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EM PORTUGUÊS<br />
Trigo limpo<br />
O “espírito europeu”<br />
e os outros<br />
Milícias apoiadas<br />
pela polícia actuam<br />
nas favelas<br />
do Rio de Janeiro<br />
De acordo com um relatório recentemente divulgado<br />
pelo jornal diário brasileiro “O Globo”, um número<br />
crescente de favelas do Rio de Janeiro estão a ser<br />
controladas por milícias que recebem o apoio das<br />
forças de segurança públicas para combater os narcotraficantes<br />
locais.<br />
A notícia do Globo, que se baseia num documento<br />
interno produzido pela autarquia desta cidade, afirma<br />
que esta espécie de polícia paralela é formada por<br />
membros no activo e na reserva de forças de segurança,<br />
bombeiros, guardas prisionais, vigilantes e<br />
mesmo antigos elementos de grupos de extermínio,<br />
contando com o apoio de líderes comunitários e de<br />
partidos políticos. Citando dados da Secretaria de<br />
Segurança Pública do Rio de Janeiro, as referidas<br />
milícias aumentaram o controlo de 42 para 92 favelas<br />
nos últimos vinte meses.<br />
“Os habitantes das favelas dirão que não trocam estes<br />
lugares por nenhuma outra, porque vivem em<br />
segurança e dormem com as janelas abertas”, disse<br />
a inspectora de Departamento de Combate aos Narcóticos<br />
da Polícia Civil brasileira, Marina Maggessi.<br />
Esta responsável, uma reconhecida figura no combate<br />
ao crime, eleita deputada federal em Outubro do ano<br />
passado, afirmou também que apesar de não defender<br />
as milícias considera ser necessário “analisar este fenómeno<br />
do ponto de vista dos habitantes das favelas”.<br />
Afinal, trata-se de uma escolha entre “o mal e o pior”.<br />
Uma recente investigação divulgada pelo Instituto<br />
Brasileiro de Inovação em Saúde Social (IBISS) indicou<br />
que mais de 8500 menores entre os 8 e os 18<br />
anos estão armados e trabalham para narcotraficantes<br />
em 379 pontos de venda de drogas nas 235 principais<br />
favelas do Rio de Janeiro (de um total aproximado<br />
de seiscentas). Oitenta por cento destes jovens<br />
morrem antes de atingir os 21 anos, baleados pela<br />
polícia ou por elementos de bandos rivais.<br />
A mesma investigação mostrou ainda que nas 235 favelas<br />
referenciadas existem 16.400 jovens empregues<br />
directamente no tráfico de droga, cumprindo a função<br />
de “olheiros” – prevenindo sobre a chegada da polícia<br />
ou de grupos rivais – “soldados”, correios de droga<br />
ou traficantes. A participação de menores neste negócio<br />
aumentou 27,5 por cento desde 2002, sublinha o<br />
IBISS, referindo ainda que os traficantes são, desde<br />
há quatro anos, “o principal empregador dos jovens<br />
entre os 16 e os 18 anos” no Rio de Janeiro.<br />
Entre estes jovens, o número de raparigas passou de<br />
12,5 para 15,5 por cento. Os menores que trabalham<br />
como soldados representam o dobro dos efectivos<br />
dos três batalhões de polícia destacados na zona sul<br />
da cidade (Botafogo, Copacabana e Leblon), refere o<br />
documento.<br />
RC/ Fonte: AFP<br />
Quem leu o discurso, que o semanário EXPRESSO publicou,<br />
proferido por Durão Barroso numa conferência realizada,<br />
no passado mês de Novembro, em Berlim, sob a égide<br />
da Comissão Europeia, haveria de compreender as reservas<br />
levantadas por alguns dos seus pares, que entendiam não<br />
ser adequado ao Presidente falar da “dimensão cultural” da<br />
Europa, área em que a Comissão, segundo eles, tinha reduzida<br />
competência.<br />
Na verdade, se já o título do discurso –“Uma Alma para a<br />
Europa”- abria a porta à controvérsia, num momento em que<br />
se questiona a entrada plena da Turquia, defender que os<br />
valores do “espírito europeu” – ditos da liberdade, do humanismo<br />
e da tolerância - não são negociáveis, era o mesmo<br />
que dizer “não” e em voz alta (palavras de Barroso) à candidatura<br />
do que seria o país mais populoso da União Europeia,<br />
tendo apenas uma pequeníssima parcela do território<br />
inserida no continente europeu e possuindo uma matriz cultural<br />
predominantemente muçulmana, com tudo o que isso<br />
implica no modelo de sociedade.<br />
Noutro tempo e noutras conferências participadas por figuras<br />
de primeira plana da Cultura, como foram os Encontros<br />
Internacionais de Genebra, já tinha sido debatido o tema<br />
agora aflorado por Durão Barroso: designadamente, no primeiro,<br />
em 1946, em torno do “espírito europeu”, e o oitavo,<br />
em 1953, diante da “angústia” provocada pelas “ameaças”<br />
da União Soviética e da Ásia – sobre “A Angústia do Tempo<br />
Presente e os Deveres do Espírito”.<br />
Eram discursos tendencialmente axiológicos, em que se<br />
analisava a necessidade de defender os valores civilizacionais<br />
da Europa que sobrevivera, qual Fénix ressuscitada, à<br />
barbárie nazi, e se refundava o “espírito europeu” a partir dos<br />
rizomas do cristianismo e da Revolução Francesa, tendo por<br />
cânones a liberdade, a igualdade e a fraternidade.<br />
Sobre esta tríade, assentou o seu discurso o ministro francês<br />
Robert Schuman, – que seria, cinco anos depois, presidente<br />
do Parlamento Europeu – mas colocando uma segunda<br />
tónica no imperativo de a Europa se organizar política e<br />
economicamente. “A Europa necessita de viver melhor pondo<br />
em comum a plenitude dos seus recursos. Deve tornarse<br />
uma entidade actuante, consciente das suas particularidades,<br />
organizando-se em vista das respectivas necessidades<br />
e possibilidades particulares. Encontra-se situada no<br />
centro de um mundo que deixou de ser também uma massa<br />
informe e confusa, que só desperta quando espicaçada pelos<br />
conflitos esporádicos. A questão da Europa encontra-se<br />
assim posta independentemente do perigo comunista ou<br />
asiático.”<br />
Durão Barroso repetiu genericamente as reflexões de<br />
Schuman, com as variantes surgidas no intervalo de cinquenta<br />
anos: o “perigo comunista” foi substituído pelo<br />
“crescendo do fanatismo e do fundamentalismo” (que em<br />
1953 não eram problema, pois cada um estava em seu sítio),<br />
e quanto ao “perigo asiático” (Schuman prefigurava-o pela<br />
China, Índia e Japão), cumpriria à globalização neo-liberal<br />
(que Barroso introduz no seu discurso) neutralizar os demónios<br />
emergentes...<br />
Diz Barroso: “A globalização pode gerar em alguns europeus<br />
um sentimento de alienação e até de perda de identidade.<br />
Isso não deve acontecer. A Europa tem de responder. E a<br />
melhor resposta que pode dar é preservar os seus valores.<br />
Preparando-se para enfrentar as novas formas de concorrência<br />
no mercado mundial e fazendo apelo ao seu capital<br />
humano e ao seu saber, a Europa pode dotar-se dos meios<br />
necessários à construção de uma sociedade europeia dinâmica,<br />
criativa e aberta. Acima de tudo, é adaptando-se à<br />
mudança que a Europa será capaz de<br />
permanecer fiel aos seus valores.”<br />
Schuman também se mostrava favorável<br />
a uma “abertura”, e, evocando a<br />
adesão, em 1949, da Turquia ao Conselho<br />
da Europa e à N.A.T.O., concedia<br />
que uma “Europa nova seria uma<br />
síntese e uma integração ‘culturais’<br />
mais amplas e não limitada de forma<br />
alguma a uma tradição de cultura limitada<br />
e acanhada.”<br />
Mas foi Mircea Eliade, reputado cientista<br />
social romeno, quem, focando as<br />
culturas asiáticas, dilucidou o significado<br />
e o alcance duma “abertura” e/<br />
ou “adaptação”:<br />
“Se a cultura ocidental não deseja provincializar-se,<br />
será obrigada a estabelecer<br />
o diálogo com as outras culturas<br />
não europeias, esforçando-se por não<br />
se enganar demasiado no sentido dos<br />
termos. É urgente para nós compreender<br />
a forma como estamos situados e<br />
iremos ser julgados, como forma cultural,<br />
pelos participantes das culturas<br />
extra-europeias. (...) Para adivinhar de<br />
que maneira seremos situados e julgados<br />
pelos representantes das outras<br />
culturas, torna-se indispensável<br />
aprendermos a confrontar-nos com<br />
elas, e isto só será possível se lograrmos<br />
colocar-nos na perspectiva do<br />
seu horizonte religioso. É somente<br />
nesta perspectiva que o confronto se<br />
tornará válido e útil.”<br />
Era então inimaginável um futuro afectado<br />
pelas “angústias” de um ameaçador<br />
Islão não laico nem republicano,<br />
tão avesso ao espírito da Bíblia e da<br />
Revolução Francesa quanto fiel ao espírito<br />
do Corão e do Califado.<br />
Donde, se a Europa não “negociar”<br />
as fronteiras das duas civilizações que<br />
uma história de séculos ainda não diluiu,<br />
– sem prejuízo dos negócios que<br />
sempre realizaram, e dos quais a decantada<br />
Globalização é a moderna<br />
variante – o “diálogo entre culturas”<br />
almejado por Barroso não passará de<br />
um diálogo de surdos. Entenda-mo-lo:<br />
“Escutemos. Estendamos a mão. Mas<br />
afirmemos também que, enquanto europeus,<br />
pomos os nossos valores de<br />
tolerância e liberdade acima de qualquer<br />
outra coisa.”<br />
Dir-se-á então que o problema da Europa,<br />
hoje, é só um: escolher (se não<br />
for conciliável) entre os deveres do seu<br />
espírito e as exigências do mercado<br />
global.<br />
Leonel Cosme<br />
Investigador, Porto<br />
a página da educação · janeiro 2007 31