e música Ascolta.<br />

Em <strong>Lisboa</strong>, a Festa terá<br />

lugar <strong>de</strong> 14 a 21 <strong>de</strong> Abril,<br />

seguindo, entre 27 e 29,<br />

para Coimbra, entre 29 <strong>de</strong><br />

Abril e 1 <strong>de</strong> Maio para o<br />

Porto, e entre 5 e 8 <strong>de</strong> Maio,<br />

pela primeira vez, para o<br />

Funchal. As datas do Porto<br />

estão ainda sujeitas a<br />

confirmação e o programa<br />

irá sendo revelado<br />

emwww.festadocinemaitaliano.com<br />

.<br />

Jorge Mourinha<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 3


Flash<br />

ALAIN FONTERAY<br />

Depois <strong>de</strong>ste “Adagio”<br />

com François Mitterrand,<br />

Olivier Py tem planos para<br />

um “andante” com Jacques<br />

Chirac e um “allegro”<br />

com Sarkozy<br />

Tin<strong>de</strong>rsticks dão<br />

música a Claire Denis<br />

no Indie<strong>Lisboa</strong><br />

Os Tin<strong>de</strong>rsticks vão trazer à<br />

oitava edição do Indie<strong>Lisboa</strong>,<br />

o festival internacional <strong>de</strong><br />

cinema in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

<strong>Lisboa</strong>, uma interpretação ao<br />

vivo das bandas sonoras que<br />

criaram ao longo dos últimos<br />

13 anos para os filmes da<br />

realizadora francesa Claire<br />

Denis. Será a 11 <strong>de</strong> Maio, na<br />

Aula Magna, e os bilhetes<br />

custam entre 27 e 35 euros.<br />

Foi em 1995, numa sala <strong>de</strong><br />

espectáculos em Paris, que os<br />

Tin<strong>de</strong>rsticks travaram pela<br />

primeira vez conhecimento<br />

com Claire Denis. A banda<br />

<strong>de</strong>senvolvia um som baseado<br />

nas orquestrações múltiplas<br />

<strong>de</strong> Dickon Hinchliffe e na voz<br />

<strong>de</strong> Stuart Staples. Enquanto<br />

tocavam “My sister”, do<br />

segundo disco, a realizadora<br />

teve a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> convidar a<br />

banda para fazer a bandasonora<br />

do filme “Nénette et<br />

Boni”, que ainda estava em<br />

fase <strong>de</strong> produção. Esta<br />

parceria acabou por durar 13<br />

anos; mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

Dickon Hinchliffe ter <strong>de</strong>ixado<br />

a banda, lançou a banda<br />

sonora, então a solo, para o<br />

filme “Vendredi Soir”.<br />

Também Stuart Staples,<br />

igualmente a solo, fez a<br />

música para “L’Intrus”. O<br />

último encontro da banda<br />

com a realizadora surgiu no<br />

ano <strong>de</strong> 2009 em “White<br />

Novo disco para<br />

a Orchestre Poly-<br />

Rythmo <strong>de</strong> Cotonou<br />

A orquestra <strong>de</strong> “Poly-Rhytmo” <strong>de</strong><br />

Cotonou, uma formação histórica<br />

da República do Benim fundada<br />

em 1969, vai ter a sua primeira<br />

gran<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong> no<br />

“mainstream” internacional após<br />

40 anos <strong>de</strong> carreira: a banda<br />

conseguiu finalmente assinar com<br />

a editora Analogue para gravar um<br />

álbum.<br />

Os “Papys Groovy”, como é<br />

conhecida a orquestra “Poly-<br />

Rhytmo” na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cotonou,<br />

captaram todas as influências<br />

musicais à solta no Benim, um dos<br />

países mais pobres do mundo, e<br />

aliaram-nas à realida<strong>de</strong> ancestral<br />

das tradições <strong>de</strong> vudu africanas. O<br />

vocalista <strong>de</strong> 63 anos Ahehehinnou,<br />

formou o seu gosto com a rádio,<br />

ouvindo Brian Wilson, Elvis<br />

RICHARD DUMAS<br />

Material”. Diz Stuart Staples<br />

sobre esta inusitada parceria:<br />

“Tínhamos o sonho <strong>de</strong> fazer<br />

bandas sonoras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre,<br />

mesmo quando mal<br />

conseguíamos tocar. Na altura,<br />

a proposta (<strong>de</strong> Claire Denis)<br />

soou-nos como o caminho certo<br />

a seguir”<br />

A 11 <strong>de</strong> Maio, po<strong>de</strong>remos ver<br />

projectados em ecrã os filmes<br />

A Orchestre Poly-Rythmo<br />

<strong>de</strong> Cotonou vai ter a ajuda <strong>de</strong> dois<br />

Franz Ferdinand no novo disco<br />

Presley, Jimi Hendrix e<br />

sobretudo James Brown. A banda<br />

começou por copiar os artistas<br />

norte-americanos (apesar <strong>de</strong> não<br />

compreen<strong>de</strong>r as letras), que juntou<br />

às batidas sato e às danças<br />

tradicionais tchin koume (mas<br />

alterando um pouco ritmo, porque<br />

brincar com “o sagrado traz má<br />

sorte”, explicou o vocalista ao<br />

“The Guardian”). Apesar da<br />

popularida<strong>de</strong> local e <strong>de</strong> diversas<br />

“tournées” em África, a banda<br />

<strong>de</strong> Claire Denis, enquanto a<br />

banda interpreta os temas que<br />

os acompanham e que lhes<br />

dão sentido: “O trabalho para<br />

cada um <strong>de</strong>stes filmes sempre<br />

nos levou a avançar para o<br />

<strong>de</strong>sconhecido. No final,<br />

sentimos que isso nos mudou,<br />

que mudou a nossa música”.<br />

Antecipando este concerto,<br />

será lançada, a 26 <strong>de</strong> Abril,<br />

uma caixa com todas as<br />

bandas-sonoras, “Tin<strong>de</strong>rsticks-<br />

Claire Denis Film Scores 1996-<br />

2009”. Este ano, o Indie<strong>Lisboa</strong><br />

<strong>de</strong>corre <strong>de</strong> 5 a 13 <strong>de</strong> Maio,<br />

alternando entre o Cinema S.<br />

Jorge, a Culturgest, o Teatro do<br />

Bairro e a Cinemateca.<br />

Luís <strong>de</strong> Freitas Branco<br />

Os Tin<strong>de</strong>rsticks actuam na<br />

Aula Magna a 11 <strong>de</strong> Maio, para<br />

um concerto em que darão a<br />

ouvir as bandas-sonoras que<br />

compuseram nos últimos 13 anos<br />

sempre teve<br />

dificulda<strong>de</strong> em<br />

sobreviver através do<br />

negócio da música,<br />

lutando constantemente<br />

para conseguir manter<br />

os instrumentos e as<br />

datas <strong>de</strong> concertos.<br />

Mas tudo mudou para a<br />

Orchestre Poly-Rythmo no<br />

ano passado, com uma<br />

digressão europeia que foi<br />

um sucesso crítico e<br />

financeiro. “Honestamente,<br />

tivemos tantas promessas<br />

rompidas ao longo dos anos, que<br />

não acreditávamos que fosse<br />

mesmo acontecer”, diz<br />

Ahehehinnou. Mas <strong>de</strong>sta vez o<br />

álbum novo vai mesmo acontecer,<br />

com a já confirmada ajuda <strong>de</strong> dois<br />

membros da banda <strong>de</strong> rock<br />

escocesa Franz Ferdinand, o<br />

guitarrista Nick MacCarthy e o<br />

baterista Paul Thomson.<br />

Mitterrand sobe<br />

ao palco no “Adagio”<br />

<strong>de</strong> Olivier Py<br />

O ex-ministro da Cultura francês<br />

Jack Lang, e o antigo secretáriogeral<br />

do Eliseu, Hubert Védrine,<br />

não quiseram faltar, na semana<br />

passada, à estreia <strong>de</strong> “Adagio”, a<br />

peça <strong>de</strong> Olivier Py que encena os<br />

últimos meses <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> François<br />

Mitterrand, no Théâtre <strong>de</strong> L’O<strong>de</strong>on,<br />

em Paris. Lang e Védrine figuram,<br />

como personagens, na peça <strong>de</strong> Py,<br />

e a sua presença na sala levou a que<br />

a representação se tenha<br />

convertido numa espécie <strong>de</strong><br />

partida <strong>de</strong> ténis, com os<br />

espectadores a voltarem<br />

constantemente a cabeça para<br />

sondar o modo como ambos<br />

reagiam ao que os seus duplos<br />

diziam em palco.<br />

Bem acolhida pelo público e pela<br />

crítica, que tem <strong>de</strong>stacado a<br />

actuação <strong>de</strong> Philippe Girard no<br />

papel do ex-presi<strong>de</strong>nte francês, a<br />

peça <strong>de</strong> Py convoca ainda várias<br />

outras figuras que se moveram no<br />

círculo <strong>de</strong> Mitterrand, como o<br />

actual ministro dos Negócios<br />

Estrangeiros, Bernard Kouchner, ou<br />

o publicitário Jacques Séguéla,<br />

responsável pelas suas campanhas<br />

eleitorais.<br />

Py baseou-se em discursos do<br />

próprio Mitterrand e em diversa<br />

outra documentação, o que dá à<br />

sua peça um realismo convincente.<br />

Interessou-o a oposição entre a<br />

imagem pública e a vida privada do<br />

protagonista, entre o político e o<br />

homem que ambicionava ser<br />

romancista.<br />

O final do último mandato <strong>de</strong><br />

Mitterrand – que terminou em Maio<br />

<strong>de</strong> 1995, quando lhe restava pouco<br />

mais <strong>de</strong> meio ano <strong>de</strong> vida – foi<br />

marcado por vários momentos<br />

polémicos, quer a nível<br />

internacional, com as posições que<br />

tomou nas crises da Bósnia ou do<br />

Ruanda, quer no plano doméstico,<br />

com a revelação do seu alegado<br />

envolvimento com o governo <strong>de</strong><br />

Vichy. Py não ignora nenhuma<br />

<strong>de</strong>stas polémicas, mas evita<br />

tomar posição, <strong>de</strong>ixando<br />

que sejam as personagem <strong>de</strong><br />

Mitterrand e dos seus adversários<br />

políticos a expor os respectivos<br />

argumentos.<br />

Se “Adagio” está a <strong>de</strong>spertar<br />

natural curiosida<strong>de</strong>, Py ameaça<br />

não ficar por aqui nesta sua<br />

estratégia <strong>de</strong> fazer subir ao palco,<br />

por interpostos actores, as<br />

principais figuras da política<br />

francesa. Numa entrevista<br />

recente ao “Le Figaro”, afirma:<br />

“Gostaria <strong>de</strong> fazer como<br />

Shakespeare com Henrique IV,<br />

Henrique V e Henrique VI – <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong>ste ‘Adagio’ com François<br />

Mitterrand, fazer um ‘Andante’<br />

com Jacques Chirac e um ‘Allegro’<br />

com Nicolas Sarkozy”.<br />

Björk bio e Damon<br />

Albarn operático.<br />

On<strong>de</strong>?<br />

Em Manchester.<br />

Parece ser a cida<strong>de</strong> para se estar a<br />

partir <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> Junho. É nessa data<br />

que a cantora islan<strong>de</strong>sa aterra em<br />

Manchester, mais exactamente no<br />

Festival Internacional daquela<br />

cida<strong>de</strong> inglesa, para uma série <strong>de</strong><br />

apresentações especiais do seu<br />

novo espectáculo, “Biophilia”,<br />

nome também do seu próximo<br />

álbum. Alguma imprensa chama-lhe<br />

“residência artística” e é capaz <strong>de</strong><br />

fazer sentido. Afinal, a islan<strong>de</strong>sa vai<br />

permancer em Manchester durante<br />

três semanas, para seis<br />

apresentações, num misto <strong>de</strong><br />

instalação artística, com música,<br />

claro, mas também um imaginário<br />

multimédia com estrelas, planetas,<br />

Internet, tecnologia e natureza. Na<br />

apresentações experimentará uma<br />

panóplia <strong>de</strong> novos instrumentos e<br />

suportes digitais. O espectáculo<br />

“Biophilia” apresenta-se a 30 <strong>de</strong><br />

Junho e a 3, 7, 10, 13 e 16 <strong>de</strong> Julho.<br />

No mesmo festival, outro notável,<br />

Damon Albarn (Blur, Gorillaz)<br />

regressa à ópera. Depois <strong>de</strong> ter<br />

criado “Monkey: Journey to the<br />

West” em 2007, agora prepara-se<br />

para estrear “Doctor Dee”, peça<br />

escrita por Albarn e dirigida por<br />

Rufus Norris. A ópera será<br />

apresentada no Manchester Palace<br />

Theatre entre 1 e 9 <strong>de</strong> Julho. A<br />

história é centrada em John Dee,<br />

conselheiro médico e ciêntifico da<br />

Rainha Isabel I. Ao que parece, Dee<br />

também seria astrólogo e espião. A<br />

coisa promete. E ao contrário do<br />

que acontecia na sua ópera<br />

anterior, <strong>de</strong>sta vez Damon estará<br />

mesmo em cena.<br />

Damon Albarn<br />

vai à ópera,<br />

literalmente:<br />

o seu “Doctor<br />

Dee” terá<br />

estreia no<br />

Festival<br />

Internacional<br />

<strong>de</strong> Manchester<br />

4 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


AGENDA CULTURAL FNAC<br />

entrada livre<br />

APRESENTAÇÃO MÚSICA AO VIVO LANÇAMENTO EXPOSIÇÃO<br />

APRESENTAÇÃO<br />

A TERRA TODA<br />

Livro <strong>de</strong> José Manuel Saraiva<br />

O jornalista e escritor apresenta o seu último romance em que reflecte acerca da actualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

forma provocadora.<br />

25.03. 19H30 FNAC BRAGA<br />

26.03. 16H00 FNAC ALMADA<br />

APRESENTAÇÃO<br />

ENCONTRO COM JACK SOIFER<br />

O reconhecido consultor económico conversa com o público acerca dos seus livros Como sair da Crise<br />

e Lucrar na Crise.<br />

31.03. 18H30 FNAC CHIADO<br />

08.04. 21H00 FNAC COIMBRA<br />

MÚSICA AO VIVO<br />

OS GOLPES<br />

G<br />

A banda dá a conhecer, no Fórum FNAC, um disco especial e <strong>de</strong> edição limitada.<br />

28.03. 18H30 FNAC CHIADO<br />

05.04. 21H30 FNAC COLOMBO<br />

MÚSICA AO VIVO<br />

THE GIFT<br />

Explo<strong>de</strong><br />

O novo álbum <strong>de</strong> originais revela-se mais eléctrico e cru, com menos orquestrações e em registo épico.<br />

31.03. 22H00 FNAC COIMBRA<br />

01.04. 18H00 FNAC CHIADO<br />

01.04. 21H30 FNAC COLOMBO<br />

02.04. 17H00 FNAC CASCAISHOPPING<br />

03.04. 15H00 FNAC ALMADA<br />

03.04. 19H30 FNAC VASCO DA GAMA<br />

08.04. 18H00 FNAC STA. CATARINA<br />

08.04. 22H00 FNAC NORTESHOPPING<br />

09.04. 17H00 FNAC GAIASHOPPING<br />

09.04. 22H00 FNAC MAR SHOPPING<br />

EXPOSIÇÃO<br />

AS INCRÍVEIS AVENTURAS DE<br />

DOG MENDONÇA E PIZZABOY<br />

Desenhos <strong>de</strong> Juan Cavia e argumento <strong>de</strong> Filipe Melo<br />

Uma selecção <strong>de</strong> imagens que recorda algumas das peripécias vividas pelos três protagonistas <strong>de</strong>ste livro<br />

<strong>de</strong> aventuras.<br />

23.03. - 25.05.2011 FNAC BRAGA<br />

apoio:<br />

Consulte a AGENDA FNAC em:<br />

http://cultura.fnac.pt


Mónica <strong>Calle</strong>, 44 anos,<br />

estreou ontem a primeira parte<br />

<strong>de</strong> um tríptico <strong>de</strong> monólogos<br />

que a faz regressar a um autor<br />

<strong>de</strong> eleição, Heiner Müller. Mas o<br />

que esta encenadora nos mostra<br />

é um modo singular (e solitário)<br />

<strong>de</strong> experimentar o teatro sem<br />

o artifício da distância.<br />

Um absoluto caso <strong>de</strong> estudo,<br />

e também <strong>de</strong> espanto.<br />

Tiago Bartolomeu Costa<br />

MIGUEL MANSO<br />

A verda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Mónica<br />

<strong>Calle</strong>, por<br />

inteiro<br />

6 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


Mónica <strong>Calle</strong>,<br />

44 anos,<br />

chegou a<br />

integrar um<br />

espectáculo<br />

do Teatro da<br />

Cornucópia<br />

quando saiu<br />

do Conservatório,<br />

mas o<br />

seu caminho<br />

foi outro,<br />

e fê-lo<br />

sozinha<br />

“O que <strong>de</strong> pior acontece <strong>de</strong> momento<br />

é que só há tempo ou velocida<strong>de</strong> ou<br />

passagem do tempo, mas não há espaço.<br />

É preciso criar espaços e ocupálos,<br />

contra esta aceleração”.<br />

É sempre daqui que a nova criação<br />

<strong>de</strong> Mónica <strong>Calle</strong> parte, <strong>de</strong>sta frase <strong>de</strong><br />

Heiner Müller. É sempre a ela que regressa.<br />

Agora, outra e mais uma vez.<br />

Não será a última: “Anúncio <strong>de</strong> Morte”<br />

é um tríptico <strong>de</strong> solos, construídos a<br />

partir da reescrita <strong>de</strong> textos do dramaturgo<br />

alemão, para apresentar até<br />

Junho: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ontem, e até 3 <strong>de</strong> Abril,<br />

há “Álbum <strong>de</strong> Família” (a partir <strong>de</strong> “A<br />

Máquina-Hamlet”), <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> Abril a 8<br />

<strong>de</strong> Maio, “Sete espelhos no quarto <strong>de</strong><br />

dormir” (a partir <strong>de</strong> “Descrição <strong>de</strong> um<br />

quadro”), e <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> Maio a 5 <strong>de</strong> Junho,<br />

“O passeio das raparigas mortas”<br />

(a partir <strong>de</strong> “Anúncio <strong>de</strong> Morte”), interpretados<br />

respectivamente por Tiago<br />

Vieira, Ana Ribeiro e Rute Cardoso.<br />

Com eles Mónica <strong>Calle</strong>, 44 anos, volta<br />

a escrever nas pare<strong>de</strong>s da sua Casa<br />

Conveniente, ao Cais do Sodré, em<br />

<strong>Lisboa</strong>, as razões pelas quais faz o que<br />

faz e que dão corpo à singularida<strong>de</strong><br />

(outra maneira <strong>de</strong> dizer solidão) do<br />

seu teatro.<br />

“Tem tudo a ver com a memória”,<br />

diz, para falar <strong>de</strong> um teatro feito <strong>de</strong><br />

espaços afectivos, como este no Cais<br />

do Sodré on<strong>de</strong> trabalha, antigo bar<br />

transformado em teatro, que, <strong>de</strong> tão<br />

físicos, se converteram num discurso<br />

artístico singular, isolado, solitário,<br />

on<strong>de</strong> importa “compreen<strong>de</strong>r a palpitação,<br />

compreen<strong>de</strong>r cada golpe, não<br />

<strong>de</strong> um modo racional mas intuitivo”.<br />

Sobreviver.<br />

Mónica <strong>Calle</strong> fez disso um modo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o seu teatro. Saída do Conservatório,<br />

figurou no Teatro da Cornucópia,<br />

em “As Três Irmãs”, mas não<br />

era bem isso que procurava. A geração<br />

a que pertencia queria criar o seu próprio<br />

espaço (ver caixa) fora do pequeno<br />

“establishment” do teatro português,<br />

e com o tempo <strong>Calle</strong> transformou-se<br />

num caso raro, <strong>de</strong> coerência<br />

e longevida<strong>de</strong>. Um caso <strong>de</strong> estudo. Ao<br />

longo dos anos, o que foi procurando,<br />

sem concessões, com uma exigência<br />

rara, foi um modo <strong>de</strong> fazer teatro que,<br />

naquele contexto <strong>de</strong> finais da década<br />

<strong>de</strong> 80 e princípios da <strong>de</strong> 90, lá fora ia<br />

sendo chamado <strong>de</strong> pós-dramático,<br />

pelo modo como se relacionava com<br />

o que ia encontrando pela frente. Em<br />

nome próprio, foi assinando trabalhos<br />

que, a partir <strong>de</strong> textos teatrais ou <strong>de</strong><br />

romances, representavam uma pesquisa<br />

atenta à relação do actor com o<br />

espaço, do texto com a leitura, do encenador<br />

que dá com o espectador que<br />

pe<strong>de</strong>. Com o tempo, o seu teatro foi<br />

<strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser marginal e tornou-se<br />

uma referência fundamental para <strong>de</strong>finir<br />

o potencial da cena nacional (distinguido<br />

em 2010 pela Associação<br />

Portuguesa <strong>de</strong> Críticos <strong>de</strong> Teatro).<br />

Dizer, agora, que Mónica <strong>Calle</strong> criou<br />

o seu próprio espaço é, mais do que<br />

constatar que <strong>de</strong> facto inventou um<br />

teatro que fosse seu no Cais do Sodré,<br />

chamar a atenção para o facto <strong>de</strong> ter<br />

tido que abrir caminho. Procurar um<br />

espaço – “tenho a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me<br />

sentir livre no modo como faço o meu<br />

trabalho” –, e construi-lo num sítio que<br />

não <strong>de</strong>via ser um teatro mas é, permitiu-lhe<br />

chegar a este lugar <strong>de</strong> exposição<br />

crua do corpo, do texto, do olhar,<br />

da voz, da presença.<br />

“Há coisas que eu sei que não quero,<br />

nas quais não acredito. Há outras<br />

que são construídas. Po<strong>de</strong> não parecer,<br />

mas sou muito rigorosa no cuidado<br />

com a luz, na qualida<strong>de</strong> do que<br />

é dito, no <strong>de</strong>senho cenográfico”, diznos<br />

no fim <strong>de</strong> um ensaio que é só<br />

mais um, porque <strong>de</strong>pois da estreia<br />

<strong>de</strong> ontem o “trabalho vai continuar,<br />

não faz sentido fechar-se”. “Às vezes<br />

os actores dizem que não percebem,<br />

ou levam mais tempo a perceber do<br />

“Não há nenhum<br />

mérito, nem nenhum<br />

heroísmo nesta<br />

resistência. Agora<br />

que vou envelhecendo,<br />

consigo perceber<br />

o que me levou<br />

a <strong>de</strong>terminado sítio,<br />

percebo o lugar<br />

<strong>de</strong> cada coisa.<br />

Mas nada é linear<br />

nem estruturado”<br />

De cima para baixo: “Três Irmãs<br />

- Que Importância é que isto<br />

tem?”, <strong>de</strong> 2003, “A última<br />

Gravação <strong>de</strong> Krapp”, <strong>de</strong> 2007,<br />

e “Rua <strong>de</strong> Sentido Único”, <strong>de</strong><br />

2002, algumas das criações <strong>de</strong><br />

<strong>Calle</strong> para a Casa Conveniente<br />

que estou a falar. E eu reconheço alguma<br />

dificulda<strong>de</strong> em explicar o que<br />

pretendo”, diz. “Nestes últimos três<br />

anos, tenho feito muitos ‘workshops’<br />

que são espectáculos, e on<strong>de</strong> trabalho<br />

tar<strong>de</strong> e noite. É um mo<strong>de</strong>lo que<br />

me <strong>de</strong>ixa muito feliz e imensamente<br />

livre. Os actores que trabalham comigo,<br />

e que quando chegam, na sua<br />

maioria, não me conhecem, <strong>de</strong>pressa<br />

compreen<strong>de</strong>m que tem <strong>de</strong> haver<br />

uma disponibilida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>. É um<br />

investimento imediato aquele no qual<br />

se mergulha. Para todos. E é uma troca<br />

constante. Eu dou-te, tu dás, o<br />

texto dá, o espaço dá. Todos os que<br />

vão passando por aqui, numa re<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>s, vão fazendo <strong>de</strong><br />

tudo. É tudo muito concreto e, por<br />

isso, todos sentem que a coisa lhes<br />

pertence. Que é um bocadinho <strong>de</strong>las”.<br />

Elas também não são quaisquer<br />

umas: “As pessoas que me vão interessando<br />

são as que me lançam e me<br />

levam a sítios diferentes.”<br />

DANIEL ROCHA PILAR MAYORGAS<br />

JOÃO TUNA<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 7


Será também assim agora. Os<br />

espectáculos <strong>de</strong> Mónica <strong>Calle</strong> não são<br />

só <strong>de</strong> Mónica <strong>Calle</strong>. “Há uma verda<strong>de</strong><br />

que não é necessariamente minha, é<br />

<strong>de</strong> quem lá está”. E este estar lá tanto<br />

po<strong>de</strong> ser quem está a interpretar como<br />

quem está a ver. “O modo como<br />

constróis o texto, como o trabalhas,<br />

relaciona-se com o lugar on<strong>de</strong> o espectador<br />

se senta, o espaço que o<br />

envolve, o sítio para on<strong>de</strong> vai”, explica.<br />

“Eu tenho <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o que faço,<br />

e encontrar um sentido nisso quando,<br />

porque não posso fazer como<br />

quero, preciso <strong>de</strong> encontrar outras<br />

formas <strong>de</strong> fazer. On<strong>de</strong> chego é muito<br />

mais importante [do que on<strong>de</strong> queria<br />

ir], porque me obriga a pensar mais<br />

nas coisas. Eu trabalho sobre textos<br />

para <strong>de</strong>scobrir o que me dizem”, continua.<br />

MIGUEL MANSO<br />

O texto é real<br />

É também por isso que este tríptico<br />

agora em cena é um regresso a “A Missão”:<br />

o espectáculo que, em 2004,<br />

<strong>Calle</strong> estreou no antigo Bar Lusitano,<br />

que então reabria como nova Casa<br />

Conveniente, e que vai refazer, agora<br />

sozinha e por inteiro, no final do ano.<br />

Exactamente como há sete anos, mas<br />

agora com outras pare<strong>de</strong>s por construir,<br />

outro entulho no chão, outros<br />

bal<strong>de</strong>s <strong>de</strong> água, outras sacas <strong>de</strong> cimento<br />

e outros restos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras.<br />

Mas porque a memória é fundamental<br />

no trabalho da encenadora, ainda<br />

que este espectáculo seja outro é como<br />

se estivéssemos perante as mesmas<br />

pare<strong>de</strong>s, o mesmo entulho, os<br />

mesmos bal<strong>de</strong>s, as mesmas sacas <strong>de</strong><br />

cimento e os mesmos restos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras.<br />

No mesmo chão.<br />

O seu chão, a Casa Conveniente,<br />

fica numa artéria escura do Cais do<br />

Sodré, a Rua Nova do Carvalho, ao<br />

lado <strong>de</strong> outros tantos bares, <strong>de</strong> outros<br />

tantos espaços, tão ou mais teatrais<br />

do que este on<strong>de</strong> ela resiste a fazer<br />

teatro. Já é a segunda Casa Conveniente.<br />

Antes houve uma, à qual foi buscar<br />

o nome, duas ruas abaixo, na Rua dos<br />

Remolares: uma loja <strong>de</strong> utensílios <strong>de</strong><br />

pesca transformada em albergue para<br />

uma actriz que, há 19 anos, abriu<br />

as portas e foi insultada por todos os<br />

que passavam e achavam que aquela<br />

mulher que dizia poemas <strong>de</strong> Rimbaud<br />

a noite toda era só mais uma puta, só<br />

mais uma “Virgem Doida”. Foi a primeira<br />

peça, repetida noite fora, como<br />

estes solos agora serão, todos os dias<br />

até à meia-noite. Como se a história<br />

se pu<strong>de</strong>sse repetir mas fosse uma história<br />

nova, porque se po<strong>de</strong> ouvir novamente.<br />

O teatro <strong>de</strong>la, afinal, é sobretudo<br />

uma questão <strong>de</strong> presença. A do espectador,<br />

claro, a do actor, evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

mas também a do texto. “Os textos<br />

têm que ser um prazer para quem faz<br />

e diz. Os do Heiner Müller são uma<br />

prenda para os actores. Ele está sempre<br />

a citar-se. A compreensão do que<br />

se diz tem <strong>de</strong> ser intuitiva, não po<strong>de</strong><br />

ser intelectual. O actor não se po<strong>de</strong><br />

instalar no que está a dizer. Tem <strong>de</strong><br />

estar presente, tem <strong>de</strong> ser activo”.<br />

Tem <strong>de</strong> reagir, em suma, porque “o<br />

texto existe fisicamente, está ali”. E<br />

esteve, <strong>de</strong> facto, fisicamente, por diversas<br />

vezes. Em “Três Irmãs – Que<br />

importância é que isto têm?” (2002)<br />

ou “Manifesto” (2009), eram os textos,<br />

<strong>de</strong> Tchékhov num caso, e uma<br />

compilação <strong>de</strong> escritos políticos noutro,<br />

que apareciam. Nos exercícios que<br />

levaram a composições a partir <strong>de</strong> “O<br />

Ginjal” ou “Esta Noite Improvisa-se”,<br />

o texto nunca saía da frente dos espectadores.<br />

E, invariavelmente, aos espectadores<br />

era pedido que acompanhassem<br />

na leitura. Como se isso nos<br />

permitisse voltar a acreditar no teatro<br />

enquanto ritual colectivo em permanente<br />

construção.<br />

“O texto é, para mim, algo <strong>de</strong> muito<br />

“Álbum <strong>de</strong> Família”, que se<br />

estreou ontem na Casa<br />

Conveniente, é a primeira peça<br />

<strong>de</strong> um ciclo Heiner Müller<br />

“O texto é, para mim,<br />

algo <strong>de</strong> muito real,<br />

muito concreto.<br />

É algo vivo. Os autores<br />

existem como se eu<br />

os conhecesse,<br />

não são figuras<br />

distantes <strong>de</strong> mim.<br />

Por trás daqueles<br />

textos há um autor,<br />

que é alguém que me<br />

importa que esteja<br />

presente”<br />

real, muito concreto. É algo vivo. Os<br />

autores existem como se eu os conhecesse,<br />

não são figuras distantes <strong>de</strong><br />

mim. Por trás daqueles textos há um<br />

autor, que é alguém que me importa<br />

que esteja presente”, explica, indo ao<br />

encontro <strong>de</strong> frase <strong>de</strong> Heiner Müller<br />

frequentemente citada: “Há sempre<br />

mais mortos do que vivos”.<br />

O texto, diz <strong>Calle</strong>, dialoga com ela.<br />

E isso po<strong>de</strong> levá-la, e levou-a, a ter <strong>de</strong><br />

encontrar modos <strong>de</strong> leitura que fossem<br />

conscientes das condições em<br />

que seriam encenados. Os autores vão<br />

<strong>de</strong> Stig Dagerman (“Jogos da Noite”,<br />

1993, “A loucura da normalida<strong>de</strong>”,<br />

2002), a Walter Benjamin (“Rua <strong>de</strong><br />

Sentido Único”, 2001), passando por<br />

António Lobo Antunes (“Crónicas”,<br />

1997) e Luís Fonseca (“Os dias que nos<br />

dão”, 1999) ou Peter Handke (“Luz/<br />

Interior”, 2004, menção honrosa da<br />

Associação Portuguesa <strong>de</strong> Críticos <strong>de</strong><br />

Teatro em 2005).<br />

Os clássicos, se os quisermos insultar<br />

<strong>de</strong>ssa forma, são – em vez <strong>de</strong> foram<br />

– uma constante no percurso <strong>de</strong> <strong>Calle</strong>:<br />

Heiner Müller (“A Missão” (2004)),<br />

Thomas Bernhard (“Comédia ou a<br />

Força do Hábito”, 2008 e “Minetti ou<br />

Um Retrato do Artista Quando Jovem”,<br />

2009), Anton Tchékhov (“Três Irmãs<br />

- Que importância é que isto tem?”,<br />

2002, “A Última Ceia ou sobre O Cerejal”,<br />

2007, “O Ginjal ou o sonho das<br />

cerejas”, 2010), Luigi Piran<strong>de</strong>llo (“Esta<br />

Noite Improvisa-se”, 2010), Samuel<br />

Beckett (“Um dia virá”, 2003, “Variação<br />

sobre ‘A Última Gravação <strong>de</strong> Krapp’”,<br />

2007) e August Strindberg (“Menina<br />

Júlia”, 1993, “Inferno”, 2010)<br />

foram feitos e refeitos porque “nunca<br />

houve condições”, diz. “Levei 18 anos<br />

a fazer ‘O Ginjal’ por inteiro, sem ter<br />

<strong>de</strong> inventar formas nem estratégias<br />

para o fazer”, conta. Foi no ano passado,<br />

em co-produção com diversos<br />

teatros municipais. “Não correu bem”,<br />

assume. Como não tinha corrido bem<br />

“Julietas – Cartas fragmentárias a um<br />

amor perdido”, que apresentou na<br />

Culturgest em 2005, e, por isso, <strong>de</strong>cidiu<br />

parar.<br />

“Houve alturas em que não aguentei,<br />

em que não consegui”. E nessas<br />

alturas, parou. Para perceber no que<br />

tinha falhado.<br />

Voltar atrás<br />

Quando voltou, em 2007, fez um surpreen<strong>de</strong>nte<br />

Krapp. E quando voltou<br />

outra vez, no Inverno <strong>de</strong> 2010, fez um<br />

extraordinário “Inferno”. E agora que<br />

não tem uma terceira peça consecutiva<br />

numa gran<strong>de</strong> instituição – mas<br />

sendo a Casa Conveniente não menos<br />

do que uma instituição que ela se <strong>de</strong>dica<br />

a reinventar -, faz este tríptico, <strong>de</strong><br />

regresso à base. “Percebi que havia ali<br />

toda uma máquina que implicava com<br />

o que queria fazer. Uma máquina muito<br />

gran<strong>de</strong>”, diz. Não que alguma vez<br />

tenha ambicionado trabalhar o resto<br />

da vida com lâmpadas embrulhadas<br />

em papel couché, iodines que se fun<strong>de</strong>m,<br />

roupas velhas, bal<strong>de</strong>s cheios <strong>de</strong><br />

água, inundações em cima das estreias,<br />

cabos eléctricos à vista, ca<strong>de</strong>iras<br />

puídas, sacos <strong>de</strong> cimento em vez<br />

<strong>de</strong> a<strong>de</strong>reços iguais aos outros. Mas é<br />

isso que vamos encontrando. E agora,<br />

mais uma vez. Novamente a memória<br />

a fazer as vezes do discurso artístico,<br />

que faz as vezes das condições: “Os<br />

elementos usados vão surgindo ao<br />

longo do processo. Volto a alguns <strong>de</strong>les,<br />

tal como volto atrás nos textos.<br />

Pu<strong>de</strong>sse eu e estava três anos a fazer<br />

‘O Ginjal’, a investigar, a apren<strong>de</strong>r com<br />

o texto. Muitas <strong>de</strong>stas coisas, como o<br />

gesto criativo, têm a ver com as limitações,<br />

com o que há à volta, e com o<br />

que vais elaborando à volta disso”.<br />

Uma vez mais, tal como Müller, que<br />

8 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


Lúcia Sigalho<br />

Luís Castro<br />

RUI GAUDÊNCIO<br />

Diz-se imensas vezes em<br />

relação à minha geração<br />

que éramos muito giros quando<br />

começámos, mas que agora,<br />

coitados, estamos péssimos e<br />

acabados<br />

Há uma transição que não<br />

foi feita entre as companhias<br />

institucionalizadas<br />

com subsídios muito altos e outras<br />

que<br />

já provaram, ao fim <strong>de</strong> 10<br />

e 15 anos, o que valem<br />

A geração do meio<br />

A geração <strong>de</strong> Mónica <strong>Calle</strong> foi a primeira do pós-25 <strong>de</strong> Abril a afirmar-se como mo<strong>de</strong>lo alternativo<br />

às companhias que surgiram na década <strong>de</strong> 70 e entretanto se institucionalizaram, e nisso abriu caminho<br />

para quem veio a seguir. O que queriam e o sítio a que chegaram são dois países diferentes.<br />

DULCE FERNANDES/ ARQUIVO<br />

usa e reusa os mesmos textos, as mesmas<br />

palavras, reescrevendo os sentidos,<br />

ou escarafunchando. “São sempre<br />

espectáculos muito compensadores.<br />

São espectáculos <strong>de</strong> uma<br />

liberda<strong>de</strong> imensa. Mas não há nenhum<br />

mérito, nem nenhum heroísmo nessa<br />

resistência. Agora que vou envelhecendo,<br />

olho para trás e percebo melhor<br />

porque é que algumas coisas são<br />

como são, ou foram como foram. Consigo<br />

perceber o que me levou a <strong>de</strong>terminado<br />

sítio, porque é que fiz aquilo<br />

daquela maneira, percebo o lugar <strong>de</strong><br />

cada coisa. Mas nada é linear nem estruturado”,<br />

sublinha.<br />

A sua relação com as instituições é<br />

alias, paradigmática <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> procura permanente que não se<br />

a<strong>de</strong>qua às gran<strong>de</strong>s máquinas. Quando<br />

fez “Os paraísos do caminho vazio”,<br />

em 1998, a primeira das três peças<br />

que montou com a Culturgest, teve<br />

<strong>de</strong> sair para o anfiteatro ao ar livre<br />

para po<strong>de</strong>r respirar. Em 2003 levou<br />

para o Centro Cultural <strong>de</strong> Belém “Um<br />

dia Virá”, a partir <strong>de</strong> “À Espera <strong>de</strong> Godot”,<br />

<strong>de</strong> Beckett, mas foi como carta<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida à ex-Casa Conveniente<br />

que o espectáculo melhor resultou,<br />

ali, naquele cubículo na esquina da<br />

Rua dos Remolares, apropriadamente<br />

chamando-lhe “Esquina <strong>de</strong> uma<br />

rua”. Tal como tinha acontecido um<br />

ano antes com “O Bar da Meia-noite”,<br />

a partir <strong>de</strong> Fiama Hasse Pais Brandão,<br />

on<strong>de</strong> a mesa on<strong>de</strong> os espectadores<br />

se sentavam era tanto um espeavlho<br />

para o que se imaginava<br />

passar-se nos quartos das pensões<br />

que ro<strong>de</strong>avam a Casa<br />

Conveniente, como o reverso rso<br />

do que, nos quartos, se imaginava<br />

passar-se ali, naquele atro <strong>de</strong> esquina.<br />

te-<br />

Aquilo que Mónica <strong>Calle</strong> pro-<br />

cura é o próprio lugar do discuro<br />

da<br />

palavra, que lugar é o da arte,<br />

so artístico: “Que lugar é<br />

que lugar têm na vida. Que gar é este que se procura? É<br />

uma coisa gradual. Precisa <strong>de</strong><br />

um tempo <strong>de</strong> maturação, esta<br />

relação entre o interior e o<br />

luexterior.<br />

O tempo real e o<br />

tempo do teatro, e a consciência<br />

da simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes dois<br />

tempos são das coisas mais importantes.<br />

Eles coexistem sempre, em<br />

paralelo, o tempo real e o tempo<br />

fora do tempos”.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos na pág.<br />

37<br />

RAQUEL ESPERANÇA/ PÚBLICO<br />

LUÍS RAMOS/ PÚBLICO<br />

João Garcia Miguel<br />

A minha geração foi<br />

a primeira que se<br />

preocupou com aquilo que<br />

era importante para a<br />

criação <strong>de</strong> um corpo do<br />

teatro português, que nos<br />

foi negado pelo peso das<br />

companhias que nos<br />

precediam<br />

Diogo Infante<br />

“De uma<br />

forma<br />

hipócrita, até, a<br />

geração anterior<br />

tinha muito a<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

colectivo: o<br />

indivíduo não<br />

contava, nem<br />

havia<br />

estrelas”<br />

“Diz-se imensas vezes em<br />

relação à minha geração que<br />

éramos muito giros quando<br />

começámos, mas que agora,<br />

coitados, estamos péssimos<br />

e acabados. Que somos muito<br />

auto-complacentes”. A frase<br />

não é <strong>de</strong> hoje, mas <strong>de</strong> 2006,<br />

e foi dita por Lúcia Sigalho,<br />

encenadora e actriz, à revista<br />

“Sinais <strong>de</strong> Cena”. Descrita em<br />

2003 num artigo do britânico<br />

“The Guardian” como “uma<br />

persuasiva contestatária cujo<br />

estilo anárquico <strong>de</strong> teatro físico<br />

parece brotar naturalmente da<br />

sua personalida<strong>de</strong> exuberante”,<br />

Sigalho é (foi?), com Mónica<br />

<strong>Calle</strong>, “um dos pilares gémeos<br />

do ressurgimento do teatro<br />

português dos anos 90”, dizia<br />

ainda o mesmo artigo.<br />

Sigalho está, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há uns<br />

anos, afastada do teatro, ela<br />

que foi, efectivamente, um<br />

dos rostos mais afirmativos<br />

da segunda geração do teatro<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte português. Não<br />

é caso único. “Achei que íamos<br />

aguentar todos”, diz <strong>Calle</strong>. “Sinto<br />

uma enorme tristeza porque<br />

fico com a sensação <strong>de</strong> que a<br />

minha geração <strong>de</strong>sapareceu, por<br />

variadíssimas razões”.<br />

“De uma forma hipócrita,<br />

até, a geração anterior tinha<br />

muito a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> colectivo: o<br />

indivíduo não contava, nem<br />

havia estrelas”, analisa Diogo<br />

Infante. Hoje à frente do Teatro<br />

Nacional D. Maria II como<br />

director artístico, Infante diz que<br />

“olhava para as instituições com<br />

alguma <strong>de</strong>sconfiança porque<br />

todas elas pareciam muito<br />

inacessíveis”. Ainda se lembra<br />

<strong>de</strong> ter dito numa entrevista,<br />

a propósito da atribuição <strong>de</strong><br />

subsídios a novos criadores:<br />

“Novo sou eu e a mim ninguém<br />

me dá nada”. Na altura, Lúcia<br />

Sigalho dizia o mesmo: “Quando<br />

comecei a fazer teatro, vi uma<br />

geração inteira a bater com a<br />

cabeça nas portas e ninguém<br />

entrava”. “Nós reclamámos um<br />

espaço primordial. Queríamos<br />

ser vinculadores <strong>de</strong> um qualquer<br />

movimento que nos aproximasse<br />

do público, com o qual agora<br />

temos uma relação privilegiada.<br />

É um público que cresceu<br />

connosco”, continua Infante.<br />

Ao contrário da dança, que<br />

em 1991 é exposta à montra<br />

internacional da Europália e aí<br />

se vê organizada e transformada<br />

num movimento (a “Nova Dança<br />

Portuguesa”), o novo teatro<br />

português nunca foi bem um<br />

fenómeno colectivo.<br />

Cristina Carvalhal, actriz<br />

e encenadora que esteve na<br />

formação da Escola <strong>de</strong> Mulheres,<br />

é bem disso o exemplo: “Nunca<br />

tive uma estratégia, nem<br />

nunca ambicionei fazer uma<br />

companhia. Queria sobretudo<br />

ser actriz”. Com o aparecimento<br />

das televisões privadas, que<br />

necessitavam <strong>de</strong> actores para<br />

os seus projectos, foi “tendo<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r escolher<br />

o que queria fazer no teatro,<br />

sobrevivendo através <strong>de</strong><br />

trabalhos <strong>de</strong> actriz na televisão”.<br />

Foi no meio disso que foi<br />

encenando: “Quando enceno<br />

é mais solitário, são impulsos<br />

aos quais respondo, meus ou <strong>de</strong><br />

outros”. Infante partilha a i<strong>de</strong>ia:<br />

“Não consigo <strong>de</strong>finir uma linha<br />

que seja claramente a minha.<br />

Sou volátil e imprevisível. Sou-o<br />

porque gosto <strong>de</strong> ser assim”.<br />

Mas há, ainda assim, uma<br />

geração. Uma geração que,<br />

para Miguel Seabra, actor,<br />

encenador e director do<br />

Teatro Meridional, este ano<br />

distinguido com o Prémio Novas<br />

Realida<strong>de</strong>s Teatrais Europeias,<br />

reagiu e trilhou um caminho<br />

pulverizado, vários caminhos. O<br />

Meridional constituiu-se como<br />

companhia nómada, com ramos<br />

em Portugal, Espanha e Itália,<br />

e é, com o Teatro da Garagem,<br />

que Carlos J. Pessoa fundou,<br />

parte do mesmo contexto <strong>de</strong> que<br />

saíram companhias como as <strong>de</strong><br />

<strong>Calle</strong>, Sigalho (Sensurround),<br />

João Garcia Miguel (Olho) e<br />

Luís Castro (Karnart), só para<br />

falar <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. As diferenças<br />

são a característica maior<br />

<strong>de</strong>sta geração, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Diogo<br />

Infante: “Há uma linha ténue<br />

que nos divi<strong>de</strong>, mas estamos<br />

unidos na mesma paixão e no<br />

mesmo compromisso. Os nossos<br />

objectivos é que são distintos”.<br />

Por isso, falar <strong>de</strong> correntes, <strong>de</strong><br />

discursos comuns ou <strong>de</strong> famílias<br />

é, para os entrevistados, algo<br />

estranho. Sigalho dizia mesmo:<br />

“Não me sinto em corrente<br />

nenhuma. Sei que, às vezes, o<br />

trabalho que faço lança pistas<br />

“Sinto uma enorme<br />

tristeza porque fico<br />

com a sensação <strong>de</strong><br />

que a minha geração<br />

<strong>de</strong>sapareceu, por<br />

variadíssimas razões”<br />

Mónica <strong>Calle</strong><br />

que <strong>de</strong>pois são aproveitadas,<br />

anos <strong>de</strong>pois, num outro sítio”.<br />

O que caracteriza o teatro<br />

português é aquilo que os<br />

artistas portugueses conseguem<br />

fazer individualmente”, diz João<br />

Garcia Miguel. Mas Luís Castro<br />

acha que falta fazer justiça ao<br />

trabalho <strong>de</strong>senvolvido pela sua<br />

geração: “Há uma transição<br />

que não foi feita entre as<br />

companhias institucionalizadas<br />

com subsídios muito altos e<br />

outras que já provaram, ao fim<br />

<strong>de</strong> 10 e 15 anos <strong>de</strong> trabalho, o que<br />

valem”. O encenador não hesita<br />

em apontar o <strong>de</strong>do às condições<br />

estruturais, que estão na origem<br />

da fragilida<strong>de</strong> da evolução<br />

dos discursos artísticos. “A<br />

legislação que suporta a cultura<br />

é frágil. Os apoios <strong>de</strong>viam ser<br />

mais abrangentes”.<br />

Os problemas, contrapõe João<br />

Garcia Miguel, também estão<br />

na classe: “O tecido artístico<br />

é até bastante ingrato para<br />

com o país on<strong>de</strong> vive e ingrato<br />

para si próprio. Consi<strong>de</strong>ro que<br />

a maior parte dos criadores<br />

portugueses tem pouca noção da<br />

sua importância em termos <strong>de</strong><br />

exemplo. A classe dos agentes<br />

culturais é bastante piegas e<br />

constantemente autofágica”,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>. O fim da companhia<br />

que dirigiu, o Olho, marco<br />

fundamental na renovação<br />

do discurso teatral português<br />

no fim do século XX, explica-o<br />

assim: “Não tivemos engenho<br />

suficiente para conciliar os<br />

nossos sonhos com a realida<strong>de</strong> e<br />

a solução foi adormecê-lo. Ainda<br />

bem que temos a facilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> esquecer porque, se não<br />

tivermos, o peso do passado será<br />

incomensurável”.<br />

Ainda assim, a geração <strong>de</strong><br />

<strong>Calle</strong>, Sigalho e Garcia Miguel<br />

conquistou um território: “A<br />

minha geração foi a primeira<br />

que se preocupou com aquilo<br />

que era importante para a<br />

criação <strong>de</strong> um corpo do teatro<br />

português, que nos foi negado<br />

pelo peso das companhias que<br />

nos precediam”. E tem, como as<br />

anteriores e as que seguiram,<br />

um futuro pela frente: “Aquilo<br />

que fazemos nunca é o mais<br />

importante <strong>de</strong> tudo. O mais<br />

importante é o que ainda vamos<br />

fazer. Não posso dizer que não<br />

tenha tido momentos e sensação<br />

<strong>de</strong> perda agudos. Mas acho que<br />

o importante é perceber que faz<br />

parte <strong>de</strong> uma existência, em que<br />

há coisas que se per<strong>de</strong>m para<br />

se ganhar outras”, resume o<br />

encenador. T.B.C.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 9


ICARE SINGEL INTERNATIONAL ARTS CAMPUS<br />

Do lado <strong>de</strong> cá, o do público, “Pichet<br />

Klunchun and Myself” parece uma<br />

invasão da privacida<strong>de</strong>. É como se<br />

todos os que estão sentados na plateia<br />

– sejam 180 num teatro em Nova Iorque,<br />

sejam 290 num auditório em<br />

<strong>Lisboa</strong> – se escon<strong>de</strong>ssem atrás <strong>de</strong> uma<br />

cortina a assistir a uma conversa entre<br />

um coreógrafo oci<strong>de</strong>ntal e um bailarino<br />

asiático, resistindo à tentação <strong>de</strong><br />

entrar no jogo e <strong>de</strong> fazer perguntas.<br />

Eles falam sobre as diferenças entre<br />

o movimento contemporâneo e a dança<br />

tradicional khon tailan<strong>de</strong>sa. E vão<br />

provando um ao outro como essas<br />

diferenças se tornam evi<strong>de</strong>ntes quando<br />

o corpo mostra o que apren<strong>de</strong>u e<br />

se mexe.<br />

O coreógrafo francês Jérôme Bel<br />

apresentou “Pichet Klunchun and<br />

Myself” em Portugal há cinco anos e<br />

regressa agora com mais um momento<br />

da série <strong>de</strong> trabalhos que tem <strong>de</strong>dicado,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004, aos “trabalhadores<br />

da dança” (a expressão é <strong>de</strong>le).<br />

Viseu (Teatro Viriato, amanhã), <strong>Lisboa</strong><br />

(Maria Matos, dias 30 e 31) e Porto<br />

(Serralves, 3 <strong>de</strong> Abril) vão receber<br />

Cédric Andrieux, bailarino <strong>de</strong> 33<br />

anos, e o solo em nome próprio que<br />

ele construiu com Bel em dois anos.<br />

Em “Cédric Andrieux” (2009) há<br />

um bailarino em palco a contar a sua<br />

história, tal como em “Véronique<br />

Doisneau” (a peça inaugural, <strong>de</strong> 2004,<br />

com uma intérprete do Ballet da Ópera<br />

<strong>de</strong> Paris), “Pichet Klunchun and<br />

Myself” (2005), “Isabel Torres” (também<br />

<strong>de</strong> 2005, com uma bailarina do<br />

Teatro <strong>Municipal</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro) e<br />

“Lutz Förster” (2009, com uma estrela<br />

da companhia <strong>de</strong> Pina Bausch).<br />

Através <strong>de</strong>sta série, <strong>de</strong> que farão ainda<br />

parte mais dois trabalhos – com<br />

uma bailarina <strong>de</strong> bharata nattyam<br />

(dança clássica do sul da Índia) e com<br />

Frédéric Seguette, um dos mais importantes<br />

intérpretes da carreira <strong>de</strong><br />

Bel –, o coreógrafo francês <strong>de</strong> 46 anos<br />

quer pôr os bailarinos a falarem da<br />

sua experiência, e dar voz a “intérpretes<br />

que habitualmente são tratados<br />

como objectos, como meros executantes,<br />

pelos coreógrafos a quem<br />

se confia quase todo o discurso sobre<br />

a dança”, explicou ao Ípsilon.<br />

Jérôme Bel quer que eles falem,<br />

mesmo que isso lhes cause <strong>de</strong>sconforto,<br />

porque acredita que, no fim, o<br />

exercício <strong>de</strong> revisão das suas carreiras<br />

acabará por ser enriquecedor. Além<br />

disso, acrescenta, estas peças autobiográficas<br />

– que em última análise<br />

passam sempre pelo próprio coreógrafo,<br />

o “produtor” e editor <strong>de</strong>stas<br />

vidas que se expõem em palco – aproximam<br />

os bailarinos <strong>de</strong> quem os ouve.<br />

“Só a partir <strong>de</strong> ‘Véronique Doisneau’<br />

o meu trabalho começou a ter sucesso<br />

junto do público. Até aí só a crítica<br />

e o meio falavam <strong>de</strong>le. E eu acho que<br />

isso aconteceu porque as pessoas se<br />

reconhecem naquelas vidas, naqueles<br />

bailarinos que não são estrelas nas<br />

suas companhias [à excepção <strong>de</strong><br />

Lutz], mesmo que a sua profissão seja<br />

conduzir um autocarro ou <strong>de</strong>senhar<br />

pontes. Isto porque todos temos patrões<br />

e problemas <strong>de</strong> dinheiro, todos<br />

temos sucessos e fracassos, todos nos<br />

sentimos humilhados um dia…”<br />

E se o público se ri, mesmo quando<br />

Cédric Andrieux recorda um momento<br />

particularmente difícil, é porque é<br />

capaz <strong>de</strong> rir <strong>de</strong> si próprio, diz Bel. E<br />

isso é bom.<br />

Sempre por acaso<br />

Jérôme Bel estava no Ballet da Ópera<br />

<strong>de</strong> Lyon para montar um dos seus espectáculos,<br />

o popular “The Show<br />

Must Go On” (2001); Cédric Andrieux<br />

era um dos bailarinos <strong>de</strong>ssa formação<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong>cidira <strong>de</strong>ixar a companhia<br />

do norte-americano Merce Cunningham<br />

(1919-2009), on<strong>de</strong> dançou<br />

oito anos. Durante a preparação do<br />

espectáculo, Bel não reparou em Andrieux<br />

– “para mim ele era apenas<br />

mais um dos 30 bailarinos com que<br />

eu estava a trabalhar”. Mas, um dia,<br />

<strong>de</strong> regresso a Paris, os dois ficaram<br />

por acaso sentados frente a frente no<br />

comboio e começaram a conversar.<br />

Foi aí que o coreógrafo soube que Andrieux<br />

trabalhara com Cunningham<br />

e ficou interessado.<br />

“Merce Cunningham foi muito importante<br />

para mim como bailarino.<br />

Descobri-o quando tinha 18 anos e aos<br />

18 tudo parece fundamental”, diz o<br />

coreógrafo, acrescentando que se<br />

i<strong>de</strong>ntificou com a hiper-tecnicida<strong>de</strong><br />

da sua linguagem. “Quando estamos<br />

no início da carreira, ainda em formação,<br />

a técnica é crucial. Os professores<br />

fazem-nos sentir que não chega ser<br />

bom, é preciso ser o melhor, ser excelente.<br />

E eu i<strong>de</strong>ntifiquei-me logo com<br />

aquele universo. Comecei a estudar<br />

o Merce, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>scobri John Cage,<br />

que se tornou muito importante para<br />

Isto é<br />

Cédric<br />

Andrieux<br />

dançou<br />

no Ballet<br />

da Ópera<br />

<strong>de</strong> Lyon<br />

e na<br />

companhia<br />

<strong>de</strong> Merce<br />

Cunningham<br />

HERMAN SORGELOOS<br />

um d<br />

Véronique<br />

Doisneau<br />

Bailarina do Ballet<br />

da Ópera <strong>de</strong> Paris<br />

Pichet<br />

Klunchun<br />

Bailarino da dança<br />

tradicional khon<br />

tailan<strong>de</strong>sa<br />

Cinco peças biográficas já concluídas, duas em preparação. Ou, se quisermos, sete momentos <strong>de</strong> u<br />

Jérôme Bel regressa a Portugal com o solo “Cédric Andrieux” para nos mostrar que os b<br />

10 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


“Na realida<strong>de</strong> estou<br />

a editar a vida<br />

do Cédric. Não se<br />

trata <strong>de</strong> ficção – não<br />

estamos a inventar<br />

nada – mas estamos<br />

a reorganizar porque<br />

uma vida não cabe<br />

numa hora e meia.<br />

É preciso olhar para<br />

estas peças como<br />

documentários<br />

ao vivo no palco<br />

<strong>de</strong> um teatro”<br />

Jérôme Bel<br />

mim. Percebi que estavam em contacto<br />

com Marcel Duchamp, Robert<br />

Rauschenberg, Bruce Nauman… Cunningham<br />

não abriu a minha cabeça<br />

apenas à dança, mas também à música<br />

e à arte contemporânea.”<br />

Andrieux chegou à companhia <strong>de</strong><br />

Cunnigham em 1999. Tinha 22 anos<br />

(o coreógrafo norte-americano 80) e<br />

mudara-se para Nova Iorque dois anos<br />

antes para viver com Leonardo, uma<br />

das gran<strong>de</strong>s histórias <strong>de</strong> amor da sua<br />

vida, conta-nos no solo. Para se manter<br />

fiel ao projecto <strong>de</strong> fazer carreira<br />

como bailarino, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma formação<br />

em França que começou nos<br />

espectáculos que via com a mãe e passou<br />

<strong>de</strong>pois por Brest e Paris, Andrieux<br />

foi empregado <strong>de</strong> mesa e mo<strong>de</strong>lo numa<br />

escola <strong>de</strong> arte. “Dançar com Merce<br />

e trabalhar neste solo moldaramme<br />

como bailarino, como performer”,<br />

diz ao Ípsilon via “email”. Foi precisamente<br />

via “email” e Skype que construiu<br />

gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> “Cédric Andrieux”,<br />

respon<strong>de</strong>ndo às perguntas<br />

<strong>de</strong> Bel, resistindo às suas sugestões.<br />

“Apesar <strong>de</strong> não termos tido nenhuma<br />

ligação especial <strong>de</strong> início, fiquei<br />

fascinado com a forma como o Jérôme<br />

falava <strong>de</strong> ‘The Show Must Go On’<br />

a 30 bailarinos. Mas, no princípio,<br />

fazer o solo foi duro porque com ele<br />

é só trabalho – Jérôme não está ali para<br />

fazer amigos, para ser simpático<br />

ou para interpretar um papel qualquer.<br />

Está ali para criar uma peça e é<br />

essa atitu<strong>de</strong>, acho, que torna o seu<br />

trabalho tão preciso e <strong>de</strong>licado.”<br />

Trocaram “emails” e conversaram<br />

durante dois anos, sem que Bel tivesse<br />

prometido que tudo aquilo daria<br />

um solo. “Nunca começo este tipo <strong>de</strong><br />

colaboração prometendo uma ‘performance’”,<br />

garante o coreógrafo.<br />

“Há muito trabalho antes disso. Fazemos<br />

pesquisa, conversamos… Sinto<br />

que a peça tem <strong>de</strong> acontecer na minha<br />

cabeça antes <strong>de</strong> ser proposta a outra<br />

pessoa. Faço-a para mim mesmo. É<br />

como se eu estivesse a fazer autoprodução.”<br />

Andrieux foi pondo a sua vida por<br />

escrito e Bel foi lendo. Depois fazia<br />

perguntas, dizia “quero isto” ou “corta<br />

aqui que é muito chato”. Tal como<br />

os outros momentos da série, “Cédric<br />

Andrieux” é, mais do que uma biografia,<br />

“a performance <strong>de</strong> uma biografia<br />

e, por isso, tem <strong>de</strong> ser interessante<br />

para o público”. “Na realida<strong>de</strong><br />

estou a editar a vida <strong>de</strong>le. Não se trata<br />

<strong>de</strong> ficção – não estamos a inventar<br />

nada –, mas estamos a reorganizar<br />

porque uma vida não cabe numa hora<br />

e meia. É preciso olhar para estas<br />

peças como documentários ao vivo<br />

no palco <strong>de</strong> um teatro.”<br />

Tudo é encenado<br />

Todos os bailarinos <strong>de</strong>ste conjunto <strong>de</strong><br />

trabalhos participaram em projectos<br />

artísticos que interessam a Bel, que<br />

diz, por isso, estar fora <strong>de</strong> questão fazer<br />

algo semelhante com intérpretes<br />

que tenham trabalhado com criadores<br />

como Jiri Kylián ou Akram Khan. As<br />

linguagens e técnicas em que se movem<br />

são diferentes, mas Klunchun,<br />

Doisneau, Torres, Förster e Andrieux<br />

têm em comum o facto <strong>de</strong> serem experientes<br />

e <strong>de</strong> terem uma história para<br />

contar que nos permite ficar a saber<br />

mais sobre a dança em geral e a vida<br />

<strong>de</strong> um bailarino em particular.<br />

“Este solo é verda<strong>de</strong>iramente autobiográfico”,<br />

diz Andrieux. “Mas isso<br />

não quer dizer que tudo esteja a ser<br />

dito. O objectivo da peça não é<br />

que as pessoas fiquem a conhecer-me,<br />

mas que fiquem<br />

a saber o que aconteceu na<br />

minha carreira. Sejam coisas comuns<br />

à maioria das pessoas, como referências<br />

da cultura popular, sejam experiências<br />

mais específicas, como o que<br />

é isto <strong>de</strong> dançar para Merce Cunningham.”<br />

Durante a peça, Andrieux executa<br />

excertos <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> Cunningham,<br />

Trisha Brown, Philippe Tréhet e do<br />

próprio Jérôme Bel. Tudo está escrito<br />

e tudo é encenado, apesar da aparente<br />

informalida<strong>de</strong>. Não há espaço para<br />

a improvisação, o que <strong>de</strong>ixa o bailarino<br />

bastante confortável. Falar, admite,<br />

já é suficientemente difícil.<br />

“Assim que subo ao palco sinto-me<br />

exposto”, explica Andrieux. “Mas neste<br />

caso sinto-o ainda mais por causa<br />

da voz. Ela diz mais sobre mim do que<br />

aquilo que estou habituado a dizer.<br />

Para um bailarino é mais difícil escon<strong>de</strong>r-se<br />

atrás da voz do que do corpo.”<br />

A voz do Cédric é fraca como instrumento<br />

teatral, mas é por não ser<br />

treinada que Bel a quer. “Cédric fala<br />

como toda a gente. Se ele soubesse<br />

falar em palco não me interessaria”,<br />

acrescenta o coreógrafo, que vê este<br />

conjunto <strong>de</strong> trabalhos biográficos como<br />

uma peça complexa que levou<br />

anos a construir e que <strong>de</strong>verá terminar,<br />

<strong>de</strong>pois da bailarina <strong>de</strong> bharata<br />

nattyam, com um solo <strong>de</strong> Frédéric<br />

Seguette, um dos intérpretes mais<br />

importantes do seu trabalho nos últimos<br />

15 anos.<br />

Seguette já começou a trabalhar<br />

nele e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler as páginas <strong>de</strong><br />

texto que escreveu, Jérôme Bel está<br />

assustado. O “seu” bailarino foi duro<br />

– o que o coreógrafo já esperava – e<br />

fê-lo perceber que, apesar <strong>de</strong> estar<br />

em todas estas peças <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “Véronique<br />

Doisneau”, este último acto é o<br />

mais arriscado. “Ele vai expor-me como<br />

o Cédric expõe o Merce e o critica…<br />

Vai ser difícil, mas não sei <strong>de</strong> que<br />

outra forma po<strong>de</strong>ria acabar esta série.<br />

Sei que o meu trabalho é muito violento<br />

e que não tenho limites. Quando<br />

estou a trabalhar não socializo, não<br />

me preocupo com a relação que estou<br />

a estabelecer com a outra pessoa. Sou<br />

um verda<strong>de</strong>iro fascista. Não estou<br />

preocupado em ser simpático. Estoume<br />

nas tintas para a maneira como<br />

me vêem. O que quero é fazer peças<br />

extraordinárias, que tragam experiências<br />

novas. O<strong>de</strong>io a superficialida<strong>de</strong>.”<br />

SÃO<br />

LUIZ<br />

ABR~11<br />

silva!<strong>de</strong>signers<br />

documentário<br />

Lutz<br />

Förster<br />

Bailarino<br />

da companhia<br />

<strong>de</strong> Pina Bausch<br />

ANNA VAN KOOIJ<br />

ORGANIZAÇÃO SLTM/ APOIO INSTITUCIONAL<br />

APOIO<br />

1, 2 E 3 ABR<br />

9.ª FESTA<br />

DO JAZZ<br />

DO SÃO LUIZ<br />

a festa do jazz português<br />

SEXTA, SÁBADO E DOMINGO<br />

SALA PRINCIPAL<br />

JARDIM DE INVERNO<br />

TEATRO-ESTÚDIO MÁRIO VIEGAS<br />

SPOT SÃO LUIZ<br />

DIRECÇÃO ARTÍSTICA<br />

CARLOS MARTINS<br />

PRODUÇÃO EXECUTIVA<br />

LUÍS HILÁRIO<br />

M/3<br />

uma mesma obra, difícil, reveladora. O coreógrafo francês<br />

s bailarinos têm muito a dizer. Lucinda Canelas<br />

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT; TEL: 213 257 640<br />

BILHETES À VENDA EM WWW.TEATROSAOLUIZ.PT,<br />

WWW.BILHETEIRAONLINE.PT E ADERENTES<br />

BILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00<br />

TEL: 213 257 650 / BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

www.teatrosaoluiz.pt<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 11


Cédric<br />

Andrieux<br />

HERMAN SORGELOOS<br />

Quando fez “Véronique Doisneau”,<br />

Jérôme Bel não tinha em mente<br />

montar uma série <strong>de</strong> peças biográficas.<br />

Diz que estes projectos lhe “caíram<br />

em cima”, como aliás é habitual.<br />

“Sou muito preguiçoso. Detesto trabalhar.<br />

Só o faço porque é preciso.<br />

Prefiro ver o meu filho brincar, ler um<br />

livro, ir aos espectáculos dos outros<br />

ou simplesmente não fazer nada.”<br />

Isto é o que <strong>de</strong>veria constar <strong>de</strong> uma<br />

peça autobiográfica sua, diz, rindose.<br />

Os franceses Jérôme Bel e Xavier<br />

Le Roy são apenas dois dos criadores<br />

da área da dança que têm <strong>de</strong>dicado<br />

parte do seu trabalho a registos autobiográficos,<br />

ainda que <strong>de</strong> formas<br />

bem diferentes, lembra Maria José<br />

Fazenda, antropóloga e professora<br />

<strong>de</strong> História da Dança. “Estes criadores<br />

questionam a própria dança<br />

constantemente, e fazem-no a partir<br />

do ponto em que estão, da sua própria<br />

experiência”, diz Fazenda.<br />

“Este solo<br />

é verda<strong>de</strong>iramente<br />

autobiográfico.<br />

Mas isso não quer<br />

dizer que tudo esteja<br />

a ser dito”<br />

Cédric Andrieux<br />

“Neste caso, como no dos portugueses<br />

Cláudia Dias e Miguel Pereira,<br />

por exemplo, a autobiografia surge<br />

porque o coreógrafo está muito preocupado<br />

com o processo <strong>de</strong> construção,<br />

com o que está por <strong>de</strong>ntro<br />

da dança.”<br />

Para Mark Deputter, director artístico<br />

do Teatro Maria Matos, que<br />

acompanha há anos o percurso <strong>de</strong><br />

Bel, não há uma tendência natural<br />

da dança para a autobiografia, embora<br />

a incorporação <strong>de</strong> dados <strong>de</strong><br />

memórias privadas aconteça <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o início do século XX, com a Ausdruckstanz<br />

alemã. “Em rigor, penso que<br />

existem muito poucas peças <strong>de</strong> dança<br />

(auto)biográficas. O que não é<br />

espantoso, dadas as limitações que<br />

a dança tem para contar uma história.”<br />

À semelhança <strong>de</strong> Maria José Fazenda,<br />

Deputter, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que esta<br />

série do coreógrafo francês po<strong>de</strong>ria<br />

ser classificada como teatro sem qualquer<br />

problema, vê aqui a autobiografia<br />

como “instrumento <strong>de</strong> análise da<br />

própria dança e das suas condições<br />

<strong>de</strong> existência como forma <strong>de</strong> arte”.<br />

Um instrumento que se tornou uma<br />

fórmula. “[Este mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> construção]<br />

é uma armadilha. Mas uma armadilha<br />

<strong>de</strong> que eu gosto”, admite Bel,<br />

um criador que trabalha nos limites<br />

da dança e não está preocupado com<br />

os rótulos que lhe colam. “É uma fórmula<br />

que resulta para mim porque se<br />

trata da mesma peça <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004. Tenho<br />

a forma e mudo o conteúdo [o<br />

bailarino] – porquê mudar tudo ao<br />

mesmo tempo?”<br />

O que lhe interessa, diz ele, não é<br />

a novida<strong>de</strong>, mas o gesto emancipador<br />

que permite a estes intérpretes, habitualmente<br />

em silêncio, falarem durante<br />

mais <strong>de</strong> uma hora e sempre na<br />

primeira pessoa.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos na pág.<br />

37<br />

SUSANA POMBA<br />

“Susana Pomba” começa<br />

com uma música tocada<br />

ao vivo pelos PAUS<br />

A tua vida dava<br />

uma peça <strong>de</strong> teatro?<br />

A partir <strong>de</strong> terça-feira, na Sala <strong>de</strong> Ensaio do Centro Cultural<br />

<strong>de</strong> Belém, o encenador André e. Teodósio também<br />

faz biografias, mas dos amigos. “Susana Pomba” é a primeira<br />

<strong>de</strong> um ciclo <strong>de</strong> peças em que não se sabe muito bem on<strong>de</strong><br />

acaba a vida e começa o teatro. Cláudia Carvalho<br />

A tua eu não sei, mas a vida dos<br />

amigos do autor e encenador<br />

André e. Teodósio dá não uma,<br />

mas várias peças <strong>de</strong> teatro.<br />

Pelo menos este é o seu ponto<br />

<strong>de</strong> partida: registar para a<br />

posterida<strong>de</strong> o nome dos seus<br />

amigos. É quase só mesmo o<br />

nome que fica guardado, porque<br />

distinguir on<strong>de</strong> começa a<br />

realida<strong>de</strong> e on<strong>de</strong> acaba a ficção<br />

nestas peças não será uma<br />

tarefa fácil. Mas às vezes a vida<br />

também é assim, confusa.<br />

“Eu não quero usar as<br />

biografias dos meus amigos<br />

para fazer uma peça <strong>de</strong> teatro.<br />

Não tenho a ousadia <strong>de</strong> expor<br />

a vida <strong>de</strong> alguém <strong>de</strong> quem eu<br />

gosto e conheço tão bem”, diz<br />

André e. Teodósio, explicando<br />

que aquilo que vai apresentar<br />

a partir <strong>de</strong> terça-feira no Centro<br />

Cultural <strong>de</strong> Belém, com “Top<br />

Mo<strong>de</strong>ls: Susana Pomba”, a<br />

primeira <strong>de</strong> um ciclo <strong>de</strong> peças,<br />

é apenas a forma como vê e<br />

enten<strong>de</strong> essas pessoas. Mas<br />

afinal é ou não a vida <strong>de</strong>las<br />

que vemos ser representada?<br />

“O que eu tento fazer com este<br />

trabalho é perceber o que é<br />

que estas pessoas <strong>de</strong>spertam<br />

em mim, o que me faz gostar<br />

<strong>de</strong>las e admirá-las. São quase<br />

biografias que eu faço a partir<br />

dos momentos que tenho com<br />

esses amigos.” Uma ida a um<br />

concerto ou a uma galeria, um<br />

jantar em casa e até o mais<br />

banal café po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>spertar<br />

este interesse em Teodósio.<br />

“É engraçado, um dia <strong>de</strong>i por<br />

mim a escrever coisas sobre os<br />

meus amigos. Não sei porque<br />

o fazia, mas a verda<strong>de</strong> é que<br />

fazia. Inconscientemente ia<br />

escrevendo certas coisas que<br />

tinham acontecido no tal dia,<br />

ou que um amigo me tinha<br />

dito e eu achei piada”, revela<br />

o encenador, para quem fazer<br />

estes trabalhos se tornou uma<br />

evolução natural. Não se trata<br />

<strong>de</strong> ver a vida das pessoas<br />

registada no teatro, o objectivo<br />

é exactamente o contrário:<br />

transformar as pequenas coisas<br />

que caracterizam essas pessoas<br />

(o trabalho, a forma <strong>de</strong> falar<br />

e lidar com os outros ou até<br />

mesmo os gostos específicos<br />

<strong>de</strong>las) e fazer <strong>de</strong>las um<br />

espectáculo.<br />

“Comecei por escrever<br />

espectáculos sempre sobre mim<br />

e a minha apreensão do mundo,<br />

e a partir <strong>de</strong> um certo momento<br />

as pessoas começaram a dizer<br />

que eu me centrava <strong>de</strong>masiado<br />

na minha pessoa. Então tentei<br />

mudar isso”, conta Teodósio,<br />

acrescentando que, antes <strong>de</strong><br />

pegar na vida dos amigos, teve<br />

<strong>de</strong> se distanciar do seu próprio<br />

trabalho. Parece confuso, mas<br />

Teodósio explica: “Sempre<br />

tive imensas questões, a partir<br />

daquilo que via e lia, e sempre<br />

tentei passar isso para o teatro.<br />

Quando as críticas surgiram,<br />

tive esta i<strong>de</strong>ia, só que para<br />

seguir em frente tinha que<br />

me matar teatralmente. Criei<br />

algumas peças em que começo<br />

a mostrar isso mesmo e acabo<br />

por morrer numa ópera que<br />

fiz no São Carlos.” Um gesto<br />

meramente simbólico, mas que<br />

libertou Teodósio para fase<br />

seguinte: tornar os amigos<br />

protagonistas das histórias que<br />

ficaram por contar. “Susana<br />

Pomba” é símbolo disso, um<br />

misto <strong>de</strong> drama com comédia,<br />

em que Teodósio mistura<br />

música ao vivo (dos PAUS),<br />

com versos, com trocadilhos. “É<br />

tudo muito esquisito, mas quem<br />

conhecer a Susana percebe<br />

que tem a ver com ela e com o<br />

corpo <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>la”, conta,<br />

apontando o alcance do trabalho<br />

<strong>de</strong> Susana Pomba. “O que ela faz<br />

sem ninguém ver é maravilhoso.<br />

Já quase toda a gente esteve em<br />

contacto com um flyer, um jornal<br />

[é colaboradora do PÚBLICO] ou<br />

uma fotografia, tudo coisas que<br />

passam pelas suas mãos, sem<br />

perceberem o mito que está por<br />

trás. Isso fascina-me.”<br />

Talvez por isso, nesta peça<br />

a inspiração maior tenha<br />

sido a inauguração da última<br />

exposição comissariada por<br />

Susana Pomba no Lux, em<br />

<strong>Lisboa</strong>. Quem lá esteve vai<br />

perceber assim que vir a<br />

primeira cena da peça, em que<br />

“Um dia <strong>de</strong>i por mim<br />

a escrever coisas<br />

sobre os meus amigos.<br />

Não sei porque<br />

o fazia, mas a<br />

verda<strong>de</strong> é que fazia.<br />

Inconscientemente<br />

ia escrevendo”<br />

André e. Teodósio<br />

RUI GAUDÊNCIO<br />

André e.<br />

Teodósio vai<br />

continuar a<br />

biografar os<br />

amigos no<br />

teatro<br />

os PAUS tocam uma música.<br />

Não foi assim que se inaugurou<br />

a exposição? Pois, e eis que a<br />

realida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>svenda no meio<br />

<strong>de</strong> tanta imaginação <strong>de</strong> André e.<br />

Teodósio.<br />

“Esta peça saiu assim, mas<br />

as próximas já vão ser coisas<br />

completamente diferentes, tudo<br />

varia <strong>de</strong> pessoa para pessoa”,<br />

diz o encenador, contando que<br />

as próximas duas peças já têm<br />

protagonista. “A segunda será<br />

sobre a Paula Sá Nogueira e a<br />

terceira, possivelmente sobre o<br />

Manuel Reis.” Para Teodósio<br />

os requisitos são simples:<br />

“Têm que ser meus amigos.<br />

Não sei dizer como se<br />

escolhem as pessoas. Se<br />

a Susana me lembra um<br />

<strong>de</strong>terminado acontecimento,<br />

a Paula lembra-me outra<br />

coisa completamente<br />

diferente. Não<br />

sei explicar<br />

isso, como não<br />

sei sequer<br />

explicar<br />

como nos<br />

conhecemos.<br />

Foram<br />

sempre<br />

amiza<strong>de</strong>s<br />

aci<strong>de</strong>ntais”,<br />

conclui.<br />

Ver agenda<br />

<strong>de</strong> espectáculos<br />

na pág. 37<br />

12 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


O palco não era bem palco porque<br />

não existia qualquer obstáculo físico<br />

a separar o público da banda. O palco,<br />

<strong>de</strong> resto, não era necessário. A maioria<br />

dos que assistiam estava sentada<br />

no chão, quieta e atenta. No palco que<br />

não era bem palco, estavam dois músicos.<br />

Um <strong>de</strong>les cuspia palavras com<br />

as mãos nas teclas, largava as teclas e<br />

aproximava-se do povo sentado. O<br />

corpo contorcia-se enquanto as palavras<br />

se libertavam num cantar visceral,<br />

irreprimível. O corpo que cantava<br />

não era intérprete <strong>de</strong> coisa nenhuma,<br />

não se movia e não cantava assim para<br />

o público que o via e ouvia. Fazia-o<br />

para si, fazia-o porque não precisa <strong>de</strong><br />

alternativa ao “ter que fazer”.<br />

Quem cantava era Pedro Magina.<br />

Que tanto foi aquela urgência irreprimível<br />

quanto uma visão pop, tão estranha<br />

quanto reconfortante, em que<br />

se misturam e confun<strong>de</strong>m a guitarra<br />

acústica <strong>de</strong> uma intensa <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za,<br />

uma electrónica in<strong>de</strong>finida (tecno sonâmbulo?;<br />

memórias 80s <strong>de</strong>vassadas?;<br />

um ser anti-Eno preso num loop?)<br />

e teclados <strong>de</strong> sintética majestosida<strong>de</strong>.<br />

Ali, no sótão do Kolovrat 79,<br />

atelier da estilista Lidija Kolovrat, em<br />

<strong>Lisboa</strong>, os !Calhau!, que acabavam <strong>de</strong><br />

lançar o seu primeiro LP, “Quadrologia<br />

Pentacónica”, já tinham actuado.<br />

Depois <strong>de</strong>les, os Aquaparque <strong>de</strong> Pedro<br />

Magina e André Abel apresentavam<br />

o seu novo álbum, o segundo.<br />

“Pensamos a música<br />

<strong>de</strong> forma egoísta.<br />

É um processo nosso.<br />

E nasce <strong>de</strong> uma<br />

necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> nos estimularmos.<br />

Aborrecemo-nos<br />

facilmente”<br />

Pedro Magina<br />

Chama-se “Pintura Mo<strong>de</strong>rna” e o título<br />

assenta-lhe bem. Ouvimo-lo e<br />

sentimos esse <strong>de</strong>smoronar <strong>de</strong> certezas<br />

que o mo<strong>de</strong>rno implica. Ouvimolo,<br />

nessa in<strong>de</strong>finição/cruzamento <strong>de</strong><br />

estéticas e <strong>de</strong> memórias, ouvimos<br />

aquelas letras, da autoria <strong>de</strong> André<br />

Abel, que fluem em narrativa surpreen<strong>de</strong>nte<br />

sem cair no jogo semântico<br />

gratuito, ouvimos esta música <strong>de</strong><br />

“Pintura Mo<strong>de</strong>rna”, dizíamos, e é um<br />

sobressalto. “Não acho que o título<br />

[‘Pintura Mo<strong>de</strong>rna’] feche, que signifique<br />

‘é isto’. O título abre [várias possibilida<strong>de</strong>s].<br />

Não há nele qualquer<br />

caução conceptual. Sugeri-o porque<br />

senti que era o título i<strong>de</strong>al. Nem argumentei.”<br />

André Abel, que formou os<br />

Há um mundo novo a <strong>de</strong>scobrir nos<br />

Aquaparque<br />

Os Aquaparque <strong>de</strong> André Bel e Pedro Magina não são comparáveis a nada do que tenhamos ouvido ou que e<br />

imediata, na boa tradição pop, e só os cantaremos quando apren<strong>de</strong>rmos a ouvi-los. “Pintura Mo<strong>de</strong>rna”, o s<br />

14 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


Aquaparque com Pedro Magina em<br />

2007 (editaram o álbum <strong>de</strong> estreia,<br />

“É Isso Aí!”, dois anos <strong>de</strong>pois), põe a<br />

tónica no sítio certo.<br />

Os Aquaparque não fecham, não<br />

<strong>de</strong>finem uma nova estética. Abrem<br />

possibilida<strong>de</strong>s. Novas e estimulantes<br />

possibilida<strong>de</strong>s pop – po<strong>de</strong>ríamos dizer<br />

que, apesar da estranheza que<br />

suscitam, são música imediata, na boa<br />

tradição pop, e só os cantaremos<br />

quando apren<strong>de</strong>rmos a ouvi-los. Porque<br />

os Aquaparque são “filhos” do<br />

entusiasmo criativo espoletado há<br />

alguns anos por bandas como os Loosers,<br />

Fish & Sheep ou Frango, uma<br />

galeria como a ZDB, ou um festival<br />

como o agora consolidado Out.Fest,<br />

André Abel e Pedro Magina<br />

têm outras vidas além dos<br />

Aquaparque: Abel nos Tropa<br />

Macaca, Magina sozinho<br />

(editou há um ano o álbum<br />

“Nazca Lines”)<br />

ENRIC VIVES-RUBIO<br />

mas não emanam <strong>de</strong> uma cena e não<br />

são comparáveis ao que quer que seja<br />

que tenhamos ouvido ou estejamos<br />

a ouvir. E não vale, dizem, englobá-los<br />

na nova música portuguesa, na nova<br />

vaga que canta em português, que<br />

explora e trabalha sobre aquilo que<br />

nos é peculiar. “Por muito que tente,<br />

não consigo ver a música como sendo<br />

portuguesa ou estrangeira. Actualmente,<br />

não faz sentido. Música portuguesa<br />

é o fado, são músicas <strong>de</strong> cariz<br />

regional que têm uma cultura envolvida,<br />

muito vincada relativamente a<br />

uma terra e a uma região”, aponta<br />

Pedro Magina. Até po<strong>de</strong>mos ser assaltados,<br />

ao ouvi-lo, por reminiscências<br />

<strong>de</strong> António Variações, dos Ocaso Épico,<br />

do glamour reinventado do “Sonho<br />

azul” <strong>de</strong> Né La<strong>de</strong>iras, mas são<br />

isso mesmo, reminiscências, farrapos<br />

<strong>de</strong> uma memória comum que se materializa<br />

– <strong>de</strong> resto, também passa por<br />

ali romantismo soft-rock resgatado<br />

aos anos 70, a transversalida<strong>de</strong> dos<br />

Gang Gang Dance, resquícios dub e<br />

techno, planagens cósmicas dos alemães<br />

<strong>de</strong> outrora, <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transcendência<br />

que reconhecemos em Panda<br />

Bear. Isto para dizer que percebemos<br />

perfeitamente o que diz e porque o<br />

diz Magina.<br />

Do egoísmo como ética<br />

Os Aquaparque nascem <strong>de</strong> um espaço<br />

criativo íntimo, o espaço partilhado<br />

por Abel e Magina, amigos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

infância, músicos em bandas perdidas<br />

na memória <strong>de</strong> Santo Tirso, on<strong>de</strong> se<br />

conheceram, músicos <strong>de</strong>pois nos<br />

Dance Damage, que apanharam a revitalização<br />

pós-punk <strong>de</strong> início da década<br />

passada, antes <strong>de</strong> perceberem<br />

que prosseguir esse caminho era um<br />

beco sem saída e reformularem tudo.<br />

Ao segundo álbum dos Aquaparque,<br />

nem sabem bem como se <strong>de</strong>finir.<br />

No concerto <strong>de</strong> apresentação,o público<br />

manteve-se sereno e sentado,<br />

mesmo quando a música revelava<br />

uma força vital que o impeliria a erguer-se<br />

e a dançar. André Abel: “Não<br />

sabemos o que as pessoas que estão<br />

interessadas e que seguem o que fazemos<br />

acham ser o melhor ‘setting’<br />

para nós. Se era aquele sótão, se será<br />

um clube. Isso será <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong><br />

uma certa ambiguida<strong>de</strong> estética da<br />

música. Como é que é que tem <strong>de</strong> ser<br />

um concerto?”. Não chega a respon<strong>de</strong>r:<br />

“Em nem sei se somos mesmo<br />

uma banda. Se calhar estamos mais<br />

próximos <strong>de</strong> um duo sertanejo, como<br />

Lucas & Mateus, ou um duo tecno,<br />

como Burger & Voight”.<br />

André Abel, naquela sexta-feira em<br />

que os Aquaparque apresentaram<br />

“Pintura Mo<strong>de</strong>rna” no sótão <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira<br />

<strong>de</strong>sse espaço Kolovrat com pequena<br />

janela aberta sobre a cida<strong>de</strong>,<br />

lá ao fundo, e móveis antigos espalhados<br />

aqui e ali, era o músico à esquerda<br />

do palco. Ao contrário <strong>de</strong> Magina,<br />

manteve uma pose imperturbável.<br />

Dedilhando a guitarra, acertando as<br />

programações, tocando as teclas, cantando<br />

como um anti-Brian Ferry – nada<br />

<strong>de</strong> glamour aristocrata, todo o<br />

charme <strong>de</strong> uma serena discrição.<br />

Alguns dias <strong>de</strong>pois dos concertos<br />

(a seguir a <strong>Lisboa</strong>, actuaram no Porto,<br />

no Clubbing da Casa da Música), sentado<br />

com Magina numa esplanada,<br />

André Abel exclamará isto quando<br />

falamos do que era “É Isso Aí”, o primeiro<br />

álbum, e do que é agora “Pintura<br />

Mo<strong>de</strong>rna”: “É um bocado <strong>de</strong>sinteressante<br />

explicar o porquê. Não<br />

trabalhamos com signos e símbolos<br />

<strong>de</strong> uma forma tão <strong>de</strong>finida. Entre intenção<br />

e necessida<strong>de</strong>, escolhemos a<br />

necessida<strong>de</strong>.”<br />

É um pormenor importante. Quando<br />

editaram “É Isso Aí”, afirmaram<br />

que era “só o primeiro álbum”: “É um<br />

caminho.” Agora, continuam. Caminham<br />

caminhando. Exploram por<br />

temperamento e por necessida<strong>de</strong> –<br />

não só nos Aquaparque, assinale-se:<br />

André Abel tem também os Tropa<br />

Macaca, que partilha com Joana da<br />

Conceição, autora da arte gráfica dos<br />

Aquaparque, e Magina editou no ano<br />

passado o álbum a solo “Nazca Lines”.<br />

Exploram, portanto.<br />

Em “Pintura Mo<strong>de</strong>rna”, a guitarra<br />

acústica surgiu para transformar o<br />

tom e o temperamento da música.<br />

Surgiu porque André Abel queria,<br />

primeiro, “quebrar o mol<strong>de</strong> formulaico<br />

que o processo [criativo nos<br />

Aquaparque] estava a tomar”. Para o<br />

conseguir, pensou comprar um MPC<br />

[instrumento electrónico que processa<br />

samples], “mas não tinha dinheiro<br />

para isso”. Então, “bateu-lhe” a guitarra,<br />

Magina ouviu aquele instrumento<br />

“estranho” à banda e respon<strong>de</strong>u<br />

ao estímulo. “Pensamos a música<br />

<strong>de</strong> forma egoísta”, resume Pedro Magina.<br />

“É um processo nosso, e nasce<br />

<strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos estimularmos.<br />

Aborrecemo-nos facilmente”,<br />

confessa.<br />

Quando editaram o primeiro álbum,<br />

André já <strong>de</strong>scera <strong>de</strong> Santo Tirso<br />

até <strong>Lisboa</strong>, Pedro Magina mantinha-se<br />

a Norte. Neste momento, vivem ambos<br />

na capital. Ainda assim, “Pintura<br />

Mo<strong>de</strong>rna” foi gravado no ambiente<br />

bucólico com urbanismo próximo <strong>de</strong><br />

uma casa em Rebordões, aquela que<br />

o duo utiliza há anos para ensaios. A<br />

música, e isto somos nós a extrapolar,<br />

parece reflectir também essa in<strong>de</strong>finição:<br />

a gentileza <strong>de</strong> alguns arranjos<br />

e da guitarra acústica, contraposta ao<br />

tom mais nocturno e inquieto das<br />

programações. É, <strong>de</strong> certa forma, o<br />

mesmo que sentimos ao atravessar as<br />

letras <strong>de</strong> André Abel, que reflectem<br />

um certo “mal <strong>de</strong> viver”, um <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> algo que agite, que <strong>de</strong>sperte, que<br />

nos obrigue a sentirmo-nos vivos – e<br />

isso é cantado por gente que agita,<br />

que <strong>de</strong>sperta, que está certamente<br />

muito viva em toda a activida<strong>de</strong> que<br />

<strong>de</strong>senvolve.<br />

Talvez o segredo esteja então nisto<br />

que cantam em “Ultra suave”: “seguimos<br />

convictos <strong>de</strong> que nada <strong>de</strong>ste tempo<br />

nos agrada”. Se não nos <strong>de</strong>r para<br />

mergulhar na <strong>de</strong>pressão, torna-se<br />

mais fácil agir, agitar, sentirmo-nos<br />

vivos quando carregamos essa convicção.<br />

É o que nos diz e o que ouvimos<br />

nesta magnífica e surpreen<strong>de</strong>nte “Pintura<br />

Mo<strong>de</strong>rna” dos Aquaparque.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos pág. 40. e segs.<br />

PARCERIA APOIOS<br />

SÃO<br />

LUIZ<br />

FEV/MAR ~11<br />

27 Mar – a partir das 15h<br />

Tar<strong>de</strong> Mundial do Teatro<br />

Os públicos <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> e do Porto<br />

encontram-se no São Luiz<br />

numa festa performativa<br />

cheia <strong>de</strong> surpresas<br />

silva!<strong>de</strong>signers<br />

e estejamos a ouvir. Apesar da estranheza que suscitam, são música<br />

o seu magnífico segundo álbum, acaba <strong>de</strong> ser editado. Mário lopes<br />

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT; TEL: 213 257 640<br />

BILHETES À VENDA EM<br />

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TEL: 213 257 650 / BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 15


Canções políticas com o mundo lá<br />

<strong>de</strong>ntro<br />

Música politizada que tanto po<strong>de</strong> expor melancolia folk como celebração afro:<br />

é assim o universo da cantora argelina Souad Massi, que actua segunda-feira<br />

na Fundação Calouste Gulbenkian, em <strong>Lisboa</strong>. Vítor Belanciano<br />

Souad Massi cresceu a ouvir o pai,<br />

operário, a cantarolar canções árabes<br />

tradicionais enquanto a mãe ouvia<br />

pela rádio James Brown e outros ícones<br />

da música americana. A sua música<br />

acaba por reflectir essa <strong>de</strong>scendência,<br />

respirando o ambiente da<br />

tradição musical magrebina misturado<br />

com a folk, o rock ou o funk. Vive<br />

há 11 anos em Paris, para on<strong>de</strong> foi <strong>de</strong>siludida<br />

com o clima político do país<br />

natal, mas visita regularmente a Argélia,<br />

on<strong>de</strong> continua a habitar parte<br />

da sua família. Canta em árabe, às vezes<br />

em francês ou em inglês, e o seu<br />

primeiro álbum, “Raoui” (2001), ren<strong>de</strong>u-lhe<br />

a implementação <strong>de</strong> uma carreira<br />

solitária como cantora, compositora<br />

e guitarrista, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido<br />

vocalista durante meia dúzia <strong>de</strong> anos<br />

<strong>de</strong> um grupo rock, os Atakor.<br />

Quatro álbuns <strong>de</strong>pois (o último, “Ô<br />

Houria”, é do ano passado) tem uma<br />

carreira estabelecida no circuito das<br />

“músicas do mundo”, apostando em<br />

canções em que a dimensão política<br />

está sempre presente. Fomos encontrá-la,<br />

no passado 8 <strong>de</strong> Março, numa<br />

vila dos subúrbios <strong>de</strong> Paris, Poissy,<br />

on<strong>de</strong> actuou, acompanhada pelos músicos<br />

Jean-François Kellner (guitarra).<br />

David Fall (tambores), Rabah Khalfa<br />

(percussões) e Stéphane Castry (baixo),<br />

perante franceses <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong><br />

que viveram com intensida<strong>de</strong> um concerto<br />

entre a melancolia e a celebração.<br />

É com os mesmos músicos que<br />

actua, na próxima segunda-feira, no<br />

gran<strong>de</strong> auditório da Fundação Calouste<br />

Gulbenkian, em <strong>Lisboa</strong>, no ciclo<br />

<strong>de</strong>dicado às Músicas do Mundo.<br />

Nas suas letras há muitas alusões<br />

à luta pelos direitos da mulher.<br />

Hoje é dia da mulher. Como é<br />

que vive este dia?<br />

Quando era jovem era um dia que me<br />

dizia muito, porque sabia que havia<br />

mulheres que se tinham revoltado,<br />

lutando pela implementação dos seus<br />

direitos. Hoje continuam a existir muitas<br />

injustiças em torno das mulheres,<br />

como as diferenças salariais em relação<br />

aos homens, embora me pareça<br />

que a situação mudou para melhor,<br />

principalmente na Europa. Mas ainda<br />

há muito a fazer.<br />

É diferente ser mulher em<br />

França ou na Argélia?<br />

Sim, embora o meu estatuto <strong>de</strong> artista<br />

em França estabeleça <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo<br />

uma diferença. Na Argélia é como se<br />

as mulheres fossem sempre fonte <strong>de</strong><br />

problemas. Aqui, apesar <strong>de</strong> haver muitos<br />

problemas, manifestam-se com<br />

uma intensida<strong>de</strong> muito diversa.<br />

Os acontecimentos recentes no<br />

mundo árabe apanharam-na<br />

<strong>de</strong>sprevenida ou pressentia que<br />

pu<strong>de</strong>ssem vir a suce<strong>de</strong>r?<br />

Foi uma surpresa, não só para mim<br />

como para toda a gente. Claro, po<strong>de</strong>-<br />

16 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


se sempre enquadrar um acontecimento<br />

<strong>de</strong>ste género, mas prevê-lo<br />

<strong>de</strong>sta forma não me parece, <strong>de</strong> todo.<br />

No início, quando a revolução tomou<br />

conta da Tunísia, parecia qualquer<br />

coisa <strong>de</strong> inacreditável. Olhávamos<br />

para as imagens mas era difícil acreditar.<br />

Ainda por cima na Tunísia, um<br />

país turístico. Sim, claro que sabia que<br />

era um país on<strong>de</strong> as pessoas não se<br />

podiam exprimir, mas parecia <strong>de</strong>masiado<br />

improvável.<br />

Na reacção política aos<br />

acontecimentos, pelo menos<br />

numa fase inicial, parece não ter<br />

existido uma mensagem clara<br />

por parte dos países europeus.<br />

Ficou surpreendida?<br />

Infelizmente, não. Parte da responsabilida<strong>de</strong><br />

do que se passa no mundo<br />

árabe é europeia, com o apoio a regimes<br />

duvidosos ou a venda <strong>de</strong> armas.<br />

Há alguma esquizofrenia nisso, porque<br />

ao mesmo tempo são esses países que<br />

ten<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>nunciar as situações <strong>de</strong><br />

conflito. É difícil enten<strong>de</strong>r essa duplicida<strong>de</strong>.<br />

Os cidadãos europeus não <strong>de</strong>viam<br />

pactuar com essa duplicida<strong>de</strong><br />

dos seus representantes políticos. Há<br />

muitos interesses em jogo. Os países<br />

mais importantes da Europa estão instalados<br />

no Magrebe, têm interesses lá,<br />

e há muitos europeus a viverem nesses<br />

países. A política dúplice dos governos<br />

europeus reflecte essa condição.<br />

Diz-se que os acontecimentos<br />

no mundo árabe têm sido<br />

fomentados por novas gerações<br />

que utilizam re<strong>de</strong>s sociais e<br />

ferramentas tecnológicas,<br />

mais difíceis <strong>de</strong> controlar pelos<br />

Governos. Revê-se nessa leitura?<br />

Sim. É uma geração que comunica<br />

pelo Skype, que está atenta ao que se<br />

passa na Internet, que está aberta ao<br />

mundo, à música, à moda, à criativida<strong>de</strong>.<br />

Esse movimento <strong>de</strong> gente consciente<br />

vai transformar o mundo árabe<br />

e, por ricochete, também chegará à<br />

Europa. Em Itália, por exemplo – tenho<br />

família lá –, aquilo que se passa é<br />

muito grave. Na Europa dizemos que<br />

os africanos são uns incultos, mas em<br />

países europeus como a Itália os escândalos<br />

vão-se suce<strong>de</strong>ndo e não<br />

acontece nada. Mas há uma geração<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das forças políticas,<br />

cultivada, consciente, que vai mudar<br />

isso. Aquilo que se passa entre nós,<br />

um certo adormecimento, não po<strong>de</strong><br />

continuar muito mais tempo.<br />

Na Argélia houve sinais <strong>de</strong><br />

agitação, mas foram abafados.<br />

A Argélia é um mundo à parte. Estamos<br />

abertos ao Oci<strong>de</strong>nte, somos africanos,<br />

somos árabes. Existe uma gran<strong>de</strong><br />

mistura <strong>de</strong> pessoas, passámos 12<br />

anos em guerra civil, vivemos num<br />

estado <strong>de</strong> psicose por isso. E as pessoas<br />

gostam muito do Presi<strong>de</strong>nte porque<br />

ele conseguiu trazer ao país alguma<br />

estabilida<strong>de</strong>, embora não gostem das<br />

pessoas que o ro<strong>de</strong>iam. Espero que,<br />

mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>, um movimento<br />

<strong>de</strong> estudantes possa fazer alguma<br />

coisa para melhorar o meu país.<br />

No meio da agitação e da<br />

“Sinto-me em casa,<br />

em França ou na<br />

Argélia. Em França<br />

sou universal: falo<br />

da paz, das mulheres,<br />

do amor. Na Argélia<br />

sou muito bem<br />

recebida também. Sei<br />

que é um cliché, mas<br />

sinto-me universal”<br />

incerteza que o mundo vive<br />

hoje, qual po<strong>de</strong> ser o papel da<br />

música?<br />

A música sensibiliza as pessoas. Uneas.<br />

Acompanha as revoluções. Ao longo<br />

da história, todas as revoluções<br />

tiveram a sua música. Des<strong>de</strong> Bob<br />

Dylan ou Joan Baez, por exemplo. É<br />

esse o po<strong>de</strong>r da música, <strong>de</strong>nunciar e<br />

sensibilizar, principalmente quando<br />

existe uma relação <strong>de</strong> confiança entre<br />

o público e o artista e este tem qualquer<br />

coisa <strong>de</strong> relevante a transmitir.<br />

A sua música reflecte muitas<br />

influências – folk, rock,<br />

afrobeat, morna, misto <strong>de</strong><br />

tradições árabes, africanas<br />

e europeias. Como <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> as<br />

roupagens para as suas canções?<br />

Não é nada <strong>de</strong> calculado. É a intuição.<br />

É a inspiração. Depen<strong>de</strong> do ambiente<br />

que quero atribuir à canção. Depen<strong>de</strong><br />

das palavras. Se a canção for muito<br />

triste talvez o fado surja como inspiração.<br />

Se for qualquer coisa frenética,<br />

talvez o afrofunk. Mas não penso nisso.<br />

Não me imponho restrições. Não<br />

digo para mim própria que não posso<br />

fazer rock. Faço o que me apetece.<br />

Não me imponho limites na música,<br />

tal como acontece quando canto sobre<br />

a guerra, a corrupção, a pobreza,<br />

a material ou moral.<br />

Nos seus espectáculos há<br />

espaço para canções intimistas<br />

e tranquilas, mas também<br />

para momentos <strong>de</strong> agitação<br />

dançante. Em qual dos registos<br />

se sente mais à vonta<strong>de</strong>?<br />

Depen<strong>de</strong> das pessoas que estão a assistir.<br />

A sério. Improviso muito. Percebo<br />

quando as pessoas querem qualquer<br />

coisa <strong>de</strong> mais doce ou quando<br />

estão mais disponíveis para ouvir<br />

mais rock. Gosto <strong>de</strong> misturar coisas<br />

melódicas com canções mais rock e<br />

outras coisas numa linha mais tradicional,<br />

<strong>de</strong> África, do Magrebe; é uma<br />

gran<strong>de</strong> mistura que me faz sentido. É<br />

ao vivo que me sinto verda<strong>de</strong>iramente<br />

livre. Gosto <strong>de</strong> sentir a energia das<br />

pessoas. É muito estimulante.<br />

É curioso, porque numa<br />

entrevista dizia que sentia<br />

sempre muito medo quando<br />

entrava em palco.<br />

É um misto <strong>de</strong> medo e <strong>de</strong> prazer.<br />

Quando se aproxima a hora vou ficando<br />

receosa, mas <strong>de</strong>pois acaba por ser<br />

um prazer.<br />

A sua audiência é<br />

essencialmente europeia, mas<br />

continua a optar por cantar<br />

predominantemente em árabe.<br />

Como é que reagem aqui em<br />

França a essa atitu<strong>de</strong>?<br />

Não gostam muito, mas é a vida. Passam<br />

o tempo a perguntar-me porque<br />

é que não canto em francês. Na tradução<br />

per<strong>de</strong>-se sempre qualquer coisa.<br />

Escrevo naturalmente em arábe.<br />

Quando o faço em francês ou inglês<br />

não me sinto tão à vonta<strong>de</strong>. Tenho<br />

que pedir a alguém que escreva por<br />

mim, o que não é a solução i<strong>de</strong>al. Acaba<br />

por ser engraçado porque as novas<br />

gerações da Argélia também nem<br />

sempre me enten<strong>de</strong>m.<br />

Vive entre França e a Argélia.<br />

Nessa situação po<strong>de</strong> haver<br />

uma fragmentação i<strong>de</strong>ntitária:<br />

olharem para si como argelina<br />

em França, e como francesa na<br />

Argélia. Sente isso?<br />

Não, sinto-me em casa, aqui ou na<br />

Argélia. Aqui sou universal: falo da<br />

paz, das mulheres, do amor, são temas<br />

universais. Quando vou à Argélia<br />

sou muito bem recebida também.<br />

Vêem-me como uma cantora que está<br />

no estrangeiro, mas relacionam-se<br />

com facilida<strong>de</strong> com a minha música.<br />

Sei que é um cliché, mas é assim que<br />

me sinto, universal.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> concertos na pág. 42<br />

e segs.<br />

Souad Massi<br />

saiu da<br />

Argélia para<br />

França<br />

<strong>de</strong>siludida<br />

com o<br />

ambiente<br />

político do seu<br />

país - um<br />

ambiente que,<br />

diz, “mais<br />

cedo ou mais<br />

tar<strong>de</strong>” vai<br />

mudar<br />

Av. Brasília, Doca <strong>de</strong> Alcântara (Norte) | 1350-352 <strong>Lisboa</strong> | Tel.: 213 585 200 | E-mail: info@foriente.pt | www.museudooriente.pt<br />

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Manuel Baptista | Desenhos<br />

1960-1970<br />

Exposição: <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> Março até 28 <strong>de</strong> Maio<br />

Horário: <strong>de</strong> quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00<br />

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Edifício Soeiro Pereira Gomes (antigo Edifício da Bolsa Nova <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>)<br />

Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºD, 1600-196 <strong>Lisboa</strong><br />

(Bairro do Rego / Bairro Santos)<br />

Tel. 217 803 003 / 4<br />

www.fundacaocarmonaecosta.pt<br />

Metro: Sete Rios / Praça <strong>de</strong> Espanha / Cida<strong>de</strong> Universitária | Autocarro: 31<br />

comissariado: João Pinharanda<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 17


GILDA-MIDANI<br />

Adriana<br />

Calcanhotto<br />

Samba em transe<br />

No seu novo disco, Adriana Calcanhotto entregou-se ao samba como se estivesse possuída por<br />

ele, ou pela alma <strong>de</strong>le. “O micróbio do samba” é um transe mágico. Nuno Pacheco<br />

Um dia, Adriana Calcanhotto sentiu<br />

um impulso irresistível <strong>de</strong> gravar os<br />

sambas que vinha compondo, como<br />

se não pu<strong>de</strong>sse compor ou gravar<br />

mais nada. Gravar para arrumá-los,<br />

tê-los juntos, ver o que valiam. Esse<br />

impulso acabou por <strong>de</strong>saguar num<br />

disco. Depois <strong>de</strong> “Maré” (2008) e <strong>de</strong><br />

“Partimpim 2” (2009), Adriana regressa<br />

com um disco singular, 12 sambas<br />

escritos por ela, gravados em trio<br />

(Domenico Lancellotti nas percussões<br />

e Alberto Continentino no contrabaixo)<br />

e com alguns, poucos, ilustres<br />

convidados: Davi Moraes, Rodrigo<br />

Amarante, Moreno Veloso. “O micróbio<br />

do samba” contagia.<br />

Disse há dias que este disco é<br />

“a fotografia <strong>de</strong> um momento”.<br />

Que momento é esse?<br />

É o momento em que me <strong>de</strong>i conta<br />

<strong>de</strong> ter alguns sambas. Falei com o Domenico<br />

[do trio +2] e disse: vamos<br />

registar esses sambas. Em vez <strong>de</strong> eu<br />

mandar lá para as pessoas da editora<br />

uma pasta com as <strong>de</strong>mos que já tinha<br />

feito quando compus cada samba,<br />

achei mais simpático ter uma gravação<br />

com os sambas todos.<br />

Embora você tenha dito que não<br />

tinha i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer um disco <strong>de</strong><br />

sambas…<br />

É, não tinha essa i<strong>de</strong>ia. Há <strong>de</strong>z anos,<br />

quando a Mariana <strong>de</strong> Moraes disse<br />

que ia fazer um disco <strong>de</strong> samba, ela<br />

pareceu um ET. Ninguém fazia discos<br />

<strong>de</strong> samba naquele momento. E <strong>de</strong><br />

uma hora para a outra começou a<br />

haver muitos discos <strong>de</strong> samba, o que<br />

é muito bom, só que eu não via a menor<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer um. Mas<br />

como tinha alguns sambas meus<br />

achei que <strong>de</strong>via registá-los para organizar<br />

essa parte da obra. Nesse momento,<br />

o tal que está “fotografado”<br />

no disco, tudo o que eu compunha<br />

saía samba. Não que eu sentasse para<br />

escrever sambas, mas saíam assim.<br />

Tanto que a Thaís Gulin, uma jovem<br />

intérprete, me pediu uma canção e<br />

eu disse: ‘Não tenho, só estou fazendo<br />

sambas’. E ela perguntou: ‘Mas<br />

não po<strong>de</strong> tentar?’ E eu tentei, mas<br />

saiu “Eu vivo a sorrir” e <strong>de</strong>pois o<br />

“Mais perfumado”. Mais sambas. Ficaram<br />

para mim [estão no disco].<br />

Vive há muito tempo no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, mas as suas raízes <strong>de</strong><br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul continuam<br />

presentes no seu trabalho. Que<br />

parte gaúcha há nestes sambas?<br />

É difícil dizer. Porque eu sou tão gaúcha<br />

que não consigo fazer a distinção.<br />

Sinto a forte influência do Lupicínio<br />

[Rodrigues, 1914-1974], que no Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul não é tão consi<strong>de</strong>rado<br />

sambista quanto é no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

é engraçado isso. No Rio, não só ele<br />

é visto como sambista como muita<br />

gente não sabe que ele é gaúcho.<br />

A frase <strong>de</strong> Lupicínio <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

tirou a i<strong>de</strong>ia do título do disco,<br />

“o micróbio do samba”, já a<br />

tinha quando começou a gravar<br />

ou foi um ponto <strong>de</strong> chegada,<br />

sintetizando a i<strong>de</strong>ia do disco?<br />

Acabou por sintetizar e por me ajudar<br />

a lançar o disco. Quando me <strong>de</strong>parei<br />

com esse <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Lupicínio,<br />

ficou irresistível para mim. Vi que re-<br />

Adriana<br />

Calcanhotto<br />

na sessão <strong>de</strong><br />

fotografias<br />

para<br />

promoção do<br />

disco. À<br />

esquerda,<br />

Davi Moraes<br />

(guitarra) e à<br />

direita, em pé,<br />

Domenico<br />

Lancellotti<br />

(percussão) e<br />

Alberto<br />

Continentino<br />

(contrabaixo)<br />

18 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


produz a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que tudo o que faço<br />

vem do samba: a minha música, o<br />

meu entendimento do ambiente sonoro<br />

do mundo, dos ruídos, enfim.<br />

Muito mais do que preten<strong>de</strong>r ser sambista,<br />

tenho esse micróbio. I<strong>de</strong>ntifiquei-me<br />

muito com essa frase.<br />

Houve um dia, num repente, em<br />

que você <strong>de</strong>safiou Domenico:<br />

vamos gravar. Quando foi?<br />

Foi no ano passado, quando fomos<br />

para estúdio registar uma canção minha<br />

que compus <strong>de</strong> encomenda para<br />

uma novela. Chamei-lhe “Canção <strong>de</strong><br />

novela”. Foi ali que eu lhe disse que<br />

tinha esse <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> botar todos os<br />

sambas num lugar, talvez numa bolachinha,<br />

num CD, para mandar lá para<br />

o pessoal da editora. Estava com <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> juntá-los, pelo menos.<br />

Como é que ele reagiu?<br />

O Domenico é totalmente positivo.<br />

Qualquer coisa que você diga “vamos”,<br />

vem logo. Ele é filho <strong>de</strong> um<br />

compositor que faz as canções no violão,<br />

mas toca bateria; e eu sou filha <strong>de</strong><br />

um baterista, mas faço as minhas canções<br />

no violão. Então a gente tem um<br />

negócio complementar e cúmplice.<br />

Quantas canções gravaram logo<br />

nesse dia?<br />

Oito. Gravámos no estúdio da minha<br />

casa umas quatro, cinco. O Alberto<br />

foi chamado <strong>de</strong>pois ao estúdio on<strong>de</strong><br />

gravámos a canção <strong>de</strong> novela. E ele<br />

“Qualquer coisa<br />

dos ritmos em Angola<br />

ou em Cabo Ver<strong>de</strong><br />

fica <strong>de</strong>ntro do samba<br />

<strong>de</strong> uma maneira<br />

tão natural, tão<br />

encorpada… A viola<br />

morna do Davi<br />

é um violão<br />

normal tocado<br />

a pensar em Cabo<br />

Ver<strong>de</strong>. O samba<br />

é música africana”<br />

foi, julgando que ia gravar uma faixa.<br />

Mas gravámos oito e ele perguntou:<br />

‘A gente gravou um disco?’ E aí começou<br />

essa conversa <strong>de</strong> “disco”. Fomos<br />

para Itália em “tournée”, com essa<br />

i<strong>de</strong>ia, e lá o Domenico ganhou <strong>de</strong> presente<br />

a caixa Hollywood, que tem um<br />

mecanismo que ele explora com o<br />

joelho, acciona e <strong>de</strong>sacciona a esteira<br />

da caixa enquanto toca, uma coisa<br />

incrível. E eu tinha comprado um violão<br />

muito especial, do final dos anos<br />

30, que tinha sido tocado por uma<br />

senhora da bossa nova. Por causa da<br />

caixa e do violão, fomos gravar tudo<br />

<strong>de</strong> novo. E eu, já com essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

disco, fiz mais quatro sambas.<br />

Qual foi o primeiro samba a ser<br />

escrito, o que lhe <strong>de</strong>u o mote<br />

para continuar?<br />

Foi o “Vai saber”, que a Marisa Monte<br />

gravou mas foi feito para a<br />

Mart’nália. Ela pediu-me qualquer<br />

coisa, eu fui para casa e nessa noite<br />

fiz o “Vai saber” inteiro. Mas ela não<br />

gravou, porque o disco <strong>de</strong>la não era<br />

<strong>de</strong> sambas. Depois, fiz o “Beijo sem”,<br />

um samba para Marisa que a Teresa<br />

Cristina gravou. Veja o complexo do<br />

coração <strong>de</strong> uma cantora [risos]…<br />

E esta sonorida<strong>de</strong>, baseada num<br />

trio? Tinha esse som na cabeça<br />

ou foi surgindo?<br />

Tinha, mas muito mais como influência<br />

do que como meta. Hoje em dia<br />

ouço e parece que estou reouvindo<br />

coisas que sempre estiveram na minha<br />

cabeça. Essa coisa que se po<strong>de</strong><br />

encarar como poliritmia mas <strong>de</strong>ntro<br />

do mesmo ritmo é interessantíssima,<br />

é uma tradução que o Alberto e o Domenico<br />

fazem do meu violão, da minha<br />

batida, Mostra um nível <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong><br />

que eu acho incrível.<br />

Na canção que abre o disco,<br />

“Eu vivo a sorrir”, brinca com<br />

a pronúncia: na rima sonora<br />

com “elevador”, você diz<br />

“inspiradô”, “espaçô”, “laçô”. E<br />

em fadado, você usa a pronúncia<br />

brasileira e mais adiante a<br />

portuguesa, “fadádo”. Porquê?<br />

Não sei, foi uma coisa ali da hora, do<br />

microfone, do som. Fiz, achei simpático<br />

e guar<strong>de</strong>i. E <strong>de</strong>pois, quando gravei<br />

a voz <strong>de</strong>finitiva, repeti.<br />

A escolha <strong>de</strong> Daniel Carvalho<br />

para produtor tem alguma razão<br />

especial?<br />

Tem. Eu trabalho com ele há muito<br />

tempo. Viajou comigo, veio a Portugal,<br />

fez o som do “Partimpim”. E há<br />

muito tempo que ele estava pronto<br />

para ser um produtor como foi agora.<br />

Eu acho que ele enten<strong>de</strong> tão bem tudo<br />

isso que está aqui, ajuda tanto a<br />

criar um ambiente para que essas<br />

coisas aconteçam, que estou muito<br />

orgulhosa.<br />

Na faixa “Deixa, gueixa”<br />

você volta a um fetiche seu, o<br />

Oriente, o Japão. Por um lado,<br />

a canção fala <strong>de</strong> libertação,<br />

explica dois modos <strong>de</strong> ver os<br />

hábitos sociais…<br />

Dois femininos…<br />

… e por outro lado há esta<br />

tragédia no Japão, agora. Como<br />

é que encara isso?<br />

Eu acho impressionante esse mito<br />

que é para o Japão o tsunami. Sou<br />

muito ligada ao tsunami através do<br />

Hokusai [1760-1849], tenho a “gran<strong>de</strong><br />

onda” tatuada nas minhas costas. É<br />

impressionante a força do mito e ver<br />

aquilo acontecer na vida das pessoas.<br />

Vi as imagens e fiquei muito impressionada.<br />

De todos estes sambas, quais<br />

são os que a tocam mais,<br />

pessoalmente?<br />

É tão difícil dizer isso… Porque essas<br />

coisas se alternam, na hora estamos<br />

mais ligados ao que acabámos <strong>de</strong> fazer.<br />

Mas o samba permite, talvez por<br />

causa da sua flui<strong>de</strong>z, pular <strong>de</strong> um género<br />

para outro, falar na voz <strong>de</strong> uma<br />

mulher <strong>de</strong>senganada ou <strong>de</strong>speitada,<br />

na voz <strong>de</strong> um homem cafajeste. Mais<br />

do que um ou outro samba, o conjunto<br />

<strong>de</strong> sambas permite-me trocar <strong>de</strong><br />

“persona”. E isso me divertiu muito.<br />

Algum <strong>de</strong>stes sambas foi<br />

composto em Portugal?<br />

Não. O mais ligado a Portugal é “Vivo<br />

a sorrir”, embora no “Tão chic” o<br />

Davi [Moraes] toque o cavaquinho<br />

como se fosse uma guitarra portuguesa.<br />

O “Deixa, gueixa” foi feito em Oslo,<br />

o “Tá na minha hora” em Taormina,<br />

“Você disse não lembrar” no Rio,<br />

“Eu vivo a sorrir” em Londres… É um<br />

disco estra<strong>de</strong>iro, na verda<strong>de</strong>. Um<br />

aqui, outro lá. Havia sambas meus,<br />

antes disso, uns com o Dé [Palmeira],<br />

outros que a Simone gravou. Mas esta<br />

é uma safra nova. O último foi “Deixa,<br />

gueixa”, feito em 2 <strong>de</strong> Novembro<br />

<strong>de</strong> 2010. Depois disso, não só não escrevi<br />

mais nenhum samba como não<br />

escrevi mais nada, o que me <strong>de</strong>ixa<br />

muito mais claro que era uma safra<br />

mesmo e pronto. Depois disso, não<br />

sei o que vem.<br />

Em “Tá na minha hora” sentemse<br />

a cores do semba angolano.<br />

Diz-lhe alguma coisa?<br />

Ah, muito. Qualquer coisa dos ritmos<br />

em Angola ou em Cabo Ver<strong>de</strong> fica<br />

<strong>de</strong>ntro do samba <strong>de</strong> uma maneira tão<br />

natural, tão encorpada… A viola morna<br />

do Davi é um violão normal tocado<br />

a pensar em Cabo Ver<strong>de</strong>. O samba é<br />

música africana [risos].<br />

O que gostava mais que as<br />

pessoas retivessem <strong>de</strong>ste disco?<br />

A minha compreensão da música como<br />

samba. Isso é necessário, não talvez<br />

para a fruição da minha música,<br />

mas para o entendimento do que faço.<br />

Ajuda a perceber uma coisa que eu<br />

digo nas entrevistas: que em tudo o<br />

que eu ouço está o samba. Pia pingando,<br />

máquina <strong>de</strong> lavar roupa, Daniel<br />

subindo a escada do estúdio, qualquer<br />

coisa eu ouço como samba. O Tárik<br />

<strong>de</strong> Sousa, crítico brasileiro, num dos<br />

“releases” que eu fiz, diz que isso é<br />

um exagero, mas infelizmente não é.<br />

O que fica é a origem da minha música.<br />

É o micróbio.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos pág. 40 e segs.<br />

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Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 19


AUGUSTO JOAQUIM<br />

Sobre Maria Gabriela Llansol (1931-<br />

2008) disse Eduardo Lourenço que<br />

será, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Fernando Pessoa, “o<br />

próximo gran<strong>de</strong> mito literário da literatura<br />

portuguesa”: “Nunca será uma<br />

autora fácil e consensual. É uma espécie<br />

<strong>de</strong> fenómeno misterioso. Alguém<br />

vindo <strong>de</strong> uma outra espécie <strong>de</strong><br />

planeta. Quem a encontra é difícil não<br />

ficar fascinado por essa escrita.”<br />

Esse fascínio é partilhado pelos escritores,<br />

artistas e cineastas com<br />

quem o Ípsilon falou sobre Maria Gabriela<br />

Llansol – leitura <strong>de</strong> cabeceira à<br />

qual recorrem, encantados pelo fulgor<br />

do texto, por um universo único,<br />

ou pelo <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> ler em liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>safiando os cânones.<br />

O que é ser llansoliano (ainda que<br />

poucos admitam sê-lo)? O llansoliano<br />

não é só o académico que estuda a<br />

obra ou que pertence ao Grupo <strong>de</strong><br />

Estudos Llansolianos, criado em Sintra<br />

ainda a escritora era viva, e que<br />

hoje preserva e divulga o seu espólio.<br />

Como explica João Barrento (um dos<br />

responsáveis pelo Espaço Llansol),<br />

ser llansoliano “é ter a<strong>de</strong>rido a um<br />

<strong>de</strong>terminado universo e a um modo<br />

<strong>de</strong> estar no mundo”.<br />

E que mito é este em torno da figura<br />

<strong>de</strong> Maria Gabriela Llansol? Diz-se<br />

que lia à luz das velas e que escrevia<br />

em torrente como um “animal <strong>de</strong> escrita”<br />

(Barrento). Da impossibilida<strong>de</strong><br />

separar o real e o texto ficou a aura<br />

<strong>de</strong> escritora inacessível, inclassificável,<br />

figura silenciosa, ro<strong>de</strong>ada por um<br />

pequeno grupo <strong>de</strong> admiradores a que<br />

Eduar-<br />

do Lourenço<br />

chamou<br />

“uma espécie<br />

<strong>de</strong><br />

seita”.<br />

PEDRO CUNHA<br />

“Nunca será uma<br />

autora fácil<br />

e consensual. É uma<br />

espécie <strong>de</strong> fenómeno<br />

misterioso.<br />

Alguém vindo<br />

<strong>de</strong> uma outra espécie<br />

<strong>de</strong> planeta. Quem<br />

a encontra é difícil<br />

não ficar fascinado”<br />

Eduardo Lourenço<br />

Hoje Llansol continua a ser uma<br />

(quase) ilustre <strong>de</strong>sconhecida em Portugal<br />

e no estrangeiro. Mas talvez a<br />

exposição que se inaugura no Centro<br />

Cultural <strong>de</strong> Belém (CCB) este domingo<br />

(que será “Dia Llansol”, com leituras<br />

e música) contribua para levantar o<br />

véu sobre esta escritora misteriosa.<br />

“Sobreimpressões. Maria Gabriela<br />

Llansol: Uma visão da Europa” é um<br />

roteiro por algumas das principais figuras<br />

europeias e pelos lugares da<br />

obra (e alguns da vida) <strong>de</strong> Llansol. Paralelamente,<br />

haverá em Abril, na Cinemateca,<br />

um ciclo sobre algumas<br />

<strong>de</strong>ssas figuras. E Llansol continua, com<br />

uma exposição <strong>de</strong> Ilda David que<br />

acompanhará a reedição <strong>de</strong> “O Livro<br />

das Comunida<strong>de</strong>s”, e o lançamento<br />

<strong>de</strong> um volume sobre a temática da Europa<br />

(Assírio & Alvim) e <strong>de</strong> outro compilando<br />

as principais recensões na<br />

imprensa da época (Mariposa Azul).<br />

Na exposição estarão trabalhos <strong>de</strong><br />

artistas com ligações à obra da Llansol,<br />

como a peça <strong>de</strong> Rui Chafes sobre<br />

a figura <strong>de</strong> Fernando Pessoa, ou a <strong>de</strong><br />

Pedro Proença sobre a metamorfose<br />

<strong>de</strong> D. Sebastião. E o texto, explica Barrento,<br />

“vai estar lá em fragmentos,<br />

com muitos papéis avulsos, peças originais<br />

dos ca<strong>de</strong>rnos, algumas nunca<br />

vistas”, à mistura com “peças da casa<br />

da autora e objectos relacionados com<br />

os seus livros”.<br />

Culto e afecto<br />

Hélia Correia, escritora: “Llansoliana na<br />

não sou porque isso implicaria uma<br />

prática <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> estudo e <strong>de</strong><br />

relação mais operacional com aquele<br />

texto, que não é a minha. Não sou<br />

uma estudiosa da obra da Llansol,<br />

mas sou uma amante, isso dá-me muidor:<br />

“Não sou llansoliano, <strong>de</strong> todo. o.<br />

to mais liberda<strong>de</strong>.”<br />

Miguel Gonçalves Men<strong>de</strong>s, realiza-a-<br />

Para mim, a Llansol é um autor que<br />

escrevia livros <strong>de</strong> que eu gosto. Há um<br />

lado <strong>de</strong> mitificação das coisas que<br />

acho até muito doentio e nem sei se<br />

ela própria simpatizaria com isso.”<br />

André e. Teodósio, encenador:<br />

“Sou um llansoliano. Reescrevo, apro-<br />

Miguel Loureiro<br />

<strong>de</strong>scobriu Maria Gabriela<br />

Llansol aos 24 anos e começou<br />

por sentir “uma certa<br />

frustração”: “O meu<br />

entendimento falhava, mas<br />

continuava a seguir as linhas.<br />

Lembro-me do que ganhei<br />

quando <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> me preocupar<br />

em perceber. Vinha formatado<br />

pela narrativa. Tinha <strong>de</strong><br />

apren<strong>de</strong>r a estar no texto”.<br />

Llansol, diz, “é um lugar muito<br />

repousante”, mas também<br />

muito inquietante: “Aquela<br />

escolha <strong>de</strong> palavras, a<br />

linguagem, dava a sensação <strong>de</strong><br />

que ela estava a sabotar tudo o<br />

que escrevia”. Os textos da<br />

escritora continuam como<br />

reserva, “ao pé da cama, para<br />

adormecer, para voltar a ler,<br />

para voltar a apren<strong>de</strong>r”.<br />

Hélia Correia não se consi<strong>de</strong>ra uma llansoliana, “porque isso<br />

implicaria uma prática <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> estudo e <strong>de</strong> relação mais<br />

operacional com aquele texto”, mas é uma amante <strong>de</strong> Maria Gabriela<br />

Llansol, cuja gata, Melissa, aliás herdou. A relação pessoal que teve com<br />

ela, “muito especial e muito privada”, é parecida com a que tem com o<br />

texto, <strong>de</strong> “gran<strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>”: “É um texto a que volto sempre. Já há<br />

muito tempo que isso não significa ler um livro completo, é abrir um<br />

livro aqui e acolá, ler passagens, como fazíamos quando nos<br />

encontrávamos. Não faço isso com mais texto nenhum”<br />

RUI GAUDÊNCIO<br />

O fulgor <strong>de</strong> Maria Gabriela Llansol<br />

contado pelos seus<br />

Criadores contemporâneos (llansolianos assumidos ou não) falam ao Ípsilon da sua relação <strong>de</strong> e<br />

escrita” que permanece misterioso. É já no domingo que o Centro Cultural <strong>de</strong> Belém i<br />

20 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


s amantes<br />

encantamento com Maria Gabriela Llansol, um “animal <strong>de</strong><br />

inaugura a exposição Sobreimpressões”. Raquel Ribeiro<br />

ENRIC VIVES-RUBIO<br />

A escritora num dos lugares<br />

llansolianos (Münster, na<br />

Alemanha, em 1982), e alguns<br />

dos manuscritos do seu espólio<br />

prio-me <strong>de</strong> frases <strong>de</strong>la. É uma das figuras<br />

que convoco sempre. Sou contingente<br />

<strong>de</strong>la. Os llansolianos po<strong>de</strong>m<br />

querer tampar-me a boca, mas eu não<br />

posso fugir a isso.”<br />

Paula Sá Nogueira, actriz: “Não diria<br />

que sou llansoliana. Sou leitora. A<br />

minha aproximação ao mundo é<br />

olhar: a Llansol é uma das coisas para<br />

que eu olho.”<br />

Aqui: afirmação e negação do que<br />

é ser llansoliano. E ainda assim todos<br />

se dizem amantes fascinados por essa<br />

força fulgurante do texto. Não é<br />

uma contradição. Como diz Hélia<br />

Correia, o culto, a ser feito, sê-lo-á<br />

“sobre o esplendor do seu texto, tão<br />

vivo como uma árvore, atravessada<br />

por uma seiva, com tanto alimento<br />

do espírito que será impossível e até<br />

in<strong>de</strong>sejável que haja um controlo a<br />

respeito <strong>de</strong>le. O texto não pe<strong>de</strong> isso.<br />

Que o culto seja um culto <strong>de</strong> luminosida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> afecto generoso”.<br />

Hélia Correia conheceu Maria Gabriela<br />

Llansol por via <strong>de</strong> uma amiga<br />

comum. Esse encontro “abriu caminho<br />

a uma relação muito especial e<br />

muito privada”: “Uma relação muito<br />

forte e muito preciosa para mim”,<br />

conta. Também com o texto <strong>de</strong> Llansol<br />

a relação é “<strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>”:<br />

“É um texto a que volto<br />

sempre. Já há muito tempo que isso<br />

não significa ler um livro completo, é<br />

abrir um livro aqui e acolá, ler passagens,<br />

como fazíamos quando nos encontrávamos.<br />

É um texto que está<br />

sempre presente. Não faço isso com<br />

mais texto nenhum.”<br />

A escritora admite que a existência<br />

<strong>de</strong> culto à volta do texto e da figura<br />

<strong>de</strong> Llansol não lhe “parece ofensiva”<br />

(“Compreendo e não sinto como abuso”),<br />

mas acrescenta que “essa per-<br />

Prémio Literário<br />

José Saramago<br />

1] O Prémio Literário José Saramago, instituído pela Fundação Círculo <strong>de</strong><br />

Leitores com periodicida<strong>de</strong> bienal, celebra a atribuição do Prémio Nobel<br />

da Literatura <strong>de</strong> 1998 ao escritor José Saramago e <strong>de</strong>stina-se a promover<br />

a divulgação da cultura e do património literário em língua portuguesa,<br />

através do estímulo à criação e <strong>de</strong>dicação à escrita por jovens autores da<br />

lusofonia.<br />

2] O Prémio distingue uma obra literária no domínio da ficção, romance ou<br />

novela, escrita em língua portuguesa, por escritor com ida<strong>de</strong> não superior<br />

a 35 anos, cuja primeira edição tenha sido publicada em qualquer país da<br />

lusofonia, excluindo as obras póstumas, bem como os autores que tenham<br />

já sido premiados em edições anteriores do Prémio.<br />

Nesta sétima edição, o Prémio contemplará uma obra publicada em 2009<br />

ou 2010 por escritor que à data da publicação da obra (mês e ano incluídos<br />

na ficha técnica do livro) não tenha excedido a ida<strong>de</strong> limite mencionada no<br />

corpo <strong>de</strong>ste artigo.<br />

3] O valor pecuniário do prémio a atribuir é <strong>de</strong> € 25.000,00.<br />

4] As Obras admitidas a concurso terão que ser apresentadas à Fundação<br />

Círculo <strong>de</strong> Leitores pelas Instituições representativas dos Escritores e/ou<br />

dos Editores dos países respectivos até 30 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 2011, <strong>de</strong>vendo<br />

para o efeito ser remetidos <strong>de</strong>z exemplares <strong>de</strong> cada obra concorrente,<br />

para a seguinte morada:<br />

Rua Professor Jorge da Silva Horta n.º 1, 1500-499 <strong>Lisboa</strong>.<br />

5] A Fundação Círculo <strong>de</strong> Leitores proce<strong>de</strong>rá à divulgação do Concurso<br />

através dos meios <strong>de</strong> comunicação social, bem como através das Associações<br />

representativas dos Escritores e dos Editores <strong>de</strong> todos os países<br />

da lusofonia.<br />

6] O Prémio será atribuído por um Júri composto por um mínimo <strong>de</strong> cinco<br />

e um máximo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z personalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reconhecido mérito no âmbito<br />

cultural, cabendo a Presidência ao representante da Fundação Círculo <strong>de</strong><br />

Leitores.<br />

1.º - Composição do Júri: Guilhermina Gomes (Presi<strong>de</strong>nte), Nélida<br />

Piñon, Ana Paula Tavares, Pilar <strong>de</strong>l Rio, Vasco Graça Moura.<br />

2.º - O Presi<strong>de</strong>nte do Júri <strong>de</strong>signará um Comité Executivo, que integra<br />

o Júri, constituído por três membros, Manuel Frias Martins, Maria <strong>de</strong><br />

Santa Cruz e Nazaré Gomes dos Santos, a quem compete:<br />

a) Verificar a regularida<strong>de</strong> formal das candidaturas recebidas;<br />

b) Efectuar uma primeira leitura e um resumo <strong>de</strong> cada uma das<br />

obras concorrentes;<br />

c) Emitir um comentário sobre cada uma das obras admitidas a<br />

concurso;<br />

7] O Júri <strong>de</strong>libera com total in<strong>de</strong>pendência e liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> critério, por<br />

maioria dos votos dos seus membros, cabendo ao Presi<strong>de</strong>nte o voto <strong>de</strong><br />

qualida<strong>de</strong> em caso <strong>de</strong> empate. O Prémio po<strong>de</strong>rá não ser atribuído, caso<br />

o Júri consi<strong>de</strong>re, por maioria, que as Obras apresentadas a concurso não<br />

têm a qualida<strong>de</strong> exigida. Haverá um único premiado.<br />

As <strong>de</strong>cisões do Júri são irrecorríveis.<br />

8] O Prémio será atribuído em Outubro <strong>de</strong> 2011 e a sua divulgação será<br />

efectuada através dos Órgãos <strong>de</strong> Comunicação Social. A entrega do Prémio<br />

ao Autor galardoado será efectuada em cerimónia pública, em data a fixar.<br />

9] As Edições subsequentes da obra galardoada <strong>de</strong>verão referenciar, em<br />

local <strong>de</strong>vidamente <strong>de</strong>stacado do volume e na cinta, a menção “Prémio<br />

Literário José Saramago - Fundação Círculo <strong>de</strong> Leitores”.<br />

10] Os exemplares enviados não serão <strong>de</strong>volvidos.<br />

R E G U L A M E N T O - 7 . ª e d i ç ã o<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 21


Um dos inúmeros papéis<br />

avulsos <strong>de</strong> Maria Gabriela<br />

Llansol<br />

Mesmo após a morte da<br />

escritora, em 2008, o texto <strong>de</strong><br />

Llansol continua vivo, tal como<br />

o seu culto<br />

ESPAÇO LLANSOL/ARQUIVO<br />

FERNANDO VELUDO/N-FACTOS<br />

sonagem adorada é já uma outra”.<br />

A imagem projectada por Llansol, explica,<br />

“é tão rica e tão textual, e dada<br />

a várias leituras, que há realmente<br />

uma imagem <strong>de</strong>la que se po<strong>de</strong> projectar<br />

como imagem <strong>de</strong> culto”. Hélia<br />

Correia, contudo, quer preservar o<br />

espaço íntimo da sua relação com<br />

Llansol, até fisicamente: “Defendo<br />

como um cão <strong>de</strong> guarda o meu espaço,<br />

do qual sou muito ciosa e que não<br />

quero ver atravessado por visitantes<br />

ou apreciadores da obra <strong>de</strong>la. Aí está<br />

a gran<strong>de</strong> diferença entre a minha felinida<strong>de</strong><br />

e o espaço dos estudiosos,<br />

que fazem um trabalho grandioso a<br />

que estou infinitamente grata”.<br />

Um texto que espicaça<br />

É esse afecto que une a leitora Hélia<br />

à obra “Amar um Cão”: “Nem preciso<br />

<strong>de</strong> dizer que é o meu texto. Aproprieime<br />

<strong>de</strong>le. É com ele que há uma relação<br />

<strong>de</strong> afecto, <strong>de</strong> memória.” Para<br />

além <strong>de</strong> Melissa, uma das gatas <strong>de</strong><br />

Llansol que Hélia adoptou, tudo o que<br />

era do Ja<strong>de</strong> (o cão <strong>de</strong> Llansol) ficou<br />

com ela. “Esse texto sai do conjunto<br />

grandioso da alta e perturbadora literatura<br />

que é a obra da Maria Gabriela,<br />

que eu peguei ao colo e trouxe<br />

para a minha salinha, como a Melissa<br />

e outras memórias e objectos”, diz.<br />

Para o compositor João Madureira,<br />

39 anos, autor da ópera “Metanoite”<br />

(encomenda da Gulbenkian em 2007,<br />

com libreto <strong>de</strong> João Barrento e encenação<br />

<strong>de</strong> André Teodósio), “Amar um<br />

Cão” também é a obra <strong>de</strong> eleição, “pela<br />

forma como combina simplicida<strong>de</strong><br />

e um lado mais enigmático e reflexivo<br />

da sua escrita, que parece aí encontrar<br />

um equilíbrio muito especial.” O<br />

que mais o atraiu em Llansol “foi a<br />

convicção <strong>de</strong> que a língua portuguesa<br />

necessitava absolutamente <strong>de</strong> uma<br />

reinvenção formal para exprimir as<br />

suas i<strong>de</strong>ias”. Estava perante alguém<br />

“que não reinventava a língua em que<br />

se exprimia por puro prazer ou capricho<br />

académico, mas por uma consciência<br />

profunda <strong>de</strong> que a língua com<br />

que nos exprimimos habitualmente<br />

condiciona aquilo que queremos dizer”.<br />

Musicalmente, sublinha, o texto<br />

<strong>de</strong> Llansol é muito estimulante também,<br />

“tanto no seu aspecto sintáctico,<br />

como no seu aspecto formal: por vezes<br />

ele parece articular-se como colecção<br />

<strong>de</strong> fragmentos vários constituintes<br />

<strong>de</strong> um todo, e não <strong>de</strong> uma<br />

forma puramente linear”.<br />

Este é o legado do texto <strong>de</strong> Llansol:<br />

mais do que as figuras que invoca ou<br />

do que os espaços que habita, é o processo<br />

<strong>de</strong> escrita do texto, literalmente<br />

com as costuras à mostra, que faz<br />

com que muitos vejam nela uma fonte<br />

<strong>de</strong> inspiração ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio. A realizadora<br />

Cláudia Tomaz, 38 anos, por<br />

exemplo, tem há vários anos o projecto<br />

<strong>de</strong> documentário “Os Vivos”,<br />

sobre a obra <strong>de</strong> Llansol. “Criar um<br />

filme completo que trate toda a extensão<br />

da obra <strong>de</strong> Llansol é impossível.<br />

À extensão, prefiro a profundida<strong>de</strong>.<br />

Quero fazer uma obra humana<br />

seguindo o percurso da escrita <strong>de</strong><br />

Llansol. Filmar, com o mesmo olhar<br />

com que ela escrevia. Vejo uma imagem<br />

nómada, silenciosa, <strong>de</strong> uma estranheza<br />

íntima”, explica. Não é fazer<br />

simples “ilustração nem colagens poéticas”:<br />

“Para mim a poesia tem que<br />

vir <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e é nesse caminho que<br />

encontro Llansol.”<br />

O mesmo se passa com Paula Sá Nogueira,<br />

55 anos, do grupo <strong>de</strong> teatro<br />

Cão Solteiro: “Há uma série <strong>de</strong> autores<br />

que lemos e que formam uma espécie<br />

<strong>de</strong> universo que acaba por ir parar aos<br />

espectáculos [da Cão Solteiro].” Demorou<br />

imenso tempo a lidar com a<br />

espiritualida<strong>de</strong> da autora: “Não sou<br />

católica e faço reacção a tudo o que o<br />

seja. Mas comecei a perceber que<br />

aquele texto é <strong>de</strong> uma profunda espiritualida<strong>de</strong>.”<br />

É a liberda<strong>de</strong> do universo<br />

<strong>de</strong> Llansol que a convida a entrar:<br />

“Gosto da reacção quími- ca que aquele<br />

universo provoca com o meu. Não<br />

me preocupo em saber se aquilo que<br />

estou a ler é o correcto. A escrita <strong>de</strong>la<br />

tem tanta liberda<strong>de</strong> que me permite<br />

fazer isso. Se não tudo aquilo parece<br />

um universo fechado, com metáforas<br />

difíceis. Essa é a postura <strong>de</strong> quem pega<br />

num livro para lhe explicarem alguma<br />

coisa. Isso não acontece com<br />

ela. Os livros <strong>de</strong>la espicaçam-me.”<br />

O artista plástico Manuel Santos<br />

Maia, 40 anos, acrescenta que o que<br />

o fascina em Llansol é a forma “quase<br />

catalisadora” como ela “fala nos objectos”,<br />

que “acelera o processo <strong>de</strong><br />

criação”. “É um diálogo que eu encontro<br />

com a escrita, que levanta<br />

questões e não dá certezas. Esse é que<br />

é o <strong>de</strong>safio.” Uma das peças do ta, sobre a questão do exílio e <strong>de</strong> Por-<br />

artistugal,<br />

com objectos da casa <strong>de</strong> Llansol,<br />

estará no CCB.<br />

Ler em liberda<strong>de</strong><br />

O texto continua vivo, mesmo após a<br />

morte (real) da autora. Era isso que<br />

interessava ao realizador Miguel Gonçalves<br />

Men<strong>de</strong>s, 32 anos, que, com a<br />

coreógrafa Vera Mantero, fez o documentário/performance<br />

“Curso <strong>de</strong><br />

Silêncio” para o Festival Temps<br />

d’Images (2007), a partir <strong>de</strong> “Amigo<br />

e Amiga”. “Creio que o que interessava<br />

mais à Vera era a cena fulgor. A<br />

mim, era questão da morte <strong>de</strong>le [Augusto<br />

Joaquim], e <strong>de</strong> como alguém se<br />

confronta com o mundo real e com<br />

esse luto.” O livro <strong>de</strong> Llansol permitiu<br />

a Men<strong>de</strong>s trabalhar “as contradições<br />

da mente humana”: “Estamos a falar<br />

<strong>de</strong> alguém com aquele universo ticular que a morte do marido põe em<br />

causa. É isso que torna esse livro especialmente<br />

bonito. Ela não se nega<br />

par-<br />

Manuel Santos Maia diz<br />

que a maneira como Maria<br />

Gabriela Llansol fala nos<br />

objectos é “catalisadora”,<br />

“acelera o processo <strong>de</strong> criação”.<br />

O artista plástico, que terá uma<br />

peça com objectos da casa da<br />

escritora na exposição do Centro<br />

Cultural <strong>de</strong> Belém, gosta <strong>de</strong> não<br />

encontrar certezas, apenas<br />

questões, nos textos <strong>de</strong> Llansol<br />

ADRIANO MIRANDA<br />

a si própria. Continua na sua procura<br />

do belo através do processo <strong>de</strong> criação.<br />

Faz o luto através do livro.”<br />

Em Llansol, o realizador admira “a<br />

recusa <strong>de</strong> metáforas”. Nesse sentido,<br />

Men<strong>de</strong>s reconhece que a leitura do<br />

texto llansoliano foi útil para o seu<br />

trabalho: “Naquele filme, senti que<br />

estava realmente livre através da exploração<br />

da intensida<strong>de</strong> da imagem,<br />

<strong>de</strong>ssa explosão visual. A liberda<strong>de</strong> é<br />

o gozo que a literatura <strong>de</strong>la dá, consegues<br />

ler uma página, um fragmento,<br />

e aquilo vive por si. Ler fragmentariamente<br />

é ler em liberda<strong>de</strong>.”<br />

Mas Llansol não é só livre: é real. “A<br />

escrita <strong>de</strong>la é fantástica, ensaística,<br />

poética, artística: é a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

ao máximo. Não é ficcional, é monstruosamente<br />

real. Tem a ver com a<br />

constatação do mundo, as artimanhas<br />

ficcionais do mundo e a sua monstruosida<strong>de</strong>.<br />

Está-nos sempre a tirar o tapete,<br />

para nos pôr a pensar, para nos<br />

abstrairmos. Não há voto, não há discurso;<br />

o prosaico sobre o mundo não<br />

está ali, não é metafórico”, diz André<br />

Teodósio. Os livros <strong>de</strong> Llansol, continua,<br />

não se po<strong>de</strong>m ler “como se lê uma<br />

tese, como quem procura a forma canónica<br />

da poesia ou uma fórmula matemática”.<br />

Precisamente porque o<br />

texto é livre, não se po<strong>de</strong> instaurar<br />

uma maneira <strong>de</strong> o ler. “Ela não diz: é<br />

assim. Ela constata. Sabe que o mundo<br />

está em colapso. Não usa artimanhas<br />

intelectuais.” Para Teodósio, Llansol<br />

é como Adília Lopes, “é o mesmo tipo<br />

<strong>de</strong> raciocínio e <strong>de</strong> posição no mundo,<br />

estar no mundo <strong>de</strong> uma forma contemporânea<br />

mas sem tempo, porque<br />

o tempo <strong>de</strong>las é o <strong>de</strong> <strong>de</strong>us”.<br />

Esse tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>us, um espaço<br />

místico espiritual, também seduz o<br />

actor Miguel Loureiro, 40 anos. Descobriu<br />

Llansol aos 24, com “uma paixão<br />

que vivia na altura, com quem<br />

trocava livros <strong>de</strong>la”. Comprava-os<br />

num alfarrabista, num vão <strong>de</strong> escada<br />

ao pé do Teatro da Trinda<strong>de</strong>. Foi então<br />

que <strong>de</strong>scobriu que havia “alguém<br />

no romance português que falava <strong>de</strong><br />

uma série <strong>de</strong> coisas próximas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>us”. Para Loureiro, “Llansol é um<br />

lugar muito repousante”. Quando a<br />

leu, sentiu “um enorme <strong>de</strong>scanso relativo<br />

a tudo o que tinha lido antes,<br />

“Llansol não<br />

reinventava a língua<br />

por capricho<br />

académico, mas<br />

por uma consciência<br />

profunda <strong>de</strong> que<br />

a língua condiciona”<br />

João Madureira,<br />

compositor<br />

mas ao mesmo tempo um sentimento<br />

<strong>de</strong> inquietação. Parecia que estávamos<br />

<strong>de</strong>z anos atrasados em relação<br />

ao que andávamos a ler. Aquela escolha<br />

<strong>de</strong> palavras, a linguagem, dava a<br />

sensação <strong>de</strong> que ela estava a sabotar<br />

tudo o que escrevia.” Llansol ficou-lhe<br />

como uma reserva, não como referência:<br />

alguns dos seus textos estão<br />

lá, “ao pé da cama, para adormecer,<br />

para voltar a ler, para voltar a apren<strong>de</strong>r”.<br />

A sua obra, diz, “é uma oferenda<br />

ao leitor”: “Cada vez que a leio<br />

encontro sempre coisas novas”.<br />

No fundo, é só preciso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ter<br />

medo. “Quando comecei a ler senti<br />

uma certa frustração: o meu entendimento<br />

falhava, mas continuava a seguir<br />

as linhas. Lembro-me do que<br />

ganhei quando <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> me preocupar<br />

em perceber. Vinha formatado<br />

pela narrativa. Tinha <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a<br />

estar no texto”, diz.<br />

Maria Gabriela Llansol esperou<br />

sempre pelos que estão do outro lado.<br />

Tinha um <strong>de</strong>sejo: “Encontrar alguém<br />

que me ame com bonda<strong>de</strong>, e saiba<br />

ler. (...) Alguém que <strong>de</strong>ixe espaços<br />

entre as palavras para evitar que a<br />

última se agarre à próxima que vou<br />

escrever. Alguém que admita que a<br />

cartografia dos animais e da pontuação<br />

não está ainda estabelecida. Alguém<br />

que eu possa ler diferentemente<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> me ler.”<br />

Ei-los aqui, amantes do fulgor do<br />

seu texto.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> exposições pág. 38 e segs.<br />

22 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT; TEL: 213 257 640<br />

SÃO<br />

LUIZ<br />

MAR~11<br />

BILHETES À VENDA EM WWW.TEATROSAOLUIZ.PT,<br />

WWW.BILHETEIRAONLINE.PT E ADERENTES<br />

BILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00<br />

TEL: 213 257 650 / BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

www.teatrosaoluiz.pt<br />

Cristina<br />

Branco<br />

Não há<br />

só tangos<br />

em Paris<br />

31 Mar<br />

21h<br />

sala principal<br />

quinta-feira<br />

M/3<br />

PRODUÇÃO<br />

APOIO À DIVULGAÇÃO


Judaísmo para coleccion<br />

Não é tudo o que sempre quisemos saber<br />

sobre o judaísmo, mas quase: os seis<br />

primeiros títulos da Judaica, a nova colecção<br />

<strong>de</strong> livros da Cotovia, compõem o retrato<br />

<strong>de</strong> um mundo fascinante, e nalguns casos<br />

perdido, <strong>de</strong> Belmonte ao Cairo, <strong>de</strong> Auschwitz<br />

a Israel. Maria da Conceição Caleiro<br />

Quem viu “Fantasia Lusitana”, o magnífico<br />

documentário sobre o Estado<br />

Novo que João Canijo estreou há cerca<br />

<strong>de</strong> um ano, sentiu um mal-estar: o<br />

do nosso isolamento. Vemo-nos a comemorar<br />

a Exposição do Mundo Português<br />

<strong>de</strong> 1940 e sorrimos, condoídos<br />

dos portugueses <strong>de</strong> então, perante a<br />

Nau que, mal é lançada, se afunda.<br />

Portugueses que alegremente admiram<br />

as peças expostas (homens e artefactos)<br />

trazidas do Império, enquanto<br />

por <strong>Lisboa</strong> passa uma horda <strong>de</strong><br />

gente cosmopolita, <strong>de</strong>sesperada, à<br />

espera <strong>de</strong> um sinal para prosseguir:<br />

refugiados ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong> uma guerra que<br />

nos “poupou” graças a Salazar, que<br />

nos mantinha na periferia do mundo<br />

convulso, e à Senhora <strong>de</strong> Fátima (e à<br />

vonta<strong>de</strong> dos Aliados, claro).<br />

Tudo isto vem a propósito <strong>de</strong> judaísmo<br />

e <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us. Não teremos sido<br />

anti-semitas, apesar do fantasma da<br />

Inquisição que nos amordaçou irreparavelmente<br />

o pensamento e a <strong>de</strong>streza<br />

económica. Habilmente, na<br />

época, D Manuel recebeu os ju<strong>de</strong>us<br />

expulsos pelos reis católicos no século<br />

XV. Alguns anos <strong>de</strong>pois, não os <strong>de</strong>ixando<br />

partir, baptizou-os, <strong>de</strong>struiu<br />

os seus vestígios, materiais e imateriais,<br />

queimou os preciosos livros que<br />

haviam trazido, arrasou sinagogas<br />

(que alfacinha conhece a topografia<br />

das três que existiram em <strong>Lisboa</strong>?),<br />

fez <strong>de</strong>les cristãos-novos, alguns futuros<br />

marranos. Mas a história e a cultura<br />

judaicas contemporâneas, as<br />

suas rotas mais recentes, os crimes<br />

cometidos sobre populações da Europa<br />

Central e Oriental (seis milhões<br />

cientificamente exterminados), o gozo<br />

da música klezmer e das recriações<br />

do riquíssimo teatro iídiche, a <strong>de</strong>gustação<br />

da gastronomia asquenazita ou<br />

sefardita, tudo esteve ausente ou esbatido<br />

nas nossas vidas, nas nossas<br />

livrarias, nas nossas conversas e até<br />

na universida<strong>de</strong>. Também Salazar,<br />

segundo Irene Pimentel (Prémio Pessoa<br />

2007, autora <strong>de</strong> “Ju<strong>de</strong>us em Portugal<br />

durante a II Guerra Mundial”)<br />

reforçou, a todos os níveis, o nosso<br />

isolamento. “Algo está felizmente a<br />

mudar, o interesse e a curiosida<strong>de</strong><br />

parecem ter sido revigorados”, diz a<br />

investigadora ao Ípsilon. A colecção<br />

Judaica, que a Cotovia acaba <strong>de</strong> lançar,<br />

é disso prova: para já são seis títulos<br />

(<strong>de</strong> Samuel Schwarz a Karl Marx,<br />

<strong>de</strong> Primo Levi a Moacyr Scliar), um<br />

leque bem diversificado que André<br />

Jorge inteligentemente seleccionou,<br />

e que até fisicamente se <strong>de</strong>seja possuir.<br />

Dirigida a um público curioso,<br />

mas não necessariamente especialista,<br />

a colecção reúne obras <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us<br />

religiosos, ju<strong>de</strong>us ateus, ju<strong>de</strong>us críticos<br />

<strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us... Cada um dos livros<br />

da colecção firma uma perspectiva,<br />

é a estrela <strong>de</strong> múltiplas faces <strong>de</strong> uma<br />

constelação que será certamente expandida.<br />

No blogue da Cotovia, o editor, que<br />

nasceu numa vila perto <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> no<br />

fim da Segunda Guerra Mundial, escreve<br />

um texto programático muito<br />

pessoal, lembrando que a família,<br />

oriunda da Beira Interior, o criou sem<br />

resquícios <strong>de</strong> educação católica, sem<br />

calendário religioso, apesar da admiração<br />

que o pai tinha pelos ju<strong>de</strong>us<br />

(“Hoje pergunto-me se isso não será<br />

um traço <strong>de</strong> judaísmo, escon<strong>de</strong>r uma<br />

coisa sem se converter a outra”). “Sou<br />

ateu convicto. É verda<strong>de</strong> que tenho<br />

um can<strong>de</strong>labro judaico em casa, mas<br />

isso é um símbolo; uma homenagem<br />

aos antepassados, uma quase presença<br />

<strong>de</strong>les. Sou ateu, não tenho a menor<br />

dúvida a esse respeito. Até na doença<br />

sou ateu. Sinto que é necessário recordar<br />

sempre os gran<strong>de</strong>s crimes contra<br />

a humanida<strong>de</strong>. Todos. Esta colecção<br />

vem daí, <strong>de</strong>ssa minha necessida<strong>de</strong><br />

tornada convicção”, explica.<br />

Jorge Martins, investigador e coor<strong>de</strong>nador<br />

<strong>de</strong> outra colecção mais antiga,<br />

a Sefarad (Nova Vega), aplau<strong>de</strong><br />

a iniciativa da Cotovia: “Estão <strong>de</strong> parabéns<br />

os estudos judaicos, que têm<br />

levado algumas editoras a apostar<br />

A história e a cultura<br />

judaicas<br />

contemporâneas,<br />

os seis milhões<br />

exterminados, o gozo<br />

da música klezmer e<br />

do riquíssimo teatro<br />

iídiche, tudo esteve<br />

ausente das nossas<br />

vidas, das nossas<br />

livrarias,<br />

e até da universida<strong>de</strong><br />

Os dilemas <strong>de</strong><br />

Israel, a<br />

mítica terra<br />

prometida do<br />

povo eleito<br />

que se tornou<br />

real <strong>de</strong>pois do<br />

<strong>de</strong>finitivo<br />

“pogrom” da<br />

Segunda<br />

Guerra<br />

Mundial, é o<br />

objecto <strong>de</strong><br />

dois dos livros<br />

da nova<br />

colecção da<br />

Cotovia:<br />

“Judaísmo -<br />

Dispersão e<br />

Unida<strong>de</strong>”, <strong>de</strong><br />

Moacyr Scliar,<br />

e “Judaísmo<br />

para Todos”,<br />

<strong>de</strong> Bernardo<br />

Sorj<br />

24 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


nadores<br />

NUNO FERREIRA SANTOS<br />

5 DE MARÇO A 30 DE ABRIL DE 2011<br />

nesta temática, provando que é uma<br />

necessida<strong>de</strong> historiográfica e um projecto<br />

comercial viável. Quantas mais<br />

editoras publicarem sobre esta temática<br />

– e com esta dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lhe conce<strong>de</strong>r<br />

uma colecção própria –, mais<br />

visibilida<strong>de</strong> terão os estudos judaicos”.<br />

O entusiasmo é partilhado por<br />

Borges Coelho – autor <strong>de</strong> “A Inquisição<br />

<strong>de</strong> Évora 1533-68” (Caminho) -,<br />

Avraham Milgram, historiador do Museu<br />

do Holocausto Yad Vashem <strong>de</strong><br />

Jerusalém, que escreveu “Portugal,<br />

Salazar e os Ju<strong>de</strong>us” (Gradiva), Richard<br />

Zimler (“Os Anagramas <strong>de</strong> Varsóvia”,<br />

edição Oceanos) e Esther Mucznik<br />

(estudiosa <strong>de</strong> temas judaicos e<br />

autora <strong>de</strong> “Gracia Nasi”, Esfera dos<br />

Livros).<br />

Obras que nascem<br />

na Paisagem<br />

Saiba mais em:<br />

www.cascaisnatura.org<br />

Uma iniciativa: Media Partner: Com o apoio:<br />

De Belmonte ao Cairo...<br />

Dos livros agora editados, comecemos<br />

por Samuel Schwarz (1880-1950), autor<br />

<strong>de</strong> “Os Cristãos-novos…”, publicado<br />

originalmente em 1925. Engenheiro<br />

<strong>de</strong> minas polaco, trabalhava<br />

em Espanha e, pass(e)ando por Belmonte,<br />

<strong>de</strong>tecou um rasto judaico nalguns<br />

usos e nas orações das gentes.<br />

Abeirou-se, apresentou-se como ju<strong>de</strong>u,<br />

os habitantes foram esquivos. O<br />

medo (como diz Irene Pimentel, <strong>de</strong>via<br />

ser feita em Portugal uma História do<br />

medo...) e o silêncio sedimentados<br />

fá-los-iam recuar: ‘“Visto que preten<strong>de</strong><br />

conhecer outras orações judaicas,<br />

diferentes das ‘nossas’, diga-nos, ao<br />

menos, uma das que conhece nessa<br />

‘língua hebraica’ mque diz ser a língua<br />

dos ju<strong>de</strong>us!...’(…) Ocorreu-nos, então,<br />

a feliz i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> recitar a sublime oração<br />

<strong>de</strong> ‘Shemah Israel’, base da religião<br />

judaica (…). Notámos, quando<br />

pronunciámos a palavra ‘Adonai’, que<br />

as mulheres tapavam os olhos com as<br />

mãos e ao acabar <strong>de</strong> recitar a breve<br />

oração, a anciã, que nos tinha convidado<br />

a rezar, disse, com autorida<strong>de</strong>,<br />

para as que a cercavam: “É realmente<br />

ju<strong>de</strong>u, porque pronunciou o nome<br />

Adonai’”.<br />

A partir daí, Schwarz passa a ser<br />

admitido na comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belmonte<br />

e a fazer uma cuidada recolha, tornando-se<br />

talvez no maior conhecedor<br />

dos cristãos-novos da época mo<strong>de</strong>rna.<br />

“A sua obra constitui até hoje uma jóia<br />

sobre a cultura, os costumes e as preces<br />

dos cristaõs-novos do inicio do<br />

século passado”, sublinha Avraham<br />

Milgram. Mas é uma jóia que esteve<br />

<strong>de</strong>masiado tempo esquecida, acrescenta<br />

Esther Mucznik, lembrando<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 25


que, regressada a Portugal <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> vários anos <strong>de</strong> ausência, investigou<br />

em vários arquivos e em nenhum <strong>de</strong>les<br />

se <strong>de</strong>parou com o nome <strong>de</strong> Samuel<br />

Schwarz. Tampouco a Comunida<strong>de</strong><br />

Israelita <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> possuía os seus livros.<br />

Quando os encontrou, Mucznik<br />

percebeu que Schwarz foi “um homem<br />

importantíssimo” para o judaísmo<br />

português. “Polaco até ao fim, mas<br />

português, é um homem que compra<br />

com o seu dinheiro a sinagoga <strong>de</strong> Tomar,<br />

que na altura é um armazém, que<br />

a restaura com o seu dinheiro e que a<br />

oferece ao estado português na condição<br />

<strong>de</strong> se fazer lá um museu. Foi ele<br />

quem que revelou ao mundo o marranismo<br />

português, e a sua reedição<br />

é uma excelente iniciativa”, sublinha.<br />

António Marques <strong>de</strong> Almeida, que<br />

ocupou vários anos a cátedra <strong>de</strong> Estudos<br />

Sefarditas da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras<br />

<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, é mais pru<strong>de</strong>nte:<br />

Schwarz, argumenta, <strong>de</strong>parou-se com<br />

uma atmosfera sincrética, o criptojudaísmo,<br />

e <strong>de</strong>u-lhe um sentido. Mas<br />

“o que viu não é o que escreveu”.<br />

Da jornalista brasileira Helena Salem<br />

(1948-1999) - uma judia sefardita<br />

<strong>de</strong> origem turca que chegou a viver<br />

exilada em Portugal com o marido,<br />

dirigente do Partido Comunista Marxista-Leninista<br />

do Brasil) – publicou-se<br />

“Entre Árabes e Ju<strong>de</strong>us”. É a reportagem<br />

da Guerra do Yom Kippur que<br />

Salem realizou em jovem para o “Jornal<br />

do Brasil”, a partir do Cairo, do<br />

lado <strong>de</strong> árabes e palestinos, indignando<br />

a colónia judaica carioca: “Como<br />

judia sefardita, estava tão à vonta<strong>de</strong><br />

naquele mundo... que o meu segredo,<br />

até, ia ficando menos pesado”. Salem<br />

possui um estilo rápido, juvenil, ofegante<br />

quase, intercalado por breves<br />

memórias pessoalíssimas ou por reparos<br />

casuísticos aos sabores do mun-<br />

do em volta (inevitável pensar, ao ler,<br />

na repórter do PÚBLICO Alexandra<br />

Lucas Coelho). É quase como se o leitor<br />

tivesse acompanhado aquele “travelling”,<br />

sofrido com aquelas pessoas,<br />

e tomado como seus as ingenuida<strong>de</strong>s,<br />

as hesitações e os reparos à condição<br />

feminina <strong>de</strong> ambos os lados. “Para<br />

mim a vida <strong>de</strong>la é um acto <strong>de</strong> coragem.<br />

Coragem para ter também aquela<br />

visão, que não era a minha”, diz<br />

Mucznik, que conheceu Salem na Albânia.<br />

“A nossa amiza<strong>de</strong> foi muito<br />

bonita, ensinou-me muito. Publicar<br />

os livros <strong>de</strong>la é uma homenagem a<br />

uma mulher que foi cobrir a guerra<br />

do lado árabe”.<br />

... e <strong>de</strong> Auschwitz a Israel<br />

Moacyr Scliar (1937-2011), gran<strong>de</strong> ficcionista,<br />

já editado entre nós, que<br />

acaba <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer, e Bernardo Sorj<br />

(1948-), director do Centro E<strong>de</strong>lstein<br />

<strong>de</strong> Pesquisas Sociais e professor <strong>de</strong><br />

sociologia na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, são ambos brasileiros,<br />

são ambos <strong>de</strong> origem judaica, são ambos<br />

profundos conhecedores da história<br />

e da cultura do judaísmo. A obra<br />

<strong>de</strong> Scliar, gaúcho, filho e neto <strong>de</strong> imigrantes,<br />

nasce marcada pelo imaginário<br />

judaico-cristão e pelas estórias que<br />

a mãe, professora que o alfabetizou,<br />

<strong>de</strong>sfiava e lhe incendiavam a imaginação.<br />

Ambos traçam a história do povo<br />

ju<strong>de</strong>u, articulando o texto bíblico, o<br />

patamar sagrado, com o relato histórico.<br />

Em “Judaísmo - Dispersão e Unida<strong>de</strong>”,<br />

<strong>de</strong> Scliar, isto resulta, como<br />

seria <strong>de</strong> esperar, num timbre mais literário<br />

(tem também um capítulo sobre<br />

os ju<strong>de</strong>us no Brasil). “Judaísmo<br />

para Todos”, <strong>de</strong> Bernardo Sorj, acentua<br />

o olhar mais sociológico. Tanto um<br />

como o outro partem do começo mítico<br />

(“E disse o Senhor a Abraão…”)<br />

até à criação do Estado <strong>de</strong> Israel, investigando<br />

a origem histórica do antisemitismo<br />

- que, ao contrário do que<br />

muitas vezes se julga, não surgiu com<br />

o cristianismo mas sim com os romanos.<br />

Cada um a seu modo, levantam<br />

os problemas inerentes a Israel, país<br />

que emerge <strong>de</strong>pois do massacre irreparável<br />

<strong>de</strong> um mundo, o Holocausto,<br />

a Shoah. O novo Estado, saído <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>s-diasporização, multicultural (muito<br />

mais do que uma origem tem o cidadão<br />

<strong>de</strong> Israel), fragmentado e pósmo<strong>de</strong>rno,<br />

<strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong> construir<br />

uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> judaica secular, sem<br />

apagar a memória, mas gerando “novas<br />

narrativas e (...) práticas, sem reproduzir<br />

conteúdos xenofóbicos e<br />

alienantes das categorias <strong>de</strong> pureza e<br />

impureza, <strong>de</strong> povo escolhido, <strong>de</strong> protecção<br />

divina”, refere Sorj.<br />

Apetece dizer que tudo o que sempre<br />

quisemos saber sobre o(s)<br />

judaímo(s) começa aqui, nestes dois<br />

autores.<br />

O Estado <strong>de</strong> Israel,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Bernardo<br />

Sorj, <strong>de</strong>ve ser capaz<br />

<strong>de</strong> construir uma<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> judaica<br />

secular, “sem<br />

reproduzir conteúdos<br />

xenofóbicos das<br />

categorias <strong>de</strong> pureza<br />

e impureza, <strong>de</strong> povo<br />

escolhido, <strong>de</strong><br />

protecção divina”<br />

REUTERS<br />

Já a “A Questão Judaica”, do jovem<br />

Karl Marx (1818-1883), é um obra provocadora<br />

e passional, panfletária,<br />

pouco marxista <strong>de</strong> espírito e até antisemita.<br />

Abre assim: “Os ju<strong>de</strong>us alemães<br />

aspiram à emancipação” (leia-se<br />

igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos, direito à cidadania<br />

e à emancipação cívica e política,<br />

aspectos que no século XIX estavam<br />

na or<strong>de</strong>m do dia na França e<br />

na Alemanha). E continua “Vós, ju<strong>de</strong>us,<br />

sois ‘egoístas’ ao exigir<strong>de</strong>s uma<br />

emancipação especial para vós, enquanto<br />

ju<strong>de</strong>us (…). Devereis, sim,<br />

perceber que a vossa opressão e ignomínia<br />

não constituem uma excepção<br />

à regra, mas apenas vêm confirmar<br />

essa mesma regra”. Marx faz<br />

equivaler o ju<strong>de</strong>u ao culto a um só<br />

Deus – o da usura e da troca (<strong>de</strong> mercadorias).<br />

O ju<strong>de</strong>u em Marx é, assim,<br />

emblema do dinheiro, do capitalismo,<br />

logo <strong>de</strong> burguesia (esta sua visão terá<br />

contribuído para o anti-semitismo <strong>de</strong><br />

alguns movimentos revolucionários).<br />

Simplificando <strong>de</strong> mais: o ju<strong>de</strong>u tem<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser ju<strong>de</strong>u para que o Humano<br />

e o Estado livres da alienação<br />

possam nascer.<br />

Curiosamente, Marx tem uma raiz<br />

judaica, a arquitectura <strong>de</strong>sta cultura<br />

infiltrada. Quem sabe se o pós-ditadura<br />

do proletariado, “o mundo a<br />

seguir”, brinca Esther Mucznik, “não<br />

seria o reino messiânico?” Nada é simples,<br />

e este é um texto nuclear da história<br />

das i<strong>de</strong>ias políticas, foco irradiante<br />

<strong>de</strong> muitos outros. Gostaríamos,<br />

todavia <strong>de</strong> o ver co-adjuvado por textos<br />

<strong>de</strong> Hannah Arendt como “The Jew<br />

as Pariah ( Jewish I<strong>de</strong>ntity and Politics<br />

in the Mo<strong>de</strong>rn Age)”, <strong>de</strong> 1943, ou por<br />

outros seus sobre a temática do antisemitismo.<br />

Assim como por Gershom<br />

Scholem e a sua polemica com Arendt<br />

a propósito do controverso “Eichmann<br />

em Jerusalém”. Ou Daniel Sibony,<br />

nascido em 1942 no seio <strong>de</strong> uma<br />

família judia que habitava a Medina<br />

<strong>de</strong> Marraquexe, e chega a Paris aos 13<br />

anos... psicanalista, matemático, filósofo<br />

e muito mais, autor <strong>de</strong> variadíssimos<br />

livros que integram questões<br />

do mundo, da transmissão e da cultura<br />

judaicas e exploram a tese <strong>de</strong> que<br />

o medo, o racismo e a violência aumentam<br />

quando “o Outro” não quer<br />

viver mais no “gueto” e exige <strong>de</strong>vir<br />

juridicamente um cidadão “como os<br />

outros” (no caso dos ju<strong>de</strong>us, era o que<br />

vinha acontecendo na Europa Oci<strong>de</strong>ntal,<br />

com interregnos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />

XIX).<br />

Por fim, neste primeiro lote da colecção,<br />

há Primo Levi (1919-1987), autor<br />

dos “inteligentes e comoventes”<br />

livros que o escritor Richard Zimler<br />

sempre recomenda quando os leitores<br />

lhe pe<strong>de</strong>m sugestões <strong>de</strong> livros sobre<br />

o Holocausto. Do italiano, a Cotovia<br />

publica “O Dever <strong>de</strong> Memória”.<br />

Claro que daqui para a frente se<br />

quer sempre mais, muitos mais…<br />

Agamben, Langbein, antologia(s) <strong>de</strong><br />

poesia hebraica contemporânea, Sartre,<br />

ficção… que evoque os campos<br />

com a força da linguagem literária<br />

(como “Eine Reise” <strong>de</strong> H.G. Adler, que<br />

Canetti consi<strong>de</strong>rou “uma obra-prima,<br />

escrita numa prosa particularmente<br />

bela e pura”).<br />

Ver crítica <strong>de</strong> livros pág. 34<br />

e segs.<br />

A memória <strong>de</strong><br />

Auschwitz<br />

assombrou o<br />

italiano Primo<br />

Levi até ao<br />

final da sua<br />

vida; escreveu<br />

sobre essa<br />

experiência<br />

<strong>de</strong>formadora<br />

em “Se Isto É<br />

Um Homem...”<br />

e também em<br />

“O Dever <strong>de</strong><br />

Memória”, que<br />

a Cotovia<br />

agora publica<br />

Karl Marx aborda a questão judaica do ponto <strong>de</strong> vista do<br />

movimento mais geral <strong>de</strong> emancipação do proletariado (e com<br />

um certo anti-semitismo, apesar das suas raízes judaicas),<br />

e da sua visão da religião como “ópio do povo”: “Vós,<br />

ju<strong>de</strong>us, sois ‘egoístas’ ao exigir<strong>de</strong>s uma emancipação<br />

especial para vós, enquanto ju<strong>de</strong>us (...). Devereis, sim,<br />

perceber que a vossa opressão e ignomínia não<br />

constituem uma excepção à regra, mas apenas vêm<br />

confirmar essa mesma regra”<br />

Moacyr Scliar, filho e neto <strong>de</strong> imigrantes da<br />

Europa <strong>de</strong> Leste, cresceu no bairro judaico <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre, o Bom Fim, cuja sombra paira sobre uma<br />

obra muito marcada pelo imaginário judaicocristão<br />

e pelas histórias contadas pela mãe,<br />

professora, que o alfabetizou. “Judaísmo - Dispersão e<br />

Unida<strong>de</strong>” é a sua evocação <strong>de</strong> Israel, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo<br />

mítico fixado pelo Antigo Testamento (“E disse o Senhor a<br />

Abraão”) às dores <strong>de</strong> crescimento do Estado mo<strong>de</strong>rno


maratona <strong>de</strong> cinema no pós-abril > sábado 2 abril<br />

cinema sem parar das 21h30 às 5h00.<br />

21h30 revolução [Ana Hatherly, 1975]<br />

as armas e o povo [Trabalhadores Da Activida<strong>de</strong> Cinematográfica, 1975]<br />

filmes que nos transportam com o corpo todo para o 25 <strong>de</strong> abril.<br />

23h20 caminhos da liberda<strong>de</strong> [Cinequipa, 1974]<br />

os lugares da revolução dos cravos filmados outra vez, agora como <strong>de</strong>stroços.<br />

00h40 terra <strong>de</strong> pão, terra <strong>de</strong> luta [José Nascimento, 1977]<br />

filme-grito que acompanha e luta com aqueles que fizeram a reforma agrária no alentejo.<br />

02h00 continua a viver ou os índios da meia-praia [António Cunha Telles, 1976]<br />

homens, mulheres e crianças carregam os tijolos, a massa, o cimento e até as próprias casas às costas.<br />

04h00 fatucha superstar – ópera rock… bufa! [João Paulo Ferreira, 1976]<br />

recriação queer da história <strong>de</strong> fátima e seus pastorinhos. (tirei o que estava a seguir)<br />

05h00 que farei eu com esta espada? [João César Monteiro, 1975]<br />

uma alegoria mordaz à presença ameaçadora da nato ao largo <strong>de</strong> lisboa, que chega,como nosferatu, pela noite.<br />

<strong>de</strong>bate sobre o prec<br />

o panorama - 5ª mostra do documentário português convida quatro blogs - arrastão, albergue espanhol,<br />

31 da armada e 5dias - a <strong>de</strong>bater o prec, com mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> pedro mexia.<br />

sexta-feira, 25 <strong>de</strong> março, às 19h30 na casa da achada (perto da praça da figueira).<br />

o <strong>de</strong>bate é aberto ao público.


Depois <strong>de</strong> “Yumurta” (2007), regresso<br />

<strong>de</strong> um poeta à sua terra natal após<br />

a morte da mãe, e <strong>de</strong> “Süt” (2008),<br />

retrato <strong>de</strong> um adolescente dividido<br />

entre a escrita e o pobre trabalho que<br />

sustenta a sua família, Semih Kaplanoglu<br />

fecha a sua trilogia sobre Yussuf<br />

(personagem que é também o seu<br />

alter-ego) com “Mel”, retrato da<br />

emancipação <strong>de</strong> uma criança na Turquia<br />

rural, que foi Urso <strong>de</strong> Ouro em<br />

Berlim em 2010.<br />

Continuando a olhar para trás, Kaplanoglu<br />

mostra-nos <strong>de</strong>sta vez a infância<br />

em estado puro que guardamos<br />

pela vida fora: a curiosida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>scoberta<br />

dos sentidos, a vonta<strong>de</strong> da<br />

expressão individual e a timi<strong>de</strong>z<br />

que a impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> se soltar, e o<br />

eterno elo <strong>de</strong> admiração da<br />

criança pelo seu pai, sob<br />

o olhar atento da mãe.<br />

O pai <strong>de</strong> Yussuf, apicultor,<br />

procura novas<br />

fontes <strong>de</strong> mel<br />

para o sustento<br />

familiar, pequenas<br />

incursões<br />

feitas na companhia do filho, <strong>de</strong><br />

olhos e ouvidos abertos para cada<br />

gesto. Mas será após uma partida solitária<br />

para longe que, na ausência da<br />

referência paterna, os sentidos <strong>de</strong><br />

Yussuf se abrirão mais ao confronto<br />

entre o isolamento interior no seu<br />

diminuído lar, o encontro com as palavras<br />

na escola e o puro estado da<br />

natureza que circunda a casa.<br />

Há um mundo que o<br />

chama e que ele<br />

abraça, na<br />

<strong>de</strong>scoberta<br />

da vida e da ausência.<br />

“Em 2005”, diz-nos Kaplanoglu,<br />

“escrevi um conto sobre um aspirante<br />

a poeta <strong>de</strong> 18 anos que vivia no campo<br />

e enviava os seus poemas a jornais<br />

literários [segmento da história que<br />

filmaria em “Süt”, segunda parte da<br />

trilogia]. Mas perguntei-me o que<br />

A “Trilogia Yussuf”<br />

é a história do<br />

crescimento invertido<br />

<strong>de</strong> um homem<br />

que foi criança<br />

aconteceria a essa personagem na sua<br />

ida<strong>de</strong> adulta e na sua infância, se po<strong>de</strong>ria<br />

continuar a escrever poemas<br />

com 40 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> ou se teria <strong>de</strong><br />

fazer outra coisa para ganhar a vida”.<br />

A história da “Trilogia Yussuf”, que<br />

tem o seu ponto alto em “Mel”, é, portanto,<br />

a do crescimento invertido <strong>de</strong><br />

um homem que foi criança, a <strong>de</strong> um<br />

longo caminho <strong>de</strong> emancipação face<br />

à presença espiritual do pai e o amor<br />

presente da mãe. A luta <strong>de</strong> Yusuf pela<br />

in<strong>de</strong>pendência confun<strong>de</strong>-se com a<br />

procura da sua forma <strong>de</strong> expressão<br />

no mundo — a poesia e o uso das palavras.<br />

“Ao falar com Orçun, o meu<br />

co-argumentista, e com Han<strong>de</strong>, o<br />

meu montador, pensámos numa<br />

trilogia”, diz-nos o realizador.<br />

É uma trilogia ao<br />

contrário: “Decidi começar<br />

do ponto que<br />

conhecia melhor —<br />

os 40 anos —, por<br />

estar a passar<br />

por problemas<br />

semelhan-<br />

Yussuf<br />

Yussuf, o pequeno protagonista da trilogia que “Mel” agora<br />

encerra, é um alter-ego do realizador Semith Kaplanoglu<br />

quando for pequeno<br />

“Mel” encerra a “Trilogia Yussuf” <strong>de</strong> Semih Kaplanoglu. Continuamos a andar para trás: <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> já ter sido quarentão e adolescente, Yussuf é agora um miúdo em crescimento na Turquia<br />

rural. O princípio, diz Kaplanoglu, é aquilo que fica connosco até ao fim. Francisco Valente<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 29


tes [retratados em “Yumurta”]. Depois<br />

<strong>de</strong> uma certa ida<strong>de</strong>, concentramo-nos<br />

mais no passado do que no<br />

futuro, talvez por haver uma aproximação<br />

à morte ou porque o tempo<br />

que já vivemos ser maior do que aquele<br />

que vamos viver”, explica.<br />

Atrás da cortina<br />

Além <strong>de</strong> um reflexo dos seus dilemas<br />

posteriores, a infância <strong>de</strong> Yusuf é também<br />

a <strong>de</strong>scoberta do mundo que alimentará<br />

os sentidos: a imensa floresta<br />

on<strong>de</strong> se situa a sua casa abre o caminho<br />

para a aprendizagem das<br />

sensações e das palavras que as <strong>de</strong>screvem.<br />

Apesar <strong>de</strong> ser o último filme<br />

da trilogia, “Mel” é também o primeiro:<br />

os outros dois filmes começam<br />

aqui, quando Yusuf era pequeno.<br />

Mas dizer Yusuf é outra maneira <strong>de</strong><br />

dizer Semith. A poesia não é apenas<br />

a forma <strong>de</strong> expressão do protagonista:<br />

é a forma <strong>de</strong> expressão do próprio<br />

realizador. “Uso um método <strong>de</strong> simplificação<br />

nos meus filmes que aprendi<br />

com a poesia. Penso muitas vezes<br />

em como tornar a poesia relevante<br />

numa forma <strong>de</strong> arte como o cinema.<br />

A expressão poética dos meus filmes<br />

é uma consequência <strong>de</strong>sse esforço”,<br />

diz ao Ípsilon. Toda a “Trilogia Yussuf”<br />

revela uma paciente busca do<br />

tempo certo <strong>de</strong> expressão, uma relação<br />

cuidada entre a exposição <strong>de</strong> um<br />

sentimento e a escolha <strong>de</strong> a<strong>de</strong>reços e<br />

<strong>de</strong> palavras numa paisagem natural<br />

<strong>de</strong> imagens. “A poesia é aquilo que<br />

fazemos das nossas experiências a<br />

partir do que guardamos na nossa<br />

linguagem. Não se trata só <strong>de</strong> colocar<br />

os nossos sentimentos em palavras,<br />

tem também a ver com o silêncio.”<br />

Através da infância <strong>de</strong> Yussuf, Kaplanoglu<br />

tentou ir ao encontro do sentido<br />

inicial que se per<strong>de</strong> ao longo da<br />

vida. “A vida põe uma cortina à frente<br />

dos nossos sentidos, impe<strong>de</strong>-nos <strong>de</strong><br />

UM ESPECTÁCULO DE DINARTE BRANCO, LUIS MIGUEL CINTRA E CRISTINA REIS<br />

Tradução: Regina Guimarães<br />

Interpretação: Judas Dinarte Branco; Voz Luis Miguel Cintra<br />

CURTA SÉRIE DE REPRESENTAÇÕES<br />

24, 25, 26, 27 e 31 <strong>de</strong> MARÇO 1, 2 e 3 <strong>de</strong> ABRIL TEATRO DO BAIRRO ALTO<br />

De 5.ª a Sábado às 21.30h. Domingo às 16.00h<br />

M/12<br />

R.Tenente Raul Cascais, 1A. 1250-268 <strong>Lisboa</strong><br />

<br />

Telef: 213961515/Fax 213954508<br />

<br />

<br />

2011<br />

O olhar sobre<br />

a paisagem<br />

natural, a<br />

busca do<br />

tempo certo<br />

<strong>de</strong> expressão,<br />

e a gestão<br />

da palavra e<br />

do silêncio<br />

são traços<br />

comuns ao<br />

protagonista<br />

e ao realizador<br />

<strong>de</strong> “Mel”<br />

tocar, cheirar e ver. Quando fiz o filme,<br />

tentei encontrar uma maneira <strong>de</strong> remover<br />

essa cortina, queria <strong>de</strong>screver<br />

não só a infância <strong>de</strong> Yussuf mas também<br />

a da humanida<strong>de</strong>. Pensei muito<br />

em como <strong>de</strong>screver essa pureza, pois<br />

julgo que a per<strong>de</strong>mos nas nossas relações.<br />

Falamos muito não por nos darmos<br />

bem, mas porque não conseguimos<br />

estabelecer uma verda<strong>de</strong>ira ligação<br />

uns com os outros”, sublinha.<br />

O esforço do realizador turco passa<br />

também por um método <strong>de</strong> filmagem<br />

assente ainda nas suas formas naturais:<br />

sem pós-produção, através <strong>de</strong><br />

uma rodagem integrada no seu ambiente<br />

natural — a província <strong>de</strong> Rize,<br />

na Turquia —, procurando uma conjugação<br />

natural <strong>de</strong> luz e vida nos elementos<br />

que compõem a imensidão<br />

da paisagem e da floresta. “Interessome<br />

muito pela natureza”, afirma o<br />

realizador, “observo-a e tento envolver-me<br />

com ela. O sentido do tempo,<br />

o nascer e o pôr do sol, as estações,<br />

tudo isso tem um efeito em mim. Sinto<br />

que não consigo criar se não traduzir<br />

isso naquilo que faço.”<br />

Todo o seu trabalho vai no sentido<br />

<strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong><br />

e <strong>de</strong> <strong>de</strong>puração que é o contrário<br />

da vida mo<strong>de</strong>rna, urbana que nos<br />

aliena dos sentidos. “A nossa percepção<br />

não está apenas relacionada com<br />

o cinema, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> também da quantida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> poesia que lemos, do nosso<br />

envolvimento com a arte e a filosofia,<br />

e da nossa relação com a espiritualida<strong>de</strong>.<br />

A vida mo<strong>de</strong>rna não nos permite<br />

questionar a nossa existência e<br />

a criação, há uma indolência dominante<br />

em relação a isso”, argumenta<br />

Kaplanoglu.<br />

Um cinema da esperança<br />

Os contornos da “Trilogia Yussuf”<br />

relembram os <strong>de</strong> uma outra <strong>de</strong>scoberta<br />

— a do mundo <strong>de</strong> Apu, jovem<br />

personagem do cinema do indiano<br />

Satyajit Ray. Também Apu era um aspirante<br />

a escritor dividido entre um<br />

profundo e <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> criação e as responsabilida<strong>de</strong>s<br />

da vida diária, <strong>de</strong> que<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a sobrevivência familiar. A<br />

procura <strong>de</strong> uma paz <strong>de</strong> espírito entre<br />

os acessórios materiais da vida é comum<br />

ao cinema <strong>de</strong> Ray e Kaplanoglu.<br />

Contudo, é num cinema mais metafísico<br />

e já distante <strong>de</strong> Ray que Kaplanoglu<br />

acaba por encontrar as suas<br />

influências mais <strong>de</strong>cisivas. “‘O Espelho’<br />

(1975), <strong>de</strong> Tarkovski, teve um<br />

gran<strong>de</strong> impacto em mim: as sementes<br />

e as i<strong>de</strong>ias do que queria fazer no cinema<br />

vêm daí, tal como <strong>de</strong> ‘Andrei<br />

Rublev’ (1966)”, diz o realizador. “Foram<br />

filmes que marcaram a minha<br />

relação com o cinema.”<br />

“A vida põe uma<br />

cortina à frente<br />

dos nossos sentidos.<br />

Tentei encontrar uma<br />

maneira <strong>de</strong> remover<br />

essa cortina.<br />

Julgo que per<strong>de</strong>mos<br />

a pureza nas nossas<br />

relações. Falamos<br />

muito não por nos<br />

darmos bem,<br />

mas porque<br />

não conseguimos<br />

estabelecer uma<br />

verda<strong>de</strong>ira ligação<br />

uns com os outros”<br />

Semih Kaplanoglu<br />

Mas se é o movimento <strong>de</strong> Tarkovski<br />

que marca o tempo do cinema <strong>de</strong> Kaplanoglu<br />

e a sua busca <strong>de</strong> abstracção,<br />

o realizador turco refere ainda a porta<br />

aberta pelos filmes <strong>de</strong> Ingmar Bergman:<br />

“Ao criar as minhas personagens,<br />

fiz referência à forma <strong>de</strong> ver <strong>de</strong><br />

Bergman. Ele coloca as questões mais<br />

substanciais e dolorosas sobre a existência<br />

do homem mo<strong>de</strong>rno. Os seus<br />

filmes provam que o cinema po<strong>de</strong><br />

contar a história da sua insuficiência<br />

espiritual, não apenas vagueando pelos<br />

corredores sombrios da alma humana,<br />

mas dando-nos uma esperança<br />

que faz parte do mundo e que nos<br />

leva para a própria essência da criação.”<br />

Como Bergman, Kaplanoglu vai até<br />

à raiz <strong>de</strong> uma vida. Na sua inocência,<br />

Yussuf mostra-nos que aquilo que nos<br />

forma nunca nos abandonará. Ele sabe<br />

que po<strong>de</strong>rá sempre encontrar<br />

aquilo que procura na árvore on<strong>de</strong> o<br />

pai ia buscar o mel para levar para<br />

casa.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> filmes na pág. 44 e segs.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 30


Os objectos nasceram<br />

ENRIC VIVES-RUBIO<br />

Des<strong>de</strong> criança que o pintor Manuel Baptista gosta <strong>de</strong> brincar com formas. Os objectos<br />

fantásticos que imaginou, e <strong>de</strong>senhou, ficaram guardados décadas em pequenos ca<strong>de</strong>rnos.<br />

Agora tornaram-se realida<strong>de</strong>. E nasceram muito gran<strong>de</strong>s. Alexandra Prado Coelho<br />

Manuel Baptista passeia-se maravilhado<br />

entre os enormes objectos espalhados<br />

pelo Museu da Electricida<strong>de</strong>,<br />

em <strong>Lisboa</strong>, na exposição “Fora <strong>de</strong><br />

Escala”. Não se cansa <strong>de</strong> olhar para<br />

eles. Há, por exemplo, esta falésia<br />

amarela, inspirada nas falésias dos<br />

Verões da sua infância, em Albufeira,<br />

e ele só lamenta que as pessoas não<br />

vejam por trás. Damos a volta. “Está<br />

a ver? É uma maravilha, com todas<br />

estas linhas <strong>de</strong> corte, as marcas da<br />

cola, do betume…”.<br />

As falésias, os novelos <strong>de</strong> lã gigantes,<br />

os envelopes dos quais saem formas<br />

líquidas e ver<strong>de</strong>s, as camisas com<br />

gravatas em versão pop, as formas<br />

ondulantes recortadas em ma<strong>de</strong>ira,<br />

em alumínio, em acrílico colorido –<br />

todos eles são objectos que viveram<br />

durante décadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rnos<br />

fechados. Sempre que tinha uma<br />

i<strong>de</strong>ia, que via uma forma que o inspirava,<br />

Manuel Baptista <strong>de</strong>senhava. E<br />

foi guardando esses <strong>de</strong>senhos, sem<br />

nunca <strong>de</strong>sistir da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um dia os<br />

ver transformados em realida<strong>de</strong>.<br />

“Des<strong>de</strong> os anos 50 que me habituei<br />

a registar o meu pensamento plástico<br />

em livros ou em papéis”, conta.<br />

“Quando era miúdo [nasceu em 1936]<br />

tinha um fascínio muito gran<strong>de</strong> por<br />

<strong>de</strong>senhos animados. Lembro-me que<br />

em Faro, on<strong>de</strong> vivia, na véspera <strong>de</strong><br />

Natal, pela manhã, havia sempre uma<br />

sessão para as crianças, e eu ficava<br />

fascinado pelos <strong>de</strong>senhos animados<br />

do Walt Disney, o Bugs Bunny, o Gato<br />

Silvestre…”.<br />

Na escola, durante as aulas, ia <strong>de</strong>senhando<br />

nos ca<strong>de</strong>rnos pequenas<br />

molduras. “O que me interessava não<br />

era tanto o exercício que lá estava,<br />

mas a moldura que andava à volta,<br />

com gatos, ratos.” Numa vitrina no<br />

início da exposição estão vários ca<strong>de</strong>rnos<br />

(já dos anos 60 e 70) em que<br />

Manuel Baptista continua a fazer molduras<br />

e a enchê-las <strong>de</strong> formas. “Agarrava<br />

numa i<strong>de</strong>ia e <strong>de</strong>senvolvia-a em<br />

várias hipóteses. Depois chegava a<br />

uma altura em que era como se tivesse<br />

esgotado essa i<strong>de</strong>ia, e continuava<br />

com outra”.<br />

- e cresceram<br />

Manuel<br />

Baptista na<br />

sua falésia<br />

amarela<br />

“Lembro-me<br />

que em Faro,<br />

on<strong>de</strong> vivia, na véspera<br />

<strong>de</strong> Natal, pela manhã,<br />

havia sempre uma<br />

sessão para as<br />

crianças, e eu ficava<br />

fascinado pelos<br />

<strong>de</strong>senhos animados<br />

do Walt Disney”<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 31


ENRIC VIVES-RUBIO<br />

Em 1957, saiu <strong>de</strong> Faro para frequentar<br />

o curso <strong>de</strong> Arquitectura na<br />

Escola Superior <strong>de</strong> Belas-Artes <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />

(que mais tar<strong>de</strong> abandona para<br />

se <strong>de</strong>dicar à pintura). Mas é em 1963<br />

que o mundo se abre verda<strong>de</strong>iramente.<br />

Com uma bolsa da Gulbenkian,<br />

parte para Paris. E o menino que se<br />

encantava com os <strong>de</strong>senhos da Disney<br />

vai <strong>de</strong>scobrir que o mundo tem muito<br />

mais para oferecer. “Foi um <strong>de</strong>slumbramento.<br />

Naqueles anos havia<br />

um fervilhar <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias em Paris… Assisti<br />

à abertura da galeria americana<br />

Ileana Sonnabend, ia a todas as inaugurações<br />

e via o [Robert] Rauschenberg,<br />

o Andy Warhol, imagens fortíssimas,<br />

pop. Curiosamente, nas inaugurações<br />

estava meia dúzia <strong>de</strong><br />

pessoas. Ninguém dava muita importância<br />

à arte americana em Paris. Mas<br />

eu ficava fascinado”.<br />

Os artistas americanos faziam performances<br />

e <strong>de</strong>ixavam os franceses<br />

sem saberem o que pensar. Manuel<br />

Baptista lembra-se <strong>de</strong> ir pelo Boulevard<br />

Saint-Germain, entre os carros,<br />

<strong>de</strong> olhos vendados. E lembra-se <strong>de</strong><br />

um bal<strong>de</strong> on<strong>de</strong>, num ritmo sempre<br />

igual, caía um pingo <strong>de</strong> água enquanto<br />

se ouvia uma voz gravada que dizia<br />

“sois pas triste, sois pas triste”. “As<br />

pessoas estavam chocadíssimas, mas<br />

eu estava <strong>de</strong>lirante, porque era tudo<br />

novo, era outra coisa”.<br />

Vivia num pequeno quarto <strong>de</strong> hotel,<br />

tomava o pequeno-almoço mas<br />

saltava o almoço para poupar dinheiro<br />

e po<strong>de</strong>r ir jantar a um bar <strong>de</strong> jazz<br />

“on<strong>de</strong> se comia esparguete à bolonhesa<br />

e se podiam ouvir os músicos”.<br />

Manuel Baptista estava em Paris “para<br />

comer cultura”. E não perdia tempo.<br />

Saía <strong>de</strong> manhã, percorria todas as<br />

galerias, ouvia concertos, frequentava<br />

cafés míticos como o Flore ou o<br />

Deux Magots – “cheguei a ver o [Jean-<br />

Paul] Sartre e a [Simone <strong>de</strong>] Beauvoir;<br />

naquela altura na mesa ao lado podiam<br />

estar os gran<strong>de</strong>s pensadores, era<br />

uma atmosfera extraordinária”.<br />

Em Paris percebeu que não é preciso<br />

impor limites à imaginação. Tudo<br />

parecia possível. E nos ca<strong>de</strong>rnos os<br />

<strong>de</strong>senhos multiplicavam-se. “Já os<br />

pensava como objectos”. Aponta para<br />

um dos ca<strong>de</strong>rnos abertos na vitrina.<br />

“Pensava nos materiais da época,<br />

a que eu tinha acesso. Como esta ca<strong>de</strong>ira<br />

que está aqui, toda envolvida<br />

em tubos <strong>de</strong> plástico”. Cores, formas,<br />

materiais – estava tudo ali. Mas o ano<br />

em Paris estava a acabar e o regresso<br />

a Portugal foi também um regresso à<br />

realida<strong>de</strong>. As condições não permitiam<br />

que aqueles <strong>de</strong>senhos saíssem<br />

das páginas dos ca<strong>de</strong>rnos. “Desenhava-os<br />

na esperança <strong>de</strong> um dia os fazer,<br />

mas era uma coisa longínqua, não<br />

havia mercado, eu não sabia como.<br />

Ainda an<strong>de</strong>i à procura <strong>de</strong> carpinteiros,<br />

mas era difícil, eles não estavam<br />

interessados, o que queriam era fazer<br />

coisas para a construção”.<br />

Mania das gran<strong>de</strong>zas<br />

Foi um tempo <strong>de</strong> escolhas. E Manuel<br />

Baptista escolheu a pintura, porque<br />

era o que o mercado pedia. Um convite<br />

para ser assistente na Escola <strong>de</strong><br />

Belas-Artes levou-o a <strong>de</strong>cidir regressar<br />

a Portugal. “Eu consi<strong>de</strong>ro que tenho<br />

vários heterónimos. Podia ter feito<br />

variadíssimas coisas. Até na pintura,<br />

podia ter sido vários pintores, e podia<br />

tê-lo assumido, mas nunca tive coragem<br />

para isso.”<br />

O artista com<br />

um dos seus<br />

envelopes em<br />

acrílico<br />

“Tenho vários<br />

heterónimos.<br />

Podia ter feito<br />

variadíssimas coisas.<br />

Até na pintura,<br />

podia ter sido vários<br />

pintores, e podia tê-lo<br />

assumido, mas nunca<br />

tive coragem para<br />

isso”<br />

Continuou sempre a registar os<br />

seus “pensamentos visuais”, muitas<br />

vezes nas toalhas <strong>de</strong> papel dos restaurantes<br />

que frequentava com artistas<br />

amigos. Às vezes olhava para os guardanapos<br />

organizados em leque, achava<br />

piada, “começava a <strong>de</strong>senhar e os<br />

guardanapos transformavam-se numa<br />

planta”. Alguns dos <strong>de</strong>senhos po<strong>de</strong>m<br />

ser vistos agora no Museu da Electricida<strong>de</strong>,<br />

mas muitos outros estarão<br />

expostos a partir <strong>de</strong> amanhã na Fundação<br />

Carmona e Costa, em <strong>Lisboa</strong><br />

(on<strong>de</strong> estão previstas duas conversas<br />

sobre a obra <strong>de</strong> Manuel Baptista, uma<br />

a 9 <strong>de</strong> Abril, às 17h, com o filósofo<br />

José Gil, e outra a 27, às 18h, com o<br />

artista plástico Pedro Cabrita Reis).<br />

Se calhar havia um tempo certo para<br />

os objectos que imaginara nascerem.<br />

Um dia, João Pinharanda, consultor<br />

para as Artes da Fundação EDP,<br />

foi ao atelier <strong>de</strong> Manuel Baptista em<br />

Faro. “Viu os ca<strong>de</strong>rnos e ficou muito<br />

entusiasmado com este lado escultórico<br />

do meu trabalho”. De repente,<br />

as condições que não tinham existido<br />

nos anos 60 e 70, tornaram-se realida<strong>de</strong>.<br />

“Começámos a trabalhar, a ter<br />

reuniões, surgiu uma equipa <strong>de</strong> produção<br />

fantástica.”<br />

Os objectos começaram a ganhar<br />

uma vida própria. João Pinharanda<br />

sugeriu fazê-los gran<strong>de</strong>s. Muito gran<strong>de</strong>s.<br />

“Inicialmente não tinha nenhuma<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> escala”, confessa o artista.<br />

“Ou melhor, era uma escala mais<br />

intimista. Eram objectos que se podiam<br />

pôr numa casa. Na época estávamos<br />

muito preocupados com o<br />

mercado que existia, o mercado da<br />

casa do comprador, que não era muito<br />

gran<strong>de</strong>. E agora, <strong>de</strong> repente, parecia<br />

não haver limites. “O João Pinharanda<br />

dizia ‘faz maior, maior’, e eu<br />

dizia ‘Maior? Calma, calma’”.<br />

Maravilhado, foi vendo como a equipa<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>signers transformava o seu<br />

“<strong>de</strong>senho espontâneo” e lhe dava “rigor,<br />

medidas exactas”. Paramos junto<br />

a um enorme novelo <strong>de</strong> corda enrolado<br />

em torno <strong>de</strong> um eixo: “Em alguns<br />

objectos, como estes feitos em corda,<br />

eu tinha uma i<strong>de</strong>ia inicial, mas quando<br />

começámos a pensar a escala o próprio<br />

objecto foi-se impondo.”<br />

Aponta para outro novelo, com<br />

uma forma diferente. “Era o novelo<br />

<strong>de</strong> lã que a minha mãe tricotava, e eu<br />

abria as mãos assim [exemplifica],<br />

para a ajudar. Quando o executámos<br />

andámos ali às voltas para ver como<br />

fazíamos. O Jorge Rodrigues, o artista<br />

que o executava, tinha um novelo <strong>de</strong><br />

corda grossa que eu achei que não<br />

funcionava. Eu dizia ‘não é possível<br />

fazer isto’, e ele dizia ‘não há impossíveis’.<br />

Achei isso extraordinário.”<br />

Deslumbrado, ia visitar a fábrica<br />

que faz as peças para o Carnaval <strong>de</strong><br />

Torres Vedras e on<strong>de</strong> estava a nascer<br />

a sua falésia amarela. “Deu-me um<br />

gran<strong>de</strong> gozo acompanhar a execução.<br />

Foi fascinante a <strong>de</strong>scoberta dos materiais.<br />

Nunca tinha entrado num sítio<br />

como aquela fábrica, on<strong>de</strong> havia <strong>de</strong><br />

tudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o rato Mickey a personalida<strong>de</strong>s<br />

da política. É um mundo fascinante.”<br />

No texto que escreveu para o catálogo,<br />

Pinharanda <strong>de</strong>screve a obra escultórica<br />

<strong>de</strong> Manuel Baptista como<br />

uma “metáfora do confronto entre<br />

uma sensibilida<strong>de</strong> melancólica e lírica,<br />

humorada e crítica e o <strong>de</strong>slumbramento<br />

provocado pelo glamour <strong>de</strong><br />

uma socieda<strong>de</strong> ainda inexistente em<br />

Portugal”. E levanta uma questão:<br />

“Mas qual é, afinal, o tempo histórico<br />

<strong>de</strong>stas peças? Os anos 1960/70 e seguintes,<br />

em que não foram vistas se<br />

não pelo artista […]? Ou a actualida<strong>de</strong>?”.<br />

Pinharanda interroga-se sobre<br />

quais teriam sido as consequências,<br />

“nesse tempo nacional <strong>de</strong> pequenez,<br />

<strong>de</strong>sta provocadora afirmação <strong>de</strong> ‘mania<br />

das gran<strong>de</strong>zas’?”<br />

Teriam estes objectos sido diferentes<br />

se tivessem sido construídos nos<br />

anos 60? Provavelmente sim, acredita<br />

Manuel Baptista. “Eles são feitos<br />

com a minha experiência <strong>de</strong> artista<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que me conheço e toda essa<br />

minha experiência está posta aqui.<br />

Isso também conta muito.” Mas há<br />

uma coisa que o <strong>de</strong>ixa orgulhoso:<br />

“Olho hoje para esta exposição e, apesar<br />

<strong>de</strong> as peças terem sido pensadas<br />

nos anos 60 e 70, acho-as contemporâneas.<br />

Sinto-as completamente integradas<br />

nas i<strong>de</strong>ias que hoje fervilham.”<br />

Olha mais uma vez em volta, para<br />

as suas falésias, os seus novelos <strong>de</strong> lã,<br />

os seus envelopes. Está absolutamente<br />

feliz, mas a pergunta – como teria<br />

sido? – ficará sempre. “Fiquei maravilhado<br />

<strong>de</strong>pois da montagem. Sentime<br />

um espectador <strong>de</strong> mim próprio.<br />

Fiquei muito comovido com o resultado.<br />

E pensei, ‘caramba, podia ter<br />

feito isto há 50 anos’”.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> exposições na pág. 38<br />

e segs.<br />

32 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


Knut<br />

Hamsun<br />

“Victoria”: um romance fundador<br />

da literatura mo<strong>de</strong>rna europeia<br />

finalmente publicado<br />

em Portugal Pág. 34<br />

Ricardo<br />

Rocha<br />

Um génio da guitarra<br />

portuguesa ao vivo<br />

no Maria Matos<br />

Pág. 42<br />

HO/ AFP DANIEL ROCHA<br />

Milan<br />

Kun<strong>de</strong>ra<br />

Ganhou-se<br />

um ensaísta<br />

em “Um Encontro”<br />

Pág. 36<br />

AUDITÓRIO<br />

26 e 27 MARÇO 21.30H<br />

M/18<br />

BILHETES À VENDA NA SALA DO ESPECTÁCULO / FNAC / WORTEN / WWW.BILHETEIRAONLINE.PT / WWW.TICKETLINE.PT<br />

INFO: 214 416 200 WWW.UGURU.NET<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 33


Livros<br />

Não foi sem<br />

razão que<br />

escritores<br />

como Thomas<br />

Mann ou Isaac<br />

Bashevis<br />

Singer<br />

consi<strong>de</strong>raram<br />

Knut Hamsun<br />

o fundador<br />

da literatura<br />

mo<strong>de</strong>rna<br />

Ficção<br />

Um vento<br />

murmura<br />

nas roseiras<br />

Como o génio transforma<br />

uma história simples<br />

numa narrativa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

intensida<strong>de</strong> psicológica e<br />

dramática. Um clássico da<br />

literatura europeia.<br />

José Riço Direitinho<br />

Victoria<br />

Knut Hamsun<br />

(Trad. Carlos Aboim <strong>de</strong> Brito)<br />

Cavalo <strong>de</strong> Ferro<br />

mmmmm<br />

Com 15 anos, Knut<br />

Hamsun (1859-<br />

1952) – Prémio<br />

Nobel da<br />

Literatura em<br />

1920 – empregouse<br />

num armazém<br />

<strong>de</strong> secagem <strong>de</strong><br />

arenques<br />

numa vila<br />

do norte<br />

Na<br />

televisão<br />

Salman Rushdie está a<br />

escrever uma série <strong>de</strong><br />

televisão para o canal<br />

americano por cabo<br />

Showtime. “Next People”,<br />

anunciou a estação,<br />

dissecará “a velocida<strong>de</strong><br />

radical da transformação<br />

da Noruega. De acordo com o<br />

biógrafo Ingar Sletten Kolloen – em<br />

“Soñador y Conquistador” (Nórdica,<br />

2009) –, foi por essa altura que o<br />

jovem Knut viu pela primeira vez (e<br />

<strong>de</strong> imediato se apaixonou por ela) a<br />

rapariga que lhe serviria <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo<br />

para alguns dos livros que viria a<br />

escrever; chamava-se Laura, e era a<br />

filha do patrão, o rei do comércio do<br />

arenque. Passado pouco tempo, e<br />

com o <strong>de</strong>créscimo da pesca, o jovem<br />

Knut teve <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a região e fazerse<br />

à vida por outras paragens. Mas<br />

Laura ficaria para sempre na sua<br />

memória. Os seus primeiros escritos<br />

datam <strong>de</strong>ssa época.<br />

Em 1878, com 19 anos, publicou,<br />

ainda sob o seu verda<strong>de</strong>iro nome,<br />

Knud Pe<strong>de</strong>rsen, uma noveleta com o<br />

título “Bjørger” (mais tar<strong>de</strong> retirá-laia<br />

da sua bibliografia) em que conta<br />

a história <strong>de</strong> um jovem poeta,<br />

Bjørger, rapaz inteligente e pobre,<br />

filho <strong>de</strong> agricultores, que se<br />

apaixona pela filha (obviamente <strong>de</strong><br />

nome Laura) <strong>de</strong> um homem rico;<br />

esse amor está con<strong>de</strong>nado ao<br />

fracasso <strong>de</strong>vido ao facto <strong>de</strong> os<br />

amantes pertencerem a diferentes<br />

classes sociais.<br />

Vinte anos mais tar<strong>de</strong> – já <strong>de</strong>pois<br />

da publicação <strong>de</strong> “Fome”, a sua<br />

obra-prima –,numa altura em que<br />

era já reconhecido um pouco por<br />

toda a Europa como um dos autores<br />

mais importantes, publicou o<br />

romance “Victoria”, inspirado nessa<br />

sua história juvenil. A personagem<br />

feminina trocou o nome Laura pelo<br />

<strong>de</strong> Victoria, mas o tema é o mesmo:<br />

“Eu era apenas um pobre camponês,<br />

um urso, um bárbaro que, na minha<br />

juventu<strong>de</strong>, ousara invadir a coutada<br />

real.”<br />

Depois <strong>de</strong> “Fome”, cuja acção<br />

<strong>de</strong>corre em Oslo, Hamsun voltou às<br />

histórias <strong>de</strong> ambiente campestre,<br />

estival, quase numa espécie <strong>de</strong> culto<br />

panteísta – com flores, animais e<br />

pessoas em agitação febril pela<br />

quase ausência <strong>de</strong> noites –, da sua<br />

formação literária, inspirada pelo<br />

mais notável narrador norueguês da<br />

época, Bjørnstjerne Bjørnson<br />

(Prémio Nobel da Literatura em<br />

1903) – que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algumas<br />

traduções para português nos anos<br />

50, não tornou a ser por cá editado,<br />

o que é imerecido.<br />

O romance “Victoria”, que<br />

<strong>de</strong>pressa se tornou um clássico da<br />

literatura europeia – e que é pela<br />

primeira vez traduzido para a nossa<br />

língua – conta-nos a história <strong>de</strong><br />

Johannes, filho <strong>de</strong> um moleiro, e <strong>de</strong><br />

Victoria, a filha <strong>de</strong> um aristocrata<br />

que vive numa mansão próxima a<br />

que todos chamam “castelo”. Pela<br />

primeira vez na sua obra literária,<br />

Hamsun dá um passado às suas<br />

personagens; e assim o leitor<br />

acompanha alguns anos das suas<br />

vidas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final da infância até já<br />

entrados na ida<strong>de</strong> adulta. Johannes<br />

vai para a cida<strong>de</strong> e torna-se num<br />

escritor conhecido, sempre com o<br />

sonho amoroso como fonte <strong>de</strong><br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

da vida americana<br />

contemporânea - da<br />

política à raça, passando<br />

pela tecnologia, a ciência<br />

e a sexualida<strong>de</strong>”. Há<br />

já algum tempo que o<br />

autor procurava um<br />

contrato com a televisão,<br />

inspiração: “O<br />

amor é um<br />

vento que<br />

murmura nas<br />

roseiras e<br />

<strong>de</strong>pois<br />

abranda.”<br />

Todos os<br />

livros que<br />

Johannes<br />

escreve são<br />

para Victoria, ela<br />

é a musa que lhe<br />

renova o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

conquistar o seu<br />

afecto.<br />

Parece ser um amor<br />

impossível. Mas quando um dia se<br />

encontram ambos na cida<strong>de</strong>,<br />

Johannes, ao ver que Victoria traz<br />

um anel <strong>de</strong> comprometida, confessalhe<br />

o seu amor; Victoria, por sua<br />

vez, também lhe diz que o ama,<br />

apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar claro que a<br />

felicida<strong>de</strong> não é possível para os<br />

dois. Nessa noite, a inspiração chega<br />

em torrente a Johannes, que escreve<br />

até <strong>de</strong> manhã, altura em que abre a<br />

janela e canta e grita <strong>de</strong> alegria,<br />

importunando os vizinhos que ainda<br />

dormiam. “A minha inspiração era<br />

como um longo relâmpago. Uma vez<br />

vi um relâmpago que seguia ao longo<br />

<strong>de</strong> um fio telegráfico. Meu Deus, era<br />

como um campo <strong>de</strong> fogo. Da mesma<br />

maneira, as palavras fizeram uma<br />

trovoada em mim esta noite.”<br />

Este Johannes faz lembrar um<br />

pouco, em algumas passagens, a<br />

personagem meio alucinada <strong>de</strong><br />

“Fome”, os seus actos irreflectidos,<br />

fora da razão, quando se <strong>de</strong>ixa<br />

tomar pela paixão. Entretanto o<br />

tempo vai passando e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

alguma troca <strong>de</strong> ofensas entre<br />

ambos os amantes, chega o dia em<br />

que é anunciado o noivado <strong>de</strong><br />

Victoria com Otto, um jovem tenente<br />

rico que po<strong>de</strong>rá salvar da miséria a<br />

família da rapariga. Mas o <strong>de</strong>stino<br />

tem guardadas outras vonta<strong>de</strong>s…<br />

Num ambiente <strong>de</strong> “conto <strong>de</strong><br />

fadas”, Knut Hamsun consegue, com<br />

o seu génio, transformar uma<br />

história aparentemente simples<br />

numa narrativa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

intensida<strong>de</strong> psicológica e dramática.<br />

Não por tratar <strong>de</strong> um amor obsessivo<br />

e <strong>de</strong> uma possessão contrariada,<br />

mas pela maneira como expõe a<br />

essência das suas personagens<br />

(normalmente introvertidas), entre<br />

erupções frenéticas <strong>de</strong> carácter e<br />

espasmos dolorosos, para logo<br />

<strong>de</strong>pois parecerem <strong>de</strong>svanecer-se<br />

numa inesperada frieza <strong>de</strong> coração.<br />

Não foi sem razão que escritores<br />

como Thomas Mann ou Isaac<br />

Bashevis Singer consi<strong>de</strong>raram<br />

Hamsun o fundador da literatura<br />

mo<strong>de</strong>rna; “Victoria” é um bom<br />

exemplo disso, e também do arrojo<br />

(para a época) <strong>de</strong> introduzir na<br />

narrativa principal histórias<br />

paralelas (no caso, retiradas <strong>de</strong> livros<br />

que a personagem estava a<br />

escrever), fragmentando-a e<br />

a<strong>de</strong>nsando-a.<br />

e o presi<strong>de</strong>nte da divisão<br />

<strong>de</strong> entretenimento do<br />

Showtime, David Nevins,<br />

convenceu-o <strong>de</strong> que este<br />

era o canal certo, com<br />

os seus 16 milhões <strong>de</strong><br />

assinantes americanos.<br />

Faroeste<br />

Chileno<br />

Um falso Cristo muito<br />

realista e uma prostituta<br />

<strong>de</strong>masiado honrada.<br />

Milagres possíveis nos<br />

<strong>de</strong>sertos do Chile, se<br />

acreditarmos na escrita <strong>de</strong><br />

Hernán Rivera Letelier.<br />

Rui Lagartinho<br />

A Arte da Ressurreição<br />

Hernán Rivera Letelier<br />

(Trad. Francisco Gue<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Carvalho)<br />

Alfaguara<br />

mmmmn<br />

O “realismo<br />

estético”<br />

<strong>de</strong> Letelier<br />

só pô<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sabrochar<br />

porque o<br />

escritor<br />

cresceu entre<br />

os loucos, as<br />

prostitutas<br />

e os falsos<br />

Cristos que<br />

povoam a<br />

paisagem<br />

chilena<br />

Há uma<br />

elasticida<strong>de</strong><br />

surpreen<strong>de</strong>nte<br />

naquilo que um<br />

dia se <strong>de</strong>finiu<br />

como realismo<br />

mágico. Que é<br />

<strong>de</strong>monstrada<br />

sempre que um<br />

autor, em geral<br />

sul-americano, precisa <strong>de</strong> arranjar<br />

espaço para se arrumar <strong>de</strong>baixo do<br />

enorme chapéu-<strong>de</strong>-chuva que cobre<br />

o planeta literário entre o Chile e o<br />

México.<br />

Do Sul do <strong>de</strong>serto das pampas<br />

chileno chega a escrita <strong>de</strong> Hernán<br />

Rivera Letelier (Tarca, Chile, 1950)<br />

que foi <strong>de</strong>finida <strong>de</strong> uma forma<br />

engenhosa pelo próprio como<br />

“realismo estético”: escassa magia,<br />

uns pós <strong>de</strong> surrealismo (não é por<br />

acaso que um fotograma do filme<br />

“Simão do Deserto”, <strong>de</strong> Luis Buñuel,<br />

ocupa a capa do romance),<br />

paisagens áridas pontuadas por<br />

minas que parecem oásis e a maior<br />

parte das vezes se revelam pesa<strong>de</strong>lo,<br />

seres ocasionalmente com po<strong>de</strong>res<br />

divinos mas sempre <strong>de</strong>masiado<br />

humanos, humor <strong>de</strong>sconcertante,<br />

realida<strong>de</strong> nua e crua insuflada por<br />

um estilo <strong>de</strong> transcendência<br />

barroca.<br />

Tudo isto se po<strong>de</strong> encontrar em<br />

“A Arte da Ressurreição” o seu mais<br />

DANIEL MORDZINSKI<br />

34 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


ecente romance, Prémio Alfaguara<br />

2010. “Domingo Zárate Veja,<br />

conhecido por todos como o Cristo e<br />

Elqui, não tinha consciência da<br />

enorme comoção que a sua figura<br />

bíblica <strong>de</strong>spertava no ânimo das<br />

multidões que o seguiam e<br />

veneravam nas al<strong>de</strong>ias e cida<strong>de</strong>s do<br />

país, sobretudo junto dos<br />

<strong>de</strong>serdados da Terra, sempre os<br />

mais reverentes perante qualquer<br />

personificação que transmitisse um<br />

pingo <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> ou<br />

misticismo” (p. 54). Este eremita<br />

peregrino que acredita reencarnar<br />

Jesus Cristo (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, no Vale <strong>de</strong><br />

Elqui, teve uma visão logo a seguir à<br />

morte da mãe) procura uma<br />

discípula disposta a comer na sua<br />

companhia o pó das estradas. Em La<br />

Piojo, quando finalmente se<br />

encontra face a face com a mulher<br />

que as lendas da região cantavam, a<br />

prostituta Magalena Mercado,<br />

comerciante honrada capaz <strong>de</strong><br />

per<strong>de</strong>r a cabeça e trabalhar grátis<br />

solidária com os mineiros em greve,<br />

o problema parece ter sido<br />

resolvido. Desjejuam e falam <strong>de</strong><br />

amor às oito da manhã, que segundo<br />

Magalena é a hora <strong>de</strong> as pessoas<br />

<strong>de</strong>centes se levantarem: “Nem muito<br />

cedo para uma rameira nem muito<br />

tar<strong>de</strong> para uma beata.” Começa uma<br />

dialéctica <strong>de</strong> fluidos e <strong>de</strong> pérolas.<br />

Magalena apren<strong>de</strong> com o Cristo <strong>de</strong><br />

Elqui que “quando nós os crentes<br />

falamos com Deus estamos a rezar,<br />

mas quando Deus nos fala, então<br />

somos uns loucos esquizofrénicos.”<br />

Apren<strong>de</strong> também a alargar os<br />

horizontes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um país<br />

“comprido e <strong>de</strong>lgado em forma <strong>de</strong><br />

figo”. Começam as viagens e os<br />

sobressaltos, as virgens <strong>de</strong> pau que<br />

se embrulham à pressa e a que se<br />

tapam os olhos para que não vejam<br />

os pecados do mundo, o cruzamento<br />

cinematográfico com as personagens<br />

dos pequenos po<strong>de</strong>res, com o<br />

maluquinho oficial <strong>de</strong> La Piojo que<br />

aqui se chama Anónimo, o louco da<br />

Vassoura: Com a sua cabeça rapada<br />

como um moicano, as suas orelhas<br />

triangulares e o nariz adunco dos<br />

gran<strong>de</strong>s esquizofrénicos da história,<br />

mais o seu anacrónico e untuoso<br />

colete elegante que não tirava por<br />

nada nem ninguém”.<br />

Percebe-se que este realismo<br />

estético só pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>sabrochar porque<br />

o autor cresceu por aqui e guardou<br />

disso memória viva: dos loucos, das<br />

prostitutas, dos falsos Cristos que<br />

povoaram esta paisagem chilena em<br />

carne e em alma enquanto Letelier<br />

se tornava homem.<br />

Com “A Arte da Ressureição”,<br />

todo este faroeste chileno dos anos<br />

40 do século passado se agiganta em<br />

cenas épicas <strong>de</strong> conjunto <strong>de</strong>scritas<br />

realisticamente ou em personagens<br />

pícaras mais solitárias encaixadas<br />

entre a fé e a sobrevivência.<br />

Alucinadamente escaldados: “Toda<br />

a abóbada celeste era uma solidão<br />

azul, sem a mais remota<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nuvenzinha<br />

perdida, extraviada do seu rebanho<br />

branco. Era domingo na pampa e o<br />

dia, ainda cru, ameaçava ar<strong>de</strong>r por<br />

todos os lados.”<br />

Tudo o que se escreve com areia,<br />

no meio da areia, <strong>de</strong>saparece.<br />

Ensaio<br />

Nus como<br />

um ovo<br />

sem casca<br />

Primo Levi, uma das mais<br />

militantes testemunhas da<br />

experiência do Holocausto,<br />

num livro-entrevista.<br />

Maria da Conceição<br />

Caleiro<br />

O Dever <strong>de</strong> Memória<br />

Primo Levi<br />

(Trad. Esther Mucznik)<br />

Cotovia<br />

mmmmn<br />

“Sinto que é<br />

necessário<br />

recordar sempre<br />

os gran<strong>de</strong>s crimes<br />

contra a<br />

humanida<strong>de</strong>”.<br />

Essa necessida<strong>de</strong><br />

tornou-se<br />

convicção <strong>de</strong><br />

André Jorge,<br />

editor da Cotovia, que agora lança a<br />

colecção Judaica, <strong>de</strong> que “O Dever<br />

<strong>de</strong> Memória”, <strong>de</strong> Primo Levi (1919-<br />

1987), é a pedra <strong>de</strong> toque. Nome e<br />

título paradigmáticos, porque Levi<br />

(<strong>de</strong> que já foram publicadas entre<br />

nós obras até mais significativas,<br />

como “Se Isto é um Homem” ou “A<br />

Trégua”) é a testemunha por<br />

excelência. Quando regressa <strong>de</strong><br />

Auschwitz, conta incansavelmente a<br />

todos o que sofreu, para que não<br />

volte a acontecer<br />

Levi nasce no seio <strong>de</strong> uma família<br />

judia do Piemonte, assimililada,<br />

laica, se bem que lhe tenha sido<br />

transmitida alguma cultura judaica<br />

(fez o seu “bar mitzvah”, estudou<br />

um pouco <strong>de</strong> hebraico). Frequenta<br />

círculos <strong>de</strong> estudantes<br />

antifascistas, ascistas, ju<strong>de</strong>us e não ju<strong>de</strong>us.<br />

Conclui em 1941 a licenciatura em<br />

Química, constando do seu<br />

diploma a menção “<strong>de</strong> raça<br />

judaica”. Em 1942,<br />

integra o Partido <strong>de</strong><br />

Acção<br />

Clan<strong>de</strong>stina.<br />

Será preso com<br />

outros os<br />

Em “O Dever <strong>de</strong> Memória”,<br />

camaradas em<br />

Primo Levi anula-se como<br />

1943, e<br />

testemunha por excelência<br />

acabará ará do Holocausto para ser apenas<br />

levado para<br />

uma entre as muitas vítimas<br />

Auschwitz:<br />

da máquina <strong>de</strong> morte nazi<br />

Auschwitz III, Monowitz (laboratório<br />

da IG Farben). O seu conhecimento<br />

do alemão (suficiente para enten<strong>de</strong>r<br />

or<strong>de</strong>ns), o facto <strong>de</strong> ser engenheiro<br />

químico e ainda o acaso e a sorte<br />

poupam-no. Durante quase um ano,<br />

ele, corpo franzino, nunca adoece;<br />

quase no fim, quando os russos se<br />

aproximavam, em Janeiro <strong>de</strong> 45, e os<br />

alemães <strong>de</strong>struíam resquícios,<br />

contrai escarlatina, não tendo por<br />

isso acompanhado “o que restava”<br />

na Marcha da Morte.<br />

“O Dever <strong>de</strong> Memória” resulta <strong>de</strong><br />

uma entrevista que Primo Levi<br />

conce<strong>de</strong>u a Anna Bravo e Fe<strong>de</strong>rico<br />

Cereja em 1983. Ele é uma das 220<br />

vozes <strong>de</strong> <strong>de</strong>portados do Piemonte.<br />

Sendo já uma figura pública, Levi<br />

fala como uma voz que se dilui entre<br />

outras: “Para muitos <strong>de</strong> nós, ser<br />

entrevistado era uma coisa única e<br />

memorável, o acontecimento,<br />

porque <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia da libertação<br />

<strong>de</strong>u um sentido à nossa própria<br />

libertação”. Fala com muita clareza<br />

e simplicida<strong>de</strong> como se fosse<br />

“ninguém”, apagando-se: mais do<br />

que uma vez diz “nós”. Testemunha<br />

a realida<strong>de</strong> daquilo que viveu e viu.<br />

E, como se sabe, a verda<strong>de</strong> do que<br />

aconteceu e o sentido do<br />

acontecimento não coinci<strong>de</strong>m<br />

(Hannah Arendt). Anota o<br />

intestemunhável, isto é, a morte por<br />

<strong>de</strong>ntro, a morte em si, ou a morte<br />

sem morte, o silêncio do corpo<br />

anónimo caído, o muçulmano que<br />

ninguém quer ver. Levi tem<br />

consciência da especifida<strong>de</strong> do<br />

Holocausto. Não por serem mais ou<br />

menos os mortos do que nos<br />

“gulags” soviéticos, mas por terem<br />

sido fabricados cadaveres em série<br />

num processo industrial que a<br />

indústria alemã sustentava, e<br />

reciclava, uma linha <strong>de</strong> produção<br />

perfeita, a escola nazi.<br />

O autor serve-se da memória<br />

como havia acontecido na escrita <strong>de</strong><br />

“Se Isto é um Homem”. Desculpa-se<br />

pela eventualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se estar a<br />

repetir, <strong>de</strong> repisar o que vem nos<br />

seus livros que, reconhece, décadas<br />

passadas, lhe servem <strong>de</strong> memória<br />

artificial. Dar testemunho, para uma<br />

geração formada “malgré tout” na<br />

senda das Luzes, como a <strong>de</strong> Levi, foi<br />

um sinal <strong>de</strong> força <strong>de</strong> vida<br />

<strong>de</strong> um<br />

sobrevivente que não<br />

cessará talvez <strong>de</strong> se<br />

sentir culpado (terá<br />

sido essa a razão do<br />

seu suicídio em 1987) e<br />

responsável por<br />

transmitir a<br />

memória.<br />

Fazia-o nas escolas,<br />

mantinha alerta o <strong>de</strong>ver.<br />

É pungente imaginá-lo a<br />

dizer: “Já não tenho<br />

muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir às<br />

escolas. Estou<br />

cansado <strong>de</strong> ouvir as<br />

mesmas perguntas.<br />

Tenho a impressão <strong>de</strong><br />

que a minha<br />

linguagem se tornou<br />

insuficiente, <strong>de</strong> que<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 35


Livros<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

falo uma lingua diferente. E<br />

<strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>vo confessar que fiquei<br />

profundamente marcado por uma<br />

das últimas experiências. Duas<br />

crianças lançaram-me num tom sem<br />

réplica:’Porque vem mais uma vez<br />

contar-nos a sua história, 40 anos<br />

<strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>pois do Vietname, <strong>de</strong>pois<br />

dos campos <strong>de</strong> Estaline…? Fiquei<br />

encurralado na minha condição <strong>de</strong><br />

sobrevivente a todo o custo, e<br />

respondi que falava do que tinha<br />

visto”.<br />

Com os dois interlocutores, o<br />

escritor cruza, ou <strong>de</strong>ixa que se<br />

cruzem na sua voz serena, que não<br />

ajuíza, assuntos nucleares seus e que<br />

os entrevistadores suscitam. Alguns<br />

temas <strong>de</strong>sdobram-se noutros; às<br />

vezes inquieta-se, às vezes, como<br />

“bom ju<strong>de</strong>u”, respon<strong>de</strong> a uma<br />

pergunta com outra pergunta. Um<br />

dos traços aflorados é o<br />

indispensável “savoir-vivre” num<br />

campo, o não falar da morte, o não<br />

falar das câmaras <strong>de</strong> gás nem dos<br />

crematórios (Levi nunca foi a<br />

Birkenau). O pensamento da morte<br />

era recalcado, como na vida normal.<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Não havia suicídios porque o<br />

suicídio é inerente ao Homem, os<br />

animais não se suicidam: o “savoirvivre”<br />

dos campos está aquém do<br />

que se diz ser a moral, aquém <strong>de</strong><br />

qualquer solidarieda<strong>de</strong> (só se<br />

emprestava a colher, indispensável,<br />

a alguém <strong>de</strong> extrema confiança).<br />

Geria-se a sobrevivência,<br />

mantinham-se rotinas, como o<br />

escovar com as mãos a roupa. “O<br />

importante era passar o dia, o que se<br />

comia, se estava frio, saber que<br />

tarefa, que trabalho teríamos que<br />

fazer, chegar à noite, em resumo”.<br />

Sobreviver, perceber as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

corrupção, que as havia, assim como<br />

<strong>de</strong> resistência. Foi esse<br />

embotamento que permitiu a<br />

salvação, que permitiu ao homem<br />

transformar-se no não-homem<br />

(talvez por isso o <strong>de</strong>portado que<br />

sobrevive sente vergonha e culpa).<br />

Primo Levi volta a aludir aqui ao<br />

que <strong>de</strong>signou como “zona cinzenta”:<br />

o testemunho <strong>de</strong> um<br />

“son<strong>de</strong>rkommando”, um ju<strong>de</strong>u que<br />

raramente sobrevive e cuja função é<br />

retirar os corpos da câmara <strong>de</strong> gás,<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

PRO.DANÇA<br />

Companhia<br />

Olga Roriz<br />

lavá-los, retirar-lhes algum <strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

ouro e os cabelos, <strong>de</strong>pois colocá-los<br />

no crematório e limpar as cinzas.<br />

Este, Nyiszli, diz ter assistido<br />

durante uma “pausa” do seu<br />

trabalho a um jogo <strong>de</strong> futebol entre<br />

SS e membros do Son<strong>de</strong>rkommando.<br />

Quem assiste - SS e membros ju<strong>de</strong>us<br />

da equipa especial dos<br />

Son<strong>de</strong>rkommando - toma partido,<br />

aplau<strong>de</strong>, fazem-se apostas,<br />

encorajam-se os jogadores, como se<br />

ele se <strong>de</strong>senrolasse num campo da<br />

al<strong>de</strong>ia, em vez <strong>de</strong> ser às portas do<br />

inferno. É possível que alguns<br />

tenham visto neste jogo um breve<br />

momento <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> no meio<br />

<strong>de</strong> um infinito horror. “Aos meus<br />

olhos, como aos das testemunhas<br />

<strong>de</strong>sta partida, esse intervalo <strong>de</strong><br />

normalida<strong>de</strong> é, ao invés, o<br />

verda<strong>de</strong>iro horror dos campos”. A<br />

marca in<strong>de</strong>strutível da “zona<br />

cinzenta”.<br />

Alhures<br />

Do particular para o<br />

universal, encontros e<br />

<strong>de</strong>sencontros <strong>de</strong> um<br />

“déraciné”.<br />

Eduardo Pitta<br />

Um encontro<br />

Milan Kun<strong>de</strong>ra<br />

(Trad. Isabel St. Aubyn)<br />

Dom Quixote<br />

mmmmn<br />

Gosto <strong>de</strong><br />

escritores que<br />

dialogam com<br />

outras artes e, em<br />

particular, dos<br />

que se me<strong>de</strong>m<br />

com os seus<br />

pares. Um dos<br />

meus “atritos”<br />

com Torga releva<br />

do facto <strong>de</strong> só se medir com Camões.<br />

Milan Kun<strong>de</strong>ra (n. 1929) publicou em<br />

2009 uma recolha <strong>de</strong> ensaios a que<br />

chamou “Une Rencontre”. O livro foi<br />

agora traduzido, chegando às<br />

livrarias acompanhado da reedição<br />

do último romance que publicou: “A<br />

Ignorância” (2000).<br />

Exilado em França <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1975,<br />

cidadão francês <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1980,<br />

Kun<strong>de</strong>ra tornou-se mundialmente<br />

conhecido com “A Insustentável<br />

Leveza do Ser” (1984). Em Portugal<br />

estão traduzidos todos os seus<br />

romances, uma peça <strong>de</strong> teatro e dois<br />

volumes <strong>de</strong> ensaio. Na poesia <strong>de</strong>ste<br />

expatriado ainda ninguém pegou. É<br />

pena. Os poemas que publicou entre<br />

1953 e 1957 foram, naqueles anos <strong>de</strong><br />

chumbo, a resposta possível ao<br />

realismo socialista.<br />

“Um Encontro” junta reflexões<br />

sobre Bacon, Dostoiévski,<br />

Schönberg, Roth e outros. À medida<br />

que avanço na sua leitura, penso nos<br />

Milan<br />

Kun<strong>de</strong>ra, o<br />

checo francês,<br />

é aqui o<br />

ensaísta que<br />

escreve sobre<br />

Philip Roth<br />

e os “salões”<br />

franceses,<br />

Francis Bacon<br />

e Coco Chanel<br />

ensaios sobre Machado <strong>de</strong> Assis,<br />

Danilo Kis e outros que Susan Sontag<br />

juntou em “Where the Stress Falls”<br />

(2001). Em ambos, a judia <strong>de</strong><br />

Manhattan e o checo que <strong>de</strong>veio<br />

francês, o “gesto brutal” da<br />

admiração.<br />

É <strong>de</strong>sse modo que Kun<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>fine<br />

a pintura <strong>de</strong> Bacon: “Há em cada um<br />

<strong>de</strong> nós o gesto brutal, o movimento<br />

da mão que ultraja o rosto do<br />

outro...”. O que parece uma frase <strong>de</strong><br />

efeito releva da <strong>de</strong>riva totalitária.<br />

Após o malogro da Primavera <strong>de</strong><br />

Praga (1968), os intelectuais<br />

reformistas voltaram a ser<br />

perseguidos pela polícia política.<br />

Num dia <strong>de</strong> 1972, Kun<strong>de</strong>ra tem<br />

“ren<strong>de</strong>z-vous” marcado com uma<br />

rapariga que fora interrogada a seu<br />

respeito e, <strong>de</strong> repente, ela aparece à<br />

sua frente “dilacerada, como o<br />

corpo fendido <strong>de</strong> uma vitela<br />

suspensa <strong>de</strong> um gancho num talho.”<br />

Bacon obriga-o a recuar a esse dia<br />

em que quis “possuí-la por inteiro<br />

[...], o vestido impecável e as tripas<br />

em revolta, a razão e o medo, o<br />

orgulho e o infortúnio.”<br />

Os textos mais estimulantes são os<br />

que partem do particular para o<br />

universal. Como quando, a pretexto<br />

<strong>de</strong> Philip Roth (“o gran<strong>de</strong> historiador<br />

do erotismo americano... o poeta da<br />

estranha solidão do homem<br />

abandonado ao seu corpo”),<br />

Kun<strong>de</strong>ra chama a atenção para a<br />

velocida<strong>de</strong> da História, quebrando<br />

“a continuida<strong>de</strong> e a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma vida”. Ao meditar sobre<br />

Tchékhov ou Kafka, o escritor, Roth<br />

ou outro qualquer, mais do que<br />

honrar pre<strong>de</strong>cessores, preserva o<br />

“tempo passado”.<br />

O <strong>de</strong> Brno (Morávia), por exemplo.<br />

Vera Linhartová, “poetisa <strong>de</strong> uma<br />

prosa meditativa, hermética,<br />

inclassificável”, me<strong>de</strong> cada palavra:<br />

“Escolhi, pois, o país on<strong>de</strong> queria<br />

viver mas escolhi igualmente a língua<br />

que queria falar. [...] O escritor não é<br />

prisioneiro <strong>de</strong> uma única língua.”<br />

Tendo <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> ser uma escritora<br />

checa, nem por isso passou a ser uma<br />

escritora francesa. Ficou alhures,<br />

“como outrora Chopin [...] como<br />

mais tar<strong>de</strong>, cada um à sua maneira,<br />

Nabokov, Beckett, Stravinski,<br />

Gombrowicz [...], cada um vive o<br />

exílio à sua maneira inimitável...”<br />

Vera Linhartová será um caso limite.<br />

Entra aqui porque, melhor do que<br />

ninguém, “ilustra” Kun<strong>de</strong>ra.<br />

Um dos textos mais divertidos<br />

respeita às “listas negras”, norma<br />

francesa ainda em vigor (lá como cá)<br />

e “gran<strong>de</strong> paixão das vanguardas”<br />

há mais <strong>de</strong> cem anos. Quem as<br />

inventou? Os salões: “Em nenhuma<br />

parte do mundo <strong>de</strong>sempenham um<br />

papel tão importante como em<br />

França.” Por oposição a elas,<br />

Barthes figura à cabeça <strong>de</strong> todas as<br />

“listas <strong>de</strong> ouro”. Para perceber o<br />

fenómeno, Kun<strong>de</strong>ra lê o Anatole<br />

France <strong>de</strong> “Les Dieux Ont Soif”<br />

(1912), obra-prima sobre o Terror. A<br />

posterida<strong>de</strong> não lhe perdoa a<br />

imagem dos “peraltas estúpidos e<br />

fanatizados” que queimam<br />

Robespierre (o manequim que o<br />

representa) enquanto “enforcam a<br />

efígie <strong>de</strong> Marat”. Paradigma: “- Qual<br />

o seu compositor preferido? / - Saint-<br />

Saëns, não com certeza!” É só<br />

adaptar à realida<strong>de</strong> portuguesa.<br />

Aimé Césaire, quem se lembra<br />

<strong>de</strong>le? Césaire lutou contra a<br />

ocupação colonial francesa,<br />

escreveu “Cahier d’un retour au<br />

pays natal” (1939), que Breton<br />

consi<strong>de</strong>rou o maior monumento<br />

lírico do século XX, inventou a<br />

noção <strong>de</strong> negritu<strong>de</strong>, fundou a revista<br />

“Tropiques” (1941-45), moldou a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural da Martinica...<br />

Kun<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>dica-lhe páginas justas. O<br />

mesmo se diga das que, a partir do<br />

“point <strong>de</strong> vue” francês, reportam ao<br />

<strong>de</strong>sconcerto das relações da Europa<br />

com a literatura, a filosofia e a arte<br />

em geral: “É com alívio que<br />

preferimos Coco Chanel e a<br />

inocência dos seus vestidos a esses<br />

corifeus culturais [Eliot, Hei<strong>de</strong>gger,<br />

Larkin, Brecht, etc.] comprometidos<br />

com o mal do século, a sua<br />

perversida<strong>de</strong>, os seus crimes.”<br />

E mais, muito mais.<br />

Decididamente, prefiro o Kun<strong>de</strong>ra<br />

ensaísta ao ficcionista várias vezes<br />

laureado.<br />

AFP<br />

36 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


Teatro/Dança<br />

Dia<br />

Mundial<br />

do<br />

Teatro<br />

Meter ou não<br />

meter, eis<br />

a questão<br />

A PELE leva a violência<br />

doméstica ao Ciclo <strong>de</strong> Teatro<br />

do Porto?, que acaba no<br />

domingo com uma maratona<br />

<strong>de</strong> apresentações. Sara Dias<br />

Oliveira<br />

Meto a Colher?!<br />

Pela PELE. Direcção artística <strong>de</strong><br />

Hugo Cruz. Com Eva Fernan<strong>de</strong>s,<br />

João Pedro Correia, Manuel<br />

Magalhães, Maria João Mota.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Lg. do Pica<strong>de</strong>iro. Dia 27/03. Dom. das 16h15<br />

às 20h. Entrada gratuita.<br />

Ciclo <strong>de</strong> Teatro do Porto? Tar<strong>de</strong><br />

Mundial do Teatro.<br />

As diferentes formas <strong>de</strong> violência<br />

doméstica – a mulher chique que<br />

passa o tempo ao telemóvel, ou com<br />

os olhos colados às revistas <strong>de</strong> moda,<br />

sem paciência para o marido que lhe<br />

pe<strong>de</strong> atenção, ou a mulher <strong>de</strong> bata e<br />

chinelos que <strong>de</strong>finha numa banca <strong>de</strong><br />

cozinha com as constantes<br />

insinuações e reprovações do marido<br />

– acontecem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um cubo<br />

construído com plástico opaco. Lá<br />

<strong>de</strong>ntro, dois espaços distintos são<br />

alternadamente ocupados, conforme<br />

as histórias que se vão contar: uma<br />

casa pobre e uma casa rica separadas<br />

por uma mesa dividida ao meio por<br />

uma toalha, meta<strong>de</strong> branca bordada,<br />

meta<strong>de</strong> florida <strong>de</strong> plástico. Há<br />

também um can<strong>de</strong>eiro no tecto que<br />

faz essa separação entre a família rica<br />

– do computador portátil, da sala<br />

monocromática, do sofá da moda – e<br />

a família pobre – dos móveis baratos,<br />

das sacas das compras pousadas no<br />

chão, da bacia da roupa suja.<br />

“Meto a Colher?!” é uma instalação<br />

que resulta do cruzamento <strong>de</strong><br />

diversas experiências que os<br />

elementos da PELE_Espaco <strong>de</strong><br />

Contacto Social e Cultural, do Porto,<br />

tiveram ao longo dos últimos cinco<br />

anos em vários projectos - ora com<br />

vítimas, ora com agressores. Essas<br />

vivências não podiam ficar entre as<br />

quatro pare<strong>de</strong>s da Fábrica da Rua da<br />

Alegria. E assim nasceu uma<br />

performance que retrata vários<br />

episódios <strong>de</strong> violência doméstica – há<br />

também a neta que não consegue<br />

aturar o avô e a mãe que bate nos<br />

filhos - e que se apresenta este<br />

domingo, Dia Mundial do Teatro, no<br />

Teatro São Luiz, em <strong>Lisboa</strong>, das 16h15<br />

às 20h, sem interrupções. O cubo<br />

estará montado no Largo do<br />

Pica<strong>de</strong>iro. A 2 <strong>de</strong> Junho, a<br />

performance mostra-se também no<br />

FITEI – Festival Internacional <strong>de</strong><br />

Teatro <strong>de</strong> Expressão Ibérica, no<br />

Porto.<br />

Domingo é Dia<br />

Mundial do<br />

Teatro e por<br />

todo o país,<br />

<strong>de</strong> Bragança<br />

a Loulé, há<br />

espectáculos <strong>de</strong> graça (ou quase)<br />

para assinalar a data. Em <strong>Lisboa</strong>, a Companhia<br />

do Chapitô oferece ao público a entrada em<br />

“Cemitério dos Prazeres”, a nova encenação <strong>de</strong><br />

John Mowatt, com Jorge Cruz e Tiago Viegas. O<br />

espectáculo é às 22h, nas instalações do Chapitô<br />

(à Rua da Costa do Castelo).<br />

Agenda<br />

Teatro<br />

Estreiam<br />

Susana Pomba<br />

De André e. Teodósio. Pelo Teatro<br />

Praga.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Sala <strong>de</strong> Ensaio.<br />

Pç. Império. De 29/03 a 03/04. 3ª a Sáb. às 21h.<br />

Dom. às 16h. Tel.: 213612400. 10€.<br />

Ver texto na pág. 12.<br />

Seis Peças Biográficas<br />

Direcção <strong>de</strong> Rui Catalão.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Turim. Estrada <strong>de</strong> Benfica, 723 A.<br />

De 25/03 a 29/03. 2ª, 3ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Dom.<br />

às 16h. Tel.: 217606666. 6€.<br />

O Álbum <strong>de</strong> Família<br />

De Rui Herbon.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Aberto - Sala Vermelha. Pç.<br />

Espanha. De 31/03 a 29/05. 4ª a Sáb. às 21h30.<br />

Dom. às 16h. Tel.: 213880089. 7,5€ a 15€.<br />

Um Homem Falido<br />

De David Lescot. Pelos Artistas<br />

Unidos.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Instituto Franco-Português. Av. Luís Bívar,<br />

91. De 29/03 a 09/04. 3ª a Sáb. às 21h30. Tel.:<br />

213111400. 5€ a 10€.<br />

Continuam<br />

Anúncio <strong>de</strong> Morte: Álbum <strong>de</strong><br />

Família<br />

De Heiner Müller. Encenação <strong>de</strong><br />

Mónica <strong>Calle</strong>. Com Tiago Vieira.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Casa Conveniente. R. Nova do Carvalho,<br />

11. Até 03/04. 2ª a Dom. das 20h às 0h. Tel.:<br />

964407007. 7€.<br />

Ver texto na pág. 6 e segs.<br />

Frida Frida<br />

De Mónica Garcez. Pela Karnart.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria Monumental. Cp. Mártires da<br />

Pátria, 101. Até 03/04. 3ª a Dom. às 22h. Tel.:<br />

213533848. 8€ a 15€.<br />

Long Distance Hotel Revisited<br />

De Gilles Polet, Goran Sergej<br />

Pristas, Tónan Quito, entre outros.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos - Sala<br />

Principal. Av. Frei Miguel Contreiras, 52. Até 27/03.<br />

5ª a Dom. às 21h30. Tel.: 218438801. 6€ a 12€.<br />

Brilharetes<br />

De Antonio Tarantino. Encenação<br />

<strong>de</strong> Jorge Silva Melo.<br />

Cartaxo. Centro Cultural. R. 5 <strong>de</strong> Outubro. De 25/03<br />

a 26/03. 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.: 243701600. 4€.<br />

Holiday<br />

De Raimondo Cortese. Pelo Ranters<br />

Theatre.<br />

Porto. Estúdio Zero. R. Heroísmo, 86. Até 27/03.<br />

5ª a Dom. às 21h30. Tel.: 225373265. 8€.<br />

Dança<br />

Estreiam<br />

Cédric Andrieux<br />

De Cédric Andrieux, Jérôme Bel.<br />

Viseu. Teatro Viriato. Lg. Mouzinho<br />

Albuquerque. Dia 26/03. Sáb. às 21h30. Tel.:<br />

232480110. 7,5€ a 15€.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos - Sala<br />

Principal. Av. Frei Miguel Contreiras, 52. De 30/03<br />

a 31/03. 4ª e 5ª às 21h30. Tel.: 218438801. 15€.<br />

Ver texto na pág. 10 e segs.<br />

Continuam<br />

Babel<br />

De Sidi Larbi Cherkaoui, Damien<br />

Jalet.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Gran<strong>de</strong><br />

Auditório. Pç. Império. De 25/03 a 26/03. 6ª e<br />

Sáb. às 21h. Tel.: 213612400. 5€ a 20€.<br />

JM FURTADO<br />

“Meto a Colher?!”<br />

obriga o espectador<br />

a tomar uma posição<br />

acerca das histórias<br />

encenadas <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> um cubo<br />

<strong>de</strong> plástico opaco<br />

Durante quatro horas, oito<br />

famílias disfuncionais habitam esse<br />

cubo. As palavras não se ouvem,<br />

prevalece a força dos gestos e das<br />

expressões. Os diálogos fazem-se<br />

com o corpo, os olhos, o rosto, as<br />

mãos, as louças, os objectos. As<br />

histórias existem, mas o improviso é<br />

a matéria-prima dos intérpretes. Há<br />

também música ao vivo para<br />

acompanhar os passos dos actores e<br />

sons que lembram o quotidiano das<br />

varinhas mágicas, dos choros, dos<br />

aspiradores, dos <strong>de</strong>sabafos, das<br />

canções <strong>de</strong> embalar.<br />

Eva Fernan<strong>de</strong>s, João Pedro Correia,<br />

Manuel Magalhães e Maria João Mota<br />

vestem a pele <strong>de</strong>sses casais que se<br />

distanciam na violência. O resto da<br />

família pertence à comunida<strong>de</strong> local.<br />

Hoje, dois dias antes da apresentação<br />

pública, a PELE trabalhará com oito<br />

pessoas <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, que farão parte da<br />

instalação, num laboratório artístico.<br />

Meter a colher? Sim, essa é a<br />

questão. Os actores rasgam o plástico<br />

do cubo para entrar e sair e o público<br />

não entra. Para ver o que acontece, é<br />

necessário abrir as frechas <strong>de</strong>sse<br />

plástico opaco com uma colher, que é<br />

entregue por um polícia – para<br />

lembrar que a<br />

violência doméstica também é crime<br />

público. Meter ou não a colher fica,<br />

assim, à consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> quem<br />

passa. É como espreitar pelo buraco<br />

da fechadura.<br />

“O cubo é uma estrutura que<br />

simboliza a esfera privada em<br />

contraponto com a esfera pública. E<br />

quem passa vai optar por espreitar<br />

ou não espreitar, por meter ou não a<br />

colher”, refere Hugo Cruz, director<br />

artístico da PELE. “Nesta instalação,<br />

abordamos diferentes tipos <strong>de</strong><br />

violência, entre marido e mulher,<br />

entre filhos e pais, entre jovens e<br />

idosos. Há famílias pobres e ricas,<br />

para mostrar que a violência é<br />

transversal a toda a socieda<strong>de</strong>. Evitase<br />

a palavra e a violência é muito<br />

física”, acrescenta.<br />

“Meto a Colher?!” integra a Tar<strong>de</strong><br />

Mundial do Teatro que encerra o Ciclo<br />

<strong>de</strong> Teatro do Porto? do São Luiz. Além<br />

da PELE, mostrarão o seu trabalho na<br />

maratona <strong>de</strong> domingo, a partir das<br />

15h, as companhias Teatro Meia<br />

Volta..., Erva Daninha, Palmilha<br />

Dentada, Radar 360º, Teatro <strong>de</strong><br />

Ferro, Tenda <strong>de</strong> Saias e Teatro do Frio.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 37


Expos<br />

Manuela Marques monta<br />

uma coreografia do visível<br />

e do invisível a partir<br />

<strong>de</strong> um parque <strong>de</strong> São Paulo<br />

dominado pelo tráfico<br />

e pelo consumo <strong>de</strong> crack<br />

Uma<br />

exposição <strong>de</strong><br />

fotografia<br />

O prémio BESphoto alargou<br />

a sua geografia ao mundo<br />

lusófono e o resultado é<br />

sedutor. José Marmeleira<br />

BES Photo 2010<br />

De Carlos Lobo, Kiluanji Kia Henda,<br />

Manuela Marques, Mário Macilau,<br />

Mauro Restiffe.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. Império. Tel.:<br />

213612878. Até 13/06. 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª e Dom. das<br />

10h às 19h. Sáb. das 10h às 22h.<br />

Fotografia.<br />

mmmmn<br />

Lá fora<br />

Quem entrar na exposição do<br />

BESPhoto 2011, no Museu Berardo,<br />

será tentado a dizer que o Prémio tem<br />

mais “fotografia”, mais fotógrafos.<br />

Que os artistas seleccionados fazem<br />

da fotografia a sua prática central ou<br />

mesmo exclusiva. Que os trabalhos<br />

expostos (embora propondo coisas<br />

distintas) apresentam objectos ou<br />

interesses similares, como a<br />

paisagem, o real, os espaços públicos,<br />

“o exterior”.<br />

São observações legítimas. Nas<br />

obras <strong>de</strong> Carlos Lobo, Manuela<br />

Marques, Kiluanji Kia Henda, Mário<br />

Macilau e Mauro Restiffe (os<br />

seleccionados), a fotografia não é um<br />

meio entre outros. É o meio. E a tal<br />

constatação po<strong>de</strong>mos acrescentar<br />

De 1 <strong>de</strong> Junho a 5 <strong>de</strong><br />

Setembro, Leonor<br />

Antunes (<strong>Lisboa</strong>,<br />

1972) intervirá<br />

em alguns espaços<br />

do Centro <strong>de</strong> Arte<br />

Reina Sofia, em<br />

Madrid, no quadro do programa Fisuras. As suas<br />

esculturas, lê-se já no “site” do museu, revelam-se<br />

“enquanto obras, mas também como ferramentas<br />

para interpretar a natureza contingente do real”.<br />

outra: prevalece nas obras <strong>de</strong>stes<br />

artistas uma tendência mais<br />

documental/antropológica em<br />

<strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> uma outra, mais<br />

expandida ou multidisciplinar. Dito<br />

<strong>de</strong> outro modo, o BESphoto 2011 está<br />

mais “Aperture” do que “Frieze”.<br />

África é o tema nas fotografias <strong>de</strong><br />

Mário Macilau (Moçambique, 1984) e<br />

Kiluanji Kia Henda (Angola, 1979). O<br />

primeiro apresenta-se com<br />

“Maziones” (2010), que regista os<br />

rituais dos zionistas, um grupo<br />

religioso moçambicano, e “Wood<br />

Work” (2010), sobre a vida numa<br />

favela construída sobre água nos<br />

arredores <strong>de</strong> Lagos, na Nigéria. São<br />

duas séries distantes (pela cor, pelas<br />

realida<strong>de</strong>s fotografadas), mas que<br />

<strong>de</strong>svelam o envolvimento (físico e<br />

emocional) do fotógrafo com o seu<br />

objecto, coisa rara, portanto preciosa.<br />

Kiluanji Kia Henda percorre outros<br />

trilhos com “Há dias que <strong>de</strong>ixo o<br />

coração em casa...”. A sua fotografia<br />

exuberante, “preparada”, compõe<br />

uma viagem aos pesa<strong>de</strong>los e traumas<br />

<strong>de</strong> Angola ou às paisagens inusitadas<br />

do nosso mundo global (da África do<br />

Sul a Sines). Alguns trabalhos foram<br />

apresentados anteriormente, outros<br />

são inéditos e neles subsiste, num<br />

primeiro momento, um mistério, logo<br />

<strong>de</strong>rrotado pelo humor violento e<br />

caído dos títulos (“Big Bang” é a<br />

marca <strong>de</strong> um obus numa pare<strong>de</strong>,<br />

“Natureza Quase Morta” é uma<br />

paisagem <strong>de</strong>sertificada pela<br />

exploração <strong>de</strong> diamantes na região <strong>de</strong><br />

Lunda Sul) ou por certos pormenores<br />

(um letreiro, um homem a dormir na<br />

estrada). Cor e angústia.<br />

Nas fotografias <strong>de</strong> Carlos Lobo<br />

(Guimarães, 1974) também há cor, e<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

marcas da guerra, mas a angústia está<br />

fora <strong>de</strong> campo. Em vez <strong>de</strong> seguirmos<br />

a reconstrução dolorosa <strong>de</strong> uma<br />

biografia possível (<strong>de</strong> um artista ou <strong>de</strong><br />

um lugar), atravessamos, como<br />

passageiros <strong>de</strong> um “road movie”, uma<br />

cida<strong>de</strong>, Beirute, no Líbano. Não<br />

vemos imagens <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>vastação,<br />

antes o que lhe sobreviveu. Edifícios,<br />

ruas, árvores, pinturas murais<br />

resgatadas pela fotografia e<br />

introduzidas na vida do espectador:<br />

atente-se na natureza tridimensional<br />

<strong>de</strong> algumas imagens ou na resistência<br />

poética que nelas o quotidiano<br />

insinua.<br />

Manuela Marques (Ton<strong>de</strong>la, 1959) e<br />

Mauro Restiffe (Brasil, 1970) são<br />

provavelmente os artistas com as<br />

propostas mais fortes. A portuguesa<br />

monta uma coreografia do visível e do<br />

invisível a partir <strong>de</strong> um parque da<br />

cida<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong> São Paulo<br />

dominado pelo tráfico e pelo<br />

consumo <strong>de</strong> crack. O que olhamos –<br />

uma sucessão <strong>de</strong> planos picados,<br />

“close-ups” e quase sequências –<br />

nunca nos <strong>de</strong>volve, todavia, uma<br />

verda<strong>de</strong>, uma “realida<strong>de</strong>”. Há corpos<br />

que se tocam como se prestes a iniciar<br />

uma dança (na maravilhosa “Contact<br />

I”), objectos inusitados (sacos<br />

pendurados numa árvore, uma tábua<br />

<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira suspensa sobre ramos)<br />

paisagens <strong>de</strong> uma aparente placi<strong>de</strong>z<br />

que apenas se altera quando<br />

movemos o corpo para voltar a ver.<br />

As fotografias a preto e branco <strong>de</strong><br />

Mauro Restiffe operam um<br />

<strong>de</strong>slocamento temporal e, tal como as<br />

<strong>de</strong> Manuela Marques, “apropriam-se”<br />

<strong>de</strong> referências pictóricas (a pintura<br />

histórica ou <strong>de</strong> paisagem) e,<br />

sobretudo, cinematográficas.<br />

Realizadas em Acapulco, no México,<br />

cobertas <strong>de</strong> luz e <strong>de</strong> escuridão, a série<br />

“La Noche” (um campo/contracampo)<br />

e a fabulosa “Cliff Divers”<br />

podiam ser “stills” <strong>de</strong> “A Dama <strong>de</strong><br />

Xangai”, <strong>de</strong> Orson Welles. Eis uma<br />

possibilida<strong>de</strong> que encanta e<br />

confun<strong>de</strong>, ampliada pela dimensão<br />

histórica e artesanal da fotografia a<br />

preto e branco e pela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> história<br />

como paisagem, aspectos que<br />

reencontramos na série “Tlatelolco”,<br />

“travelling” <strong>de</strong>dicado à Plaza<br />

Tlatelolco da Cida<strong>de</strong> do México. É<br />

uma fotografia <strong>de</strong> uma resistência<br />

melancólica.<br />

O observatório i<strong>de</strong>al<br />

Reflexões sobre a paisagem<br />

no Pavilhão Branco do<br />

Museu da Cida<strong>de</strong>. Luísa<br />

Soares <strong>de</strong> Oliveira<br />

Aqui e Além<br />

De Michael Biberstein, Rui Sanches.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Pavilhão Branco do Museu da Cida<strong>de</strong>. Cp.<br />

Gran<strong>de</strong>, 245. Tel.: 217513200. Até 10/04. 3ª a Dom.<br />

das 10h às 18h.<br />

mmmnn<br />

Michael Biberstein e Rui Sanches<br />

Michael Biberstein,<br />

pintor, e Rui Sanches,<br />

escultor, dialogam entre<br />

si, e com a paisagem,<br />

em “Aqui e Além”<br />

necessitam <strong>de</strong> poucas<br />

apresentações. Ambos são artistas<br />

que souberam criar um percurso e<br />

uma obra importante <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

década <strong>de</strong> 80. Ambos, também,<br />

sabem que o trabalho que fazem<br />

possui um ritmo próprio, não se<br />

compa<strong>de</strong>cendo com a ânsia <strong>de</strong><br />

expor e <strong>de</strong> ocupar os primeiros<br />

lugares na plateia das artes. Assim,<br />

uma exposição <strong>de</strong> qualquer um<br />

<strong>de</strong>les ou, melhor ainda, uma<br />

exposição que resulta <strong>de</strong> um<br />

projecto em comum, como é agora o<br />

caso, é <strong>de</strong>certo razão suficiente para<br />

<strong>de</strong>spertar o interesse e as visitas.<br />

“Aqui e Além” parte, <strong>de</strong> facto, da<br />

própria iniciativa <strong>de</strong> Michael<br />

Biberstein e <strong>de</strong> Rui Sanches. O lugar,<br />

o Pavilhão Branco do Museu da<br />

Cida<strong>de</strong>, um edifício mo<strong>de</strong>rnista <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s pare<strong>de</strong>s envidraçadas sobre<br />

o jardim, adapta-se particularmente<br />

bem à obra <strong>de</strong> cada um. Biberstein,<br />

pintor, tem sistematicamente<br />

abordado o conceito <strong>de</strong> paisagem,<br />

trabalhando os limites do espaço da<br />

tela (quase sempre <strong>de</strong> dimensões<br />

consi<strong>de</strong>ráveis) e a questão da<br />

profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> campo pelo recurso<br />

a subtis evocações <strong>de</strong> nuvens e<br />

atmosferas aéreas. Quanto a Rui<br />

Sanches, escultor, convoca os<br />

géneros académicos da arte –<br />

natureza-morta, pintura <strong>de</strong> história,<br />

retrato – através da acumulação <strong>de</strong><br />

peças <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e outros materiais,<br />

operando uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>capagem<br />

das aparências para chegar ao âmago<br />

dos conceitos. Por isso, à partida,<br />

ambas as obras possuem esse<br />

<strong>de</strong>nominador comum necessário<br />

para construir diálogos, arquitectar<br />

respostas, e por fim motivar o<br />

visitante para uma reflexão sobre a<br />

pertinência actual das disciplinas e<br />

dos géneros artísticos.<br />

Assim, toda a exposição se articula<br />

nesta espécie <strong>de</strong> conversa silenciosa<br />

entre escultura e pintura, paisagem e<br />

retrato ou natureza-morta,<br />

sofisticação cromática e ru<strong>de</strong>za dos<br />

tons da ma<strong>de</strong>ira ou do metal. Se as<br />

pinturas <strong>de</strong> Biberstein quase<br />

38 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


Pedro Amaral<br />

no Museu<br />

do Neo-Realismo<br />

<strong>de</strong> Vila Franca<br />

<strong>de</strong> Xira<br />

“K”, <strong>de</strong> André<br />

Sier, na Appleton<br />

Square<br />

“Não Somos<br />

Desenhadores<br />

Perfeitos”:<br />

diários gráficos<br />

no Museu da Cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Almada<br />

Agenda<br />

sistematicamente provêm <strong>de</strong> séries já<br />

com alguns anos, as esculturas <strong>de</strong><br />

Sanches são todas recentes,<br />

<strong>de</strong>monstrando uma maior<br />

complexida<strong>de</strong> formal no seu<br />

processo <strong>de</strong> trabalho habitual. Os<br />

contraplacados, que o artista<br />

pontualmente sobrepõe em<br />

estratigrafias tridimensionais, isolamse<br />

nestas peças em caixas que<br />

multiplicam os lugares possíveis <strong>de</strong><br />

exposição no interior do pavilhão.<br />

Há, no primeiro andar, uma peça<br />

que foi feita em conjunto pelos dois<br />

artistas. Trata-se <strong>de</strong> “Aqui e Além” (o<br />

nome é o mesmo da exposição), uma<br />

instalação composta por um<br />

pequeno observatório em ma<strong>de</strong>ira,<br />

ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> troncos <strong>de</strong> árvore, on<strong>de</strong><br />

se abre uma janela sobre uma pintura<br />

<strong>de</strong> Biberstein. A parte escultórica<br />

<strong>de</strong>sta peça não possui a<br />

complexida<strong>de</strong> do trabalho <strong>de</strong><br />

Sanches, o que leva a crer numa<br />

colaboração efectiva entre ambos os<br />

artistas. Contudo, a sua disposição,<br />

mesmo em frente a uma das gran<strong>de</strong>s<br />

vidraças do edifício – e,<br />

consequentemente, do jardim<br />

oitocentista do palácio que é hoje o<br />

Museu da Cida<strong>de</strong> -, ignora por<br />

completo essa paisagem bem real<br />

que interfere com autorida<strong>de</strong> na<br />

montagem <strong>de</strong> todas as exposições<br />

que aqui se realizam. Como está,<br />

“Aqui e Além” abstrai da<br />

reconstrução minuciosa e cuidada da<br />

natureza que todo o jardim, no<br />

fundo, é, para se concentrar nas<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conjugação entre<br />

uma pintura e uma escultura que<br />

trabalham sobre a história da arte.<br />

Ou seja, dito <strong>de</strong> outro modo, esta<br />

exposição exemplifica dois modos<br />

distintos <strong>de</strong> observar a arte, embora<br />

seja feita num lugar que é, ele<br />

próprio, um observatório da<br />

paisagem. Não necessitava do<br />

Pavilhão Branco para se concretizar.<br />

A menos que esse feixe <strong>de</strong> ligações<br />

ausentes entre o lugar e as obras<br />

fique a cargo do espectador, uma<br />

presença actuante em qualquer<br />

instalação contemporânea.<br />

Inauguram<br />

Sobreimpressões. Maria<br />

Gabriela Llansol: Uma visão da<br />

Europa<br />

<strong>Lisboa</strong>. CCB - Galeria Mário Cesariny. Pç. Império.<br />

Tel.: 213612400. Até 17/04. 2ª a 6ª das 14h às 18h.<br />

Sáb., Dom. e Feriados das 14h às 20h. Inaugura<br />

27/03 às 15h.<br />

Pintura, Escultura, Fotografia, Outros.<br />

Ver texto na pág. 20 e segs.<br />

Escrever Paisagem: Manuel<br />

Baptista - Desenhos 1960-1970<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação Carmona e Costa. R. Soeiro<br />

Pereira Gomes L1 - 6º A/C/D. Tel.: 217803003. De<br />

26/03 a 28/05. 4ª a Sáb. das 15h às 20h. Inaugura<br />

26/3 às 17h.<br />

Desenho.<br />

Ver texto na pág. 31 e segs.<br />

O Passado e o Presente - Outro<br />

Olhar Sobre a Colecção do<br />

Museu do Neo-Realismo<br />

De Pedro Amaral, José Maçãs <strong>de</strong><br />

Carvalho, Carla Filipe, entre outros.<br />

Vila Franca <strong>de</strong> Xira. Museu do Neo-Realismo. R.<br />

Alves Redol, 45. Tel.: 263285626. De 26/03 a 22/05.<br />

3ª a 6ª das 10h às 19h. Sáb. das 12h às 19h. Dom.<br />

das 11h às 18h. Inaugura 26/3 às 16h.<br />

Pintura, Desenho, Escultura.<br />

K.<br />

De André Sier.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Appleton Square. R. Acácio Paiva, 27 - r/c.<br />

Tel.: 210993660. De 31/03 a 06/04. 3ª a Sáb. das<br />

15h às 20h. Inaugura 31/3 às 22h.<br />

Instalação.<br />

Continuam<br />

Livre Circulação - Obras da<br />

Colecção da Fundação <strong>de</strong><br />

Serralves<br />

De Bruce Nauman, Gerhard Richter,<br />

Helena Almeida, entre outros.<br />

Algés. Centro <strong>de</strong> Arte Manuel <strong>de</strong> Brito. Al. Hermano<br />

Patrone. Tel.: 214111400. De 19/03 a 30/06. 3ª a<br />

Dom. das 11h30 às 18h.<br />

Pintura, Escultura, Desenho, Ví<strong>de</strong>o.<br />

Família<br />

De Vasco Araújo.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Ermida <strong>de</strong> Nossa Senhora da Conceição. Tv.<br />

Marta Pinto, 12. Tel.: 213637700. De 19/03 a 15/05.<br />

3ª a 6ª das 11h às 17h. Sáb. e Dom. das 14h às 18h.<br />

Desenho.<br />

1+1+1=3<br />

De Hermann Pitz, Michael Snow,<br />

Bernard Voïta.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Culturgest. R. Arco do Cego. Tel.: 217905155.<br />

Até 08/05. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª das 11h às 19h. Sáb., Dom.<br />

e Feriados das 14h às 20h.<br />

Fotografia, Ví<strong>de</strong>o.<br />

Gedi Sibony<br />

<strong>Lisboa</strong>. Culturgest. R. Arco do Cego - Ed. da CGD.<br />

Tel.: 217905155. Até 08/05. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª das 11h às<br />

19h. Sáb., Dom. e Feriados das 14h às 20h.<br />

Instalação.<br />

Observadores - Revelações,<br />

Trânsitos e Distâncias<br />

De Vito Acconci, Augusto Alves da<br />

Silva, João Onofre, entre outros.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. Império. Tel.:<br />

213612878. Até 29/05. Sáb. das 10h às 22h. 2ª a 6ª,<br />

Dom. e Feriados das 10h às 19h.<br />

Pintura, Escultura, Instalação, Ví<strong>de</strong>o.<br />

O Modo Como Não Foi<br />

Porto. Culturgest. Av. dos Aliados, 104 - Ed. da CGD.<br />

Tel.: 222098116. Até 16/04. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª das 11h às<br />

19h. Sáb., Dom. e Feriados das 14h às 20h.<br />

Documental, Outros.<br />

My Choice - Obras Seleccionadas<br />

por Paula Rego na Colecção do<br />

British Council<br />

De David Hockney, Madame<br />

Yevon<strong>de</strong>, Lucian Freud, entre outros.<br />

Cascais. Casa das Histórias - Paula Rego. Av. da<br />

República, 300. Tel.: 214826970. Até 12/06. 2ª a<br />

Dom. das 10h às 18h.<br />

Pintura, Fotografia, Outros.<br />

Lecture/Audience/Camera<br />

De Wen<strong>de</strong>lien van Ol<strong>de</strong>nborgh.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Carpe Diem Arte e Pesquisa. R. <strong>de</strong> O Século,<br />

79. Até 21/05. 4ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />

Ví<strong>de</strong>o, Instalação.<br />

Os Jardins <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />

De Gabriela Machado.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Carpe Diem Arte e Pesquisa. R. <strong>de</strong> O Século,<br />

79. Até 21/05. 4ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />

Pintura.<br />

The Best of All Possible World<br />

De Bettina Lockemann, Claudia<br />

Fischer, entre outros.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Carpe Diem Arte e Pesquisa. R. <strong>de</strong> O Século,<br />

79. Até 21/05. 4ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />

Fotografia, Ví<strong>de</strong>o.<br />

Paisagens VI<br />

De Maria Caldas Ribeiro.<br />

Porto. Serpente - Galeria <strong>de</strong> Arte Contemporânea.<br />

Rua Miguel Bombarda, 558. Tel.: 226099440. Até<br />

16/04. 3ª a Sáb. das 15h às 19h.<br />

Pintura.<br />

Mundo Aardman<br />

Vila do Con<strong>de</strong>. Solar - Galeria <strong>de</strong> Arte Cinemática.<br />

Tel.: 252646516. Até 05/06. 3ª a 6ª das 10h às 18h.<br />

Desenho, Objectos, Outros.<br />

Detritos<br />

De Alexandre Farto.<br />

Porto. Galeria Presença. R. Miguel Bombarda, 570.<br />

Tel.: 226060188. Até 23/04. 2ª a 6ª das 10h às<br />

19h30. Sáb. das 15h às 19h30.<br />

Instalação, Outros.<br />

Porto Interior<br />

De Inês d’Orey.<br />

Porto. Centro Português <strong>de</strong> Fotografia Cp. Mártires<br />

da Pátria. Tel.: 222076310. Até 15/05. 3ª a 6ª das<br />

10h às 18h. Sáb., Dom. e Feriados das 15h às 19h.<br />

Fotografia.<br />

Porto Íntimo<br />

De Aurélio Paz dos Reis.<br />

Porto. Centro Português <strong>de</strong> Fotografia. Cp. Mártires<br />

da Pátria. Tel.: 222076310. Até 15/05. 3ª, 4ª, 5ª e 6ª<br />

das 10h às 18h. Sáb., Dom. e Fer. das 15h às 19h.<br />

Fotografia.<br />

Operações Especiais<br />

De Jorge Mol<strong>de</strong>r.<br />

Castelo Branco. Antigo Edifício dos CTT. Lg. da Sé.<br />

Até 15/05. 2ª a 6ª das 14h às 19h. Sáb. e Dom. das<br />

10h às 19h.<br />

Fotografia.<br />

Quatro<br />

De Sofia Areal, Manuel Casimiro,<br />

Jorge Martins, Nikias Skapinakis.<br />

Aveiro. Museu. Av. Santa Joana. Tel.: 234423297.<br />

Até 30/04. 3ª a Dom. das 10h às 17h30.<br />

Pintura.<br />

Makulatur<br />

De Paulo Nozolino.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria Quadrado Azul. Lg. Stephens, 4.<br />

Tel.: 213476280. Até 21/04. 3ª a Sáb. das 13h às 20h.<br />

Fotografia.<br />

Muros <strong>de</strong> Abrigo<br />

De Ana Vieira.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Centro <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna - José <strong>de</strong> Azeredo<br />

Perdigão. R. Dr. Nicolau Bettencourt. Tel.:<br />

217823474. Até 03/04. 3ª a Dom. das 10h às 18h.<br />

Instalação, Outros.<br />

Diários Gráficos Em Almada:<br />

Não Somos Desenhadores<br />

Perfeitos<br />

De Clara Marta, Eduardo Salavisa,<br />

Francisco Vidal, entre outros.<br />

Cova da Pieda<strong>de</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Almada. Pç.<br />

João Raimundo. Tel.: 212734030. Até 16/04. 3ª a<br />

Sáb. das 10h às 18h.<br />

Desenho.<br />

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT; TEL: 213 257 640<br />

SÃO<br />

LUIZ<br />

ABR~11<br />

BILHETES À VENDA EM WWW.TEATROSAOLUIZ.PT,<br />

WWW.BILHETEIRAONLINE.PT E ADERENTES<br />

BILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00<br />

TEL: 213 257 650 / BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

14 A 17 ABR<br />

QUINTA A SÁBADO ÀS 21H00<br />

DOMINGO ÀS 17H30<br />

SALA PRINCIPAL M/6<br />

TEXTO<br />

JOÃO MONGE<br />

MÚSICA<br />

ALFREDO MARCENEIRO<br />

MÚSICA INCIDENTAL, ARRANJOS<br />

E DIRECÇÃO MUSICAL<br />

JOSÉ PEIXOTO<br />

ENCENAÇÃO<br />

MARIA JOÃO LUÍS<br />

INTERPRETAÇÃO<br />

MANUELA AZEVEDO<br />

MARIA JOÃO LUÍS<br />

www.teatrosaoluiz.pt<br />

CO-PRODUÇÃO<br />

estrutura apoiada por<br />

APOIO À DIVULGAÇÃO<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 39


Discos<br />

Clássica<br />

Viagem<br />

intemporal<br />

A violoncelista Sonia<br />

Wie<strong>de</strong>r-Atherton constrói<br />

uma dramaturgia sonora<br />

que convoca contrastes e<br />

afinida<strong>de</strong>s entre o século<br />

XVI e o século XX. Cristina<br />

Fernan<strong>de</strong>s<br />

Vita<br />

Monteverdi / Scelsi<br />

Sonia Wie<strong>de</strong>r-Atherton<br />

Naïve<br />

mmmmn<br />

O primeiro nome<br />

avançado para o Festival<br />

Med, que <strong>de</strong>corre em Loulé<br />

entre 22 e 25 <strong>de</strong> Junho,<br />

escon<strong>de</strong>, afinal, dois<br />

nomes: a Balkan Brass<br />

Battle (que é como quem<br />

diz duas orquestras <strong>de</strong><br />

sopros balcânicas numa<br />

batalha em palco) coloca<br />

No seu último<br />

disco, a<br />

violoncelista<br />

francesa Sonia<br />

Wie<strong>de</strong>r-Atherton,<br />

que se apresenta<br />

amanhã na Culturgest, combina com<br />

audácia a música <strong>de</strong> dois<br />

compositores separados por quatro<br />

séculos: Claudio Monteverdi (1567-<br />

1643), a figura que inaugura com<br />

enorme pujanaça criativa a era do<br />

barroco musical ao mesmo tempo<br />

que sintetiza a tradição herdada, e<br />

Giacinto Scelsi (1905-1988), uma<br />

personalida<strong>de</strong> isolada na música<br />

do século XX, com um percurso<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das correntes<br />

mais em voga, apaixonado pelas<br />

culturas orientais e<br />

pelas exploração<br />

das qualida<strong>de</strong>s<br />

intrínsecas do<br />

som.<br />

1638) e um excerto da ópera<br />

“L’Incoronazione di Poppea” foram<br />

objectos <strong>de</strong> arranjos para trio <strong>de</strong><br />

violoncelos realizados pela própria<br />

Sonia Wie<strong>de</strong>r-Atherton e por Franck<br />

Krawczyk e são intercalados com<br />

andamentos da trilogia “As Três<br />

Ida<strong>de</strong>s do Homem”, <strong>de</strong> Scelsi<br />

(“Triphon”, “Dithome” e “Ygghur”).<br />

A violoncelista constrói uma<br />

dramaturgia à qual une a história <strong>de</strong><br />

duas personagens <strong>de</strong> tempos<br />

diferentes (a Angioletta dos madrigais<br />

<strong>de</strong> Monteverdi e a Angel do<br />

imaginário <strong>de</strong> Scelsi). A combinação<br />

é pouco convencional, mas é<br />

sustentada pela profundida<strong>de</strong><br />

emocional e pela ousadia da<br />

linguagem.<br />

Mais do que possíveis traços<br />

comuns na sensibilida<strong>de</strong> estética dos<br />

dois compositores, é a abordagem<br />

interpretativa que dá coerência a este<br />

diálogo <strong>de</strong> tempos diferentes. Logo<br />

no início, com a famosa “Lettera<br />

amorosa”, <strong>de</strong> Monteverdi, Wie<strong>de</strong>r-<br />

Atherton faz o violoncello cantar e<br />

falar em múltiplas inflexões,<br />

discretamente acompanhado por<br />

Sarah Iancu e Matthieu Lejeune,<br />

enquanto nos madrigais o trio<br />

estabelece um vivo diálogo. Sempre<br />

presente encontra-se a tentativa <strong>de</strong><br />

esculpir o som numa abordagem que<br />

é mais intemporal do que a procura<br />

das raízes estilísticas <strong>de</strong> Monteverdi.<br />

É porém nos fragmentos <strong>de</strong> Scelsi<br />

que Sonia Wie<strong>de</strong>r-Atherton é mais<br />

convincente, mostrando uma técnica<br />

apurada e a forte afinida<strong>de</strong> com a<br />

música do século XX que faz <strong>de</strong>la a<br />

<strong>de</strong>stinatária <strong>de</strong> tantas obras<br />

contemporâneas. A varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

técnicas e efeitos usados por Scelsi —<br />

diversos tipos <strong>de</strong> “vibrato”, gran<strong>de</strong>s<br />

saltos melódicos, distorção do som<br />

com a ajuda <strong>de</strong> uma surdina <strong>de</strong><br />

metal, “scordatura”, polifonias com<br />

espectros harmónicos fora do vulgar,<br />

etc. — é integrada num discurso<br />

fluído e contínuo, que por vezes<br />

atinge a imaterialida<strong>de</strong>, mergulhando<br />

o ouvinte num universo misterioso.<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

baleia” em “É isso<br />

aí”, o álbum <strong>de</strong><br />

estreia, os que<br />

confundiram e<br />

entusiasmaram em<br />

medidas iguais,<br />

chamam ao novo disco “Pintura<br />

Mo<strong>de</strong>rna”. Porém, não <strong>de</strong>vemos<br />

esperar <strong>de</strong>les o enunciar <strong>de</strong> um<br />

programa estético a cumprir para,<br />

<strong>de</strong>sculpem-nos o termo técnico,<br />

“partir esta merda toda”.<br />

Esta música <strong>de</strong> sintetizadores e<br />

vozes em alvoroço (principalmente a<br />

<strong>de</strong> Pedro Magina, que se expõe sem<br />

receio), esta amálgama <strong>de</strong> memórias<br />

sonoras que nos assalta <strong>de</strong> forma<br />

difusa, qual caleidoscópio <strong>de</strong><br />

referências que nunca<br />

<strong>de</strong>scodificaremos <strong>de</strong>vidamente (e<br />

por isso apreciamos a vista e<br />

seguimos em frente: consegui-lo é<br />

gran<strong>de</strong> parte do segredo dos<br />

Aquaparque), não necessita <strong>de</strong><br />

legenda aposta às canções para ser<br />

legitimada e fruída. Estas nove<br />

canções, mais essa <strong>de</strong>lícia anacrónica<br />

chamada faixa escondida, é uma<br />

peça pop na melhor tradição<br />

progressista do género.<br />

O ambiente criado pelos<br />

sintetizadores aponta aos anos 80 <strong>de</strong><br />

sofisticação, por exemplo, Roxy<br />

Music – mas não é nada disso. A<br />

guitarra <strong>de</strong> André Abel ora tem a<br />

ternura da nostalgia revisitada do<br />

“Sonho azul” <strong>de</strong> Né La<strong>de</strong>iras, ora se<br />

refugia em melancolia bucólica – mas<br />

também não é nada disso. Os loops<br />

corroem a placi<strong>de</strong>z pop e rasgam o<br />

fato muito elegante, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sign<br />

impecável, <strong>de</strong> cada uma das canções,<br />

atirando senhores muito bem<br />

<strong>de</strong>scansados ao pôr-do-sol <strong>de</strong> um dia<br />

<strong>de</strong> Verão para caves on<strong>de</strong> ressoa<br />

pelas pare<strong>de</strong>s a electrónica mais<br />

p p p ç<br />

frente a frente a romena<br />

Fanfare Ciocarlia e a sérvia<br />

Boban & Marko Markovic<br />

Orchestra. Por uma questão<br />

<strong>de</strong> orgulho,<br />

nenhuma<br />

quer fazer<br />

a primeira<br />

parte da<br />

outra e,<br />

Festival<br />

Med<br />

exploratória do nosso século – e, não,<br />

ainda não é isto. Os Aquaparque que<br />

nos diziam “É isso aí!” não são<br />

exactamente nada daquilo.<br />

Sanguíneos e sedutores,<br />

introspectivos ou exuberantes,<br />

Variações ou Brian Ferry ou Ariel<br />

Pink ou Panda Bear, surpreen<strong>de</strong>m<br />

por serem pau na engrenagem da<br />

genealogia pop, obrigando-nos a<br />

rever as certezas, e surpreen<strong>de</strong>m<br />

pela lírica, tão evocativa quanto fora<br />

da norma – prova 1: “por sermos tão<br />

inibidos, trengos coloridos /<br />

passamos sem ninguém nos ver a<br />

ficar parados”, em “Ultra suave”;<br />

prova 2: “o teu corpo tem-te feito<br />

bem? Tens cumprido com o teu<br />

corpo? Tens seduzido alguém com o<br />

teu corpo?”, em “Castigo o teu<br />

nudismo”.<br />

Tudo somado? A langui<strong>de</strong>z da<br />

harmónica em “Espelhado no céu”,<br />

<strong>de</strong>z minutos <strong>de</strong> canção pop que é<br />

porta <strong>de</strong> entrada perfeita em “Pintura<br />

Mo<strong>de</strong>rna”. A classe do single “Para<br />

além do bronze”, daquelas músicas<br />

que tanto po<strong>de</strong>ríamos apresentar à<br />

mãe como ao amigo criador <strong>de</strong><br />

Brooklyn. A carga visceral <strong>de</strong><br />

“Esperar que sim”, crescendo em<br />

fúria até <strong>de</strong>saparecer abruptamente<br />

(que faremos com aquele zumbido<br />

que nos fica?), e o tropicalismo digital<br />

<strong>de</strong> “Emblema”, que celebra calor e<br />

luxúria e que avança até se<br />

transformar em tecno mutante<br />

enfurecido - o conforto é muito<br />

bonito mas os Aquaparque não nos<br />

querem <strong>de</strong>masiado confortáveis. E<br />

ainda bem. Ainda bem que existe esta<br />

“Pintura Mo<strong>de</strong>rna”. Pop nova que<br />

não está interessada em afirmá-lo. De<br />

facto, a existência <strong>de</strong>stas canções é<br />

mais do que suficiente enquanto<br />

proclamação <strong>de</strong>ssa evidência.<br />

Sonia Wie<strong>de</strong>r<br />

Atherton, uma<br />

fortíssima<br />

executante<br />

da música<br />

do século XX,<br />

está amanhã<br />

na Culturgest<br />

Madrigais<br />

do VIII<br />

Livro <strong>de</strong><br />

Monteverdi<br />

(“Madrigali<br />

guerrieri ed<br />

amorosi”,<br />

Pop<br />

O sereno<br />

alvoroço dos<br />

Aquaparque<br />

Uma peça pop na melhor<br />

tradição progressista do<br />

género. Mário Lopes<br />

ENRIC VIVES-RUBIO<br />

Aquaparque<br />

Pintura Mo<strong>de</strong>rna<br />

Aquaboogie; distri. Mbari<br />

mmmmn<br />

Não percamos tempo a chamar novo<br />

ao que novo é. Os Aquaparque, os<br />

que gravaram “De <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />

Sanguíneos e sedutores, introspectivos ou exuberantes,<br />

os Aquaparque do segundo álbum continuam a fazer uma pop<br />

completamente nova


portanto, sobem juntas<br />

ao palco. Tocam na noite<br />

<strong>de</strong> encerramento do Med,<br />

passando antes pela Casa<br />

da Música, Porto, a 17 <strong>de</strong><br />

Maio, e <strong>de</strong>pois por <strong>Lisboa</strong>,<br />

a 24 <strong>de</strong> Junho. No final,<br />

diz-se que o público <strong>de</strong>verá<br />

pronunciar um vencedor.<br />

The Vaccines: tínhamos sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um álbum <strong>de</strong> guitarras <strong>de</strong>scomprometido, honesto e mo<strong>de</strong>radamente talentoso<br />

ROGER SARGENT<br />

VANDA NORONHA<br />

Mais do que assinalar on<strong>de</strong> estão Os Golpes, “G” aponta para on<strong>de</strong> vão<br />

Vá lá,<br />

senhores<br />

Ouvir o álbum intermédio<br />

d’Os Golpes é como espreitar<br />

para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um comboio<br />

em andamento. Gonçalo<br />

Frota<br />

Os Golpes<br />

G<br />

AmorFúria; distri. Arthouse<br />

mmmnn<br />

Eles sabiam que ia<br />

correr bem. Só não<br />

sabiam quanto.<br />

Sabiam que “Vá lá<br />

senhora” não era<br />

uma canção como<br />

as outras, que algo a dotava <strong>de</strong> armas<br />

mais capazes para se bater na<br />

fratricida luta pelo espaço hertziano.<br />

E sabiam que ter Rui Pregal da Cunha<br />

– o há muito ausente dos palcos exvocalista<br />

dos Heróis do Mar, LX-90 e<br />

Kick Out the Jams – traria sobre eles<br />

uma atenção redobrada. Mas não<br />

sabiam que a música se enrolaria <strong>de</strong><br />

tal forma nos ouvidos dos<br />

portugueses (essa entida<strong>de</strong> abstracta<br />

a que só se referem discursantes<br />

políticos e participantes em “reality<br />

shows”) que acabariam 2010 a tocá-la<br />

na Gala <strong>de</strong> Natal da TVI ou a partilhála<br />

com os alunos da Operação<br />

Triunfo. Não sabiam tanto.<br />

“G”, um momento <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scompressão entre o primeiro e o<br />

segundo álbum, e <strong>de</strong> oferta limitada<br />

para os fãs, ganhou a sua própria<br />

ambição e não se satisfez com a<br />

condição <strong>de</strong> filho menor que o<br />

formato EP lhe conferia. Não sendo<br />

propriamente um álbum <strong>de</strong> pleno<br />

direito, “inchou” duas músicas – a<br />

versão que agora segue para as lojas<br />

junta aos cinco temas iniciais uma<br />

versão e um inédito – e é bem capaz<br />

<strong>de</strong> ser o único material novo que<br />

vamos ouvir aos Golpes durante 2011.<br />

É como espreitar para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

comboio em andamento e perceber o<br />

que se passa lá <strong>de</strong>ntro. Ou seja: muito<br />

embora se faça valer <strong>de</strong> trunfos como<br />

“Vá lá senhora” e conte com uma<br />

óptima visita ao tema popular “Tenho<br />

barcos, tenho remos” (conforme<br />

cantado por Zeca Afonso), a verda<strong>de</strong><br />

é que não são as novas “Paixão” (dos<br />

Heróis do Mar) e “A Brasileira” a<br />

aproximar “G” da mesma<br />

consistência <strong>de</strong> álbum que tinha<br />

“Cruz Vermelha Sobre Fundo<br />

Branco”. Percebe-se que este não será<br />

este um ponto <strong>de</strong> chegada, mas antes<br />

um estudo e um ensaio bastante<br />

acabados daquilo que se imagina vir a<br />

ser o segundo álbum do grupo.<br />

Mas há uma dose <strong>de</strong> audácia e<br />

mesmo <strong>de</strong> insolência que <strong>de</strong>vemos<br />

saudar n’Os Golpes. A versão <strong>de</strong><br />

“Paixão”, evoluída a partir daquela<br />

que prepararam para os concertos <strong>de</strong><br />

apresentação, brinca com o fogo,<br />

como é evi<strong>de</strong>nte. Sendo bastante<br />

digna e suficientemente<br />

personalizada (mais a<strong>de</strong>quada para<br />

palcos <strong>de</strong> guitarra em punho do que<br />

para as discotecas <strong>de</strong> keytar –<br />

também conhecido por teclado à Da<br />

Vinci – à tiracolo), a verda<strong>de</strong> é que Os<br />

Golpes já têm em si suficiente <strong>de</strong><br />

Heróis do Mar para que a escolha<br />

possa soar redundante e incapaz <strong>de</strong><br />

tocar a alta fasquia do original.<br />

“G” é, ainda assim, um motivo<br />

pertinente para percebermos por<br />

on<strong>de</strong> andam estes Golpes que<br />

apareceram a unir o pop/rock<br />

português dos anos 80 ao rock novaiorquino<br />

dos anos 00 (ler: The<br />

Strokes). Mais do que isso até, serve<br />

mais para anteciparmos para on<strong>de</strong><br />

vão.<br />

Adriana Calcanhotto<br />

O Micróbio do Samba<br />

Valentim <strong>de</strong> Carvalho<br />

mmmmn<br />

Se há micróbios<br />

bem-vindos, este é<br />

um. Adriana<br />

Calcanhotto assina<br />

um disco<br />

inspirado, simples<br />

e complexo a um só tempo, que exala<br />

uma subtil frescura e que a cada<br />

audição se torna quase viciante. O<br />

que ela queria dizer através do<br />

samba, disse-o sem mimetizar as<br />

bases tradicionais do género. E no<br />

entanto o samba está lá, é ele o<br />

micróbio. Sob as inteligentes<br />

camadas sonoras construídas por<br />

Adriana (que toca violão, caixa <strong>de</strong><br />

fósforos, cuíca, ban<strong>de</strong>ja <strong>de</strong> chá e até<br />

uma guitarra eléctrica à beira da<br />

distorção em “Po<strong>de</strong>-se remoer”) e<br />

pelos seus dois fantásticos<br />

companheiros <strong>de</strong> aventura:<br />

Domenico Lancellotti em múltiplas<br />

percussões (o bombo da bateria<br />

trocou-o por um surdo <strong>de</strong>itado e essa<br />

mudança é daquelas que marcam<br />

positivamente o disco) e Alberto<br />

Continentino no contrabaixo. Além<br />

<strong>de</strong> participações pontuais <strong>de</strong> Davi<br />

Moraes (guitarra, cavaquinho e viola<br />

“morna”), Rodrigo Amarante<br />

(guitarra) e Moreno Veloso (prato e<br />

faca). Nas canções, Adriana<br />

<strong>de</strong>smultiplica-se em vozes alheias, <strong>de</strong><br />

mulheres mas também a <strong>de</strong> um<br />

homem, porque o samba é um teatro<br />

<strong>de</strong> personagens e histórias e foi assim<br />

que ela se entregou ao samba sem<br />

ser, nem querer ser, sambista. Como<br />

ela diz em “Eu vivo a sorrir”, que está<br />

a ser usada como canção-chave do<br />

trabalho, o acaso estava num bom dia<br />

quando Adriana <strong>de</strong>cidiu fazer um<br />

disco assim. Quem o ouvir perceberá<br />

porquê. Nuno Pacheco<br />

Adriana Calcanhotto<br />

entregou-se ao samba<br />

sem ser (nem querer<br />

ser) sambista<br />

The Vaccines<br />

What Did You Expect From The<br />

Vaccines?<br />

Columbia; distri. Sony Music<br />

mmmnn<br />

Os Vaccines fazemnos<br />

acreditar<br />

novamente na<br />

Inglaterra pop com<br />

guitarras em<br />

frutuosa animação,<br />

memória histórica bem trabalhada e<br />

discurso ora angustiado, ora altivo<br />

sobre as gran<strong>de</strong>s questões da<br />

juventu<strong>de</strong> e, consequentemente da<br />

Humanida<strong>de</strong>: “A lack of<br />

un<strong>de</strong>rstanding” e “Post break-up<br />

GILDA-MIDANI<br />

sex”, títulos <strong>de</strong> duas<br />

canções, resumem parte da coisa -<br />

andávamos há muito órfãos disto,<br />

mergulhados no mar <strong>de</strong> inanida<strong>de</strong>s<br />

que se suce<strong>de</strong>ram aos Libertines, já lá<br />

vai quase uma década.<br />

Ora o quarteto londrino, erguido a<br />

“next big thing” pela imprensa<br />

britânica, não reinventa a roda neste<br />

álbum <strong>de</strong> estreia. Limita-se a ser<br />

absurdamente clássico, bebendo o<br />

indispensável dos Un<strong>de</strong>rtones ou dos<br />

Jam e transformando-o em canções<br />

com a energia rock’n’roll e a sageza<br />

pop necessárias para entusiasmar os<br />

nossos corações se<strong>de</strong>ntos <strong>de</strong> um<br />

pedaço da “good old Brittania”.<br />

Dancemos então: “It’s ok if you<br />

wanna come back to me”.<br />

Entreguemo-nos à aceleração <strong>de</strong><br />

guitarras reverberantes <strong>de</strong><br />

“Norgaard”. Confirmemos que este<br />

pessoal sabe da arte da simplicida<strong>de</strong>:<br />

está tudo em “Post break-up sex”,<br />

cruzamento do <strong>de</strong>sencanto dos<br />

Smiths com o aborrecimento<br />

afectado dos Strokes.<br />

Não é <strong>de</strong>slumbrante a propalada<br />

“next big thing”? Pois não. Mas é o<br />

suficiente para nos fazer acreditar<br />

que, porra, tínhamos sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

um álbum pop <strong>de</strong> guitarras, vindo<br />

daqueles lados, que fosse<br />

<strong>de</strong>scomprometido, honesto e<br />

mo<strong>de</strong>radamente talentoso.<br />

Celebremos então. Mo<strong>de</strong>radamente.<br />

Mas celebremos. M.L.<br />

Jazz<br />

A forma das<br />

estrelas<br />

Regresso <strong>de</strong> Rob Mazurek<br />

e banda com novo registo<br />

superlativo. Rodrigo<br />

Amado<br />

Exploding Star Orchestra<br />

Stars Have Shapes<br />

Delmark<br />

mmmmn<br />

O trompetista Rob<br />

Mazurek dirige<br />

a orquestra mais<br />

“cool” do planeta<br />

Utilizando <strong>de</strong><br />

forma quase<br />

imperceptível<br />

gravações <strong>de</strong><br />

campo que<br />

incluem o<br />

som da chuva a<br />

cair na Amazónia brasileira, o<br />

som <strong>de</strong> bicicletas em Copenhaga, o<br />

ruído <strong>de</strong> insectos, ou a sobreposição<br />

<strong>de</strong> inúmeros trompetes processados<br />

por filtros analógicos, e integrando<br />

esses elementos numa sofisticada e<br />

orgânica orquestra <strong>de</strong> 14 elementos,<br />

o trompetista e compositor norteamericano<br />

Rob Mazurek dá<br />

continuida<strong>de</strong> à construção <strong>de</strong> um<br />

universo sonoro que é só seu.<br />

Originário <strong>de</strong> Chicago e actualmente<br />

a residir no Brasil, Mazurek é o<br />

mentor e impulsionador <strong>de</strong> projectos<br />

tão variados quanto os Isotope 217, as<br />

constelações em duo, trio ou<br />

quarteto dos Chicago Un<strong>de</strong>rground,<br />

ou ainda esta Exploding Star<br />

Orchestra, com a qual gravou já os<br />

extraordinários “We Are All From<br />

Somewhere Else” e “Bill Dixon &<br />

Exploding Star Orchestra”. Reunindo<br />

alguns dos mais vibrantes músicos da<br />

cena <strong>de</strong> Chicago – entre eles a<br />

flautista Nicole Mitchell, o saxofonista<br />

Matt Bau<strong>de</strong>r, o trombonista Jeb<br />

Bishop, o clarinetista Jason Stein, ou<br />

o baterista Mike Reed –, Mazurek<br />

contrói um álbum feito <strong>de</strong> ambientes<br />

cinematográficos e puras texturas<br />

sonoras on<strong>de</strong> se acumulam, em<br />

sucessivas camadas <strong>de</strong> som, as<br />

referidas gravações <strong>de</strong> campo,<br />

drones <strong>de</strong> origem misteriosa,<br />

“feedbacks” analógicos e frequências<br />

geradas por maquinaria digital. Sons<br />

que povoam um expectro sonoro que<br />

é <strong>de</strong>pois invadido pelos instrumentos<br />

acústicos em arranjos que privilegiam<br />

o todo e nunca o discurso solista. Aos<br />

nove minutos do primeiro tema,<br />

“Ascension ghost impression #2”,<br />

surge um arranjo clássico <strong>de</strong><br />

orquestra, que po<strong>de</strong>ria bem ser a <strong>de</strong><br />

Glenn Miller, perturbando por breves<br />

momentos o maelstrom sónico que<br />

caracteriza todo o registo. Sem<br />

atingir a excelência dos dois registos<br />

anteriores, “Stars Have Shapes” não<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma<br />

adição notável à<br />

discografia<br />

da<br />

orquestra<br />

mais<br />

“cool”<br />

do<br />

planeta.


Concertos<br />

AGENDA CULTURAL FNAC<br />

entrada livre<br />

AO VIVO<br />

CUCA ROSETA<br />

01.04. 22H00 FNAC CASCAISHOPPING<br />

Todos os eventos culturais FNAC em http://cultura.fnac.pt<br />

Ver Ricardo Rocha sozinho em palco, com a sua genial guitarra<br />

portuguesa, é um acontecimento para lá <strong>de</strong> bissexto<br />

Pop<br />

A guitarra<br />

imperdível<br />

<strong>de</strong> Ricardo<br />

Rocha<br />

Um génio da guitarra<br />

portuguesa num concerto<br />

raro. Mário Lopes<br />

Ricardo Rocha<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos - Sala<br />

Principal. Av. Frei Miguel Contreiras, 52. 3ª, 29, às<br />

22h. Tel.: 218438801. 6€ a 12€.<br />

Ricardo Rocha é um génio da<br />

guitarra portuguesa e não <strong>de</strong>vemos<br />

ter qualquer pudor em afirmá-lo.<br />

“Volupturária” e “Luminismo”, os<br />

seus álbuns a solo, aqueles em que<br />

<strong>de</strong>finiu a sua linguagem no<br />

instrumento <strong>de</strong> Pare<strong>de</strong>s,<br />

procurando oferecer-lhe uma<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para além do fado, têm o<br />

seu lugar na História e justificam o<br />

adjectivo. Genial, portanto. E<br />

Ricardo Rocha, criador <strong>de</strong> relação<br />

conflituosa com o seu instrumento<br />

– “é tudo em vão”, disse ao Ípsilon<br />

no final <strong>de</strong> 2009, quando editou<br />

“Luminismo” -, raramente dá<br />

concertos. Acompanha<br />

regularmente Carlos do Carmo e vai<br />

tocando a guitarra para as funções<br />

que, diz, ela tão bem foi construída<br />

originalmente – para acompanhar, lá<br />

está -, mas vê-lo em palco, entregue<br />

à sua obra, isso é acontecimento<br />

para além <strong>de</strong> bissexto. Don<strong>de</strong> se<br />

conclui que o concerto que dará no<br />

Teatro Maria Matos, na próxima<br />

terça-feira, é um acontecimento<br />

imperdível. O neto <strong>de</strong> Fontes Rocha,<br />

par <strong>de</strong> Carlos Pare<strong>de</strong>s e Pedro<br />

Cal<strong>de</strong>ira Cabral na procura <strong>de</strong> um<br />

caminho in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte para a<br />

guitarra portuguesa, interpretará na<br />

íntegra a sua obra a solo. Sofrerá a<br />

cada minuto com aquele<br />

instrumento que lhe veio parar às<br />

mãos em tenra ida<strong>de</strong> e que ele, que<br />

gosta tanto do piano (mas chegou<br />

tar<strong>de</strong>), não mais conseguiu largar. O<br />

que ouviremos: os temas originais, a<br />

revisita ao património <strong>de</strong> Pare<strong>de</strong>s ou<br />

<strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>ira Cabral, a passagem pelo<br />

adorado Alexan<strong>de</strong>r Scriabin, o<br />

compositor romântico russo a quem<br />

<strong>de</strong>dicou o segundo CD, preenchido<br />

<strong>de</strong> composições ao piano, do duplo<br />

“Luminismo”. Imperdível,<br />

repetimos. A “maldição” <strong>de</strong>ste<br />

criador e intérprete <strong>de</strong> excepção é a<br />

nossa bênção. Ouçamo-lo. Em palco.<br />

Sem re<strong>de</strong>.<br />

Reencontro com<br />

o inesperado<br />

Tiago Sousa<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 -<br />

Bairro Alto. Amanhã, às 23h. Tel.: 213430205. 6€.<br />

O disco só é posto à venda em Abril,<br />

mas para todos os efeitos é já<br />

amanhã, na ZDB, em <strong>Lisboa</strong>, que se<br />

faz o lançamento do segundo álbum<br />

<strong>de</strong> Tiago Sousa. Chama-se “Wal<strong>de</strong>n<br />

Pond’s Monk” e sairá através da<br />

editora americana Immune<br />

Recordings, com distribuição<br />

mundial pela influente Thrill Jockey.<br />

É também, <strong>de</strong> alguma forma, um<br />

disco <strong>de</strong> confirmação do talento <strong>de</strong><br />

Sousa, <strong>de</strong>pois do excelente<br />

“Insónia” (2009). Em termos <strong>de</strong><br />

conceito, foi composto sob<br />

influência directa do i<strong>de</strong>alismo e do<br />

espírito revolucionário <strong>de</strong> Henry<br />

David Thoreau, no sentido do<br />

respeito pela liberda<strong>de</strong> e das<br />

potencialida<strong>de</strong>s do homem. Do<br />

ponto <strong>de</strong> vista sónico, é um disco<br />

que mantém a mesma aproximação<br />

intuitiva ao piano que o seu<br />

antecessor, em quatro longas peças<br />

instrumentais – com cânticos<br />

colectivos numa <strong>de</strong>las – que voltam a<br />

surpreen<strong>de</strong>r pela sua simplicida<strong>de</strong>,<br />

maturida<strong>de</strong> e força dramática. Vê-lo<br />

ao vivo tem sempre qualquer coisa<br />

<strong>de</strong> inesperado, mas também <strong>de</strong><br />

reencontro com qualquer coisa que<br />

estava lá mas não sabíamos que<br />

estava. Vão ver e perceberão melhor.<br />

Vítor Belanciano<br />

Jazz<br />

I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

própria<br />

Quinze anos <strong>de</strong> Lokomotiv<br />

Trio na Culturgest. Rodrigo<br />

Amado<br />

Carlos Barretto Trio: Lokomotiv<br />

Com Carlos Barretto (contrabaixo),<br />

Mário Delgado (guitarra), José<br />

Salgueiro (bateria).<br />

Tiago Sousa apresenta o novo disco amanhã na ZDB<br />

<strong>Lisboa</strong>. Culturgest - Gran<strong>de</strong> Auditório. R. Arco do<br />

Cego. Hoje, às 21h30. Tel.: 217905155. 18€.<br />

Os Lokomotiv, trio que o<br />

contrabaixista Carlos Barretto<br />

mantém com o guitarrista Mário<br />

Delgado e o baterista José Salgueiro,<br />

celebram hoje os seus 15 anos <strong>de</strong><br />

activida<strong>de</strong> num concerto que se<br />

adivinha memorável. Consi<strong>de</strong>rada<br />

unanimemente uma das gran<strong>de</strong>s<br />

formações do jazz português, os<br />

Lokomotiv foram um dos principais<br />

responsáveis, juntamente com<br />

projectos <strong>de</strong> Bernardo Sassetti, João<br />

Paulo Esteves da Silva, Carlos Bica ou<br />

Mário Laginha, pelo <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, no que<br />

ao jazz diz respeito. Trio po<strong>de</strong>roso e<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvoltura rítmica, os<br />

Lokomotiv estilhaçam influências<br />

oriundas dos mais variados<br />

quadrantes musicais, do rock ao funk,<br />

do jazz <strong>de</strong> vanguarda às músicas do<br />

mundo. Se Carlos Barretto foi, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

sempre, um músico que procurou<br />

conhecer e integrar no seu discurso<br />

as mais diversas linguagens musicais,<br />

nos Lokomotiv estas ganham uma<br />

exuberância própria, <strong>de</strong>stiladas com<br />

paixão, virtuosismo e muita emoção.<br />

Uma celebração que assinala uma<br />

fase <strong>de</strong> notável vitalida<strong>de</strong> para o jazz<br />

nacional, com as melhores<br />

perspectivas para o futuro. A não<br />

per<strong>de</strong>r.<br />

Clássica<br />

A construção<br />

do futuro<br />

Com o programa “Futuros<br />

2.2”, a OrchestrUtopica<br />

dá hoje a conhecer no<br />

CCB obras <strong>de</strong> cinco jovens<br />

compositores portugueses.<br />

Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />

OrchestrUtopica<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Pedro<br />

Figueiredo.<br />

OrchestrUtopica dá voz à mais<br />

recente geração <strong>de</strong> compositores<br />

portugueses, procurando mostrar a<br />

sua diversida<strong>de</strong> estética e vitalida<strong>de</strong><br />

através <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> cinco<br />

obras <strong>de</strong> câmara escritas nos últimos<br />

<strong>de</strong>z anos. “Fragmentos <strong>de</strong> luz<br />

quebrada”, <strong>de</strong> António Breintenfeld<br />

<strong>de</strong> Sá Dantas (n. 1989), e “Moto<strong>de</strong>scontínuo”,<br />

<strong>de</strong> Filipe Esteves (n.<br />

1978), são encomendas da<br />

OrchestrUtopica, que terão a sua<br />

estreia no concerto <strong>de</strong>sta noite (às<br />

21h, no Pequeno Auditório do Centro<br />

Cultural <strong>de</strong> Belém); “De queda em<br />

queda”, <strong>de</strong> João Godinho (n. 1976), é<br />

apresentada numa nova versão. Será<br />

ainda possível ouvir o 1º e o 3º<br />

andamentos <strong>de</strong> “Ca<strong>de</strong>rnos” (para<br />

vibrafone solo), <strong>de</strong> Andreia Pinto-<br />

Correia (n. 1971), e “Periodically<br />

Apperiodical/Apperiodically<br />

Periodical”, <strong>de</strong> Patrício da Silva (n.<br />

1973).<br />

Filipe Esteves, João Godinho e<br />

Patrício da Silva formaram-se na<br />

Escola Superior <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>,<br />

tendo <strong>de</strong>pois seguido percursos e<br />

experiências diversas, que nalguns<br />

casos contemplam também outras<br />

músicas — como o jazz no caso <strong>de</strong><br />

João Godinho — ou especializações<br />

no estrangeiro. Patrício da Silva<br />

doutorou-se nos Estados Unidos e<br />

António Breintenfeld <strong>de</strong> Sá Dantas<br />

estuda composição e direcção <strong>de</strong><br />

orquestra na Faculda<strong>de</strong> das Artes <strong>de</strong><br />

Graz. Andreia Pinto-Correia,<br />

compositora resi<strong>de</strong>nte da<br />

OrchestrUtopica ao longo <strong>de</strong>ste ano,<br />

tem feito uma apreciável carreira nos<br />

Estados Unidos e encontra-se neste<br />

momento a realizar o doutoramento<br />

no Conservatório <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Nova<br />

Inglaterra.<br />

Vocacionada para a promoção da<br />

nova música, a OrchestrUtopica foi<br />

criada em 2001 pelos compositores<br />

Carlos Caires, José Júlio Lopes, Luís<br />

Tinoco e António Pinho Vargas e pelo<br />

Carlos Barreto, Mário Delgado e José Salgueiro<br />

constituem uma das gran<strong>de</strong>s formações do jazz nacional<br />

<strong>Lisboa</strong>. CCB - Pequeno Auditório. Pç. Império. Hoje,<br />

às 21h. Tel.: 213612400. 10€.<br />

Futuros. Obras <strong>de</strong> António Dantas,<br />

Filipe Esteves, João Godinho, Andreia<br />

Pinto-Correia e Patrício da Silva.<br />

No ano em que comemora uma<br />

década <strong>de</strong> existência, a<br />

O futuro segundo a OrchestrUtopica<br />

BERNARDO SASSETTI<br />

42 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


Dupla<br />

Brad Mehldau e Anne Sofie<br />

von Otter apresentam-se<br />

amanhã na Casa da Música<br />

para apresentar “Love Songs”.<br />

Neste projecto, o pianista<br />

e a celebrada cantora<br />

lírica interpretam<br />

canções <strong>de</strong> autores<br />

tão variados como<br />

Johannes Brahms,<br />

Richard Strauss,<br />

Paul McCartney ou<br />

Joni Mitchell. É às 22h.<br />

na Sala Suggia, e os<br />

bilhetes custam 30 euros.<br />

Os Hot Chip,<br />

versão DJ,<br />

no Lux<br />

Cristina Branco em Estarreja e <strong>Lisboa</strong><br />

maestro Cesário Costa. Além da<br />

estreia <strong>de</strong> obras e <strong>de</strong> programas<br />

temáticos, tem feito experiências que<br />

questionam o formato tradicional do<br />

concerto e colaborado com diversas<br />

áreas artísticas, sendo actualmente<br />

um dos grupos resi<strong>de</strong>ntes do CCB. No<br />

concerto <strong>de</strong>sta noite, dirigido por<br />

Pedro Figueiredo, participam a<br />

flautista Katharine Rawdon, o<br />

clarinetista Nuno Pinto, o violinista<br />

José Pereira, o violoncelista Jed<br />

Barahal, o percussionista Marco<br />

Fernan<strong>de</strong>s e a pianista Elsa Silva.<br />

O virtuosismo<br />

<strong>de</strong> Volodos<br />

Arcadi Volodos e Orquestra<br />

Gulbenkian<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Lawrence<br />

Foster.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação Calouste Gulbenkian - Gran<strong>de</strong><br />

Auditório. Av. Berna, 45A. 5ª, 31, às 21h. 6ª, 1, às<br />

19h. Tel.: 217823000. 15€ a 40€.<br />

Obras <strong>de</strong> Brahms e Dvorák.<br />

Arcadi Volodos está <strong>de</strong> regresso à<br />

Gulbenkian nos próximos dias 31 e 1<br />

para interpretar o Concerto para<br />

Piano e Orquestra nº2, op. 83, <strong>de</strong><br />

Brahms, obra lapidar do repertório<br />

concertante estreada pelo<br />

compositor em Budapeste em 1881. O<br />

virtuosismo espectacular que<br />

caracteriza habitualmente as<br />

interpretações do pianista russo terá<br />

<strong>de</strong> se aliar neste caso ao rigor e à<br />

<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> da construção<br />

arquitectónica da composição <strong>de</strong><br />

Brahms. Na segunda parte, a<br />

Orquestra Gulbenkian apresenta a<br />

famosa Sinfonia “Do Novo Mundo”,<br />

<strong>de</strong> Dvorák, sob a direção do maestro<br />

Lawrence Foster.<br />

Consi<strong>de</strong>rado um dos her<strong>de</strong>iros da<br />

tradição interpretativa da escola russa,<br />

Arcadi Volodos (São Petersburgo, 1972)<br />

formou-se nos Conservatórios <strong>de</strong><br />

Moscovo e Paris e na Escola Superior<br />

<strong>de</strong> Música Rainha Sofia, em Madrid,<br />

on<strong>de</strong> foi aluno <strong>de</strong> Dimitri Bashkirov. O<br />

seu primeiro álbum, editado em 1997,<br />

causou sensação, reunindo uma série<br />

<strong>de</strong> exuberantes transcrições e<br />

paráfrases para piano <strong>de</strong> obras<br />

célebres, algumas <strong>de</strong>las realizadas<br />

pelo próprio pianista. Em 1999 a Sony<br />

publicou a gravação da sua estreia no<br />

Carnegie Hall, distinguida com vários<br />

prémios, seguindo-se registos <strong>de</strong> obras<br />

<strong>de</strong> Schubert, Rachmaninov,<br />

Tchaikovski e Liszt, entre outros. O CD<br />

“Volodos plays Liszt” (2007) foi<br />

também objecto <strong>de</strong> importantes<br />

prémios da crítica internacional e o<br />

seu álbum mais recente (Volodos<br />

in Viena”, com obras <strong>de</strong><br />

Scriabin, Ravel, Schumann e<br />

Liszt) foi distinguido com o<br />

prémio Gramophone <strong>de</strong><br />

2010 na categoria <strong>de</strong><br />

“Melhor Gravação<br />

Instrumental”.<br />

C.F.<br />

Um virtuoso da escola russa<br />

Agenda<br />

Sexta 25<br />

Hot Chip<br />

<strong>Lisboa</strong>. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique, às 23h.<br />

Tel.: 218820890. Consumo obrigatório.<br />

Pop Dell’Arte<br />

Sines. Centro <strong>de</strong> Artes <strong>de</strong> Sines. R. Cândido dos Reis,<br />

às 22h. Tel.: 269860080. 10€.<br />

David Fonseca<br />

Beja. Teatro Pax-Júlia. Lg. São João, às 21h30. Tel.:<br />

284315090. 12,5€.<br />

PAUS<br />

Portalegre. Centro <strong>de</strong> Artes PAUS<br />

do Espectáculo. Pç.<br />

Republica, 39, às 23h. Tel.:<br />

245307498. 3€.<br />

The Glockenwise<br />

+ Me Dá Só<br />

Sangue<br />

<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova<br />

do Carvalho, 24, às 0h.<br />

Tel.: 213430107. 8€.<br />

Mazgani<br />

Arcos <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>vez. Casa das Artes. Jardim dos<br />

Centenários, às 23h. Tel.: 258520520. 8€.<br />

Rodrigo Leão<br />

Tavira. Cine-Teatro António Pinheiro. R. Dr.<br />

Marcelino Franco,10, às 21h30. Tel.: 281322671.<br />

Abztraqt Sir Q<br />

<strong>Lisboa</strong>. <strong>Fonoteca</strong> <strong>Municipal</strong>. Pç. Duque <strong>de</strong> Saldanha<br />

- Dolce Vita Monumental, Loja 17, às 21h30. Tel.:<br />

213536231. Entrada gratuita.<br />

Norton<br />

Castelo Branco. Cine-Teatro Avenida. Av. General<br />

Humberto Delgado, às 21h30. Tel.: 272349560.<br />

5€.<br />

Dazkarieh<br />

Porto. Hard Club - Sala 2. Pç. Infante, 95, às 22h30.<br />

Tel.: 707100021. 8€.<br />

Orquestra Clássica <strong>de</strong> Espinho<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Pedro Neves.<br />

Espinho. Auditório <strong>de</strong> Espinho. R. 34, 884, às<br />

21h30. Tel.: 227340469. 7€.<br />

Javier Artigas<br />

<strong>Lisboa</strong>. Igreja <strong>de</strong> São Roque. Lg. Trinda<strong>de</strong> Coelho,<br />

às 21h30. Tel.: 213235383. Entrada gratuita.<br />

XIII Festival Internacional <strong>de</strong> Órgão<br />

<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>.<br />

Sábado 26<br />

Sonia Wie<strong>de</strong>r-Atherton<br />

<strong>Lisboa</strong>. Culturgest - Palco do Gran<strong>de</strong> Auditório. R.<br />

Arco do Cego, às 18h. Tel.: 217905155. 10€.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos na pág, 40.<br />

Cristina Branco<br />

Estarreja. Cine-Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Estarreja. R.<br />

Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>mouro, às 22h. Tel.: 234811300.<br />

10€ a 15€.<br />

Rodrigo Leão<br />

Estoril. Casino. Pç. José Teodoro dos Santos, às<br />

21h30. Tel.: 214667700. 25€.<br />

Javier Artigas<br />

<strong>Lisboa</strong>. Igreja <strong>de</strong> S. Vicente <strong>de</strong> Fora. Lg. S. Vicente,<br />

às 21h30. Tel.: 218824400. Entrada gratuita.<br />

XIII Festival Internacional <strong>de</strong> Órgão<br />

<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>.<br />

Ricardo Barceló<br />

Braga. Museu Nogueira da Silva. Av. Central, 61, às<br />

18h. Tel.: 253601275. 5€.<br />

Shall I Vote For Elvis?<br />

Com António Olaio e João Taborda.<br />

Guarda. Teatro <strong>Municipal</strong> - Café-Concerto. R.<br />

Batalha Reis, 12, às 22h. Tel.: 271205241. Entrada<br />

gratuita.<br />

David Fonseca<br />

Alcochete. Fórum Cultural <strong>de</strong> Alcochete. Estrada<br />

<strong>Municipal</strong> 501, às 21h30. Tel.: 212349640. 15€.<br />

Carminho<br />

Arcos <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>vez. Casa das Artes. Jardim dos<br />

Centenários, às 22h30. Tel.: 258520520. 10€.<br />

Linda Martini<br />

Vale <strong>de</strong> Cambra. CC <strong>de</strong> Macieira <strong>de</strong> Cambra. Pç.<br />

República, às 22h. Tel.: 256428400. 8€.<br />

Sean Riley & The Slowri<strong>de</strong>rs<br />

Fafe. Teatro Cinema <strong>de</strong> Fafe. R. Monsenhor Vieira<br />

<strong>de</strong> Castro. Sáb. às 21h30. 5€.<br />

Dazkarieh<br />

Caldas da Rainha. CC e Congressos. R. Doutor<br />

Leonel Sotto Mayor, às<br />

21h30. Tel.: 262889650.<br />

10€.<br />

A Caruma +<br />

Rambostellar<br />

<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova<br />

do Carvalho, 24, às 0h.<br />

Tel.: 213430107. 8€.<br />

Vitalic +<br />

Expan<strong>de</strong>r +<br />

Thinkfreak<br />

Ofir. Pacha. Lugar das Pedrinhas, às 23h. Tel.:<br />

253989100. 10€ a 15€.<br />

Dimitri From Paris + SDC<br />

Porto. Trintaeum. Rua do Passeio Alegre, 564, às<br />

23h. Tel.: 919134339.<br />

Domingo 27<br />

Jesse Sparhawk + Eric<br />

Carbonara<br />

Porto. Café Au Lait. R.Galeria <strong>de</strong> Paris, 46, às 19h.<br />

Tel.: 222025016. Entrada gratuita.<br />

Rodrigo Leão<br />

Estoril. Casino Estoril. Pç. José Teodoro dos Santos,<br />

às 21h30. Tel.: 214667700. 25€.<br />

Orquestra Sinfónica do Porto<br />

Casa da Música<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Takuo Yuasa.<br />

Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho<br />

<strong>de</strong> Albuquerque, às 12h. Tel.: 220120220. 5€.<br />

Segunda 28<br />

Souad Massi<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação Calouste Gulbenkian - Gran<strong>de</strong><br />

Auditório. Av. Berna, 45A. 2ª às 21h00. Tel.:<br />

217823000. 15€ a 20€.<br />

Ver texto na pág. 16 e segs.<br />

Asian Dub Foundation<br />

<strong>Lisboa</strong>. Santiago Alquimista. R. Santiago, 19, às 21h.<br />

Tel.: 218884503. 22€.<br />

Terça 29<br />

Asian Dub Foundation<br />

Porto. Hard Club - Sala 1. Pç. Infante, 95, às 21h.<br />

Tel.: 707100021. 22€.<br />

Quarta 30<br />

Slayer + Mega<strong>de</strong>th + W.A.K.O.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Pavilhão Atlântico. Pq. Nações, às 21h. Tel.:<br />

218918409. 27,5€ a 45€.<br />

Quinta 31<br />

Expensive Soul & Jaguar Band<br />

Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho<br />

<strong>de</strong> Albuquerque, às 22h. Tel.: 220120220. 10€.<br />

Cristina Branco<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> S. Luiz. R. Antº Maria<br />

Cardoso, 38-58, às 21h. Tel.: 213257650. 12€ a 25€.<br />

Os Golpes + Samuel Úria<br />

Coimbra. Teatro Académico <strong>de</strong> Gil Vicente. Pç.<br />

República, às 21h30. Tel.: 239855636. 10€.<br />

Rodrigo Leão<br />

Porto. Hard Club - Sala 1. Pç. Infante, 95, às 22h.<br />

Tel.: 707100021. 25€.<br />

António Chainho<br />

Leiria. Teatro José Lúcio da Silva. R. Dr. Américo<br />

Cortez Pinto, às 21h30. Tel.: 244834117. 7,5€.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 43


Cinema<br />

Estreiam<br />

A via sacra<br />

e a via láctea<br />

Primeira gran<strong>de</strong> surpresa<br />

<strong>de</strong> 2011, “Camino” invoca<br />

o espírito <strong>de</strong> Luis Buñuel<br />

numa sátira <strong>de</strong>vastadora (em<br />

todos os sentidos da palavra)<br />

ao fundamentalismo<br />

religioso. Jorge Mourinha<br />

Camino<br />

Camino<br />

De Javier Fesser,<br />

com Nerea Camacho, Carme Elias,<br />

Mariano Venancio, Manuela Vellés.<br />

M/12<br />

MMMMn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia Monumental: Sala 1: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 16h20, 19h00, 21h40,<br />

00h15<br />

Ponto prévio: todas as pragas que se<br />

possam rogar à distribuidora<br />

responsável não serão suficientes<br />

para lhe perdoar. Ter “Camino” em<br />

carteira há mais <strong>de</strong> dois anos sem o<br />

estrear po<strong>de</strong>-se perceber – é difícil<br />

saber o que fazer com um objecto tão<br />

“fora” -, mas se era para o <strong>de</strong>ixar<br />

num limbo estreia-não-estreia mais<br />

valia não o ter comprado.<br />

Supostamente, quando uma<br />

distribuidora adquire os direitos <strong>de</strong><br />

um filme é porque acredita que existe<br />

um público para ele – e “Camino”<br />

está muito longe <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar incólume<br />

quem o vê, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> se<br />

gostar ou não.<br />

Ainda por cima, a terceira longa <strong>de</strong><br />

Javier Fesser chegou <strong>de</strong> Espanha<br />

como triunfador da cerimónia dos<br />

prémios Goya (os Óscares locais) <strong>de</strong><br />

2009 e com controvérsia incluida, ou<br />

não se inspirasse no caso verídico <strong>de</strong><br />

uma menina espanhola que está em<br />

processo <strong>de</strong> canonização, cuja família<br />

se ergueu em armas contra o filme.<br />

Talvez estejamos a olhar para as<br />

coisas <strong>de</strong> modo um pouco forçado,<br />

mas sem querer comparar o<br />

incomparável a verda<strong>de</strong> é que<br />

sentimos em “Camino” qualquer<br />

coisa <strong>de</strong> Buñuel a passar. Ou, antes,<br />

<strong>de</strong> dois Buñuel: o Buñuel “mexicano”<br />

que subvertia a todo o momento as<br />

regras clássicas do melodrama, e o<br />

Buñuel corrosivo e anti-clerical <strong>de</strong><br />

“Viridiana”, que não hesita em<br />

<strong>de</strong>nunciar a hipocrisia que se<br />

escon<strong>de</strong> por trás do<br />

fundamentalismo.<br />

Porque o que torna “Camino” tão<br />

murro no estômago é precisamente o<br />

modo como Fesser habita as<br />

convenções do melodrama religioso<br />

com um respeito enorme, ao mesmo<br />

tempo que as critica e <strong>de</strong>scarna sem<br />

pieda<strong>de</strong>. É um filme que está sempre<br />

a funcionar em dois graus <strong>de</strong> leitura<br />

simultânea, com uma lealda<strong>de</strong><br />

absoluta para com o espectador, e<br />

consegue chegar ao fim sem nunca<br />

escon<strong>de</strong>r nem trair nenhum <strong>de</strong>les. E<br />

isso é obra quando está a fazer<br />

humor (negro, é certo), com coisas<br />

muito sérias.<br />

As coisas muito sérias são, aqui, os<br />

últimos meses <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> uma<br />

Sexta, 25<br />

A Quermesse Heróica<br />

La Kermesse Héroique<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

menina <strong>de</strong>vota, filha <strong>de</strong> uma família<br />

muito religiosa da Opus Dei, a quem é<br />

diagnosticado um cancro terminal<br />

muito avançado no exacto momento<br />

em que se apaixona à primeira vista<br />

pelo primo <strong>de</strong> uma colega. O filme<br />

vai e vem entre as fantasias<br />

tecnicoloridas <strong>de</strong> Camino, que sonha<br />

ser feliz com o seu novo amor (que,<br />

pormenor muito importante,<br />

também se chama Jesus, abrindo<br />

uma dúvida metódica que o filme não<br />

se coíbe <strong>de</strong> explorar), e a sua<br />

dolorosa via sacra, que não se limita<br />

às operações e a tratamentos brutais,<br />

mas <strong>de</strong>screve também uma vida<br />

familiar rigidamente religiosa,<br />

comandada com mão <strong>de</strong> ferro por<br />

uma mãe fundamentalista à qual o<br />

pai não tem forças para se impor.<br />

Que não se pense que a irrisão<br />

subversiva <strong>de</strong> Fesser torna “Camino”<br />

num panfleto – o realizador<br />

(igualmente argumentista e<br />

montador) prefere transformá-lo<br />

numa sátira brutalmente corrosiva ao<br />

fundamentalismo, venha ele <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

venha, e ao preço que ele cobra em<br />

termos pessoais; que questiona até<br />

on<strong>de</strong> o sacrifício em nome <strong>de</strong> uma<br />

Cinemateca Portuguesa R. Barata Salgueiro, 39 <strong>Lisboa</strong>. Tel. 213596200<br />

De Jacques Fey<strong>de</strong>r.<br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Vertigo - A Mulher<br />

Que Viveu Duas Vezes<br />

Vertigo<br />

De Alfred Hitchcock.<br />

19h - Sala Félix Ribeiro<br />

Meeting Woody Allen/JLG Meets<br />

Woody Allen + Soft And Hard (A<br />

Soft Conversation Between Two<br />

Friends On a Hard Subject)<br />

Meeting Woody Allen/JLG Meets<br />

Woody Allen<br />

De Jean-Luc Godard, Anne-Marie<br />

Miéville.<br />

19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Atenção à Direita<br />

Soigne ta Droite<br />

De Jean-Luc Godard.<br />

21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Sábado, 26<br />

Desilusões do Palco<br />

Upstage<br />

De Monta Bell.<br />

19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

O que torna<br />

“Camino”<br />

tão murro no<br />

estômago é o<br />

modo como<br />

habita as<br />

convenções<br />

do melodrama<br />

religioso com<br />

um respeito<br />

enorme,<br />

ao mesmo<br />

tempo que as<br />

<strong>de</strong>scarna sem<br />

pieda<strong>de</strong><br />

causa justifica a supressão da<br />

individualida<strong>de</strong>. Camino não tem<br />

liberda<strong>de</strong> para se divertir como as<br />

colegas do colégio, e uma vez a sua<br />

doença diagnosticada essa<br />

possibilida<strong>de</strong> é-lhe retirada para<br />

sempre; o estado <strong>de</strong> absoluta<br />

clausura, quase inquisitorial, que<br />

Fesser pinta nas relações dos<br />

Fernán<strong>de</strong>z com a Igreja, a hipocrisia<br />

e o calculismo que vêm ao <strong>de</strong> cima a<br />

espaços, são os elementos mais<br />

perturbadores do filme, embora o<br />

cineasta resista sempre a converter<br />

os beatos em monstros <strong>de</strong>sumanos<br />

(permitindo a quase todos eles<br />

momentos <strong>de</strong> dúvida e humanida<strong>de</strong>).<br />

Interpretado extraordinariamente<br />

por um elenco notável e dirigido com<br />

gran<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> e inteligência,<br />

“Camino” é um filme duplamente<br />

po<strong>de</strong>roso, pelo modo como pega<br />

num tema duríssimo “pelos cornos”<br />

e <strong>de</strong>le faz uma espantosa afirmação<br />

<strong>de</strong> vida e amor sem per<strong>de</strong>r a<br />

violência <strong>de</strong> uma sátira atenta,<br />

resistindo sempre ao golpe baixo.<br />

Esta estreia quase clan<strong>de</strong>stina é a<br />

primeira gran<strong>de</strong> surpresa que chega<br />

às salas em 2011.<br />

Delícia turca<br />

Semih Kaplanoglu<br />

<strong>de</strong>monstra uma capacida<strong>de</strong><br />

imaculada para se colocar<br />

entre o olhar dos adultos e<br />

o do miúdo protagonista,<br />

neste pertinente retrato da<br />

Turquia profunda.<br />

Luís Miguel Oliveira<br />

Mel<br />

Bal<br />

De Semih Kaplanoglu,<br />

com Bora Altas, Erdal Besikçioglu,<br />

Tülin Özen . M/12<br />

Os Alegres Namorados<br />

Summer Holiday<br />

De Rouben Mamoulian.<br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

À Beira do Mar Azul<br />

U Samogo Sinyego Morya<br />

De Boris Barnet, S. Mardanin.<br />

22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Segunda, 28<br />

O Homem Morcego<br />

The Bat<br />

De Crane Wilbur.<br />

44 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


As estrelas do Público<br />

Jorge<br />

Mourinha<br />

Luís M.<br />

Oliveira<br />

Vasco<br />

Câmara<br />

Camino mmmMn nnnnn nnnnn<br />

Chelsea Hotel mmmnn mmnnn mnnnn<br />

Copacabana mmnnn mmnnn mmnnn<br />

O discurso do Rei mmnnn mmnnn mnnnn<br />

Os 2 da (Nova) Vaga nnnnn mmmnn mmnnn<br />

Mel mmnnn mmmnn nnnnn<br />

Micmacs - Uma Brilhante Confusão mmnnn nnnnn nnnnn<br />

Poesia mmmmn mmmnn mmmnn<br />

Potiche- Minha Rica Mulherzinha mmmnn mmnnn mmnnn<br />

Somewhere-Algures mmmnn nnnnn mnnnn<br />

MMMnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia King: Sala 1: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />

13h10, 15h15, 17h20, 19h25, 21h30 6ª Sábado 2ª<br />

13h10, 15h15, 17h20, 19h25, 21h30, 24h<br />

Porto: Me<strong>de</strong>ia Cine Estúdio do Teatro Campo<br />

Alegre: Cine-Estúdio: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

4ª 18h30, 22h 3ª 18h30<br />

Urso <strong>de</strong> Ouro no Festival <strong>de</strong> Berlim<br />

do ano passado, “Mel” é o terceiro<br />

tomo da trilogia que fez <strong>de</strong> Semih<br />

Kaplanoglu o cineasta turco<br />

contemporâneo mais conhecido<br />

internacionalmente a seguir a Nuri<br />

Bilge Ceylan. Os nomes dos outros<br />

dois filmes da trilogia são tão<br />

nutritivos como o <strong>de</strong>ste: “Ovo” (que<br />

ganhou um prémio na primeira<br />

edição do Estoril Film Festival) e<br />

“Leite”. Mas é com o “Mel” que ele<br />

chega às salas portuguesas, e se ao<br />

espectador recém-chegado ficará a<br />

escapar o <strong>de</strong>senho do conjunto dos<br />

três filmes, conhecê-lo não é<br />

indispensável à fruição <strong>de</strong>ste filme.<br />

De certo modo, “Mel”, no seu<br />

conflito essencial, ilumina, ou pelo<br />

menos resume, o que está em causa<br />

na trilogia: um olhar sobre a<br />

província turca, captado na<br />

bifurcação entre um modo <strong>de</strong> vida<br />

tradicional (as coisas que a terra dá,<br />

Um olhar<br />

sobre a<br />

província<br />

turca na<br />

bifurcação<br />

entre um<br />

modo <strong>de</strong> vida<br />

tradicional e a<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

O Tesouro do Barba Ruiva<br />

Moonfleet<br />

De Fritz Lang.<br />

19h - Sala Félix Ribeiro<br />

Comment Ça Va?<br />

De Anne-Marie Miélville, Jean-Luc<br />

Godard.<br />

19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Nouvelle Vague<br />

De Jean-Luc Godard.<br />

21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Vertigo - A Mulher Que Viveu<br />

Duas Vezes<br />

Vertigo<br />

De Alfred Hitchcock.<br />

22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Terça, 29<br />

Os Comandos<br />

Atacam ao Amanhecer<br />

The Commandos Strike at Dawn<br />

De John Farrow.<br />

ainda que por intermédio dos<br />

animais: os ovos, o leite, o mel) e a<br />

perspectiva <strong>de</strong> uma outra coisa,<br />

muito mais difusa, a que se podia<br />

chamar a “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>”. De uma<br />

maneira que o filme não resolve (e a<br />

não-resolução é o seu ponto), o<br />

miúdo protagonista simboliza esse<br />

impasse, no à-vonta<strong>de</strong> da sua<br />

relação com a natureza (as abelhas<br />

do pai, a floresta) e na falta <strong>de</strong><br />

à-vonta<strong>de</strong> com as coisas da escola (a<br />

dificulda<strong>de</strong> em apren<strong>de</strong>r a ler como<br />

uma “resistência”, digamos,<br />

atávica).<br />

Imaginamos que este conflito, que<br />

o filme expõe sem retórica nenhuma<br />

e numa subtileza a toda a prova, é<br />

pertinente enquanto retrato da<br />

profunda Turquia contemporânea.<br />

O que serve, em todo o caso, como<br />

medida da inteligência <strong>de</strong> “Mel”.<br />

Mas não é forçosamente aquilo que<br />

mais o distingue. Antes uma<br />

capacida<strong>de</strong>, imaculada, <strong>de</strong> se<br />

colocar entre o olhar dos adultos e o<br />

olhar do miúdo protagonista, para<br />

<strong>de</strong>r a ver um mundo que é sempre,<br />

ao mesmo tempo, muito misterioso<br />

e muito familiar – características que<br />

marcam, em especial, toda a relação<br />

com a natureza (a terra e as árvores,<br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Allemagne Neuf Zéro<br />

De Jean-Luc Godard.<br />

19h - Sala Félix Ribeiro<br />

48<br />

De Susana Sousa Dias.<br />

21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Atenção à Direita<br />

Soigne ta Droite<br />

De Jean-Luc Godard.<br />

22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Quarta, 30<br />

O Leito Conjugal<br />

L’Ape Regina<br />

De Marco Ferreri.<br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

JLG/JLG<br />

De Jean-Luc Godard.<br />

19h - Sala Félix Ribeiro<br />

Radio On<br />

De Chris Petit.<br />

mas também o céu e as nuvens),<br />

com os seus silêncios mas sobretudo<br />

com os seus ruídos (os seres<br />

humanos <strong>de</strong> “Mel” falam pouco, mas<br />

em compensação a natureza palra<br />

que se farta). E Kaplanoglu<br />

confirma-se como um a<strong>de</strong>pto do<br />

plano-sequência expectante e<br />

<strong>de</strong>safectado: a cena em que dá o<br />

badagaio ao pai do miúdo é<br />

extraordinária.<br />

Continuam<br />

Potiche - Minha Rica<br />

Mulherzinha<br />

Potiche<br />

De François Ozon,<br />

com Catherine Deneuve, Gérard<br />

Depardieu, Fabrice Luchini, Karin<br />

Viard, Judith Godrèche, Jérémie<br />

Rénier. M/12<br />

MMnnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Castello Lopes - Cascais Villa: Sala 5: 5ª 2ª<br />

3ª 4ª 15h50, 18h30, 21h20 6ª 15h50, 18h30, 21h20,<br />

00h20 Sábado 13h30, 15h50, 18h30, 21h20, 00h20<br />

Domingo 13h30, 15h50, 18h30, 21h20; CinemaCity<br />

Classic Alvala<strong>de</strong>: Sala 2: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª<br />

13h30, 15h35, 17h40, 19h45, 21h45 6ª Sábado 13h30,<br />

15h35, 17h40, 19h45, 21h45, 23h50; UCI Cinemas - El<br />

Corte Inglés: Sala 13: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª<br />

14h10, 16h40, 19h10, 21h35, 00h05 Domingo 11h30,<br />

14h10, 16h40, 19h10, 21h35, 00h05; ZON<br />

Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 12h50, 15h20, 17h50, 20h50, 23h30<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 4: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />

2ª 13h55, 16h35, 19h15, 21h55, 00h40 3ª 4ª 16h35,<br />

19h15, 21h55, 00h40; ZON Lusomundo Dolce Vita<br />

Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 18h20,<br />

21h, 23h40<br />

Se Ozon tem alguma gran<strong>de</strong><br />

habilida<strong>de</strong>, ela está na préfabricação<br />

(mais até do que na previsão)<br />

dos espectadores dos seus<br />

filmes e, sobretudo, na condução do<br />

percurso que ele <strong>de</strong>seja que os<br />

espectadores façam através dos<br />

filmes. Continuamos a dizer: Ozon é<br />

um hitchcockiano (mas um<br />

hitchcockiano barato). “Minha Rica<br />

Mulherzinha” continua a ser isso:<br />

19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Puissance <strong>de</strong> la Parole + Les<br />

Enfants Jouent à la Russie<br />

Puissance <strong>de</strong> la Parole<br />

De Jean-Luc Godard.<br />

22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Quinta, 31<br />

Sweet Charity - A Rapariga<br />

que Queria Ser Amada<br />

Sweet Charity<br />

De Bob Fosse.<br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Gran Torino<br />

De Clint Eastwood.<br />

19h - Sala Félix Ribeiro<br />

Allemagne Neuf Zéro<br />

De Jean-Luc Godard.<br />

19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Elogio do Amor<br />

Éloge <strong>de</strong> l’’amour<br />

De Jean-Luc Godard.<br />

21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

sinais cuidadosamente distribuídos,<br />

reenvio permanente, “referências” e<br />

cotoveladinhas, um filme que se faz<br />

pelas pistas <strong>de</strong> leitura que ele<br />

próprio cria (e sem as quais não<br />

seria nada). Não é nem mais nem<br />

menos grotesco do que outras coisas<br />

que Ozon já fez, embora, <strong>de</strong> facto,<br />

num registo cómico minimamente<br />

<strong>de</strong>sempoeirado a coisa se suporte<br />

um pouco melhor. Ainda que em<br />

ambivalência: é tão fácil elogiar a<br />

maneira como Deneuve e Depardieu<br />

se prestam a brincar com o seu<br />

estatuto simbólico no cinema<br />

francês como ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gritar<br />

“basta, já fizeram isto 50 vezes,<br />

inventem lá outra coisa”. L.M.O.<br />

Copacabana<br />

Copacabana<br />

De Marc Fitoussi,<br />

com Isabelle Huppert, Lolita<br />

Chammah, Aure Atika, Jurgen<br />

Delnaet. M/12<br />

MMnnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia King: Sala 3: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />

13h20, 15h30, 17h40, 19h50, 22h 6ª Sábado 2ª<br />

13h20, 15h30, 17h40, 19h50, 22h, 00h15; Me<strong>de</strong>ia<br />

Saldanha Resi<strong>de</strong>nce: Sala 5: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h50, 21h50, 00h20<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 17: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 14h15, 16h50, 19h25, 21h55, 00h35 3ª<br />

4ª 16h50, 19h25, 21h55, 00h35<br />

Ou <strong>de</strong> como um filme anódino se<br />

torna um bocadinho menos anódino<br />

por causa <strong>de</strong> uma actriz. Sem<br />

Isabelle Huppert não se daria nada<br />

por “Copacabana”, exemplo <strong>de</strong> um<br />

cinema correcto e “profissional” que<br />

não tem mais para dar, nem <strong>de</strong>seja<br />

mais, do que reiterar e reproduzir as<br />

suas características – o que não tem<br />

nada <strong>de</strong> mal, nem nada <strong>de</strong> bom.<br />

Com Huppert, mesmo a trabalhar<br />

em modo prazenteiro, acrescenta-se<br />

uma camada extra, ao filme e à sua<br />

protagonista (e até o “gimmick” <strong>de</strong> a<br />

pôr a contracenar com a filha traz<br />

algum sentido). E “Copacabana”<br />

torna-se, até certo ponto ou a partir<br />

<strong>de</strong> certo ponto, num filme sobre o<br />

trabalho <strong>de</strong> uma actriz. Qque se<br />

possa vê-lo como tal não é, apesar<br />

<strong>de</strong> tudo, uma qualida<strong>de</strong><br />

negligenciável. L.M.O.<br />

Cineclubes<br />

para mais informações consultar www.fpcc.pt<br />

Cine-teatro S. Pedro<br />

Largo S. Pedro - Abrantes<br />

CICLO: Sangue Novo<br />

China, China <strong>de</strong> J. P. Rodrigues & J.<br />

Rui G. da Mata, 2007, M/12<br />

Rapace <strong>de</strong> João Nicolau, 2006, M/12<br />

Remains <strong>de</strong> Sandro Aguilar, 2002,<br />

M/12 30/03, 21h30<br />

Cinema Teixeira<br />

<strong>de</strong> Pascoaes<br />

Centro Comercial Santa Luzia - Amarante<br />

Um Ano Mais<br />

De Mike Leigh, 2010, M/12 25/03, 21:30h<br />

Auditório Soror<br />

Mariana<br />

Rua Diogo Cão, nº8, Évora<br />

Biutiful<br />

De Alejandro González Iñarritu,<br />

2010, M/16 30/03, 21:30h<br />

Casa das Artes <strong>de</strong><br />

Famalicão (CC Joane)<br />

Parque <strong>de</strong> Sinçães – Famalicão<br />

36 Vistas Do Monte Saint-loup<br />

De Jacques Rivette, 2009, M/12 Q<br />

31/03, 21:30h<br />

Auditório IPJ<br />

Rua da PSP, Faro<br />

Des Hommes Et Des Dieux<br />

De Xavier Beauvois, 2010, M/12<br />

28/03, 21:30h<br />

Teatro Sá da Ban<strong>de</strong>ira<br />

Rua João Afonso, n.º 7-Santarém<br />

Eu Sou O Amor<br />

De Luca Guadagnino, 2009, M/12<br />

30/03, 21:30h<br />

Cine-teatro António<br />

Pinheiro<br />

R. Guilherme Gomes Fernan<strong>de</strong>s, 5 – Tavira<br />

Biutiful<br />

De Alejandro González Iñarritu,<br />

2010, M/16 27/03, 21:30h<br />

O Verão Da Boyita<br />

De Julia Solomonoff, 2009, M/12<br />

31/03, 21:30h<br />

Teatro Virgínia<br />

Largo José Lopes dos Santos – Torres Novas<br />

A Poeira Do Tempo<br />

De Theodoros Angelopoulos,<br />

2008, M/12 30/03, 21:00h<br />

Animar6/ Teatro<br />

<strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Vila do<br />

Con<strong>de</strong><br />

Av. João Canavarro – Vila do Con<strong>de</strong><br />

Entrelaçados<br />

De Byron Howard, Nathan Greno,<br />

2010, M/6 26/03, 16:00h<br />

L’ Illusioniste<br />

De Sylvain Chomet, 2010, M/6<br />

27/03, 16:00h e 21:45h<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 45


Opinião<br />

Modo crítico<br />

Cenas da crise em São Carlos<br />

Há um inquietante efeito <strong>de</strong> actualida<strong>de</strong> em “Banksters”, incluindo até que o horizonte <strong>de</strong> bancarrota<br />

que <strong>de</strong>lineia é em particular apropriado à situação do próprio teatro em que o espectáculo ocorre.<br />

Está em cena no São Carlos uma nova<br />

produção, “Banksters”, <strong>de</strong> Nuno Côrte-Real,<br />

o que é <strong>de</strong> assinalar no estado <strong>de</strong> penúria<br />

do teatro nacional <strong>de</strong> ópera. Mas há mais<br />

factos <strong>de</strong> relevo.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma estreia absoluta,<br />

encomenda do São Carlos, e se Côrte-Real tem tido<br />

condições para ser o mais prolífero compositor<br />

português neste campo nos últimos anos, sendo que<br />

esta é já a sua quinta ópera – mesmo que “O Velório <strong>de</strong><br />

Cláudio” fosse um prólogo –, os colaboradores directos<br />

que teve possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escolher, Vasco Graça Moura<br />

no libreto e João Botelho na encenação, são estreantes<br />

nestas andanças.<br />

Ocorre que há um inquietante efeito <strong>de</strong> actualida<strong>de</strong><br />

em “Banksters”, incluindo até que o horizonte <strong>de</strong><br />

bancarrota que se <strong>de</strong>lineia é em particular apropriado à<br />

situação do próprio teatro em que o espectáculo ocorre.<br />

Estamos perante cenas da crise em São Carlos.<br />

O ponto <strong>de</strong> partida é um texto <strong>de</strong> José Régio, “Jacob e<br />

o Anjo”, retomando um episódio <strong>de</strong>sse livro fundador<br />

que é a Bíblia. A peça, como todo o teatro <strong>de</strong> Régio, é<br />

uma chatice incomensurável, e torna-se patente que não<br />

é do afecto particular do libretista. De modo paroxístico,<br />

foi a distância do adaptador para com o texto adaptado<br />

que propiciou a Graça Moura um trabalho (meta)textual<br />

<strong>de</strong>veras notável.<br />

“Banksters”, supõe “bank” e “gangsters”, e o quadro<br />

é o do capitalismo financeiro e da sua crise, paródia e<br />

sátira que se podiam supor <strong>de</strong> algum autor esquerdista,<br />

o que Graça Moura não é <strong>de</strong> modo algum. Os americanos<br />

inventaram as chamadas “CNN operas”, sobre figuras<br />

e factos da história contemporânea, mas esta será a<br />

primeira ópera que tem como referente a crise do<br />

capitalismo financeiro global.<br />

Eis exemplos concretos: “paraíso fiscal”, “offshore”,<br />

“injecções <strong>de</strong> capital”, “tempo <strong>de</strong> crise”, “mortgage”<br />

e mesmo “subprime”, além <strong>de</strong> outros que nos tornam<br />

presente a concreta situação portuguesa, como “Parte-se<br />

esse coração/ que eu tinha entregue à Finança/ Pra fugir<br />

ao IRS” ou “Corte no meu or<strong>de</strong>nado/ passe-me a recibos<br />

ver<strong>de</strong>s”. De acordo com as motivações do compositor<br />

na sua escolha do texto, <strong>de</strong> Régio perdura a tipologia das<br />

personagens e o motivo da “re<strong>de</strong>nção” – mas não mais.<br />

Pois que se trata <strong>de</strong> um tema<br />

cristão, e inspirado em peça do<br />

autor <strong>de</strong> “Poemas <strong>de</strong> Deus e do<br />

Diabo”, ocorreu-me que “Banksters”<br />

podia ter como epígrafe uma frase<br />

que Mikhail Bakhtin atribui a São<br />

João Crisóstomo: “As burlas e o<br />

riso não provêm <strong>de</strong> Deus, mas são<br />

uma emanação do Diabo”. E não<br />

invoco por acaso o gran<strong>de</strong> teórico<br />

russo, o estudioso <strong>de</strong> Rabelais<br />

e do carnavalesco, a propósito<br />

<strong>de</strong>ste libreto que, como a justo<br />

título diz Graça Moura, é muito<br />

(Gil) “vicentino”. Bakhtin é um<br />

dos autores a ter mais presente<br />

na análise e na pragmática da<br />

“paródia”, não apenas no sentido<br />

restrito que ele consi<strong>de</strong>ra, o <strong>de</strong><br />

sátira, como mais latamente nos<br />

termos <strong>de</strong> Linda Hutcheon em “Uma<br />

teoria da paródia - ensinamento<br />

das formas <strong>de</strong> arte do século XX”:<br />

“A paródia é, pois, repetição, mas<br />

repetição que inclui diferença; é<br />

imitação com distância crítica,<br />

cuja ironia po<strong>de</strong> beneficiar e<br />

prejudicar ao mesmo tempo. Os seus<br />

principais operadores formais são versões irónicas <strong>de</strong><br />

‘transcontextualização’ e inversão, e o âmbito do ‘ethos’<br />

pragmático vai do ridículo <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso à homenagem<br />

reverencial”. “Banksters” é um caso exemplar <strong>de</strong>ste<br />

tipo <strong>de</strong> estratégia discursiva, não faltando uma<br />

Augusto M. Seabra<br />

Afinal, o melhor <strong>de</strong><br />

Christoph<br />

Dammann ocorre<br />

agora “a posteriori”,<br />

com “Banksters”, já<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido<br />

<strong>de</strong>mitido e<br />

substituído por<br />

Martin André, que<br />

não dá sinais <strong>de</strong> um<br />

projecto<br />

surpreen<strong>de</strong>nte citação <strong>de</strong> “A rose is a rose, is a rose” <strong>de</strong><br />

Gertrud Stein.<br />

Depois <strong>de</strong> obras notáveis como “Concerto Vedras”<br />

e “Andarilhos”, o percurso <strong>de</strong> Nuno Côrte-Real temme<br />

<strong>de</strong>ixado em vários aspectos perplexo. O <strong>de</strong>sastre<br />

aconteceu com “A Montanha”, ópera adaptada <strong>de</strong><br />

Teixeira <strong>de</strong> Pascoaes pelo próprio compositor. É então<br />

<strong>de</strong> assinalar que Côrte-Real se tem mostrado tanto mais<br />

interessante quando trabalha com textos <strong>de</strong> consistência<br />

dramática (“O Rapaz <strong>de</strong> Bronze”, <strong>de</strong> José Maria Vieira<br />

Men<strong>de</strong>s, a partir do conto homónimo <strong>de</strong> Sophia e agora<br />

“Banskters”) e tanto menos quando a cena dramática<br />

não tem nexo, como em “O Velório <strong>de</strong> Cláudio”, texto<br />

<strong>de</strong> José Luís Peixoto – sendo ainda <strong>de</strong> ressalvar que o<br />

projecto <strong>de</strong> um prólogo contemporâneo a uma ópera<br />

barroca, a “Agrippina” <strong>de</strong> Haen<strong>de</strong>l, era um disparate<br />

total e foi mesmo o maior <strong>de</strong>scalabro em São Carlos nos<br />

lamentáveis anos <strong>de</strong> direcção <strong>de</strong> Christoph Dammann.<br />

É então claro que a pragmática do compositor é a<br />

<strong>de</strong> “musicar um libreto”. Dir-se-á que é uma atitu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> subserviência, mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter consi<strong>de</strong>ráveis<br />

ganhos em termos <strong>de</strong> inteligibilida<strong>de</strong> da obra – o que é<br />

um sério problema <strong>de</strong> muitas óperas contemporâneas,<br />

tanto mais <strong>de</strong> assinalar quanto entretanto Côrte-Real<br />

foi <strong>de</strong> vários modos adquirindo rodagem <strong>de</strong> palco,<br />

e também do canto, para o qual é patente que sabe<br />

escrever. Ainda assim, essa pragmática associada ao<br />

pluriestilismo que o vem caracterizando, e que em si<br />

mesmo é um gesto <strong>de</strong> relevo, coloca um risco: o <strong>de</strong><br />

uma obra, na sua multiplicida<strong>de</strong> interna, ter muitos<br />

caracteres mas não um “carácter” musical distintivo.<br />

São muitas as referências musicais em “Banksters” e é<br />

notável a flui<strong>de</strong>z da sua integração no discurso musical.<br />

Consi<strong>de</strong>remos a referência ao “Rigoletto” <strong>de</strong> Verdi.<br />

Graça Moura, que com especial ironia paródica crismou<br />

o banqueiro <strong>de</strong> Santiago Malpago, chamou também<br />

ao anjo Angelino Rigoletto e à mulher do primeiro<br />

Mimi Kitsch, parodiando “La Bohème” <strong>de</strong> Puccini. Se a<br />

paródia a Mimi se per<strong>de</strong>, é surpreen<strong>de</strong>nte o modo como<br />

se integra a citação <strong>de</strong> “La donna è mobile”, a célebre<br />

ária do “Rigoletto” – é a “repetição que inclui diferença”<br />

e a “imitação com distância” da paródia nos termos <strong>de</strong><br />

Hutcheon.<br />

É nesses termos paródicos latos que há também a<br />

salientar o recurso a formas tradicionais, e não apenas<br />

da tradição erudita, como a valsa, a habanera ou o fado,<br />

embora me pergunte se esse recurso não é também <strong>de</strong><br />

algum modo uma dispersão, pois ocorre sobretudo no<br />

Acto II que, sendo longo <strong>de</strong> mais, é o ponto problemático<br />

da ópera. Não há pois apenas “subserviência” ao texto<br />

mas, mais importante e ponto nodal da obra, a coerência<br />

entre as estratégias do libreto e da composição. E esse é<br />

um sucesso a ser <strong>de</strong>vidamente sublinhado.<br />

Não estamos contudo perante uma obra em abstracto<br />

mas um espectáculo, que, além dos autores, assenta<br />

noutros três pilares, o encenador João Botelho, o<br />

maestro Lawrence Rennes e o protagonista Jorge Vaz <strong>de</strong><br />

Carvalho.<br />

Depois <strong>de</strong> um progressivo afunilamento e<br />

esquematismo no seu percurso, até toda a lamentável<br />

história <strong>de</strong> “Corrupção”, Botelho está em novo<br />

florescimento criativo, com o esplêndido “Filme do<br />

Desassossego” e agora esta estreia na ópera. Di<strong>de</strong>rot,<br />

que ele adaptou em “Tiago, o Fatalista”, escreveu<br />

também “O Paradoxo do Comediante”. Em Botelho há<br />

agora um “paradoxo do teatro”. Ele, cineasta austero,<br />

<strong>de</strong>ixou-se fascinar pela máxima irrealida<strong>de</strong> teatral<br />

da apoteose que é a ópera. É certo que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

haver similitu<strong>de</strong>s entre a actualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “Banksters”<br />

e uma postura cinematográfica que tem como objecto<br />

46 • Sexta-feira 25 Março 2011 • Ípsilon


fundamental metáforas do Portugal contemporâneo.<br />

Mas a passagem para a ópera é um enorme e arriscado<br />

salto. Mesmo que surpreendam alguns aspectos mais<br />

berrantes, nomeadamente nas luzes, a gestão do espaço<br />

e das movimentações, o inteligente uso dos cenários <strong>de</strong><br />

fundo e sobretudo o arguto entendimento da obra e da<br />

sua musicalida<strong>de</strong> fazem <strong>de</strong>sta estreia um sucesso.<br />

Rennes dirige a obra com uma segurança e<br />

<strong>de</strong>senvoltura notáveis. E Vaz <strong>de</strong> Carvalho, que a meu ver<br />

andou anos perdido em cargos <strong>de</strong> administração cultural<br />

pública, regressa com um timbre, uma dicção e uma<br />

projecção <strong>de</strong> voz imaculados. Mas há também a referir<br />

Sara Braga Simões e um <strong>de</strong>veras equilibrado conjunto <strong>de</strong><br />

secundários.<br />

Christoph Dammann foi chamado pelo secretário <strong>de</strong><br />

Estado Mário Vieira <strong>de</strong> Carvalho para concretizar um<br />

gesto <strong>de</strong> dirigismo cultural como não havia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

processo revolucionário, a estreia <strong>de</strong> “Das Märchen”, <strong>de</strong><br />

Emmanuel Nunes. Afinal, o melhor <strong>de</strong> Dammann ocorre<br />

agora “a posteriori”, com a encomenda <strong>de</strong> “Banksters”,<br />

já <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido <strong>de</strong>mitido e substituído por Martin<br />

André, que não dá sinais <strong>de</strong> um projecto (e há também<br />

a <strong>de</strong>missão do presi<strong>de</strong>nte da empresa, Jorge Salavisa).<br />

Continua o folhetim da crise em São Carlos, com<br />

próximas cenas…<br />

P.S. – Vasco Graça Moura é um distinto poeta, ensaísta<br />

e tradutor e foi durante anos gestor cultural público.<br />

É também um colunista sectário e <strong>de</strong>magogo, que<br />

escolheu como um dos seus alvos <strong>de</strong> eleição os ditos<br />

“subsidio<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes”, os artistas que o Estado apoia<br />

para a criação contemporânea. É certo que sempre<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u uma política patrimonial pública incluindo os<br />

teatros nacionais, mas para apresentarem o reportório<br />

clássico, coisa que, como uma vez lhe ouvi, um Beckett<br />

não seria! Então agora afinal como é?<br />

ALFREDO ROCHA/CORTESIA TEATRO NACIONAL DE SÃO CARLOS<br />

Rogério Casanova<br />

James Wood,<br />

um crítico<br />

quase<br />

fanaticamente<br />

prescritivo<br />

A Vírgula <strong>de</strong> Oxford<br />

Embaraçosamente<br />

É embaraçoso dizer isto, mas nem sempre os críticos têm razão.<br />

O problema é que, quando são bons, é muito provável que estejam<br />

errados e sejam interessantes ao mesmo tempo.<br />

Isto po<strong>de</strong> ser uma enorme surpresa para os<br />

leitores do Ípsilon, habituados à sua dose<br />

semanal <strong>de</strong> infalibilida<strong>de</strong>, mas um dos segredos<br />

mais bem guardados entre a comunida<strong>de</strong> crítica<br />

é o <strong>de</strong> que os críticos, por vezes, cometem<br />

erros. A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

escon<strong>de</strong>r este segredo do povo<br />

é fácil <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

seja um crítico a explicar, pois<br />

<strong>de</strong> outra forma é praticamente<br />

impossível o povo enten<strong>de</strong>r o que<br />

quer que seja. O segredo guardase<br />

porque o crítico sofre. Já é<br />

tarefa árdua andar a lutar sozinho<br />

contra a <strong>de</strong>generação dos apetites<br />

contemporâneos e a aflitiva<br />

frivolida<strong>de</strong> dos gostos da ralé (i.e.:<br />

vocês), sem que a legitimida<strong>de</strong><br />

e a pureza do processo sejam<br />

questionadas e sabotadas <strong>de</strong>ntro<br />

das muralhas. Para <strong>de</strong>scansar<br />

as mentes mais sobressaltadas,<br />

impõe-se a ressalva <strong>de</strong> que os<br />

erros cometidos pelos críticos<br />

quase nunca são fruto <strong>de</strong><br />

incompetência (só o povo, por<br />

<strong>de</strong>finição, é incompetente, além<br />

<strong>de</strong> bárbaro e perigoso); muitos<br />

<strong>de</strong>les, aliás, são uma consequência<br />

in<strong>de</strong>sejada mas inevitável – um<br />

efeito secundário, por assim dizer<br />

– das mesmas faculda<strong>de</strong>s que<br />

tornam o crítico valioso.<br />

Um exemplo esclarecedor po<strong>de</strong><br />

ser encontrado em “How Fiction<br />

Works”, on<strong>de</strong> o crítico James<br />

Wood <strong>de</strong>dica um capítulo a exaltar<br />

as virtu<strong>de</strong>s do estilo indirecto<br />

livre como instrumento ímpar<br />

na representação <strong>de</strong> processos<br />

<strong>de</strong> consciência distintos. Um<br />

dos exemplos é retirado <strong>de</strong> uma novela <strong>de</strong> Henry<br />

James (“What Maisie Knew”), e preten<strong>de</strong> ilustrar o<br />

processo pelo qual a narração na terceira pessoa<br />

<strong>de</strong>sliza para o interior <strong>de</strong> Maisie, culminando nesta<br />

passagem: “(...) Clara Matilda, que estava no céu e<br />

também, embaraçosamente, em Kensal Green, on<strong>de</strong><br />

tinham ido todos juntos para ver a sua pequena campa<br />

aconchegada”.<br />

Wood elabora: “O génio <strong>de</strong> James concentra-se<br />

numa única palavra: ‘embaraçosamente’. É aí que toda<br />

a ênfase repousa. (…) A quem pertence a a palavra<br />

‘embaraçosamente’? A Maisie: é embaraçoso para<br />

uma criança testemunhar a mágoa dos adultos, e<br />

sabemos que Mrs. Wix se refere a Clara Matilda como a<br />

‘irmãzinha morta’ <strong>de</strong> Maisie. Po<strong>de</strong>mos imaginar Maisie<br />

ao pé <strong>de</strong> Mrs. Wix no cemitério <strong>de</strong> Kensal Green (…),<br />

<strong>de</strong>sconfortável e envergonhada, simultaneamente<br />

impressionada e com um bocadinho <strong>de</strong> medo da mágoa<br />

<strong>de</strong> Mrs. Wix”.<br />

Parece-me impossível não perceber que o<br />

“embaraçosamente” não representa nada disto. O<br />

advérbio não é uma extensão da linguagem interior<br />

<strong>de</strong> Maisie, mas sim <strong>de</strong> um capricho do autor. O que é<br />

“embaraçoso” é apenas o facto <strong>de</strong> uma pessoa, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> morta, po<strong>de</strong>r habitar simultaneamente dois lugares<br />

diferentes: o céu e um cemitério. Po<strong>de</strong>mos até admitir<br />

(com a generosida<strong>de</strong> que nos caracteriza) que James<br />

<strong>de</strong>legou a uma criança um comentário sofisticado<br />

sobre o ridículo das superstições “post-mortem” dos<br />

adultos; mas esse é o limite. Transformar um advérbio<br />

evi<strong>de</strong>ntemente intrusivo num triunfo do discurso<br />

indirecto livre é mera ofuscação: a palavra não é <strong>de</strong><br />

Maisie, personagem, mas sim <strong>de</strong> Henry James, autor,<br />

ateu e (neste caso) cómico “stand-up”.<br />

Isto não retira um semi-átomo <strong>de</strong> mérito a James<br />

Wood. “Ter razão” sempre me pareceu o mais<br />

Aa maneira mais<br />

segura <strong>de</strong> ter sempre<br />

razão é limitar a<br />

análise àquilo que é<br />

<strong>de</strong>masiado evi<strong>de</strong>nte<br />

para ser refutado ou<br />

<strong>de</strong>masiado lunático<br />

para ser <strong>de</strong>batido<br />

dispensável dos atributos críticos, até porque a maneira<br />

mais segura <strong>de</strong> ter sempre razão é limitar a análise<br />

àquilo que é <strong>de</strong>masiado evi<strong>de</strong>nte para ser refutado ou<br />

<strong>de</strong>masiado lunático para ser <strong>de</strong>batido. É no espaço<br />

entre o banal e o absurdo (e entre o cânone e a lixeira)<br />

que resi<strong>de</strong> a incerteza, e o mérito<br />

<strong>de</strong> qualquer crítico me<strong>de</strong>-se pela<br />

grau <strong>de</strong> interesse e originalida<strong>de</strong><br />

que impõe à sua movimentação<br />

nessas áreas cinzentas. O<br />

problema é quando os críticos<br />

da estirpe <strong>de</strong> Wood promovem o<br />

seu <strong>de</strong>sembaraço para negociar<br />

incertezas específicas a uma<br />

doutrina aplicável a qualquer<br />

situação genérica.<br />

Como os gramaticólogos ou<br />

sexólogos, os críticos situamse<br />

numa linha <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong><br />

entre dois pólos: o <strong>de</strong>scritivo e o<br />

prescritivo. Wood transformou-se<br />

num crítico quase fanaticamente<br />

prescritivo, o que significa que<br />

todas as suas <strong>de</strong>cisões sobre o<br />

que tem ou não valor são tomadas<br />

“a priori”, e os seus po<strong>de</strong>res <strong>de</strong><br />

observação e argumentação são<br />

distorcidos em conformida<strong>de</strong>.<br />

Como qualquer fanático, arriscase<br />

a encontrar apenas o que quer<br />

ver. O caso em questão ilustra os<br />

problemas inerentes a este <strong>de</strong>svio:<br />

o leitor tem mais probabilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> ser educado sobre o processo<br />

prescrito (o estilo indirecto livre)<br />

do que sobre o exemplo <strong>de</strong>scrito<br />

(o excerto <strong>de</strong> Henry James). Mas<br />

também <strong>de</strong>monstra que, quando<br />

há talento, é “embaraçosamente”<br />

fácil um fanático estar errado e ser<br />

interessante ao mesmo tempo.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 25 Março 2011 • 47

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