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COMUNICAÇÃO e escola<br />
<br />
Entre a ágora e o Speakers’ Corner<br />
IE / FN<br />
Final de tarde quase ensolarada de um domingo no Hyde Park, em<br />
Londres. De pé, nos bancos elevados à categoria de tribunas no<br />
Speakers’ Corner, pessoas fazem discursos que, por vezes, parecem<br />
competir e se misturar. Muitas pessoas passam. Umas apenas<br />
sorriem, outras dão de ombros e outras, ainda, parecem responder<br />
à interpelação. Os locutores presentes não têm a notoriedade dos<br />
que ali estiveram nos últimos séculos. Percebo que imperam temas<br />
relacionados à religião e à política, nesta ordem. Uns falam do apocalipse<br />
e da salvação da alma, no outro mundo, enquanto outros<br />
falam de alternativas para uma existência mais digna neste mundo.<br />
Naquele território, regras discursivas podem ser quebradas: (quase)<br />
tudo pode ser dito por qualquer um.<br />
Aquele canto do parque até sugere uma miniatura moderna da ágora,<br />
expressão máxima da esfera pública na Grécia. Sem as assembleias<br />
características da democracia directa ateniense, sem que haja<br />
discussões com consequências políticas concretas, podendo haver<br />
apenas monólogos sucessivos, sem que todos os cidadãos tenham<br />
direito a voz e a voto, mas também (quase) sem censura ou riscos.<br />
Sem policiamento, diferentemente de uma manifestação popular na<br />
véspera, em frente à residência de Tony Blair.<br />
Naquele momento, todos os locutores são homens e aparentam mais<br />
de trinta anos. Também há pequenas aglomerações que sugerem filas<br />
de espera: gente querendo falar. Os que já estão nas “tribunas”<br />
não parecem dispostos a descer tão cedo. A atmosfera sugere um<br />
misto de desejo de tomar a palavra e impaciência de ouvir a palavra<br />
do outro. Chego a imaginar muitos outros bancos para aliviar a ansiedade<br />
percebida, mas, naquele espaço físico, também há muita gente<br />
que parece apenas querer relaxar na grama,<br />
sem falar ou ouvir. O parque, público,<br />
para ser democrático, precisa dar espaço<br />
aos múltiplos desejos.<br />
Continuando a caminhar, penso na Internet<br />
que, descolada de base física bem demarcada,<br />
tem sido comumente representada<br />
como o reino da liberdade e da democracia,<br />
na celebração do paradigma tecnoinformacional.<br />
Uma espécie de nova ágora,<br />
com alcance global: um território sem<br />
limites, sem amarras, uma rede sem fim,<br />
tecida por múltiplas conexões e possibilidades.<br />
Penso na ausência de jovens entre<br />
os locutores presentes e nas muitas comunidades<br />
virtuais de que eles tendem a fazer<br />
parte, ocupando outros espaços, desterritorializados,<br />
para falar e ouvir, escrever<br />
e ler mensagens. Nessas comunidades, é<br />
possível instaurar inúmeros corners, assim<br />
como ocupá-los por um tempo que parece<br />
tão desdobrável quanto páginas que traçam<br />
mapas de muitas navegações.<br />
De vários modos, as próteses tecnológicas<br />
disponíveis, dos computadores aos mais<br />
variados gadgets, fazem parecer anacrônico<br />
aquele espaço no parque. A presença<br />
física é dispensável, assim como tomar a<br />
palavra, no sentido tradicional da expressão,<br />
face à simultaneidade (quase) irrestrita<br />
das falas possíveis. Entretanto, não há<br />
como ignorar a ausência de participação<br />
igualitária nas redes de informação, seja<br />
pela desigualdade de acesso que sustenta<br />
o tecno-apartheid, seja pelas restrições<br />
determinadas por condições objetivas. Em<br />
outras palavras, o mundo não está todo<br />
conectado, nem a internet longe das múltiplas<br />
regulações econômicas, políticas e<br />
sociais. Nem tão livre, nem tão democrática,<br />
constitui um novo espaço de confrontação<br />
de idéias, símbolos e visões de mundo,<br />
colocando em jogo valores antagônicos.<br />
Entre a utopia de uma ágora planetária e a<br />
multiplicação de Speakers’ Corners, como<br />
que desafiando alternativas para ir além.<br />
Raquel Goulart Barreto<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil<br />
Erva moira<br />
Memórias da minha morte<br />
Uma audição comentada por Fernando Lopes Graça<br />
O que aqui é lido (nunca antes de Janeiro de 2007) foi escrito, na melhor das hipóteses,<br />
em Dezembro de 2006. Refiro isto por querer evocar Fernando Lopes Graça - a pretexto<br />
do primeiro centenário do seu nascimento, celebrado em 2006 - , numa memória que<br />
incluirei num rol de “memórias da minha morte”, título estranho para velhas notas de<br />
reportagem, inéditas, há tanto tempo esquecidas que algumas nem conseguirei datar<br />
com rigor. É o caso desta que remontará a 1976.<br />
Aconteceu depois do 25 de Abril. Tenho a certeza. Antes seria impossível, não havia<br />
condições para organizar uma audição de obras de Fernando Lopes Graça, comentada<br />
pelo próprio maestro. Digo que a audição em causa terá ocorrido em 1976, pois foi o<br />
ano em que o maestro completou 70 anos e 50 de actividade criadora. É plausível que<br />
tenha acontecido por esta razão. A iniciativa partiu do Orfeão Académico de Coimbra e<br />
foi marcada para a sala 17 de Abril, do Edifício das Matemáticas, em Coimbra.<br />
À hora do costume (as nove e meia da noite), o maestro, acompanhado pela dra Isabel<br />
Parra, então directora do Orfeão Académico de Coimbra, pelo Carlos Santos, também do<br />
Orfeão, e por mim, aguardava, no local, a chegada do público. Estranhamente, ou não,<br />
esta audição, de entrada livre e amplamente publicitada, só mobilizou um interessado, o<br />
prof. dr. Orlando de Carvalho, que chegou a horas e que aguentou os dois ou três quartos<br />
de hora de tolerância académica com que esperamos, em vão, por mais público.<br />
A incomodidade da situação foi superada pelo dr. Orlando de Carvalho que convidou o maestro e os organizadores<br />
a transferirem-se para casa dele – numa das torres da Solum –, não para a audição comentada mas para<br />
uma noite de tertúlia coimbrã, com boa bebida e boa companhia, durante a qual os mais novos confirmaram<br />
que, muitas vezes, aprende-se mais no calor de um bar nocturno, ou em casa de amigos, do que em algumas<br />
frias salas da Universidade.<br />
Para mim e para a Isabel (julgo que o Carlos Santos acabou por não ir a casa do dr. Orlando de Carvalho), a<br />
noite foi um encantamento e um privilégio. Mesmo a falarem de coisas vulgares - recordo alguns “segredos” de<br />
vida intelectual de Lisboa -, o maestro Fernando Lopes Graça e o prof. dr Orlando de Carvalho eram dois comunicadores<br />
de excepção e ouvi-los era um “deslumbramento de imenso”, para utilizar um verso de Ungaretti,<br />
por sinal traduzido por Orlando de Carvalho.<br />
A noite terminou horas tantas, quando eu e a Isabel fomos deixar o maestro Fernando Lopes Graça ao velho Hotel<br />
Bragança, onde lhe tínhamos marcado quarto, com a incumbência de assegurar, junto da recepção do hotel,<br />
que o pequeno almoço do maestro, na manhã seguinte, não fosse a ementa habitual, de leite, café e torradas<br />
com manteiga, mas algo mais substancial e português como o maestro preferia.<br />
Júlio Roldão<br />
Jornalista<br />
roldeck@gmail.com