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eventos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> em sua visão de mun<strong>do</strong>. Isso mu<strong>do</strong>u. Uma novahistoriografia ganha força no Brasil. Se no começo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990 ojornalista Paulo Francis falava de ”rinocerontes à la Ionesco que passam porhistoria<strong>do</strong>res em nosso país”, na última déca<strong>da</strong> apareceram acadêmicosalertas de que não são políticos a escrever manifestos. Eles tentam elaborarconclusões científicas basea<strong>da</strong>s em arquivos inexplora<strong>do</strong>s de cartórios,igrejas ou tribunais, têm mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong> ao falar de conseqüências de umalógica financeira e pesquisam sem se importar tanto com o uso ideológicode suas conclusões. As interpretações que tiram <strong>do</strong> armário são maiscomplexas e, numa boa parte <strong>da</strong>s vezes, saborosamente desagradáveis paraos que a<strong>do</strong>tam o papel de vítimas ou bons mocinhos.A história fica assim muito mais interessante. No século 18, quemquisesse ir de Parati, no Rio de Janeiro, à atual Ouro Preto, em MinasGerais, tinha que cavalgar por <strong>do</strong>is meses — no caminho, passava porcasebres miseráveis onde moravam tanto escravos quanto seus senhores, quetrabalhavam juntos e comiam, sem talheres, na mesma mesa. Sabe-se hojeque, nas vilas <strong>do</strong> ouro de Minas, havia ex-escravas riquíssimas, <strong>do</strong>nas decasas, jóias, porcelanas, escravos, e bem relaciona<strong>da</strong>s com outrosempresários. Os primeiros sambistas, considera<strong>do</strong>s hoje pioneiros <strong>da</strong> culturapopular, tinham formação em música clássica, plagiavam cançõesestrangeiras e largaram o samba para montar ban<strong>da</strong>s de jazz. Uma <strong>da</strong>sconseqüências <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>do</strong>s jesuítas a São Paulo foi <strong>da</strong>r um alívio à mataatlântica — até então, os índios botavam fogo na floresta não só para abrirespaço de cultivo, mas para cercar os animais com o fogo e depois abatê-los.O problema é que essa nova história demora a chegar às pessoas emgeral. Os livros didáticos continuam dizen<strong>do</strong> que o ver<strong>da</strong>deiro nome deZumbi era Francisco e que ele teve educação católica - uma ficção cria<strong>da</strong>


pelo político e jornalista gaúcho Décio Freitas. Ain<strong>da</strong> se aprende na escolaque o Brasil praticou um genocídio no Paraguai durante uma guerra queteria si<strong>do</strong> cria<strong>da</strong> pela Inglaterra. E tem muito descendente de europeuachan<strong>do</strong> que é culpa<strong>do</strong> pelo tráfico de escravos, apesar de a maioria de seusancestrais ter imigra<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a escravidão se extin<strong>guia</strong>.No processo de fabricação de um espírito nacional, é normal que seinventem tradições, heróis, mitos fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res e histórias de chorar, que sejogue um brilho a mais em episódios que criam um passa<strong>do</strong> em comumpara to<strong>do</strong>s os habitantes e provocam uma sensação de pertencimento. Seeste país quer deixar de ser café com leite, um bom jeito de amadurecer éadmitir que alguns <strong>do</strong>s heróis <strong>da</strong> nação eram picaretas ou pelo menospessoas <strong>do</strong> seu tempo. E que a história nem sempre é uma fábula: não temuma moral edificante no final e nem causas, conseqüências, vilões e vítimasfacilmente reconhecíveis.Por isso é hora de jogar tomates na historiografia <strong>politicamente</strong>correta. Este <strong>guia</strong> reúne histórias que vãodiretamente contra ela. Só erros <strong>da</strong>s vítimas e <strong>do</strong>s heróis <strong>da</strong>bon<strong>da</strong>de, só virtudes <strong>do</strong>s considera<strong>do</strong>s vilões. Alguém poderá dizer que setrata <strong>do</strong> mesmo esforço <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res militantes, só que na direçãooposta. É ver<strong>da</strong>de. Quer dizer, mais ou menos. Este livro não quer ser umfalso estu<strong>do</strong> acadêmico, como o <strong>da</strong>queles estudiosos, e sim uma provocação.Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias, irritantes edesagradáveis, escolhi<strong>da</strong>s com o objetivo de enfurecer um bom número deci<strong>da</strong>dãos.


mun<strong>do</strong>, que só algumas dúzias de pessoas <strong>do</strong> seu país visitaram. Há sobre olugar relatos tenebrosos de selvagens guerreiros que falam uma línguaestranha, an<strong>da</strong>m nus e devoram seus inimigos — ao chegar, você percebeque isso é ver<strong>da</strong>de. Seu grupo está em vinte ou trinta pessoas; eles, emmilhares. Mesmo com espa<strong>da</strong>s e arcabuzes, sua munição é limita<strong>da</strong>, ocarregamento é demora<strong>do</strong> e não contém os milhares de flechas que elespossuem. Numa condição dessas, é provável que você sentisse me<strong>do</strong> ou pelomenos que preferisse evitar conflitos. Faria algumas concessões para queaquela multidão de pessoas estranhas não se irritasse.Para deixar os índios felizes, não bastava aos portugueses entregarlhesespelhos, ferramentas ou roupas. Eles de fato ficaram impressiona<strong>do</strong>scom essas coisas (veja mais adiante), mas foi um pouco mais difícilconquistar o apoio indígena. Por mais revolucionários que fossem as roupase os objetos de ferro europeus, os índios não viam senti<strong>do</strong> em acumularbens: logo se cansavam de facas, anzóis e macha<strong>do</strong>s. Para permanecereminstala<strong>do</strong>s, os recém-chega<strong>do</strong>s tiveram que soprar a brasa <strong>do</strong>s caciquesestabelecen<strong>do</strong> alianças militares com eles. Dan<strong>do</strong> e receben<strong>do</strong> presentes, osíndios acreditavam selar acor<strong>do</strong>s de paz e de apoio quan<strong>do</strong> houvesse algumaguerra. E o que sabiam fazer muito bem era se meter em guerras.O massacre começou muito antes de os portugueses chegarem. Ashipóteses arqueológicas mais consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s sugerem que os índios <strong>da</strong> famílialinguística tupi-guarani, originários <strong>da</strong> Amazônia, se expandiam lentamentepelo Brasil. Depois de um crescimento populacional na floresta amazônica,teriam enfrenta<strong>do</strong> alguma adversi<strong>da</strong>de ambiental, como uma grande seca,que os empurrou para o Sul. À medi<strong>da</strong> que se expandiram, afugentaramtribos então <strong>do</strong>nas <strong>da</strong> casa. Por volta <strong>da</strong> vira<strong>da</strong> <strong>do</strong> primeiro milênio,enquanto as legiões romanas avançavam pelas planícies <strong>da</strong> Gália, os


tupis-guaranis conquistavam territórios ao sul <strong>da</strong> Amazônia, exterminan<strong>do</strong>ou expulsan<strong>do</strong> inimigos. Índios caingangues, cariris, caiapós e outros <strong>da</strong>família linguística jê tiveram que aban<strong>do</strong>nar terras <strong>do</strong> litoral e migrar paraplanaltos acima <strong>da</strong> serra <strong>do</strong> Mar.Em 1500, quan<strong>do</strong> os portugueses apareceram na praia, a nação tupise espalhava de São Paulo ao Nordeste e à Amazônia, dividi<strong>da</strong> em diversastribos, como os tupiniquins e os tupinambás, que disputavam espaçotravan<strong>do</strong> guerras constantes entre si e com índios de outras famíliaslinguísticas. Não se sabe exatamente quantas pessoas viviam no atualterritório <strong>brasil</strong>eiro - as estimativas variam muito, de l milhão a 3,5 milhõesde pessoas, dividi<strong>da</strong>s em mais de duzentas culturas. Ain<strong>da</strong> demoraria algunsséculos para essas tribos se reconhecerem na identi<strong>da</strong>de única de índios, umconceito cria<strong>do</strong> pelos europeus. Naquela época, um tupinambá achava umbotocu<strong>do</strong> tão estrangeiro quanto um português. Guerreava contra umtupiniquim com o mesmo gosto com que devorava um jesuíta. Entre to<strong>do</strong>sesses povos, a guerra não era só comum - também fazia parte <strong>do</strong> calendário<strong>da</strong>s tribos, como um ritual que uma hora ou outra tinha de acontecer.Sobretu<strong>do</strong> os índios tupis eram obceca<strong>do</strong>s pela guerra. Os homens sóganhavam permissão para casar ou ter mais esposas quan<strong>do</strong> capturassem uminimigo <strong>do</strong>s grandes. Outros grupos acreditavam assumir os poderes e aperspectiva <strong>do</strong> morto, passan<strong>do</strong> a controlar seu espirito, como uma espéciede bicho de estimação. Entre canibais, como os tupinambás, prisioneiroseram devora<strong>do</strong>s numa festa que reunia to<strong>da</strong> a tribo e convi<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong>vizinhança.


A palavra “mingau” vem <strong>da</strong> pasta feita com as vísceras cozi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>prisioneiro devora<strong>do</strong> pelos tupinambás.Com a vin<strong>da</strong> <strong>do</strong>s europeus, que também gostavam de uma guerra,esse potencial bélico se multiplicou. Os índios travaram entre si guerrasduríssimas na disputa pela aliança com os recém-chega<strong>do</strong>s. Passaram acapturar muito mais inimigos para trocar por merca<strong>do</strong>rias. Se antes valiamais a quali<strong>da</strong>de, a posição social <strong>do</strong> inimigo captura<strong>do</strong>, a partir <strong>da</strong>conquista a quanti<strong>da</strong>de de mortes e prisões ganhou importância. Por to<strong>do</strong> oséculo 16, quan<strong>do</strong> uma caravela se aproximava <strong>da</strong> costa, índios de to<strong>da</strong>s aspartes vinham corren<strong>do</strong> com prisioneiros - alguns até <strong>do</strong> interior, a dezenasde quilômetros. Os portugueses, interessa<strong>do</strong>s em escravos, compravam ospresos com o pretexto de que, se não fizessem isso, eles seriam mortos oudevora<strong>do</strong>s pelos índios. Em 1605, o padre Jerônimo Rodrigues, quan<strong>do</strong>viajou ao litoral de Santa Catarina, ficou estarreci<strong>do</strong> com o interesse <strong>do</strong>síndios em trocar gente, até <strong>da</strong> própria família, por roupas e ferramentas:Tanto que chegam os correios ao sertão, de haver navio na barra,logo man<strong>da</strong>m reca<strong>do</strong> pelas aldeias para virem ao resgate. E para isso trazema mais desobriga<strong>da</strong> gente que podem, scilicet, moços e moças órfãs, algumassobrinhas, e parentes, que não querem estar com eles ou que os não queremservir, não lhe ten<strong>do</strong> essa obrigação, a outros trazem engana<strong>do</strong>s, dizen<strong>do</strong>que lhe farão e acontecerão e que levarão muitas coisas [...]. Outro moçovin<strong>do</strong> aqui onde estávamos, vesti<strong>do</strong> em uma camisa, perguntan<strong>do</strong>-lhe quemlha dera, respondeu que vin<strong>do</strong> pelo navio dera por ela e por algumaferramenta um seu irmão, outros venderam as próprias madrastas, que oscriaram, e mais estan<strong>do</strong> os pais vivos.


No livro Sete Mitos <strong>da</strong> Conquista Espanhola, o historia<strong>do</strong>rMatthew Restall fala <strong>do</strong> guerreiro invisível que matou os índios <strong>do</strong> México.Se os espanhóis estavam em um punha<strong>do</strong> de aventureiros e os astecas, emmilhões, como os primeiros podem ter consegui<strong>do</strong> conquistar o México? Éclaro que não foi ato de um guerreiro invisível (embora epidemias tenhammata<strong>do</strong> muita gente). Na ver<strong>da</strong>de, os espanhóis não estavam em poucos. ”Oque com frequência é ignora<strong>do</strong> ou esqueci<strong>do</strong> é o fato de que osconquista<strong>do</strong>res tendiam a ser supera<strong>do</strong>s em número também por seuspróprios alia<strong>do</strong>s nativos”, afirma Restall. Os espanhóis ficaram de um la<strong>do</strong><strong>da</strong> guerra entre facções astecas - aju<strong>da</strong>ram os índios e ganharam a aju<strong>da</strong>deles. É razoável supor que, se houvesse algum senso de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>deétnica no México, a conquista seria muito mais difícil ou talvez impossível.Pode-se dizer o mesmo sobre o Brasil. O extermínioe a escravidão <strong>do</strong>s índios não seriam possíveis sem o apoio <strong>do</strong>s própriosíndios, de tribos inimigas. Eles forneceram o suporte militar às bandeiras,os assaltos que os paulistas faziam ao interior para capturar escravos oudestruir nativos hostis. Também dependia deles a guar<strong>da</strong> <strong>da</strong>s colôniasportuguesas. As bandeiras são geralmente aponta<strong>da</strong>s como a maior causa demorte <strong>da</strong> população indígena depois <strong>da</strong>s epidemias. Em ca<strong>da</strong> uma, havia nomínimo duas vezes mais índios - normalmente dez vezes mais. Sobre a maismortífera delas, a que o bandeirante Raposo Tavares empreendeu até asaldeias jesuíticas de Guaíra, no extremo oeste paranaense, os relatosapontam para uma bandeira forma<strong>da</strong> por 900 paulistas e 2 mil índios tupis.”No entanto, nestas versões, o total de paulistas parece exagera<strong>do</strong>, uma vezque é possível identificar apenas 119 participantes em outras fontes. Alémdisto, a razão de <strong>do</strong>is índios por paulista seria muito baixa quan<strong>do</strong>


compara<strong>da</strong> a outras expedições”, escreveu o historia<strong>do</strong>r John ManuelMonteiro no livro Negros <strong>da</strong> Terra.Cogita-se até que o modelo militar <strong>da</strong>s bandeiras seja resulta<strong>do</strong>mais <strong>da</strong> influência indígena que europeia. ”É difícil evitar a impressão, porexemplo, de que as bandeiras representavam uma predileção tupi poraventuras militares”, afirma o historia<strong>do</strong>r Warren Dean.Essa imersão em um conjunto nativo de valores era de se esperar,<strong>da</strong><strong>do</strong> o quanto eram escassos nessas socie<strong>da</strong>des militariza<strong>da</strong>s os capitães etenentes brancos, o quanto eram tupis seus sargentos mestiços e o quanto asnormas de comportamento devem ter si<strong>do</strong> não europeias nas trilhas e noscampos de batalha <strong>da</strong>s selvas.Mesmo a distinção entre bandeirantes paulistas e índios é difusa.Muitos <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s ”bandeirantes paulistas” eram mestiços de primeirageração: tinham mãe, tios e primos cria<strong>do</strong>s nas aldeias e pareciam maisíndios que europeus.O melhor exemplo é Domingos Jorge Velho, bandeirante paulistaque destruiu o Quilombo <strong>do</strong>s Palmares. Filho de um europeu com umaíndia, ele não falava português. Assim como quase to<strong>do</strong>s naquela época,expressava-se na língua geral tupi-guarani.As tribos não apoiavam os colonos por alguma obediência cega.Seus líderes, que também participavam <strong>da</strong>s bandeiras e <strong>da</strong>s batalhas,estavam interessa<strong>do</strong>s na parceria para derrotar outras tribos. O padre Joséde Anchieta percebeu isso em 1565. Os tupinambás, tradicionaisadversários <strong>do</strong>s colonos, de repente se mostraram dispostos a deixar deguerrear com os portugueses. O real motivo dessa aliança surpreendente era”o desejo grande que têm de guerrear com seus inimigos tupis, que atéagora foram nossos amigos, e há pouco se levantaram contra nós”,


acreditava o padre. Uma frase escrita pela historia<strong>do</strong>ra Maria ReginaCelestino de Almei<strong>da</strong> resume muito bem as guerras indígenas: ”Se oseuropeus se aproveitaram <strong>da</strong>s dissidências indígenas para fazerem suasguerras de conquista por território, também os índios lançaram mão desseexpediente para conseguir seus próprios objetivos”.Um bom exemplo <strong>da</strong> participação delibera<strong>da</strong> de índios noextermínio de índios é a Guerra <strong>do</strong>s Tamoios, entre 1556 e 1567. Ostupiniquins e os temiminós aju<strong>da</strong>ram os portugueses a expulsar os franceses<strong>do</strong> Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, lutavam contra antigos inimigos: ostupinambás, também chama<strong>do</strong>s de tamoios. Depois de vencerem, os nativosalia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s portugueses ganharam terras e uma posição privilegia<strong>da</strong> decolabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> reino português. Ficaram responsáveis pela segurança <strong>do</strong>Rio, na tentativa de evitar ataques à ci<strong>da</strong>de conquista<strong>da</strong>. Transformaram-seno índio colonial, um personagem esqueci<strong>do</strong> <strong>da</strong> história <strong>brasil</strong>eira que serálembra<strong>do</strong> a seguir.


OS ÍNDIOS PERGUNTAM: ONDE ESTÃO OS ÍNDIOS?Durante os três primeiros séculos <strong>da</strong> conquista portuguesa,nenhuma família teve mais poder na vila que deu origem a Niterói, no Riode Janeiro, quanto os Souza. Em 1644, Brás de Souza reivindicou aoConselho Ultramarino o cargo de capitão-mor <strong>da</strong> aldeia de São Lourenço,utilizan<strong>do</strong> como principal argumento o nome de sua família. O pedi<strong>do</strong> foiaceito. Segun<strong>do</strong> a carta que concedeu a colocação, era preciso lembrar queBrás era ”descendente <strong>do</strong>s Souza que sempre exercitaram o dito cargo”, porisso tinha direito a ”to<strong>da</strong>s as honras e proeminências que têm e gozaram osmais Capitães e seus antecessores <strong>da</strong><strong>da</strong>s nesta ci<strong>da</strong>de de São Sebastião <strong>do</strong>Rio de Janeiro”. Um século e meio depois, em 1796, Manoel Jesus e Souzaera capitão-mor. Em uma consulta <strong>do</strong> Conselho Ultramarino, consta queele deveria continuar no cargo por causa de ”sua descendência nobre”.Típicos membros <strong>da</strong> elite colonial esses Souza.O interessante é que esses nobres senhores não eram descendentesde nenhum poderoso fi<strong>da</strong>lgo português. O homem que criou a dinastia <strong>do</strong>sSouza de Niterói chamava-se Arariboia. Era o cacique <strong>do</strong>s índiostemiminós, que aju<strong>da</strong>ram os portugueses a expulsar franceses e tupinambás<strong>do</strong> Rio de Janeiro. Com a guerra venci<strong>da</strong>, muitos temiminós e tupiniquinsforam batiza<strong>do</strong>s e a<strong>do</strong>taram um sobrenome português. Arariboia virouMartim Afonso de Souza (em homenagem ao primeiro coloniza<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Brasil) e ganhou a sesmaria de Niterói, onde alojou sua tribo. Menos decem anos depois, seus descendentes já não se viam como índios: eram osSouza e faziam parte <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de <strong>brasil</strong>eira. Talvez eles se identifiquemassim


até hoje.Muitos historia<strong>do</strong>res mostram números desola<strong>do</strong>res sobre ogenocídio que os índios sofreram depois <strong>da</strong> conquista portuguesa. Dizemque a população nativa diminuiu dez, vinte vezes. As tribos passarammesmo por um esvaziamento, mas não só por causa de <strong>do</strong>enças e ataques.Costuma-se deixar de fora <strong>da</strong> conta o índio colonial, aquele que largou atribo, a<strong>do</strong>tou um nome português e foi compor a conheci<strong>da</strong> miscigenação<strong>brasil</strong>eira ao la<strong>do</strong> de brancos, negros e mestiços - e cujos filhos, poucotempo depois, já não se identificavam como índios.Não foram poucas vezes, nem só no Rio, que isso aconteceu. Porto<strong>do</strong> o Brasil, índios foram para as ci<strong>da</strong>des e passaram a trabalhar naconstrução de pontes, estra<strong>da</strong>s, como marceneiros, carpinteiros, músicos,venden<strong>do</strong> chapéus, plantan<strong>do</strong> hortaliças e cortan<strong>do</strong> árvores - e até caçan<strong>do</strong>negros fugitivos. Nas aldeias ao re<strong>do</strong>r de São Paulo, não se sabe de cargosvitalícios como entre os Souza de Niterói, mas há sinais de que os índiosaldea<strong>do</strong>s também se integraram. Em 2006, o historia<strong>do</strong>r Mareio Marchioroachou <strong>do</strong>cumentos com nome, cargo, i<strong>da</strong>de, profissão e número de filhos<strong>do</strong>s chefes indígenas na vira<strong>da</strong> <strong>do</strong> século 18 para o século 19. São to<strong>do</strong>snomes portugueses, ”to<strong>do</strong>s antecedi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> palavra ’índio’”. Esses nativos <strong>da</strong>terra devem ter aju<strong>da</strong><strong>do</strong> a tornar comuns alguns sobrenomes <strong>brasil</strong>eiros.Dos índios de Minas Gerais, descobriram-se <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> exatomomento em que deixavam as aldeias e entraram para a socie<strong>da</strong>de mineira.Vasculhan<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentos mineiros no Arquivo Histórico Ultramarino, oshistoria<strong>do</strong>res Maria Leônia Chaves de Resende e Hal Langfur encontraramdezenas de registros <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> <strong>do</strong>s índios nas vilas aqueci<strong>da</strong>s com a corri<strong>da</strong><strong>do</strong> ouro <strong>do</strong> século 18. Perceberam que muitos nativos se mu<strong>da</strong>ram paravilas por iniciativa própria, provavelmente porque se sentiam ameaça<strong>do</strong>s por


conflitos com os brancos ou cansa<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> Paleolítico <strong>da</strong>s aldeias.Chegavam às dezenas, recebiam uma aju<strong>da</strong> inicial <strong>do</strong> governo e iamtrabalhar na proprie<strong>da</strong>de de algum colono. Afirmam os <strong>do</strong>is historia<strong>do</strong>res:Para só citar um exemplo, o governa<strong>do</strong>r Lobo <strong>da</strong> Silva conta que,tão logo tomou posse, ”apareceram vinte e tantos índios silvestres chama<strong>do</strong>sCoropós, Gavelhos e Croás”. Em virtude <strong>da</strong>s ordens reais, man<strong>do</strong>u vestir e<strong>da</strong>r ferramentas. Passa<strong>do</strong>s alguns dias, vieram outros trinta ”no mesmoempenho [de serem batiza<strong>do</strong>s], informa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> bom acolhimento que se fezaos primeiros”.Se fossem escraviza<strong>do</strong>s pelos fazendeiros, os índios poderiam entrarna justiça e requerer a liber<strong>da</strong>de. Frequentemente ganhavam. A escravidãoindígena tinha si<strong>do</strong> proibi<strong>da</strong> pelo rei <strong>do</strong>m Pedro segun<strong>do</strong> de Portugal em1680, e veta<strong>da</strong> novamente, um século depois, pelo marquês de Pombal,primeiro-ministro <strong>do</strong> reino português. O governa<strong>do</strong>r de Minas Gerais entre1763 e 1768, Luiz Diogo Lobo <strong>da</strong> Silva, acatava a lei e procurava colocá-laem prática. Em 1764, a índia carijó Leonor, de Ouro Preto, pediu que fosseliberta<strong>da</strong> <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> de Domingos de Oliveira. O colono mantinha a índia,seus três filhos e netos em cativeiro e os tratava a surras. Ela ganhou a causa- uma escolta foi à fazen<strong>da</strong> garantir a liber<strong>da</strong>de de sua família. Fora <strong>do</strong>cativeiro, em plena efervescência <strong>da</strong> corri<strong>da</strong> <strong>do</strong> ouro em Minas Gerais,Leonor não deve ter demora<strong>do</strong> para se arranjar e se misturar a população <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de. Casos como o dela são bem diferentes <strong>da</strong> crônica simplista <strong>da</strong>extinção <strong>do</strong>s nativos Provam, como dizem os historia<strong>do</strong>res Maria deResende e Hal Langfur, ”a presença inegável <strong>do</strong>s índios nos sertões e nasvilas durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> colonial, demonstran<strong>do</strong>, portanto, que elesjamais foram extintos, como afirmou a historiografia tradicional”.


Em muitos casos, os índios nem precisaram sair de suas aldeias paraentrar na socie<strong>da</strong>de. Os ocidentais foram até eles. Na déca<strong>da</strong> de 1750,quan<strong>do</strong> os jesuítas foram expulsos <strong>do</strong> Brasil, Portugal resolveu transformaras aldeias indígenas em vilas e freguesias. Com isso, acabou a proibição debrancos nas aldeias. Nasceram assim muitos bairros e ci<strong>da</strong>des que existemAté hoje. Eram aldeias as ci<strong>da</strong>des de Carapicuíba, Guarulhos, Embu,Peruíbe, Barueri, Moji <strong>da</strong>s Cruzes, na Grande São Paulo, além <strong>do</strong> própriocentro de São Paulo e bairros como São Miguel Paulista e Pinheiros.Também e o caso <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des de Niterói, São Pedro <strong>da</strong> Aldeia eMangaratiba, no Rio de Janeiro, como muitas outras pelo Brasil. Nasaldeias <strong>do</strong> litoral, a população se misturou pouco, seguin<strong>do</strong> com umainfluência indígena mais forte. É o caso <strong>do</strong>s caiçaras, os nativos <strong>da</strong> praia.Assim como em 1500, estão presentes em quase to<strong>do</strong> o litoral <strong>brasil</strong>eiro.Plantam mandioca, usam cestas flexíveis e alguns pescam em canoas detronco escava<strong>do</strong>. No entanto, como não se consideram índios, não entramna conta <strong>da</strong> população indígena atual.Na Amazônia, esse fenômeno ain<strong>da</strong> acontece. Quem visita a regiãose espanta ao conhecer pessoas com cara de índio, quase vesti<strong>da</strong>s de índio eque ficam contraria<strong>da</strong>s ao serem chama<strong>da</strong>s de índio. Como nos últimosséculos, muitos indígenas preferem não ser chama<strong>do</strong>s assim: 25 por cento<strong>da</strong> população indígena <strong>da</strong> Amazônia já mora em ci<strong>da</strong>des, e só metade dessecontingente, segun<strong>do</strong> a Funai, se considera índio, mesmo falan<strong>do</strong> umasegun<strong>da</strong> língua e pratican<strong>do</strong> rituais.É ver<strong>da</strong>de que essa miscigenação não foi tão intensa quanto entreafricanos e portugueses ou entre índios e espanhóis de outras regiões <strong>da</strong>América. Pesquisas de ancestrali<strong>da</strong>de genômica, que medem o quantoeuropeu, africano ou indígena um indivíduo é, sugerem que os <strong>brasil</strong>eiros


são em média 8 por cento indígenas. Uma análise de 2008 envolveu 594voluntários, a maioria estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília quese consideravam brancos e par<strong>do</strong>s. A ancestrali<strong>da</strong>de média <strong>do</strong> genoma <strong>do</strong>suniversitários era 68,65 por cento europeia, 17,81 por cento africana, 8,64por cento ameríndia e 4,87 por cento de outras origens. É pouco sangueindígena, mas não tanto pensan<strong>do</strong> numa população de 190 milhões dehabitantes. Se pudéssemos organizar esses genes em indivíduos cem porcento brancos, negros ou ameríndios, 8por cento <strong>do</strong>s <strong>brasil</strong>eiros <strong>da</strong>ria 15,2milhões de pessoas, ou mais de quatro vezes a população indígena de 1500.O número fica ain<strong>da</strong> maior se considerarmos comodescendente de índios to<strong>da</strong> pessoa que tem o menor toque de sanguenativo. Em 2000, um estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> laboratório Gene, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federalde Minas Gerais, causou espanto ao mostrar que 33 por cento <strong>do</strong>s<strong>brasil</strong>eiros que se consideram brancos têm DNA mitocondrial vin<strong>do</strong> demães índias. ”Em outras palavras, embora desde 1500 o número de nativosno Brasil tenha se reduzi<strong>do</strong> a 10 por cento <strong>do</strong> original (de cerca de 3,5milhões para 325 mil), o número de pessoas com DNA mitocondrialameríndio aumentou mais de dez vezes”, escreveu o geneticista SérgioDanilo Pena no Retrato Molecular <strong>do</strong> Brasil. Esses números sugerem quemuitos índios largaram as aldeias e passaram a se considerar <strong>brasil</strong>eiros.Hoje, seus descendentes vão ao cinema, an<strong>da</strong>m de avião, escrevem livros e,como seus antepassa<strong>do</strong>s, tomam banho to<strong>do</strong>s os dias.


A NATUREZA EUROPEIA FASCINOU OS ÍNDIOSA imagem mais divulga<strong>da</strong> <strong>do</strong> descobrimento <strong>do</strong> Brasil é aquela <strong>do</strong>sportugueses na praia, com as caravelas ao fun<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> recebi<strong>do</strong>s por índioscuriosos que brotam <strong>da</strong> floresta. Na ver<strong>da</strong>de, houve um episódio queaconteceu antes: os índios subiram nas caravelas. Pero Vaz de Caminha, orepórter <strong>da</strong>quela viagem, relata em sua carta que, antes de to<strong>da</strong> a tripulaçãodesembarcar na praia, <strong>do</strong>is índios foram recebi<strong>do</strong>s ”com muitos agra<strong>do</strong>s efesta” no navio principal. Provaram bolos, figo e mel (mas cuspiram ascomi<strong>da</strong>s com nojo), e ficaram espantadíssimos ao conhecer uma galinha.”Quase tiveram me<strong>do</strong> dela — não lhe queriam tocar, para logo depoistomá-la, com grande espanto nos olhos”, escreveu Caminha. Essa imagemsugere que, naquela tarde de abril de 1500, os índios também fizeram suadescoberta. A chega<strong>da</strong> <strong>do</strong>s europeus revelou a eles um universo detecnologias, plantas, animais e mo<strong>do</strong>s de pensar até então desconheci<strong>do</strong>s.Até a chega<strong>da</strong> de franceses, portugueses e holandeses ao Brasil, osíndios não conheciam a <strong>do</strong>mesticação de animais, a escrita, a tecelagem, aarquitetura em pedra. Assenta<strong>do</strong>s sobre enormes jazi<strong>da</strong>s, não tinhamchega<strong>do</strong> à I<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Ferro e nem mesmo à <strong>do</strong> Bronze. Armas e ferramentaseram feitas de galhos, madeira, barro ou pedra, e o fogo tinha um papelessencial em guerras e caça<strong>da</strong>s. Até conheciam a agricultura, mas em geralera uma agricultura rudimentar, pouco intensiva e restrita a roças deamen<strong>do</strong>im e mandioca. Dependen<strong>do</strong> <strong>da</strong> sorte na caça e na coleta, passavampor perío<strong>do</strong>s de fome. Não desenvolveram tecnologias de transporte. Nãoconheciam a ro<strong>da</strong>. A ro<strong>da</strong>.


Dá muita vontade de afirmar que os índios eram naturalmenteincapacita<strong>do</strong>s para não ter nem ideia dessas tecnologias básicas, mas não hámotivo para isso. Eles são na ver<strong>da</strong>de heróis <strong>do</strong> povoamento humano nofim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a América, o último continente <strong>da</strong> Terra a abrigar ohomem. A chega<strong>da</strong> a um lugar tão distante custou-lhes o isolamentocultural.Entre 50 e 60 mil anos atrás, os ancestrais de índios e portugueseseram o mesmo grupo de caça<strong>do</strong>res e coletores. Tinham a mesma aparência,os mesmos costumes, a mesma língua rudimentar. Caminhan<strong>do</strong> juntosrumo ao norte <strong>da</strong> África, contornaram o mar Mediterrâneo e chegaram aoOriente Médio. Durante a caminha<strong>da</strong> de centenas de gerações, alguns delesperderam contato e se separaram. Uns deban<strong>da</strong>ram à esquer<strong>da</strong>, rumo àpenínsula Ibérica, enquanto outros continuaram subin<strong>do</strong> pela Ásia.O que hoje conhecemos como Ásia era então um bloco de gelo semfim. Perambulavam por ali mamutes e alces-gigantes cuja carne deveria serdeliciosa. Com o fim <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Gelo, parte dessas geleiras derreteu e onível <strong>do</strong> mar subiu. Alguns caça<strong>do</strong>res nômades não devem ter percebi<strong>do</strong>,mas já estavam na América, separa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s colegas asiáticos por um oceano.Até então, nenhuma barreira tão definitiva tinha separa<strong>do</strong> o homem. Aosprimeiros Americanos, nãorestava outra saí<strong>da</strong> senão migrar para o Sul. Foi assim que chegaram aoBrasil, cerca de 15 mil anos atrás.O isolamento na América deixou os nativos Americanos de fora <strong>da</strong>mistura cultural que marcou o convívio entre europeus, africanos e asiáticos.Esses povos entraram em contato uns com os outros já na Antigui<strong>da</strong>de. Ochoque de civilizações fez a tecnologia se espalhar. Por meio de guerras,conquistas ou mesmo pelo comércio, tecnologias e novos costumes


passavam de cultura a cultura. Já os Americanos viveram muito mais temposem novi<strong>da</strong>des vin<strong>da</strong>s de fora. Tiveram que se virar sozinhos em territóriosdespovoa<strong>do</strong>s, sem ter com quem trocar ou copiar novas técnicasDe repente, porém, aconteceu um fato extraordinário. Apareceramno horizonte enormes ilhas de madeira, que eram na ver<strong>da</strong>de canoas altascheias de homens estranhos. Numa quarta-feira ensolara<strong>da</strong> <strong>do</strong> sul <strong>da</strong> Bahia,duas pontas <strong>da</strong> migração <strong>do</strong> homem pela Terra, que estavam separa<strong>da</strong>shavia 50 mil anos, ficaram frente a frente. Os milênios de isolamento <strong>do</strong>síndios <strong>brasil</strong>eiros tinham enfim acaba<strong>do</strong>.Antropólogos e cientistas sociais não cansam de repetir que épreciso valorizar a cultura indígena. Os índios que encontraram osportugueses no século 16 não estavam nem aí para isso. Não sabiam na<strong>da</strong>de antropologia e migração humana, mas logo perceberam quanto aqueleencontro era sensacional. Fizeram de tu<strong>do</strong> para conquistar a amizade <strong>do</strong>snovos (ou antigos) amigos. Antes que os brancos desembarcassem, subiramnos navios para conhecê-los. Na praia, deram presentes, estoques demandioca e mulheres se ofereceram generosas. Devem ter acha<strong>do</strong> urgentemisturar-se com aquela cultura e se apoderar <strong>do</strong>s objetos diferentes queaqueles homens traziam.A história tradicional diz que os portugueses deram quinquilhariasaos índios em troca de coisas muito mais valiosas, como pau-<strong>brasil</strong> eanimais exóticos. Isso e achar que os índios eram completos idiotas. Aosseus olhos, na<strong>da</strong> poderia ser mais fascinante que a cultura e os objetos <strong>do</strong>svisitantes. Não eram só quinquilharias que os portugueses ofereciam, masriquezas e costumes seleciona<strong>do</strong>s durante milênios de contato comcivilizações <strong>da</strong> Europa, <strong>da</strong> Ásia e <strong>da</strong> África, que os Americanos, isola<strong>do</strong>spor uma faixa de oceano de 4 mil quilômetros, não puderam conhecer.


Comprar aqueles artefatos com papagaios ou pau-<strong>brasil</strong> era um ótimonegócio. Seria como trocar roupas velhas que ocupam espaço no armáriopor uma espa<strong>da</strong> jedi de Guerra nas Estrelas.Imagine, por exemplo, a surpresa <strong>do</strong>s índios ao conhecer um anzol.Não dependiam mais <strong>da</strong> pontaria para conseguir peixes, e agora eramcapazes de capturar os peixes que ficavam no fun<strong>do</strong>. Um macha<strong>do</strong> tambémdeve ter si<strong>do</strong> uma aquisição sem precedentes. ”As facas e macha<strong>do</strong>s de aço<strong>do</strong>s europeus eram ferramentas que reduziam em muito o seu trabalho,porque eliminavam a fama extenuante de lascar pedra e lavrar madeira, eencurtavam em cerca de oito vezes o tempo gasto para derrubar árvores eesculpir canoas”, escreveu o historia<strong>do</strong>r Americano Warren Dean. ”E difícilimaginar o quanto deve ter si<strong>do</strong> gratificante seu súbito ingresso na i<strong>da</strong>de <strong>do</strong>ferro[...].” No começo, os portugueses tentaram esconder <strong>do</strong>s índios atécnica de produzir metais, proibin<strong>do</strong> os ferreiros de ter índios comoaju<strong>da</strong>ntes. Mas a metalurgia escapou <strong>do</strong> controle e se espalhou pela floresta.A técnica foi transmiti<strong>da</strong> entre os índios a ponto de os europeus, quan<strong>do</strong>entravam em contato com uma tribo isola<strong>da</strong>, já encontrarem flechas compontas metálicas.Os índios a<strong>do</strong>taram não só a tecnologia europeia. Assim como osportugueses ficaram encanta<strong>do</strong>s com as florestas <strong>brasil</strong>eiras, eles sefascinaram com a natureza que veio <strong>da</strong> Europa. Novas plantas e animais<strong>do</strong>mésticos, que aju<strong>da</strong>vam na caça e facilitavam o far<strong>do</strong> de conseguircomi<strong>da</strong>, foram logo incorpora<strong>do</strong>s pelas tribos. Poucos anos depois, seriadifícil imaginar o Brasil sem essas espécies.O melhor exemplo é a banana. Originária <strong>da</strong> região <strong>da</strong> In<strong>do</strong>nésia, abanana selvagem tinha uma casca grossa e a polpa rala. A partir de 5 milanos atrás, o homem selecionou as variações mais saborosas, com casca mais


fina e sem sementes. Plantações <strong>da</strong> fruta apareceram na índia há 2.300 anos(Alexandre, o Grande provou uma quan<strong>do</strong> passou por lá) e logo depois abanana começou a ser cultiva<strong>da</strong> na China. Com os árabes, atravessou to<strong>da</strong> aÁfrica (de onde vem seu nome atual) e chegou à Europa por influênciamoura. Ao to<strong>do</strong>, foram 6.500 anos de migração e melhoramento genéticoofereci<strong>do</strong>s aos índios <strong>brasil</strong>eiros. Assim como a banana, os índiosconheceram pelos portugueses frutas e plantas que hoje são símbolosnacionais e que não faltam em muitas tribos, como a jaca, a manga, alaranja, o limão, a carambola, a graviola, o inhame, a maçã, o abacate, ocafé, a tangerina, o arroz, a uva e até mesmo o coco (isso mesmo: até odescobrimento, não havia coqueiros no Brasil). Quan<strong>do</strong> os jesuítasimplantaram a agricultura intensiva perto <strong>da</strong>s aldeias, obter comi<strong>da</strong> deixoude ser um estorvo. Para quem estava acostuma<strong>do</strong> a plantar só mandioca eamen<strong>do</strong>im, ten<strong>do</strong> que suar em caça<strong>da</strong>s demora<strong>da</strong>s para arranjar algumaproteína fresca, a vi<strong>da</strong> ficou muito mais fácil.É ver<strong>da</strong>de que não faltavam frutas e cereais nasmatas <strong>brasil</strong>eiras, mas muitos eram espinhosos e difíceis de abrir, como acastanha-<strong>do</strong>-pará - e não porque os trópicos favorecem plantas esquisitas,mas porque essas espécies não passaram por um processo de <strong>do</strong>mesticação eseleção artificial.Outra novi<strong>da</strong>de foi o animal <strong>do</strong>méstico. Com uma floresta farta, osnativos não precisaram desenvolver criações para o abate nem bichos deestimação como os <strong>do</strong>s europeus. Galinhas, porcos, bois, cavalos e cãesforam novi<strong>da</strong>des revolucionárias que os índios não demoraram a a<strong>do</strong>tar.Novas palavras surgiram no vocabulário nativo, a maioria associan<strong>do</strong> osnovos animais ao fato extraordinário de serem mansos e amigáveis. Oporco, em tupi, virou taiaçu-guaia (”porco manso”), os cães ganharam o


nome de iaguás-mimbabas (”onças de criação”). Poucos anos depois deconhecerem a galinha, os índios já vendiam ovos para os portugueses.Em 1534, quan<strong>do</strong> vieram nos porões <strong>da</strong>s caravelas os primeiroscavalos, fazia pelo menos 10 mil anos que equinos não pisavam no Brasil.Houve primos nativos de cavalos na América, mas eles tinham si<strong>do</strong> extintosdurante mu<strong>da</strong>nças climáticas ou pela caça excessiva. Quan<strong>do</strong> chegou àAmérica, o cavalo europeu era outro animal que havia passa<strong>do</strong> por milêniosde <strong>do</strong>mesticação. Quan<strong>do</strong> essa dádiva <strong>do</strong> melhoramento de espécies chegouà América, os índios ficaram estupefatos. Algumas tribos, como osguaicurus, <strong>do</strong> Pantanal, passaram a utilizar a novi<strong>da</strong>de como instrumento deguerra. Nos terrenos pantaneiros, os guaicurus se apoderaram de mana<strong>da</strong>sselvagens, descendentes provavelmente de cavalos perdi<strong>do</strong>s porcoloniza<strong>do</strong>res espanhóis no norte <strong>da</strong> Argentina. No século 18, montan<strong>do</strong> oscavalos em pelo, sem selas, e com lanças na mão, tornaram-se guerreirosinvencíveis, impon<strong>do</strong> autori<strong>da</strong>de sobre outras tribos <strong>da</strong> região e até sobre osbrancos. Nunca foram venci<strong>do</strong>s por adversários europeus e chegaram aaju<strong>da</strong>r o exército <strong>brasil</strong>eiro durante a Guerra <strong>do</strong> Paraguai.Mas nenhum animal <strong>do</strong>méstico provocou tanta surpresa edivertimento aos índios quanto o bom e velho cachorro. O primo maispróximo <strong>do</strong>s cães que havia no Brasil até então era olobo-guará, animal arredio, que mete me<strong>do</strong> e é feio de <strong>do</strong>er. Os portuguesestrouxeram de presente para os índios um lobo que tinha si<strong>do</strong> <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>fazia 14 mil anos, no sul <strong>da</strong> China. Durante a convivência com o homem,ganharam preferência os cães que eram mansos, alertavam quanto ainvasores e permaneciam com cara de filhotes mesmo depois de adultos. Noséculo 16, já havia raças seleciona<strong>da</strong>s para o pastoreio, a caça e a guar<strong>da</strong>.Nas caça<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s índios, os cachorros farejavam presas e aju<strong>da</strong>vam a


desentocá-las. ”Os cães ampliaram de forma extraordinária a capaci<strong>da</strong>de decaça <strong>do</strong>s indígenas (e <strong>do</strong>s povoa<strong>do</strong>res europeus e africanos) sobredetermina<strong>do</strong>s povoamentos faunísticos, principalmente os <strong>do</strong>s mamíferos”,conta o biólogo Evaristo Eduar<strong>do</strong> de Miran<strong>da</strong> no livro O Descobrimento<strong>da</strong> Biodiversi<strong>da</strong>de.


OS PORTUGUESES ENSINARAM OS ÍNDIOS APRESERVAR A FLORESTAO mito <strong>do</strong> índio como um homem puro e em harmonia com anatureza já caiu faz muito tempo, mas é incrível como ele sempre volta.To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sabe que personagens como Peri, o herói <strong>do</strong> livro O Guarani,de José de Alencar, estavam mais para relato épico que para história.Mesmo assim é difícil pensar diferente. Até os <strong>do</strong>cumentários etnográficose os museus propagam a imagem <strong>do</strong> índio em paz com árvores e animais.Em janeiro de 2009, um texto informativo <strong>da</strong> exposição Oreretama, <strong>do</strong>Museu Histórico Nacional, <strong>do</strong> Rio de Janeiro, dizia que a socie<strong>da</strong>deindígena ”era um tipo de organização que tendia a manter o equilíbrio entreas comuni<strong>da</strong>des humanas e o meio ambiente”. Não e bem assim. Antes deos portugueses chegarem, os índios já haviam extingui<strong>do</strong> muitas espécies efeito um belo estrago nas florestas <strong>brasil</strong>eiras. Se não acabaram com elascompletamente, e porque eram poucos para uma floresta tão grande.As tribos que habitavam a região <strong>da</strong> mata atlântica botavam o matoabaixo com facili<strong>da</strong>de, usan<strong>do</strong> uma ferramenta muito eficaz: o fogo. No fim<strong>da</strong> estação seca, praticavam a coivara, o ato de queimar o mato seco paraabrir espaço para a plantação, emprega<strong>do</strong> até hoje. No início, a coivara éeficiente, já que to<strong>da</strong> a biomassa <strong>da</strong> floresta vira cinzas que fertilizam o solo.Depois de alguns anos, o solo se empobrece. Pragas e ervas <strong>da</strong>ninhastomam conta. Como não havia enxa<strong>da</strong>s e pestici<strong>da</strong>s e ninguém sabia adubaro solo, procuravam-se outras matas virgens para queimar e transformar emroças. O historia<strong>do</strong>r Americano Warren Dean estimou que a alimentaçãode ca<strong>da</strong> habitante exigia a devastação de 2 mil metros quadra<strong>do</strong>s de mata


por ano. ”Se os agricultores não abrissem senão floresta primária, teriamqueima<strong>do</strong> cerca de 50 por cento dela pelo menos uma vez naquele milênio”,escreveu Dean. A devastação foi maior nas áreas mais povoa<strong>da</strong>s. Nasflorestas próximas ao litoral, os índios devem ter queima<strong>do</strong> a mata pelomenos duas vezes por século.A conta de Warren Dean não considera incêndios acidentais nemqueima<strong>da</strong>s por guerras ou para a caça. O fogo usa<strong>do</strong> para fins de caça foiigualmente destrui<strong>do</strong>r, já que a agricultura não era o forte <strong>do</strong>s índios<strong>brasil</strong>eiros. É ver<strong>da</strong>de que havia pequenas lavouras, principalmente demandioca, mas ninguém imaginava fazer plantações intensivas ou méto<strong>do</strong>ssistemáticos de colheita, replantio e rotação de culturas. Havia outroempecilho: grandes reservas de comi<strong>da</strong> atraiam invasores, provocan<strong>do</strong> maisguerras e mais mu<strong>da</strong>nças - não valia a pena investir numa área que talveztivesse de ser aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong> a qualquer momento. A grande vantagem ao fogoera facilitar a caça. Crian<strong>do</strong> fogueiras coordena<strong>da</strong>s, um pequeno grupo depessoas consegue controlar uma área enorme <strong>da</strong> mata sem precisar demacha<strong>do</strong>s, serrotes ou alguma outra ferramenta de ferro. As chamasdesentocam animais escondi<strong>do</strong>s na terra, no meio de arbustos e nos galhos.Aves, macacos, vea<strong>do</strong>s, capivaras, onças, lagartos e muitos outros animaiscorriam em direção ao mesmo ponto, onde os índios os esperavam paracaptura-los. Não e à toa que, assim como em to<strong>do</strong> o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, nasflorestas <strong>brasil</strong>eiras só havia animais de grande porte, rápi<strong>do</strong>s e agressivos osmais lentos foram logo extintos pelas populações nativas. Para caçar algunspoucos animais, eles destruíam uma área enorme <strong>da</strong> floresta.O poder <strong>do</strong> fogo e <strong>da</strong> devastação ambiental ficou grava<strong>do</strong> novocabulário tanto <strong>do</strong>s índios quanto <strong>do</strong>s portugueses. Na língua tupi, sãomuitas as palavras diferencian<strong>do</strong> as matas abertas, como capoeira (”roça


aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong>”), cajuru (”entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> mata”), caiuruçu (”incêndio”), capixaba(”terreno prepara<strong>do</strong> para plantio”) Os índios caiapós usavam tanto o fogoque <strong>da</strong>í veio o nome <strong>da</strong> tribo - ”caiapó” significa ”que traz o fogo à mão”.Quan<strong>do</strong> os europeus chegaram por aqui, refugiaram-se em campos que jáhaviam si<strong>do</strong> abertos pelos tupis. Alguns biólogos perguntam se asqueima<strong>da</strong>s indígenas não apressaram ou favoreceram o surgimento decerra<strong>do</strong>s e campos de gramíneas em locais onde antes havia florestas.Vêm <strong>da</strong>s clareiras abertas pelos índios nomes de lugares comoCapão Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, Capão <strong>da</strong> Imbuía, Campo Limpo, Campos Campinas,São Bernar<strong>do</strong> <strong>do</strong> Campo, Santo André <strong>da</strong> Bor<strong>da</strong> <strong>do</strong> Campo. Alguns locaismostram até quais índios abriram a mata, como a ci<strong>da</strong>de fluminense deCampos <strong>do</strong>s Goytacazes.A floresta era o maior inimigo <strong>do</strong>s índios, e é fácil entender porquê. Para quem mora na ci<strong>da</strong>de, é possível enxergar as árvores como umabrigo <strong>da</strong> paz e de boas energias. Mas quem vive no mato conhece bem osignifica<strong>do</strong> <strong>da</strong> expressão ”inferno verde”. Não tanto por cobras e grandesanimais que podem atacar o homem, mas pelos pequenos. Mosquitos,aranhas, formigas e to<strong>do</strong> tipo de artrópodes infernizam quem se atreve apassar a noite na mata. Simples pica<strong>da</strong>s transmitem vírus e protozoárioscausa<strong>do</strong>res de febres que inutilizam uma pessoa por semanas, quan<strong>do</strong> nãodeixam seu corpo repleto de feri<strong>da</strong>s permanentes, como no caso <strong>da</strong>leishmaniose. Mesmo nas clareiras e nas ocas, ain<strong>da</strong> hoje os índios precisammanter fogueiras constantemente acesas, para espantar mosquitos. Por isso,quan<strong>do</strong> os portugueses se mostraram interessa<strong>do</strong>s em pau-<strong>brasil</strong>, os índiosderrubaram as árvores com gosto. As ferramentas de aço satisfizeram seudesejo de se livrar <strong>do</strong> mato sem se importar com o resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> devastação.


Em cinco séculos, algumas tribos fizeram tanto mal à mata quanto os nãoíndios. Conta o historia<strong>do</strong>r Warren Dean:Um grupo caingangue residente no Paraná, que havia recebi<strong>do</strong>ferramentas de aço apenas no século 20, lembrava-se de que não mais tinhade escalar árvores, outrora uma ativi<strong>da</strong>de muito frequente, para apanharlarvas e mel. Muitos <strong>do</strong>s que caíam <strong>da</strong>s árvores morriam — agora elessimplesmente derrubavam as árvores.Os jesuítas se encantavam com o fato de os índios não sepreocuparem em acumular riquezas, não serem ”luxuriosos”. Essacaracterística também fazia os índios não se preocupar em deixar riquezasnaturais para o futuro. Apesar de muitos líderes indígenas de hojeafirmarem que o homem branco destruiu a floresta enquanto eles tentavamprotegê-la, esse discurso <strong>politicamente</strong> correto não nasceu com eles. Nasceucom os europeus logo nas primeiras déca<strong>da</strong>s após a conquista.Os portugueses criaram leis ambientais para o território <strong>brasil</strong>eiro jáno século 16. As ordenações <strong>do</strong> rei Manuel primeiro (1469-1521) proibiamo corte de árvores frutíferas em Portugal e em to<strong>da</strong>s as colônias. No Brasil,essa lei protegeu centenas de espécies nativas. Em 1605, o Regimento <strong>do</strong>Pau-Brasil estabeleceu punições para os madeireiros que derrubassem maisárvores <strong>do</strong> que o previsto na licença. A pena variava conforme a quanti<strong>da</strong>dede madeira corta<strong>da</strong> ilegalmente. Pequenos excedentes seriam apreendi<strong>do</strong>s erenderiam ao concessionário multa de cem cruza<strong>do</strong>s. Quem cortasse maisde seis tonela<strong>da</strong>s receberia um castigo maior: pena de morte. A nova leitambém estipulava regras de aproveitamento <strong>da</strong> floresta. O rei proibiu oaban<strong>do</strong>no de toras e galhos pela mata, de mo<strong>do</strong> que ”se aproveite to<strong>do</strong> oque for de receber, e não se deixe pelos matos nenhum pau corta<strong>do</strong>”. Oscolonos também não podiam transformar matas de pau-<strong>brasil</strong> em roças.


”Essa legislação garantiu a manutenção e a exploração sustentável <strong>da</strong>sflorestas de pau-<strong>brasil</strong> até 1875, quan<strong>do</strong> entrou no merca<strong>do</strong> a anilina”,escreveu o biólogo Evaristo Eduar<strong>do</strong> de Miran<strong>da</strong>. ”Ao contrário <strong>do</strong> quemuitos pensam e propagam, a exploração racional <strong>do</strong> pau-<strong>brasil</strong> manteveboa parte <strong>da</strong> mata atlântica até o final <strong>do</strong> século 19 e não foi a causa <strong>do</strong> seudesmatamento, fato bem posterior.”


O CONTATO TAMBÉM MATOU MILHÕES DEEUROPEUSGenocídio e extermínio, palavras sempre usa<strong>da</strong>s para se falar <strong>do</strong>contato <strong>do</strong>s portugueses com os índios, denotam ações com o propósitodelibera<strong>do</strong> de matar um grupo de pessoas. Por mais cruéis que osportugueses e seus alia<strong>do</strong>s índios tenham si<strong>do</strong> durante as bandeiras ecaça<strong>da</strong>s de escravos nos sertões, essas ações respondem por uma pequenaparte <strong>da</strong> enorme mortali<strong>da</strong>de de índios durante os primeiros séculos deBrasil. A grande maioria deles morreu por <strong>do</strong>enças que os portuguesestrouxeram, sobretu<strong>do</strong> gripe, varíola e sarampo. O simples contágio criouepidemias que devastaram nações indígenas inteiras.É injusto responsabilizar os portugueses por essas mortes.Epidemias causa<strong>da</strong>s pelo contato de etnias foram muito comuns na história<strong>do</strong> homem: não aconteceram só com os nativos <strong>da</strong> América. Talvez osantepassa<strong>do</strong>s deles próprios, durante milênios de diáspora pelo mun<strong>do</strong>,tenham transmiti<strong>do</strong> <strong>do</strong>enças a povos de regiões onde pisaram. Além disso,no século 16, ain<strong>da</strong> demoraria trezentos anos para se descobrir que as<strong>do</strong>enças contagiosas são causa<strong>da</strong>s por micro-organismos e passam de umapessoa a outra pela respiração e pela pica<strong>da</strong> de mosquitos. Tinha-se apenasuma noção vaga <strong>da</strong> transmissão de <strong>do</strong>enças venéreas.Acreditava-se então que as <strong>do</strong>enças vinham de ares malignos,”maus ares”, expressão que deu o nome à malária. Os colonos e navega<strong>do</strong>resmorriam de me<strong>do</strong> de ser contamina<strong>do</strong>s por esses ares no Brasil. Existe umahistória muito boa sobre esse temor. Em 1531, a expedição de MartimAfonso de Souza chegou à ilha de Queima<strong>da</strong> Grande, no litoral de São


Paulo, que estava repleta de fragatas e mergulhões. Ao voltar para acaravela, os marinheiros de repente sentiram um vento quente vin<strong>do</strong> <strong>da</strong>ilha. Para eles, era o típico vento demoníaco causa<strong>do</strong>r de febre. Pensan<strong>do</strong>em evitar que o suposto vento contamina<strong>do</strong> se espalhasse, voltaram eatearam fogo na ilha inteira.Diante <strong>da</strong> morte inexplicável de tantos nativos, os colonos e osjesuítas não ficavam contentes. Numa carta de 1558, o padre AntônioBlásquez parece triste ao relatar que justamente os índios mais próximos ecomprometi<strong>do</strong>s com a Igreja eram os primeiros a morrer. Isso aconteciatanto que, entre os pajés, corria o boato de que a fé cristã matava.Segun<strong>do</strong> o padre, depois <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> filho de um cacique, ”osfeiticeiros diziam que o batismo o matara, e que por ser tanto nosso amigo,morrera”.Na ver<strong>da</strong>de, quan<strong>do</strong> chegaram ao Brasil, os portugueses pensavamque eles é que ficariam <strong>do</strong>entes. Era isso o que acontecia aos navega<strong>do</strong>resno resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Os habitantes <strong>da</strong> África e <strong>da</strong> Ásia eram muito maisresistentes a <strong>do</strong>enças que os portugueses. Nesses lugares, os europeusficavam derruba<strong>do</strong>s diante de vírus e parasitas estranhos, para os quais nãotinham defesa biológica. Para piorar, depois de meses de alimentaçãoprecária nas caravelas, o sistema imunológico ia para o chão. Quan<strong>do</strong>voltavam <strong>da</strong>s viagens, novas <strong>do</strong>enças apareciam em Portugal. O tifo surgiudepois <strong>do</strong> contato com os turcos no leste <strong>do</strong> Mediterrâneo; a febre amarelaveio <strong>da</strong> África; o cólera, <strong>do</strong>s indianos. Essas <strong>do</strong>enças então desconheci<strong>da</strong>scausaram crises de mortali<strong>da</strong>de na população portuguesa. Com base emregistros de óbitos e nascimentos em Lisboa, a historia<strong>do</strong>ra portuguesaTeresa Rodrigues descobriu que a ci<strong>da</strong>de viveu grandes crises de


mortali<strong>da</strong>de a partir de 1550, provoca<strong>da</strong>s sobretu<strong>do</strong> por ”epidemiasimporta<strong>da</strong>s por via <strong>do</strong>s contatos marítimos e terrestres”.Apesar de pouca gente falar sobre isso, centenas de milhares demortes devem ter si<strong>do</strong> causa<strong>da</strong>s na Europa por males Americanos. Aochegarem a América, espanhóis, franceses, portugueses e holandesespenaram com <strong>do</strong>enças novas e as transmitiram pelo mun<strong>do</strong>. O antropólogoMichael Crawford, diretor <strong>do</strong> Laboratório de Antropologia Biológica <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Kansas, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, cita alguns desses males:purupuru, bouba e sífilis venérea, <strong>do</strong>enças infecciosas causa<strong>da</strong>s portreponemas, novas cepas de tuberculose (<strong>do</strong>ença que foi uma <strong>da</strong>s principaiscausas de morte até a popularização <strong>do</strong>s antibióticos e ain<strong>da</strong> hoje mataquase 3 milhões de pessoas por ano), <strong>do</strong>enças autoimunes e parasitas,muitos parasitas <strong>da</strong> pele e <strong>do</strong> intestino.Por muito tempo não houve consenso de que a sífilis tenha si<strong>do</strong>transmiti<strong>da</strong> aos europeus pelos índios Americanos. Apesar de a primeiraepidemia ter aconteci<strong>do</strong> em Nápoles no ano de 1495, logo depois <strong>da</strong>sprimeiras viagens a América, havia descrições mais antigas de sintomassimilares. A certeza veio em 2008, com um estu<strong>do</strong> genético <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deEmory, <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Os pesquisa<strong>do</strong>res compararam o DNA dediferentes bactérias <strong>do</strong> gênero Treponema. Conseguiram montar umaárvore genealógica <strong>da</strong>s bactérias, revelan<strong>do</strong> que a causa<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> sífilis eafilia<strong>da</strong> de bactérias americanas. Com a análise, ficou prova<strong>do</strong> que a <strong>do</strong>ençasaiu <strong>da</strong> América a bor<strong>do</strong> <strong>da</strong>s caravelas.A sífilis causou tragédias na Europa. Os historia<strong>do</strong>res CarmenBernand e Serge Gruzmski, autores <strong>do</strong> livro História <strong>do</strong> Novo Mun<strong>do</strong>,estimam que ela atingiu mais de um terço <strong>do</strong>s navega<strong>do</strong>res. O homemaponta<strong>do</strong> como o primeiro sifilítico <strong>da</strong> Europa é justamente um navega<strong>do</strong>r:


Martin Alonso Pinzón, coman<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> caravela Pinta, que descobriu aAmérica junto com Cristóvão Colombo, em 1492. Pinzón teria feito sexocom índias na ilha de Hispaniola (hoje Haiti e República Dominicana).Morreu em 31 de março de 1493, logo depois de voltar <strong>da</strong> viagem <strong>do</strong>descobrimento, com o corpo cheio de feri<strong>da</strong>s causa<strong>da</strong>s pela sífilis. Nosestágios iniciais, a sífilis provoca feri<strong>da</strong>s no pênis ou na vagina. À medi<strong>da</strong>que a infecção se desenvolve, feri<strong>da</strong>s, manchas e cascas se espalham pelocorpo, caem tufos de cabelos e nascem verrugas no ânus. No último estágio,a bactéria atinge artérias e cérebro. Antes de morrer, o <strong>do</strong>ente fica cego e,muitas vezes, louco. Espalhan<strong>do</strong>-se pelos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e nas ci<strong>da</strong>des portuárias,essa <strong>do</strong>ença aterrorizante devastou populações e adquiriu novos nomes poronde passou - ”mal <strong>da</strong>s índias”, ”mal napolitano”, ”mal gálico” ou ”malfrancês”. Ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Europa chegaram a fechar bordéis, proibin<strong>do</strong> a maisantiga profissão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, na tentativa de conter a epidemia.Os portugueses ain<strong>da</strong> sofriam com parasitas <strong>do</strong> intestino e <strong>da</strong> pele.Numa terra desconheci<strong>da</strong>, germes simples viram um problema <strong>da</strong>na<strong>do</strong>. Umbom exemplo é o bicho-de-pé Americano. Os índios tentavam li<strong>da</strong>r com oparasita manten<strong>do</strong> os pés limpos e areja<strong>do</strong>s. Já entre as alpargatas quentes,sujas e úmi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s portugueses, o bicho-de-pé fazia a festa. Muitoseuropeus perderam o pé antes de descobrir que deveriam tirar o <strong>da</strong>na<strong>do</strong>com uma agulha. O bicho-de-pé americano se espalhou para colôniaseuropeias na África, causan<strong>do</strong> uma ”epidemia de de<strong>do</strong>s perdi<strong>do</strong>s e infecçõessecundárias fatais de tétano”, como afirma o historia<strong>do</strong>r Alfred Crosby. Em1605, o padre Jerônimo Rodrigues (que era bom em escrever relatosresmungões) contou que até mesmo os índios de Santa Catarina sofriamcom o parasita:


Há nesta terra grandíssimo número de imundícies, scilicet, bichosde pés e muito mais pequenos que os de lá, de que to<strong>do</strong>s an<strong>da</strong>m cheios. Ealguns meninos trazem os dedinhos <strong>da</strong>s mãos, que é uma pie<strong>da</strong>de, semhaver quem lhos tire.Americanos e europeus também trocaram costumes que serevelariam mortais. É muito comum atribuir aos brancos a responsabili<strong>da</strong>depelo alcoolismo entre índios. Em diversas tribos, os homens se tornamalcoólatras com muita facili<strong>da</strong>de, o que desestrutura a socie<strong>da</strong>de indígena.Ninguém, no entanto, culpa os índios por um hábito tão trágico quanto oálcool: fumar tabaco. Até os navega<strong>do</strong>res descobrirem a América, não haviacigarros na Europa nem o costume de tragar fumaça. Já os índiosamericanos fumavam, cheiravam e mascavam a folha de tabaco à vontade.A planta significava uma ligação com os espíritos e era usa<strong>da</strong> em cerimôniasreligiosas. Entre os tupis, os caraíbas (um tipo de líderes espirituais)pregavam em transe, exalta<strong>do</strong>s com o fumo muito intenso de tabaco. Emoutras tribos, fumava-se antes de guerras, para aliviar <strong>do</strong>res e também porprazer.Nas colônias <strong>do</strong> Caribe e <strong>do</strong> Brasil, os poderes <strong>do</strong> tabaco logo conquistaramos brancos. Vasco Fernandes Coutinho, <strong>do</strong>natário <strong>da</strong> capitania hereditária<strong>do</strong> Espírito Santo, chegou a ser condena<strong>do</strong> por ”beber fumo” com os índios.Os jesuítas usavam a expressão "beber fumo" porque ain<strong>da</strong> nãoexistia no português o verbo "fumar" - ele só entraria em nossovocabulário em 1589, segun<strong>do</strong> o Dicionário Houaiss.


Apesar de evitarem aderir aos costumes indígenas, os padres faziamvista grossa para o fumo - eles também deveriam <strong>da</strong>r umas traga<strong>da</strong>s, poisacreditavam que a ”erva santa” fazia bem para curar feri<strong>da</strong>s, eliminar ocatarro e aliviar o estômago, órgão que, diante <strong>da</strong> alimentação <strong>brasil</strong>eira,fazia os padres sofrer.O tabaco fez tanto sucesso no litoral de São Paulo que Luís deGóis, um <strong>do</strong>s fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res <strong>da</strong> capitania de São Vicente, resolveu levar umaamostra de fumo ao rei de Portugal. Na corte, a planta chamou a atenção deJean Nicot, embaixa<strong>do</strong>r francês em terras lusitanas. Entusiasma<strong>do</strong> com adescoberta, o diplomata man<strong>do</strong>u, em 1560, uma remessa de fumo para asua rainha, Catarina de Médici. A rainha francesa a<strong>do</strong>rava novi<strong>da</strong>des eachou o tabaco sensacional, fazen<strong>do</strong> a planta cair no gosto <strong>da</strong> corte francesa.O embaixa<strong>do</strong>r Nicot acabou emprestan<strong>do</strong> seu sobrenome para o nomecientífico <strong>da</strong> erva (Nicotiana tabacum), assim como <strong>da</strong> substância”nicotina”.Os primeiros carregamentos de tabaco consumi<strong>do</strong>s entre os nobreseuropeus vieram <strong>do</strong> Brasil. É provável que a primeira plantação de tabacopara exportação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tenha si<strong>do</strong> uma roça paulista de 1548. Por quasetrês séculos, a planta foi o segun<strong>do</strong> maior produto de exportação <strong>do</strong> Brasil,atrás apenas <strong>da</strong>cana-de-açúcar. Séculos depois, com a industrialização <strong>do</strong> cigarro, o hábitode fumar tabaco resultaria numa catástrofe com milhões de mortes. AOrganização Mundial de Saúde estima que o fumo vai matar l bilhão depessoas no século 21. Culpa <strong>do</strong>s índios?Claro que não. Os índios e seus descendentes não têm nenhumaresponsabili<strong>da</strong>de sobre um hábito que copiamos deles. Na ver<strong>da</strong>de, temos éque agradecer a eles por terem nos inicia<strong>do</strong> nesse costume maravilhoso que


é fumar tabaco e outras ervas deliciosas. Da mesma forma, quem hoje seconsidera índio poderia deixar de culpar os outros por seus problemas.


AGRADEÇAM AOS INGLESESPor volta de 1830, o escravo José Francisco <strong>do</strong>s Santos conquistou aliber<strong>da</strong>de. Depois de anos de trabalho força<strong>do</strong> na Bahia, viu-se livre <strong>da</strong>escravidão, provavelmente compran<strong>do</strong> sua própria carta de alforria ouganhan<strong>do</strong>-a de algum amigo rico. Estava enfim livre <strong>do</strong> sistema que o tirou<strong>da</strong> África quan<strong>do</strong> jovem, jogou-o num navio imun<strong>do</strong> e o trouxe amarra<strong>do</strong>para uma terra estranha. José tinha uma profissão - havia trabalha<strong>do</strong>cortan<strong>do</strong> e costuran<strong>do</strong> teci<strong>do</strong>s, o que lhe rendeu o apeli<strong>do</strong> de ”Zé Alfaiate”.No entanto, o ex-escravo decidiu <strong>da</strong>r outro rumo a sua vi<strong>da</strong>: foi operar omesmo comércio <strong>do</strong> qual tinha si<strong>do</strong> vítima. Voltou à África e se tornoutraficante de escravos. Casou-se com uma <strong>da</strong>s filhas de Francisco Félix deSouza, o maior vende<strong>do</strong>r de gente <strong>da</strong> África atlântica, e passou a man<strong>da</strong>rouro, negros e azeite de dendê para vários portos <strong>da</strong> América e <strong>da</strong> Europa.Foi o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger que encontrou, com um neto deZé Alfaiate, uma coleção de 112 cartas escritas pelo ex-escravo. Asmensagens foram envia<strong>da</strong>s entre 1844 e 1871 e tratam de negócios comSalva<strong>do</strong>r, Rio de Janeiro, Havana (Cuba), Bristol (Inglaterra) e Marselha(França). Em 22 de outubro de 1846, numa carta para um comerciante <strong>da</strong>Bahia, o traficante conta que teve problemas ao realizar um <strong>do</strong>s atos maisterríveis <strong>da</strong> escravidão - marcar os negros com ferro incandescente. Diz ele:Por esta goleta [uma espécie de escuna] embarquei por minha contaem nome <strong>do</strong> sr. Joaquim d’Almei<strong>da</strong> 20 balões [escravos] sen<strong>do</strong> 12 H. e 8M. com a marca ”5” no seio direito. Eu vos alerto que a marca que vai nalistagem geral é ”V seio” mas, como o ferro quebrou durante a marcação,não houve então outro remédio senão marcar com ferro ”5”.


Talvez Zé Alfaiate tenha entra<strong>do</strong> para o tráfico por um desejo devingança, na tentativa de repetir com outras pessoas o que ele própriosofreu. O mais provável, porém, é que visse no comércio de gente umachance comum e aceitável de ganhar dinheiro, como costurar ou exportarazeite. Havia muito tempo que o costume de atacar povos inimigos evendê-los era comum na África. Com o tráfico pelo oceano Atlântico, aspilhagens a povos <strong>do</strong> interior, feitas para capturar escravos, aumentarammuito - assim como o lucro de reis, nobres ci<strong>da</strong>dãos comuns africanos queoperavam a ven<strong>da</strong>. Essa personali<strong>da</strong>de dupla <strong>da</strong> África diante <strong>do</strong> tráfico deescravos às vezes aparece num mesmo indivíduo, como é o caso de ZéAlfaiate. Ex-escravo e traficante, foi ao mesmo tempo vítima e carrasco <strong>da</strong>escravidão.Não era preciso sair <strong>do</strong> Brasil para agir como ele. Por aqui, osescravos tiveram que se a<strong>da</strong>ptar a um novo mo<strong>do</strong> de vi<strong>da</strong>, mas nãoaban<strong>do</strong>naram costumes <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Atlântico. Nas vilas <strong>da</strong> corri<strong>da</strong> <strong>do</strong>ouro de Minas Gerais, nas fazen<strong>da</strong>s de tabaco <strong>da</strong> Bahia, era comumafricanos ou descendentes escravizarem. Como um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> África,cristão e falante de português, o Brasil também abrigou reis africanos quevinham se exilar no país quan<strong>do</strong> a situação <strong>do</strong> seu reino complicava,embaixa<strong>do</strong>res negros interessa<strong>do</strong>s em negociar o preço de escravos, e atémesmo filhos de nobres africanos que vinham estu<strong>da</strong>r na Bahia, numaespécie de intercâmbio estu<strong>da</strong>ntil. Esses fenômenos certificam uma boametáfora que Joaquim Nabuco usa no livro O Abolicionismo, clássico <strong>do</strong>movimento <strong>brasil</strong>eiro pelo fim <strong>da</strong> escravidão. Nabuco dizia que o tráficonegreiro provocou uma união <strong>da</strong>s fronteiras <strong>brasil</strong>eiras e africanas, como sea África tivesse aumenta<strong>do</strong> seu território alguns milhares de quilômetros.”Lançou-se, por assim dizer, uma ponte entre a África e o Brasil, pela qual


passaram milhões de africanos, e estendeu-se o habitat <strong>da</strong> raça negra <strong>da</strong>smargens <strong>do</strong> Congo e <strong>do</strong> Zambeze às <strong>do</strong> São Francisco e <strong>do</strong> Paraíba <strong>do</strong> Sul.”Com os mais de 4 milhões de escravos que vieram força<strong>do</strong>s ao Brasil, veiotambém a África.Na déca<strong>da</strong> de 1990, quan<strong>do</strong> os historia<strong>do</strong>res passaram a <strong>da</strong>r mais peso àinfluência <strong>da</strong> cultura africana na escravidão <strong>brasil</strong>eira, os estu<strong>do</strong>s sofreramuma revolução. Em obras como Em Costas Negras, publica<strong>da</strong> em 1997pelo historia<strong>do</strong>r Manolo Florentino, houve uma mu<strong>da</strong>nça de ponto de vistamuito pareci<strong>da</strong> com a que aconteceu com os índios. Os negros deixaram deser vistos como vítimas constantemente passivas, que nunca agiam porescolha própria. ”Em franca reação à visão reifica<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> africano sugeri<strong>da</strong>pelos estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de 1960 e 1970, os historia<strong>do</strong>res buscarammostrar o negro como sujeito <strong>da</strong> história, protagonista <strong>da</strong> escravidão, ain<strong>da</strong>que não aquilomba<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> não cúmplice <strong>do</strong> cativeiro”, escreveu ohistoria<strong>do</strong>r Ronal<strong>do</strong> Vainfas. Essa nova corrente de estu<strong>do</strong>s descobriupersonagens bem diferentes <strong>do</strong>s pares ”senhor cruel/escravo rebelde” ou”senhor camara<strong>da</strong>/escravo submisso”, como se refere o historia<strong>do</strong>r Flávio<strong>do</strong>s Santos Gomes. Também fez aflorar histórias aparentementedesagradáveis para minorias e movimentos sociais, como as que estão aseguir.No auge de seu poder, o rei africano Kosoko, de Lagos, hoje capital<strong>da</strong> Nigéria, resolveu <strong>da</strong>r um presente para três de seus filhos. Man<strong>do</strong>u-ospara uma espécie de intercâmbio estu<strong>da</strong>ntil <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Atlântico,provavelmente de carona num navio negreiro cheio de escravos vendi<strong>do</strong>spelo pai deles.


PRÍNCIPES AFRICANOS VINHAM ESTUDAR NOBRASILNa Bahia, os irmãos ficaram a cargo de um comerciante amigo <strong>do</strong>rei. Segun<strong>do</strong> Benjamin Campbell, cônsul inglês em Lagos, os três ”forammuito bem trata<strong>do</strong>s na Bahia, como se fossem príncipes”. Voltaram paracasa em 28 de agosto de 1850, batiza<strong>do</strong>s, com nomes cristãos - Simplício,Lourenço e Camílio - e elogian<strong>do</strong> ahospitali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s <strong>brasil</strong>eiros, viagens assim não foram raras durante aescravidão. Algumas déca<strong>da</strong>s antes <strong>da</strong> viagem <strong>do</strong>s três irmãos, em 1781, opríncipe Guinguin foi carrega<strong>do</strong> por seus súditos ”a bor<strong>do</strong> de um navioportuguês para ser leva<strong>do</strong> ao Brasil, onde foi educa<strong>do</strong>”, conta Pierre Verger.”Forneceram-lhe vinte escravos para sua subsistência.”


ZUMBI TINHA ESCRAVOSZumbi, o maior herói negro <strong>do</strong> Brasil, o homem em cuja <strong>da</strong>ta demorte se comemora em muitas ci<strong>da</strong>des <strong>do</strong> país o Dia <strong>da</strong> Consciência Negra,man<strong>da</strong>va capturar escravos de fazen<strong>da</strong>s vizinhas para que eles trabalhassemforça<strong>do</strong>s no Quilombo <strong>do</strong>s Palmares. Também sequestrava mulheres, rarasnas primeiras déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> Brasil, e executava aqueles que quisessem fugir <strong>do</strong>quilombo.Essa informação parece ofender algumas pessoas hoje em dia, aponto de preferirem omiti-la ou censurá-la, mas na ver<strong>da</strong>detrata-se de um <strong>da</strong><strong>do</strong> óbvio. É claro que Zumbi tinha escravos.Sabe-se muito pouco sobre ele - cogita-se até que o nome mais correto sejaZambi -, mas é certo que viveu no século 17. E quem viveu próximo <strong>do</strong>poder no século 17 tinha escravos, sobretu<strong>do</strong> quem liderava algum povo deinfluência africana.Desde a Antigui<strong>da</strong>de, os humanos guerrearam, conquistaramescravos e muitas vezes venderam os que sobravam. Até o século 19, emAngola e no Congo, de onde veio a maior parte <strong>do</strong>s africanos que povoaramPalmares, os sobás se valiam de escravos na corte e invadiam povoa<strong>do</strong>svizinhos para capturar gente. O sistema escravocrata só começou a ruirquan<strong>do</strong> o Iluminismo ganhou força na Europa e nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Combase na ideia de que to<strong>do</strong>s as pessoas merecem direitos iguais, surgiu aDeclaração <strong>do</strong>s Direitos <strong>da</strong> Virgínia, de 1776, e os primeiros protestospopulares contra a escravidão, na Inglaterra. Os abolicionistas apareceramum século depois de Zumbi e a 7 mil quilômetros <strong>da</strong> região onde oQuilombo <strong>do</strong>s Palmares foi construí<strong>do</strong>.


É difícil acreditar que, no meio <strong>da</strong>s matas de Alagoas, Zumbi tenhase adianta<strong>do</strong> ao espírito humanista europeu ou previsto os ideais deliber<strong>da</strong>de, igual<strong>da</strong>de e fraterni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Revolução Francesa. É ain<strong>da</strong> maisdifícil quan<strong>do</strong> consultamos os poucos relatos de testemunhas queconheceram Palmares. Elas indicam o espera<strong>do</strong>: o quilombo se parecia comum povoa<strong>do</strong> africano, com hierarquia rígi<strong>da</strong> entre reis e servos. Osmora<strong>do</strong>res chamavam o lugar de Ngola Janga, em referência aos reinos quejá existiam na região <strong>do</strong> Congo e de Angola. Significa ”novo reino” ou”novo soba<strong>do</strong>”.Ganga Zumba, tio de Zumbi e o primeiro líder <strong>do</strong> maior quilombo<strong>do</strong> Brasil, provavelmente descendia de imbangalas, os ”senhores <strong>da</strong> guerra”<strong>da</strong> África Centro-Ocidental. Os imbangalas viviam de um mo<strong>do</strong> similar ao<strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Quilombo <strong>do</strong>s Palmares. Guerreiros temi<strong>do</strong>s, eleshabitavam vilarejos fortifica<strong>do</strong>s, de onde partiam para saques e sequestros<strong>do</strong>s camponeses de regiões próximas. Durante o ataque a comuni<strong>da</strong>desvizinhas, recrutavam garotos, que depois transformariam em guerreiros, eadultos para trocar por ferramentas e armas com os europeus. Algumasmulheres conquista<strong>da</strong>s ficavam entre os guerreiros como esposas. ”Aspráticas <strong>do</strong>s imbangalas tinham o propósito de aterrorizar a população emgeral e de encorajar as habili<strong>da</strong>des marciais - bravura na guerra, leal<strong>da</strong>detotal ao líder militar e desprezo pelas relações de parentesco”, afirma ohistoria<strong>do</strong>r Americano Paul Lovejoy. ”Essas práticas incluíam a morte deescravos antes <strong>da</strong> batalha, canibalismo e infanticídio.” Tanta dedicação aguerras e sequestros fez <strong>do</strong>s imbangalas grandes fornece<strong>do</strong>res de escravospara a América. Lovejoy estima que três quartos <strong>do</strong>s cerca de 1,7 milhão deescravos embarca<strong>do</strong>s entre 1500 e 1700 vieram <strong>da</strong> África Centro-Ocidental,sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> Congo. Como a aliança com os portugueses às vezes se


quebrava, os guerreiros também acabavam sen<strong>do</strong> escraviza<strong>do</strong>s.Provavelmente foi assim que os pais ou avôs de Zumbi chegaram ao Brasil.Entre os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que lutaram para derrubar o Quilombo dePalmares, o que mais impressionava, além <strong>da</strong> força militar <strong>do</strong>s quilombolas,era o mo<strong>do</strong> como eles se organizavam <strong>politicamente</strong>. Segun<strong>do</strong> o relato <strong>do</strong>capitão holandês João Blaer, que lutou contra o quilombo em 1645, to<strong>do</strong>sos quilombolas eram [...] obedientes a um que se chama o Ganga Zumba,que quer dizer Senhor Grande; a este têm por seu rei e senhor to<strong>do</strong>s osmais, assim naturais <strong>do</strong>s Palmares como vin<strong>do</strong>s de fora; tem palácio, casasde sua família, é assisti<strong>do</strong> de guar<strong>da</strong>s e oficiais que costumam ter as casasreais. É trata<strong>do</strong> com to<strong>do</strong>s os respeitos de rei e com to<strong>da</strong>s as honras desenhor. Os que chegam à sua presença põem os joelhos no chão e batempalmas <strong>da</strong>s mãos em sinal de reconhecimento e protestação de suaexcelência; falam-lhe ”majestade”, obedecem-lhe por admiração.Não há relatos de que os mora<strong>do</strong>res de Palmares cometesseminfanticídio ou canibalismo, mas diversos falam de ataques a camponeses,sequestros de homens e mulheres e ain<strong>da</strong> de vilarejos fortifica<strong>do</strong>s.Para obter escravos, os quilombolas faziam pequenos ataques apovoa<strong>do</strong>s próximos. ”Os escravos que, por sua própria indústria e valor,conse<strong>guia</strong>m chegar aos Palmares, eram considera<strong>do</strong>s livres, mas os escravosrapta<strong>do</strong>s ou trazi<strong>do</strong>s à força <strong>da</strong>s vilas vizinhas continuavam escravos”,afirma Edison Carneiro no livro O Quilombo <strong>do</strong>s Palmares, de 1947. Noquilombo, os mora<strong>do</strong>res deveriam ter mais liber<strong>da</strong>de que fora dele. Mas aescolha em viver ali deveria ser um caminho sem volta, o que lembra amáfia hoje em dia. ”Quan<strong>do</strong> alguns negros fugiam, man<strong>da</strong>va-lhes crioulosno encalço e uma vez pega<strong>do</strong>s, eram mortos, de sorte que entre eles reinavao temor”, afirma o capitão João Blaer. ”Consta mesmo que os palmaristas


cobravam tributos - em mantimentos, dinheiro e armas - <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>da</strong>svilas e povoa<strong>do</strong>s. Quem não colaborasse poderia ver suas proprie<strong>da</strong>dessaquea<strong>da</strong>s, seus canaviais e plantações incendia<strong>do</strong>s e seus escravossequestra<strong>do</strong>s”, afirma o historia<strong>do</strong>r Flávio Gomes no livro Palmares.Não dá para ter certeza de que a vi<strong>da</strong> no quilombo era assimmesmo, mas os vestígios e o pensamento <strong>da</strong> época levam a crer que sim.Apesar disso, Zumbi ganhou (um retrato muito diferente por historia<strong>do</strong>resmarxistas <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de 1950 a 1980. Décio Freitas, Joel Rufino <strong>do</strong>sSantos e Clóvis Moura fizeram <strong>do</strong> líder negro <strong>do</strong> século 17 umrepresentante comunista que dirigia uma socie<strong>da</strong>de igualitária. Para eles,enquanto fora <strong>do</strong> quilombo pre<strong>do</strong>minava a monocultura de cana-de-açúcarpara exportação, faltava comi<strong>da</strong> e havia classes sociais oprimi<strong>da</strong>s eopressoras (tu<strong>do</strong> de ruim), em Palmares não existiam desníveis sociais,plantavam-se alimentos diversos e por isso havia abundância de comi<strong>da</strong>(tu<strong>do</strong> de bom). ”Nesta bibliografia de viés marxista há um esforço emcaracterizar Palmares como a primeira luta de classes na História <strong>do</strong> Brasil”,afirma a historia<strong>do</strong>ra Andressa Barbosa <strong>do</strong>s Reis em um estu<strong>do</strong> de 2004.A imaginação sobre Zumbi foi mais criativa na obra <strong>do</strong> jornalistagaúcho Décio Freitas, amigo de Leonel Brizola e <strong>do</strong>ex-presidente João Goulart. No livro Palmares: A Guerra <strong>do</strong>s Escravos,Décio afirma ter encontra<strong>do</strong> cartas mostran<strong>do</strong> que o herói cresceu numconvento de Alagoas, onde recebeu o nome de Francisco e aprendeu a falarlatim e português. Aos 15 anos, Atenden<strong>do</strong> ao chama<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu povo, teriaparti<strong>do</strong> para o quilombo. As cartas sobre a infância de Zumbi teriam si<strong>do</strong>envia<strong>da</strong>s pelo padre Antônio Melo, <strong>da</strong> vila alagoana de Porto Calvo, paraum padre de Portugal, onde Décio as teria encontra<strong>do</strong>. Ele nunca mostrouas mensagens para os historia<strong>do</strong>res que insistiram em ver o material. A


quilombo <strong>do</strong>s negros chama<strong>do</strong>s saramacás respeitou o acor<strong>do</strong> de paz com osholandeses. Esse grupo, que o historia<strong>do</strong>r Americano Richard Priceconsidera a ”experiência mais extraordinária de quilombos no NovoMun<strong>do</strong>”, conseguiu manter o povoa<strong>do</strong> protegi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ataques europeus.Tem hoje 55 mil habitantes.Em 1685, na tentativa de fazer um acor<strong>do</strong> de paz com o quilombo,o rei de Portugal man<strong>do</strong>u uma mensagem carinhosa para Zumbi. Umtrecho: ”Convi<strong>do</strong>-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, comvossa mulher e vossos filhos, e to<strong>do</strong>s os vossos capitães, livres de qualquercativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha realproteção”.Hoje em dia relacionamos negros e escravos porque a escravidãoafricana foi a última. Essa relação tem uma história muito recente. Houveum tempo em que escravos lembravam brancos deolhos de azuis.


O SONHO DOS ESCRAVOS ERA TER ESCRAVOSO livro Mulheres Negras <strong>do</strong> Brasil, de Schuma Schumaher e ÉricoVital Brazil, foi lança<strong>do</strong> em 2007 com patrocínio <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> Brasil e <strong>da</strong>Petrobras. Um capítulo <strong>da</strong> obra trata <strong>da</strong>s mulheres negras livres de MinasGerais <strong>do</strong> século 18. O livro reúne belas imagens <strong>da</strong> época, mas deixa defora uma informação essencial. Nas vinte páginas sobre as negras mineiras,não há sequer uma menção ao fato mais corriqueiro <strong>da</strong>quela época: assimque conse<strong>guia</strong>m economizar para comprar a alforria, o próximo passo demuitas negras era adquirir escravos para si próprias.A corri<strong>da</strong> <strong>do</strong> ouro de Minas Gerais <strong>do</strong> século 18 fez pequenas vilasrurais se transformarem em ci<strong>da</strong>des efervescentes. Era um fenômeno poucasvezes visto no Brasil. Até então, mesmo as capitais <strong>da</strong>s províncias erampovoa<strong>do</strong>s bucólicos que funcionavam como centros administrativos <strong>da</strong>scolônias ao re<strong>do</strong>r. Já as ruas de Mariana, Diamantina, Sabará e Vila Rica,atual Ouro Preto, ficaram de repente apinha<strong>da</strong>s de aventureiros e mineirosenriqueci<strong>do</strong>s. Depois de duzentos anos procuran<strong>do</strong>, Portugal tinha enfimencontra<strong>do</strong> ouro em larga escala no Brasil. Entre 1700 e 1760, um em ca<strong>da</strong>quatro portugueses veio ao Brasil, quase to<strong>do</strong>s para Minas Gerais. O ouroque esses aventureiros descobriam fazia as ci<strong>da</strong>des vibrar. Hospe<strong>da</strong>riaslota<strong>da</strong>s, tabernas e armazéns se multiplicavam, vende<strong>do</strong>res disputavamespaço nas ruas oferecen<strong>do</strong> porcos, galinhas, frutas, <strong>do</strong>ces e queijo.Sapateiros, ferreiros, alfaiates, tecelões e chapeleiros enriqueciam. Asirman<strong>da</strong>des religiosas faziam festas e competiam para construir a igreja maisbonita. Nesse novo ambiente urbano, havia possibili<strong>da</strong>des para muita gente,inclusive escravos e escravas.


A man<strong>do</strong> de seus <strong>do</strong>nos, as escravas costumavam vender <strong>do</strong>ces erefeições nas lavras de ouro para os garimpeiros famintos. Quan<strong>do</strong>ultrapassavam a ven<strong>da</strong> que o senhor esperava, faziam uma caixinha para sipróprias. Com alguns anos de economia, conse<strong>guia</strong>m juntar o suficientepara comprar a carta de alforria, tornan<strong>do</strong>-se “forras”. Também aconteciade ganharem a liber<strong>da</strong>de por herança, quan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>no morria ou voltavapara Portugal. Nessas ocasiões, eram ain<strong>da</strong> agracia<strong>da</strong>s com alguns bens <strong>do</strong>senhor faleci<strong>do</strong>. Em 1731, a ex-escrava Lauriana ganhou <strong>do</strong> testamento <strong>do</strong>seu antigo <strong>do</strong>no o sítio onde moravam. A mesma coisa fez o portuguêsAntônio Ribeiro Vaz morto em 1760 na ci<strong>da</strong>de de Sabará. Libertou seussete escravos e legou a eles a casa e to<strong>do</strong>s os bens que possuía.Em liber<strong>da</strong>de, essas Chincas <strong>da</strong> Silva tinham muito mais tempo eferramentas para ganhar dinheiro. Contan<strong>do</strong> com escravos como mão deobra barata, algumas fizeram fortuna. A angola Isabel Pinheira morreu em1741 deixan<strong>do</strong> sete escravos no testamento, que deveriam ser to<strong>do</strong>salforria<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> ele morresse. Na déca<strong>da</strong> de 1760, a baiana Bárbara deOliveira tinha vários imóveis, jóias, roupas de se<strong>da</strong> e na<strong>da</strong> menos que 22escravos. Era uma fortuna para a época. Apesar de serem livres e ricas, asnegras forras não viraram senhoras <strong>da</strong> elite: continuaram carregan<strong>do</strong> oestigma <strong>da</strong> cor. Havia uma compensação. Elas desfrutavam de umaautonomia muito maior que as mulheres brancas. Enquanto as “<strong>do</strong>nas”ficavam em casa debaixo <strong>da</strong>s decisões <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de suareputação, as negras circulavam na rua, nas lavras e pelas casas, conversan<strong>do</strong>com quem quisessem e tocan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> independentemente de mari<strong>do</strong>s.No livro Escravos e Libertos nas Minas Gerais <strong>do</strong> Século dezoito, ohistoria<strong>do</strong>r Eduar<strong>do</strong> França Paiva mostra mais um caso interessante: o <strong>da</strong>negra Bárbara Gomes de Abreu e Lima. Dona de um casarão em frente à


Igreja Matriz de Sabará, ele tinha sete escravos e parcerias comerciais comempresários e políticos. Seu testamento indica que ela revendia ouro econtrolava negócios em diversas ci<strong>da</strong>des de Minas e <strong>da</strong> Bahia. A herançaincluía dezenas de jóias e artefatos de metais preciosos, com cordões,corações, argolas, brincos, ”tu<strong>do</strong> de ouro”, além de ”quatro colheres de pratapesan<strong>do</strong> oito oitavas ca<strong>da</strong> uma, quatro garfos de prata e uma faca com cabode prata”, saias de se<strong>da</strong> e vesti<strong>do</strong>s. Nem to<strong>da</strong>s as negras tiveram tantasriquezas, direitos e relações quanto Bárbara. Mas, como diz o historia<strong>do</strong>rEduar<strong>do</strong> Paiva, ela ”representava, certamente, um modelo a ser segui<strong>do</strong> poroutras escravas libertas”.Donas de escravos como qualquer outro senhor colonial, essasnegras forras também praticavam atos cruéis que marcaram a escravidão<strong>brasil</strong>eira. Uma <strong>da</strong>s piores coisas que poderia acontecer para escravos <strong>da</strong>mesma família era serem separa<strong>do</strong>s e vendi<strong>do</strong>s para ci<strong>da</strong>des diferentes. Essaprática frequentemente resultava em fugas e rebeliões nas senzalas. A negraforra Luísa Rodrigues não se importou com isso em seu testamento, de1753. Consta ali sua decisão de vender <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s quatro filhos de sua escravaLeonor. Também concedeu alforria para um <strong>do</strong>s outros <strong>do</strong>is filhos <strong>da</strong>escrava, provavelmente queren<strong>do</strong> compensar o fato de ter separa<strong>do</strong> afamília.Negros agiam assim por to<strong>do</strong> o país, e não só as mulheres. ”EmCampos <strong>do</strong>s Goytacazes [Rio de Janeiro], no final <strong>do</strong> século 18, um terço<strong>da</strong> classe senhorial era ’de cor’. Isso acontecia na Bahia, em Pernambucoetc.”, escreveu o historia<strong>do</strong>r José Roberto Pinto de Góes. O historia<strong>do</strong>rAmericano Bert Barickman, analisan<strong>do</strong> os registros de posses de escravosem vilas rurais ao re<strong>do</strong>r de Salva<strong>do</strong>r, descobriu que negros eram uma parcelaconsiderável <strong>do</strong>s


proprietários de escravos. No vilarejo de São Gonçalo <strong>do</strong>s Campos, par<strong>do</strong>se negros alforria<strong>do</strong>s tinham 29,8 por cento de to<strong>do</strong>s os cativos. EmSantiago <strong>do</strong> Iguape, 46,5 por cento <strong>do</strong>s escravos eram proprie<strong>da</strong>de denegros, que, diante <strong>do</strong>s brancos, eram minoria <strong>da</strong> população livre. ”Emborapossuíssem geralmente apenas um número reduzi<strong>do</strong> de cativos, esses nãobrancos eram, ain<strong>da</strong> assim, senhores de escravos”, diz o historia<strong>do</strong>rBarickman.Também houve casos de escravos que se tornaram traficantes, comomostra Zé Alfaiate no começo deste capítulo. Entre os negros que depoisde livres voltaram para a terra natal, forman<strong>do</strong> a comuni<strong>da</strong>de de”<strong>brasil</strong>eiros” no Daomé, hoje Benin, vários passaram a vender gente. Oafricano João de Oliveira voltou à África em 1733, depois de adquirir aliber<strong>da</strong>de na Bahia. Abriu <strong>do</strong>is portos de ven<strong>da</strong> de escravos, pagan<strong>do</strong> <strong>do</strong>próprio bolso o custo <strong>da</strong>s instalações para o embarque <strong>do</strong>s negroscaptura<strong>do</strong>s. O ex-escravo Joaquim d’Almei<strong>da</strong> tinha casa no Brasil e naÁfrica. Cristão e enriqueci<strong>do</strong> pelo tráfico, financiou a construção de umacapela no centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Aguê, no Benin.Não há motivo para ativistas <strong>do</strong> movimento negro fechar os olhosaos escravos que viraram senhores. Ninguém hoje deve ser responsabiliza<strong>do</strong>pelo que os antepassa<strong>do</strong>s distantes fizeram séculos atrás. Negras forras ericas podem até ser considera<strong>da</strong>s heroínas <strong>do</strong> movimento negro,personagens que ativistas deveriam divulgar com esforço. Para um <strong>brasil</strong>eirodescendente de africanos, é muito mais gratificante (além de correto)imaginar que seus ancestrais talvez não tenham si<strong>do</strong> vítimas que sofreramcala<strong>da</strong>s. Tratar os negros apenas como vítimas indefesas, como afirmou ohistoria<strong>do</strong>r Manolo Florentino, ”dificulta o processo de identificação social<strong>da</strong>s nossas crianças com aquela figura que está sen<strong>do</strong> maltrata<strong>da</strong> o tempo


to<strong>do</strong>, sempre faminta, maltrapilha”. É uma pena que historia<strong>do</strong>rescomprometi<strong>do</strong>s com a causa negra ou patrocina<strong>do</strong>s por estatais escon<strong>da</strong>messes personagens.


OS PORTUGUESES APRENDERAM COM OSAFRICANOS A COMPRAR ESCRAVOSNa mancha clara e sem fim <strong>do</strong> deserto <strong>do</strong> Saara, um traço negro semovimenta devagar. Em fila indiana, 2 mil escravos são conduzi<strong>do</strong>s para ocompra<strong>do</strong>r, no norte <strong>da</strong> África. Estão presos uns aos outros com forquilhasno pescoço e carregam, ao la<strong>do</strong> de camelos, sacos de ouro, algodão, marfime couros. Meses antes, sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de uma nação vizinha invadiram a ci<strong>da</strong>dedeles, mataram quase metade <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res e os que sobraram agoramarcham sob o sol <strong>do</strong> Saara, como merca<strong>do</strong>ria. Chegarão em poucassemanas a castelos de reis árabes, onde as mulheres se tornarão concubinas eos homens, trabalha<strong>do</strong>res força<strong>do</strong>s.Entre a diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s culturas africanas, a escravidão funcionavacomo um traço comum. Era quase uma regra <strong>do</strong>s reis ter escravos eunucos,escravas <strong>do</strong>mésticas, dezenas de mulheres - que por sua vez tinhamserviçais. As caravanas de comércio escravo existiam muitos séculos antes deos europeus atingirem a costa oeste <strong>do</strong> continente. No século 8, logo depois<strong>da</strong> colonização árabe no norte <strong>da</strong> África, africanos <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> Saara passarama atravessar o deserto para vender aos árabes algodão, ouro, marfim esobretu<strong>do</strong> escravos. Na volta, as caravanas levavam aos reis africanos sal,jóias, objetos metálicos e teci<strong>do</strong>s. Diz o historia<strong>do</strong>r Americano PaulLovejoy:A escravidão já era fun<strong>da</strong>mental para a ordem social, política eeconômica de partes <strong>da</strong> savana setentrional, <strong>da</strong> Etiópia e <strong>da</strong> costa orientalafricana havia vários séculos antes de 1600. A escravização era umaativi<strong>da</strong>de organiza<strong>da</strong>, sanciona<strong>da</strong> pela lei e pelo costume. Os cativos eram a


principal merca<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> comércio, incluin<strong>do</strong> o setor de exportação, e eramimportantes na esfera interna, não apenas como concubinas, cria<strong>do</strong>s,sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e administra<strong>do</strong>res, mas também como trabalha<strong>do</strong>res comuns.Seis grandes rotas ligavam nações ao sul <strong>do</strong> Saara aos povos árabes<strong>do</strong> norte. Três saíam <strong>do</strong> Império de Gana, no oeste <strong>da</strong> África, rumo aoMarrocos e à Argélia; uma ligava o Chade à Líbia, e outras duas iam, pelorio Nilo, <strong>da</strong>s terras su<strong>da</strong>nesas até o Egito.Como há pouquíssimos registros dessa época, os historia<strong>do</strong>res nãosabem direito qual o número de escravos vendi<strong>do</strong>s pelo Saara. Masconcor<strong>da</strong>m com o tamanho dele. Para o historia<strong>do</strong>r Luiz Felipe deAlencastro, foram 8 milhões de pessoas. O Americano Patrick Manningfala que só as rotas transaarianas escoaram 10 mil escravos por ano — lmilhão de escravos por século. Contan<strong>do</strong> as caravanas transaarianas eorientais até o fim <strong>da</strong> escravidão, Paul Bairoch soma 25 milhões de escravos- mais que o <strong>do</strong>bro <strong>do</strong> que foi leva<strong>do</strong> às Américas, geralmente estima<strong>do</strong> em12 milhões de pessoas.Com a ven<strong>da</strong> de escravos, alguns reinos africanos viraram impérios,como o reino de Kano, na atual Nigéria. Quan<strong>do</strong> os portugueses chegaramà região, em 1471, para comprar ouro direto <strong>da</strong> fonte em vez de obtê-lo porintermediários árabes, Kano já era um território enriqueci<strong>do</strong> havia umséculo pela ven<strong>da</strong> de ouro, escravos, sal e couro. Em outras regiões, aescravidão era uma cultura estabeleci<strong>da</strong> com tanta força que camponesespagavam impostos ao Esta<strong>do</strong> central usan<strong>do</strong> escravos como moe<strong>da</strong>. Esse


sistema facilitava a obtenção de escravos que seriam vendi<strong>do</strong>s a europeus,Americanos e árabes. O Império Axante, que se espalhava de Gana para aCosta <strong>do</strong> Marfim e Togo, cobrava dessa forma os impostos de regiõesconquista<strong>da</strong>s. ”Somente o pagamento de tributos eram <strong>da</strong> ordem de 2 milescravos por ano por volta de 1820”, escreveu o historia<strong>do</strong>r Paul Lovejoy.Para conseguir comprar ouro nessa região, os portugueses precisaramarranjar escravos como moe<strong>da</strong> de troca. Estima-se que, entre 1500 e 1535,eles compraram cerca de 10 mil cativos no golfo <strong>do</strong> Benin apenas paratrocá-los por ouro na própria África. Entraram em contato com oscostumeslocais e se tornaram escravistas.


OS AFRICANOS LUTARAM CONTRA O FIM DAESCRAVIDÃOSe já estavam ricos com a ven<strong>da</strong> de escravos aos árabes, os reinosafricanos lucraram muito mais com o comércio pela costa <strong>do</strong> oceanoAtlântico. Trocan<strong>do</strong> pessoas por armas, o reino de Axante expandiu seuterritório. O rei Osei Kwame (1777-1801), graças aos escravos que vendia,tinha palácios luxuosos, além de estra<strong>da</strong>s bem apara<strong>da</strong>s que ligavam asci<strong>da</strong>des de seu império centraliza<strong>do</strong>. Outro exemplo bem <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong> é oreino <strong>do</strong> Daomé, atual Benin (um país estreito entre Togo e Nigéria). Noséculo 18, havia por lá um Esta<strong>do</strong> com burocracia militar, estra<strong>da</strong>s, pontesvigia<strong>da</strong>s por guar<strong>da</strong>s e ci<strong>da</strong>des com 28 mil pessoas.Nessa região e em muitos outros reinos, eram os próprios africanosque operavam o comércio de escravos. A ”<strong>do</strong>minação europeia” se restringiaa um forte no litoral, de onde os europeus só podiam sair com a autorização<strong>do</strong>s funcionários estatais. Quan<strong>do</strong> viajavam, eram sempre acompanha<strong>do</strong>spor guar<strong>da</strong>s. O rei controlava o preço <strong>do</strong>s escravos e podia, de repente,man<strong>da</strong>r to<strong>do</strong>s os europeus embora, fechan<strong>do</strong> o país para o comércioestrangeiro. Também podia <strong>da</strong>r uma surra no branco que o irritasse. Foiisso que fez, em 1801, o rei A<strong>da</strong>n<strong>do</strong>zan com Manoel Bastos Varela, diretor<strong>do</strong> forte português em Ajudá. Man<strong>do</strong>u embarcar o diretor ”nu e amarra<strong>do</strong>”para o Brasil.O soberano <strong>do</strong> Daomé podia reclamar diretamente com a rainhaportuguesa. Seis anos antes de Manoel Varela ser envia<strong>do</strong> pela<strong>do</strong> para oBrasil, o rei anterior, Agonglô, escreveu uma longa carta à rainha MariaPrimeira. Com muita cordiali<strong>da</strong>de, reclamava <strong>do</strong> diretor <strong>do</strong> forte português


na ci<strong>da</strong>de de Ajudá, Francisco Antônio <strong>da</strong> Fonseca e Aragão, ”o qualesquece completamente as obrigações <strong>do</strong> seu cargo, preocupan<strong>do</strong>-sesomente em aumentar suas próprias finanças”. Na carta de 20 de março de1795, o rei ain<strong>da</strong> pede que o diretor de forte seja castiga<strong>do</strong> ”de maneiraexemplar, como é costume fazer em semelhantes situações”. Quemrespondeu a carta foi o príncipe <strong>do</strong>m João, futuro <strong>do</strong>m João Sexto, que anosdepois fugiria com to<strong>da</strong> a corte para o Brasil. Dom João respondeu pontopor ponto. Aceitou demitir o diretor <strong>do</strong> forte e pediu desculpas por nãoenviar uma galé carrega<strong>da</strong> com ouro e prata, como o rei africano tinhapedi<strong>do</strong>:Farei o necessário para vos <strong>da</strong>r satisfação quan<strong>do</strong> a coisa forpossível, tão logo as circunstâncias me permitirão, porque presentementeme é impossível fazê-lo, não somente por falta de tempo, mas por outrasrazões sobre as quais é supérfluoinformar-vos, desejan<strong>do</strong> em tu<strong>do</strong> agra<strong>da</strong>r-vos como importa à minhafiel amizade.Para se comunicar com os portugueses, o rei <strong>do</strong> Daomé usavaalgum escravo português que tinha entre seu séquito. Eram geralmentemarujos que acabavam captura<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> o Daomé atacava os vizinhos. SePortugal não se interessava em pagar resgate para libertá-los, elescontinuavam servin<strong>do</strong> ao rei africano. Trabalhan<strong>do</strong> de intérpretes eescrivães, esses escravos brancos aproveitavam, nas cartas que escreviam aman<strong>do</strong> <strong>do</strong> líder negro, para incluir mensagens secretas de socorro. Comoninguém além deles falava português, não corriam o risco de ter amensagem flagra<strong>da</strong>. Numa carta <strong>do</strong> rei A<strong>da</strong>n<strong>do</strong>zan de 1804, o escrivão”branco” Inocêncio Marques de Santana incluiu um pequeno reca<strong>do</strong>, umaespécie de ”me tira <strong>da</strong>qui pelo amor de Deus” a <strong>do</strong>m João: ”Eu, escrivão


deste Cruel Rei, que aqui me acho há 23 anos fora <strong>do</strong>s portugueses, VossaMagnificência queira per<strong>do</strong>ar meu grande atrevimento”, escreveuInocêncio, avisan<strong>do</strong> sobre ”como tratam os pobres portugueses nesta terra”.Os intérpretes brancos aju<strong>da</strong>vam os nobres africanos duranteviagens diplomáticas. Entre 1750 e 1811, embaixa<strong>do</strong>res africanos foram àBahia e a Portugal com o objetivo de negociar o preço de escravos e pedir omonopólio de ven<strong>da</strong> aos portugueses. Segun<strong>do</strong> o etnógrafo Pierre Verger,foram quatro viagens diplomáticas de envia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> rei <strong>do</strong> Daomé, duas <strong>do</strong>sreis de Onim (hoje Lagos) e outra <strong>do</strong> chefe de Ardra (Porto Novo). Tantono Brasil quan<strong>do</strong>na corte em Portugal, os diplomatas e seus auxiliares foram recebi<strong>do</strong>s comluxo. A partir de 1795, <strong>do</strong>is diplomatas <strong>do</strong> Daomé passaram quase <strong>do</strong>isanos sob os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> reino português. Foram para a Bahia e de lá paraPortugal. Na sede <strong>do</strong> reino, um deles morreu de resfria<strong>do</strong> e outro foibatiza<strong>do</strong>, ganhan<strong>do</strong> o nome real de João Carlos de Bragança. Apesar <strong>da</strong>morte <strong>do</strong> representante, a comitiva voltou a Salva<strong>do</strong>r para desfrutar <strong>do</strong>sconfortos <strong>da</strong>s instalações portuguesas.A imagem mais repeti<strong>da</strong> <strong>da</strong> escravidão deve ser a <strong>do</strong> negro sen<strong>do</strong>chicotea<strong>do</strong> no pelourinho de uma grande fazen<strong>da</strong> por um carrasco sádico,enquanto dezenas de outros negros assistem cabisbaixos e, na casa-grande,um poderoso coronel branco dá um pequeno sorriso de satisfação. Castigosviolentos como esses aconteceram em diversos sistemas escravistas. NoBrasil, eram comuns sobretu<strong>do</strong> nas grandes plantações de cana-de-açúcar<strong>do</strong> Nordeste, as plantations descritas pelo sociólogo pernambucanoGilberto Freyre, onde imperava a monocultura dedica<strong>da</strong> à exportação. Na


mesma região, um outro cenário poderia ser visto. Antes de o sol aparecer,o senhor, seu filho e um escravo, os três par<strong>do</strong>s ou negros, já estão com aenxa<strong>da</strong> na mão a caminho <strong>da</strong> roça. Só os três cui<strong>da</strong>m <strong>da</strong> pequena plantaçãode fumo e mandioca, por isso trabalham até o começo <strong>da</strong> noite.


MUITO ALÉM DA CASA-GRANDENo livro Um Contraponto Baiano, o historia<strong>do</strong>r americano BertBarickman defende que cenas assim aconteciam no próprio RecôncavoBaiano, região de grandes plantations de cana-de-açúcar. Em fazen<strong>da</strong>s deNazaré <strong>da</strong>s Farinhas, São Gonçalo <strong>do</strong>s Campos e Santiago <strong>do</strong> Iguape, emmédia 59% <strong>do</strong>s senhores tinham até quatro escravos- apenas 4,5% deles tinham mais de 20 escravos e só 1%, mais de 60. Nãose sabe como senhores e escravos viviam nessas pequenas fazen<strong>da</strong>s, masalguns registros dão uma ideia. O historia<strong>do</strong>r Barickman se baseia na peçade teatro O Juiz de Paz na Roça, cria<strong>da</strong> por Martins Pena em 1838. Napeça, O senhor e seu único escravo trabalham juntos, voltam para casareclaman<strong>do</strong> <strong>do</strong> cansaço e jantam la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>. O senhor escravista, diz ohistoria<strong>do</strong>r, ”nem na roça, onde empenha uma enxa<strong>da</strong>, riem à mesa dejantar, onde come com as mãos e depois lambe os de<strong>do</strong>s, poderia se fazerpassar por um grande e altivo senhor <strong>do</strong> tipo descrito por Gilberto Freyre”.O comércio direto para o Brasil fazia nobres africanos seinteressarem pela política interna <strong>do</strong> reino português. Em 1822, quan<strong>do</strong><strong>do</strong>m Pedro Primeiro deu o grito às margens <strong>do</strong> Ipiranga, o obá Osemwede,<strong>do</strong> Benin, e Ologum Ajan, de Lagos, foram os primeiros a reconhecer aindependência <strong>do</strong> Brasil. O país também servia de exílio, onde negrosnobres vinham passar um tempo depois de derruba<strong>do</strong>s <strong>do</strong> trono. O príncipeFruku, <strong>do</strong> golfo <strong>da</strong> Guiné, foi posto num navio negreiro por um adversáriopolítico. No Brasil, ganhou o nome de Jerônimo, mas deve ter fica<strong>do</strong> pouco


tempo como escravo. Se os <strong>brasil</strong>eiros o encaravam como um cativoqualquer, os africanos viam nele um príncipe. ”Juntan<strong>do</strong> os seus tostões, ospatrícios de Fruku não devem, portanto, ter demora<strong>do</strong> emcomprar-lhe a liber<strong>da</strong>de”, escreveu o historia<strong>do</strong>r Alberto <strong>da</strong> Costa e Silva,um <strong>do</strong>s grandes especialistas em história <strong>do</strong> tráfico atlântico. ”Liberto,Jerônimo deixou-se ficar em Salva<strong>do</strong>r, já que não podia, sob pena de serreescraviza<strong>do</strong>, retornar ao Daomé.” Vinte e quatro anos depois, com amorte <strong>do</strong> inimigo que o man<strong>do</strong>u ao Brasil, Fruku voltou à África paradisputar o trono <strong>do</strong> Daomé, desta vez com o nome de ”Dom Jerônimo, o<strong>brasil</strong>eiro”.Os nobres africanos dependiam <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> de escravos para manterseu poder. Venden<strong>do</strong> gente, eles obtinham armas. Garantiam assim aexpansão <strong>do</strong> território e o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong>s terras já conquista<strong>da</strong>s. Sem a trocade escravos por armas, tinham a soberania <strong>do</strong> território e a própria cabeçaameaça<strong>da</strong>s. Como observa Alberto <strong>da</strong> Costa e Silva:Para as estruturas de poder africanas, a ven<strong>da</strong> de escravos eraessencial à obtenção de armas de fogo, de munição e de uma vasta gama deobjetos que <strong>da</strong>vam status e prestígio aos seus possui<strong>do</strong>res. O sistema detroca de seres humanos (geralmente prisioneiros de guerra e presos comunsou políticos) por armas de fogo e outros bens consoli<strong>da</strong>ra-se ao longo <strong>do</strong>sséculos, desde o primeiro contato com os europeus na África, e não podiaser facilmente substituí<strong>do</strong> pelo comércio normal. Há quem pense que ointeresse de alguns africanos na manutenção <strong>do</strong> tráfico era ain<strong>da</strong> maior <strong>do</strong>que o <strong>do</strong>s arma<strong>do</strong>res de barcos negreiros ou o <strong>do</strong>s senhores de engenhos ede plantações no continente Americano.Para essa espiral romper o ciclo, foi preciso entrar em cena umelemento externo e poderoso: a Inglaterra. O ideal de liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s negros,


que to<strong>da</strong>s as pessoas sensatas defendem hoje em dia, surgiu somente porcausa <strong>do</strong>s protestos eufóricos e <strong>do</strong> poder autoritário <strong>do</strong>s ingleses.


SEM A INFLUÊNCIA DO POVO DA INGLATERRA, AESCRAVIDÃO DURARIA MUITO MAISLen<strong>do</strong> a palavra ”Inglaterra”, talvez chegue à sua mente a palavra”interesses”. Nos livros didáticos <strong>brasil</strong>eiros, a Inglaterra quase sempreaparece acompanha<strong>da</strong> desse termo. O livro Nova História Crítica para asétima série, de Mário Schmidt, aponta três possíveis motivos que teriamleva<strong>do</strong> os ingleses a ficar contra a escravidão - os três relaciona<strong>do</strong>s aos taisinteresses. ”Há historia<strong>do</strong>res que insistem que a Inglaterra era um paíscapitalista interessa<strong>do</strong> em ampliar seus merca<strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res. [...] É claroque os ingleses não eram contra o tráfico por uma questão humanitária.”Em 2007, os jornais revelaram que os livros de Schmidt tinham trechoscom uma carga ideológica pesadíssima, como ”A Princesa Isabel é umamulher feia como a peste e estúpi<strong>da</strong> como uma leguminosa”. Outros livrosdidáticos, se não têm frases tão emblemáticas, contam histórias igualmentesimplistas. ”Interessava à Inglaterra a formação de um amplo merca<strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r, principalmente de produtos manufatura<strong>do</strong>s”, pontifica o livroHistória e Vi<strong>da</strong>, de NelsonPiletti e Claudino Piletti.Na ver<strong>da</strong>de, o movimento abolicionista inglês teve uma origemmuito mais ideológica que econômica. Organiza<strong>do</strong> em 1787 por 22religiosos ingleses, foi um <strong>do</strong>s primeiros movimentos populares bemsucedi<strong>do</strong>s<strong>da</strong> história moderna, um molde para as lutas sociais <strong>do</strong> século 19.Os abolicionistas se organizavam em comitês, contavam com o apoio dehomens comuns e mulheres defensoras <strong>do</strong> voto universal, que saíam deporta em porta distribuin<strong>do</strong> panfletos, juntan<strong>do</strong> abaixo-assina<strong>do</strong>s e


promoven<strong>do</strong> boicotes. Os comitês arreca<strong>da</strong>vam dinheiro para a propagan<strong>da</strong>,publican<strong>do</strong> livretos com discursos abolicionistas e plantas de naviosnegreiros. Essas publicações deixaram a população horroriza<strong>da</strong> com ascondições <strong>do</strong>s escravos e propensa a boicotar produtos feitos por eles. Parapressionar o Parlamento britânico a votar o direito <strong>do</strong>s negros, osabolicionistas entraram com petições na Câmara <strong>do</strong>s Comuns —equivalentes aos projetos de iniciativa popular à nossa Câmara <strong>do</strong>sDeputa<strong>do</strong>s. Foram em média 170 por ano entre 1788 e 1800, chegan<strong>do</strong> a900 em 1810. No total, até o fim <strong>da</strong> escravidão na Inglaterra, em 1833,foram mais de 5 mil petições, ca<strong>da</strong> uma com centenas de milhares deassinaturas. Esse radicalismo faria o tráfico de escravos ser extinto em 1807,forçan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o Atlântico a tomar a mesma posição.Ain<strong>da</strong> mais fora de sintonia é a ideia de que os inglesesinterromperam o tráfico de escravos para criar um merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r naAmérica. Mesmo naquela época, era um pouco difícil para os empresáriosmontar ações que trariam lucro apenas um século depois.Se a Inglaterra conseguiu acabar com o tráfico pelo Atlântico, aescravidão durou muito mais em outros pontos <strong>da</strong> África. Em Serra Leoa,os escravos só foram liberta<strong>do</strong>s em 1928, e apenas em 1950 no Sudão. NaMauritânia, república islâmica ao sul <strong>do</strong> Marrocos, seguiu até 1980.Ilegalmente, é pratica<strong>da</strong> no paísain<strong>da</strong> hoje.Os livros não só dão pouca ressonância a esse movimento popularcomo erram ao contar a história <strong>do</strong>s interesses econômicos. Sabe-se disso


desde 1979, quan<strong>do</strong> o historia<strong>do</strong>r Americano Seymour Drescher publicou olivro Econocide (”Econocídio”). Para ele, não foi o declínio <strong>do</strong> comérciocom a América que possibilitou a abolição, mas o contrário: o fim <strong>da</strong>escravidão abalou a economia britânica na América. Muitas <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>desmais ativas na abolição, como Manchester e Liverpool, eram as que maislucravam venden<strong>do</strong> para reinos escravistas <strong>da</strong> África e <strong>da</strong> América. ”Quemapoiava o tráfico poderia muito bem acusar os abolicionistas de agir contraseus próprios interesses”, escreveu Drescher. Como diz o historia<strong>do</strong>rManolo Florentino:Quan<strong>do</strong> se trata de avaliar os motivos <strong>da</strong> pressão inglesa pelo fim<strong>do</strong> tráfico atlântico de escravos, paira nos bancos escolares <strong>do</strong> ensino médioo estigma <strong>do</strong> ”Ocidentalismo” - crença que reduz a civilização ocidental auma massa de parasitas sem alma, decadentes, ambiciosos, desenraiza<strong>do</strong>s,descrentes e insensíveis. Não podem ser leva<strong>da</strong>s a sério teses que vinculam aação britânica a imaginárias crises econômicas <strong>do</strong> cativeiro no Caribe napassagem <strong>do</strong> século Dezoito para o seguinte. O tráfico se<strong>guia</strong> lucrativo enão passava pela cabeça de nenhum líder inglês sério que a deman<strong>da</strong>Americana por bens britânicos pudesse aumentar com o fim <strong>da</strong> escravidão.Mas tu<strong>do</strong> isso continua a ser ensina<strong>do</strong> aos nossos filhos e netos.Em 2007, completaram-se duzentos anos <strong>da</strong> proibição <strong>do</strong> tráfico deescravos, a primeira vitória <strong>da</strong> campanha abolicionista <strong>da</strong> Inglaterra.Nenhum país <strong>da</strong> África ou movimento negro <strong>da</strong> América prestouhomenagens ou agradecimentos aos ingleses.


PEQUENA COLETÂNEA DE BOBAGENS DOS NOSSOSGRANDES AUTORESIntelectuais famosos nem sempre são geniais. Cometem besteirasem troca de dinheiro, a<strong>do</strong>tam ideologias <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> que se revelam loucura eescrevem coisas de que depois se arrependem. Erram principalmentequan<strong>do</strong> jovens, o que é de esperar. Mas alguns insistem no erro até avelhice, sustentan<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a sua obra em equívocos fun<strong>da</strong>mentais. Quan<strong>do</strong>entram para a história, passam por uma triagem que ao longo <strong>do</strong>s anosretira imperfeições, feitos medíocres e detalhes bizarros. Nas biografias enos verbetes de enciclopédias, ficam somente os cachos vistosos <strong>do</strong> bommocismo.É uma pena. As frutas podres contam boas histórias sobre aépoca e a personali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s artistas - além de serem bem diverti<strong>da</strong>s.


MACHADO DE ASSIS, CENSOR DO IMPÉRIOMacha<strong>do</strong> de Assis é um tipo incomum de gênio - aquele quealcançou a fama muito antes de publicar suas grandes obras, antes mesmode publicar os primeiros romances. Na déca<strong>da</strong> de 1860, quan<strong>do</strong> tinha vintee poucos anos, era um jornalista cultural respeita<strong>do</strong> e temi<strong>do</strong>. José deAlencar, uma déca<strong>da</strong> mais velho e já escritor conceitua<strong>do</strong>, chamava-o de ”oprimeiro crítico <strong>brasil</strong>eiro”. Contrário ao teatro francês romântico eexagera<strong>do</strong>, feito para divertir as ma<strong>da</strong>mes <strong>do</strong>s bulevares franceses, Macha<strong>do</strong>pregava que o teatro tinha ”uma missão nacional, uma missão social e umamissão humana”, e que por isso os palcos precisavam de histórias maisrealistas. Sua fama como crítico feroz lhe rendeu o cargo hoje em diaodia<strong>do</strong>: agente <strong>da</strong> censura.Macha<strong>do</strong> foi censor <strong>do</strong> Conservatório Dramático, o órgão <strong>da</strong> corte<strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>m Pedro Segun<strong>do</strong> encarrega<strong>do</strong> de julgar as peças quepoderiam ser leva<strong>da</strong>s ao público. Entre 1862 e 1863, avaliou dezessetepeças, proibin<strong>do</strong> três delas. A Mulher Que o Mun<strong>do</strong> Respeita não ganhoua licença porque o censor achou a comédia ”um episódio imoral, semprincípio nem fim”, ”uma baboseira”. O drama As Conveniências foireprova<strong>do</strong> com uma justificativa curta que zelava os bons costumes:Não posso <strong>da</strong>r o meu voto de aprovação ao drama AsConveniências. Tais <strong>do</strong>utrinas se proclamam nele, tal exaltação se faz <strong>da</strong>paixão diante <strong>do</strong> dever, tal é o assunto, e tais as conclusões, que é umserviço à moral proibir a representação desta peça. E se o pu<strong>do</strong>r <strong>da</strong> cenaganha com essa interdição, não menos


ganha o bom gosto, que não terá de ver à ilharga de boas composições estaque é um feixe de incongruências, e na<strong>da</strong> mais.No artigo ”Macha<strong>do</strong> de Assis, leitor e crítico de teatro”, o professorJoão Roberto Faria, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, detalha as regras queMacha<strong>do</strong> de Assis tinha que seguir em seu trabalho de censor. Oconservatório pedia aos censores que barrassem as peças basea<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>ismotivos. Primeiro, se a história tivesse assuntos e expressões que ferissem odecoro, pois era preciso garantir que ”pudesse a Imperial Família honrarcom a Sua Presença o espetáculo”, como regia uma norma <strong>do</strong> conservatório.Segun<strong>do</strong>, deveria barrar as peças contrárias à religião e às autori<strong>da</strong>des<strong>brasil</strong>eiras. Para Macha<strong>do</strong>, isso era pouco. Numa crônica de 1860, eledefende que os censores deveriam ter o poder de ser ”uma muralha deinteligências às irrupções intempestivas que o capricho quisesse fazer nomun<strong>do</strong> <strong>da</strong> arte, às bacanais indecentes e parvas que ofendessem a digni<strong>da</strong>de<strong>do</strong> tabla<strong>do</strong>”.Como não tinha esse direito, o escritor foi obriga<strong>do</strong> a aprovar váriaspeças em que não viu mérito literário algum. Claro que não fez isso semesbravejar contra os autores. O estilo de alguns de seus pareceres mostraque, se pudesse, Macha<strong>do</strong> censuraria mais.O melhor exemplo é a avaliação de Clermont ou A Mulher <strong>do</strong>Artista. O escritor teve que <strong>da</strong>r ok à história, que não pecava ”contra ospreceitos <strong>da</strong> lei”, apesar de considerá-la ”uma dessas banali<strong>da</strong>des literáriasque constituem por aí o repertório quase exclusivo <strong>do</strong>s nossos teatros”.A censura que Macha<strong>do</strong> de Assis gostaria de praticar era ain<strong>da</strong> maiscruel <strong>do</strong> que aquela que lhe era permiti<strong>da</strong>, já que submeteria autores aosjulgamentos particulares <strong>do</strong> censor. (Se bem que, com tanta peça ruim nos


teatros hoje em dia, até que um censor como Macha<strong>do</strong> de Assis não seriana<strong>da</strong> mal.)


JOSÉ DE ALENCAR CONTRA A ABOLIÇÃOEm 1867, José de Alencar publicou a série Ao Impera<strong>do</strong>r:Novas Cartas Políticas de Erasmo. São sete cartas abertas dirigi<strong>da</strong>s a <strong>do</strong>mPedro Segun<strong>do</strong>, <strong>da</strong>s quais três tratam abertamente <strong>da</strong> defesa <strong>da</strong> escravidãonegra no Brasil. O escritor era então deputa<strong>do</strong> no Rio de Janeiro, eleito peloCeará, e tentava convencer <strong>do</strong>m Pedro Segun<strong>do</strong> a deixar de insistir naabolição <strong>do</strong>s escravos. O impera<strong>do</strong>r fazia uma grande pressão pelo fim <strong>do</strong>comércio humano — ameaçava até desistir <strong>do</strong> trono se os parlamentaresnão votassem pelo fim <strong>do</strong>s cativeiros. Depois que a liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s escravos setornou uma conquista obviamente justa, a série de cartas de Alencardesapareceu. Não entrou na obra completa <strong>do</strong> escritor, publica<strong>da</strong> em 1959pela editora Nova Aguilar. Até serem redescobertas em 2008, pelohistoria<strong>do</strong>r paulista Tâmis Parron, ficaram 140 anos a<strong>do</strong>rmeci<strong>da</strong>s.O curioso é que os motivos de Alencar contra a abolição parecemmais simpáticos aos negros que os argumentos em favor <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de. Nosdiscursos pró e contra a escravidão <strong>do</strong> século 19, os parlamentares sebaseavam em razões que hoje parecem loucura. Nenhum negro gostaria deouvir, por exemplo, o argumento abolicionista de que os africanosformavam uma raça inferior e por isso era necessário parar imediatamentede traze-los ao Brasil, para que não prejudicassem o futuro <strong>do</strong> país. Já osdefensores <strong>da</strong> escravidão tinham razões <strong>politicamente</strong> corretas. O maisconheci<strong>do</strong> deles, o sena<strong>do</strong>r Bernar<strong>do</strong> de Vasconcelos, dizia que a Áfricacivilizava o Brasil, portanto a imigração de negros africanos enriquecia acultura <strong>brasil</strong>eira. A argumentação de José de Alencar vai nessa linha. Elenão defende o sistema escravocrata por achar que os negros tinham um


cérebro pior ou eram menos <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s por Deus, mas porque vê neles umgrande potencial de crescimento e auxílio no progresso <strong>do</strong> país. Chega acitar negros ilustres <strong>da</strong> história <strong>brasil</strong>eira, como Henrique Dias, herói <strong>da</strong>expulsão <strong>do</strong>s holandeses em Pernambuco. ”Sem a escravidão africana e otráfico que a realizou, a América seria hoje um vasto deserto”, diz Alencarna segun<strong>da</strong> carta ao impera<strong>do</strong>r. ”Três séculos durante, a África despejousobre a América a exuberância de sua população vigorosa.”De acor<strong>do</strong> com José de Alencar, to<strong>da</strong> nova civilização <strong>da</strong> históriafloresceu por meio <strong>da</strong> escravidão de civilização decadente. O trabalhoforça<strong>do</strong> seria uma ”educação pelo cativeiro”, ou seja, um mo<strong>do</strong> de tirarindivíduos <strong>da</strong> selva e <strong>da</strong>r-lhes a acesso a instrução. O escravo, durante anosde servidão, iria adquirir quali<strong>da</strong>des morais suficientes para ser um novomembro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Como mostra desse fenômeno, Alencar cita o altonúmero de escravos alforria<strong>do</strong>s no Brasil que compravam a liber<strong>da</strong>de ou aganhavam de presente. Ele afirma:Se a escravidão não fosse inventa<strong>da</strong>, a marcha <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de seriaimpossível, a menos que a necessi<strong>da</strong>de não suprisse esse vínculo por outroigualmente poderoso. Desde que o interesse próprio de possuir o venci<strong>do</strong>não coibisse a fúria <strong>do</strong> vence<strong>do</strong>r, ele havia de imolar a vítima. Significara,portanto, a vitória na Antigüi<strong>da</strong>de uma hecatombe; a conquista de um país,o extermínio <strong>da</strong> população indígena.Desde as origens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, o país centro de uma esplêndi<strong>da</strong>civilização é, no seu apogeu, um merca<strong>do</strong>, na sua decadência, um produtorde escravos. O Oriente abasteceu de cativos a Grécia. Nessa terra augusta<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, nas ágoras de Atenas, se proveram desse traste os orgulhosospatrícios de Roma. Por sua vez, o ci<strong>da</strong>dão rei, o civis romanus, foi escravo<strong>do</strong>s go<strong>do</strong>s e hunos.


Modernamente, os povos caminham pela indústria. São ostransbor<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong>s grandes nações civiliza<strong>da</strong>s que se escoam para asregiões incultas, imersas na primitiva ignorância. O escravo deve ser, então,o homem selvagem que se instrui pelo trabalho. Eu o considero nesseperío<strong>do</strong> como o neófito <strong>da</strong> civilização.Muita gente considera importante preservar os costumes nacionaiscontra a influência estrangeira. Alencar e seus colegas <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong>Conserva<strong>do</strong>r usam esse argumento para defender a exploração <strong>do</strong>s negros.A escravidão, para eles, fazia parte <strong>da</strong> tradição <strong>brasil</strong>eira - era importantepara a identi<strong>da</strong>de nacional. Por essa razão, o país não deveria ceder àspressões abolicionistas <strong>da</strong> França e <strong>da</strong> Inglaterra, as duas grandes potências<strong>da</strong> época. Alencar pede a <strong>do</strong>m Pedro Segun<strong>do</strong> que pare de se preocuparcom a opinião internacional e valorize as instituições <strong>brasil</strong>eiras. ”Sãomuitos os cortejos que já fez a coroa imperial à opinião europeia eAmericana. Reclama sério estu<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> um destes atos, ver<strong>da</strong>deiros golpes ebem profun<strong>do</strong>s, na integri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nação <strong>brasil</strong>eira.” Dom Pedro Segun<strong>da</strong>deveria ter respondi<strong>do</strong> assim: deixar o patriotismo de la<strong>do</strong> e aceitar ainfluência estrangeira pode salvar um país de costumes bárbaros.


AS TRÊS PAIXÕES DE JORGE AMADOQuan<strong>do</strong> tinha 28 anos, o baiano Jorge Ama<strong>do</strong> conseguiu defender,ao mesmo tempo, <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s maiores tiranos <strong>do</strong> século 20: A<strong>do</strong>lf Hitler eJosef Stálin. O escritor <strong>da</strong> baiani<strong>da</strong>de, <strong>do</strong> cacau e <strong>da</strong> morena subin<strong>do</strong> notelha<strong>do</strong> era comunista de carteirinha desde que foi ao Rio de Janeiro estu<strong>da</strong>rdireito. Ele fez propagan<strong>da</strong> <strong>do</strong> nazismo em 1940, meses depois de aAlemanha e a União Soviética fecharem um pacto de não agressão. Naquelaépoca, quem não era bobo sabia <strong>do</strong>s planos de Hitler - a Alemanha já tinhainvadi<strong>do</strong> a Polônia e aos poucos conquistava Bélgica, Holan<strong>da</strong>, Dinamarca,Noruega e França. Mesmo assim, Ama<strong>do</strong> virou re<strong>da</strong>tor <strong>da</strong> página decultura <strong>do</strong> Meio-Dia, então jornal de propagan<strong>da</strong> nazista no Brasil. Nãoque o escritor se identificasse com a <strong>do</strong>utrina de Hitler - a questãoprovavelmente era financeira. Jorge Ama<strong>do</strong> devia escrever o que lhepagassem, fosse comunista, nazista ou Americano. Durante o emprego nojornal <strong>do</strong>s alemães, tentou convencer colegas para que trabalhassem paraHitler. No livro Os Dentes <strong>do</strong> Dragão, Oswald de Andrade conta:Em 1940 Jorge convi<strong>do</strong>u-me no Rio para almoçar na Brahma comum alemão altamente situa<strong>do</strong> na embaixa<strong>da</strong> e na agência Transocean, paraque esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa <strong>da</strong> Alemanha.Jorge, depois me informou que esse livro iria render-me 30 contos Recusei,e Jorge ficou surpreendi<strong>do</strong>, pois aceitara várias encomen<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mesmoalemão.O escritor baiano logo pulou fora <strong>do</strong> nazismo, mas manteve apaixão pelo sorriso de Stálin uma déca<strong>da</strong> mais. Em 1951, escreveu OMun<strong>do</strong> <strong>da</strong> Paz, um livro inteirinho para adular Stálin e os países socialistas.


Nessa época, quem não era bobo já tinha ouvi<strong>do</strong> falar <strong>do</strong>s expurgos e <strong>da</strong>sexecuções em massa cometi<strong>da</strong>s pelo líder soviético. Mesmo assim, o escritorbaiano chamou um <strong>do</strong>s dita<strong>do</strong>res mais cruéis <strong>do</strong> século 20, cuja truculênciaresultou na morte e no martírio de milhões de pessoas, de ”sábio dirigente<strong>do</strong>s povos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> na luta pela felici<strong>da</strong>de <strong>do</strong> homem sobre a Terra”.Déca<strong>da</strong>s depois, em suas memórias, admitiu que fez vista grossa para osproblemas soviéticos quan<strong>do</strong> criou O Mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> Paz:Tarefa política, de volta <strong>da</strong> União Soviética e <strong>do</strong>s países dedemocracia popular <strong>do</strong> Leste Europeu, escrevo livro de viagens, o elogiosem vacilações <strong>do</strong> que vi, tu<strong>do</strong> ou quase tu<strong>do</strong> parece-me positivo, stalinistaincondicional silenciei o negativo como convinha. Para falar <strong>da</strong> Albâniaplagiei titulo de Hemingway: A Albânia é uma festa.Famoso até no mun<strong>do</strong> soviético, onde suas obras comunistastiveram mais de 10 milhões de cópias, Jorge Ama<strong>do</strong> renegou, em 1956, aobra que adulou Stálin. Nesse ano, já estava difícil jogar os crimes <strong>do</strong>homem para baixo <strong>do</strong> tapete. Mas até o fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> insistiu nonacionalismo e no regionalismo. No livro Navegação de Cabotagem, JorgeAma<strong>do</strong> mostra por que admirava o líder político baiano Antônio CarlosMagalhães:No caso de Toninho, ele é a Bahia, cara e entranhas, ou seja,o sim e o não. No político e administra<strong>do</strong>r duas coisas sobretu<strong>do</strong> meseduzem: a sua quali<strong>da</strong>de intrínseca de baiano. Toninho é baiano antes detu<strong>do</strong>, e seu permanente interesse pela cultura, comprova<strong>do</strong>, ver<strong>da</strong>deiro.


O FRANGO DE GRACILIANO RAMOSBons colunistas de jornal costumam comentar tendências, avaliarepisódios e fornecer aos leitores previsões coerentes sobre o futuro <strong>do</strong> país.O alagoano Graciliano Ramos não era hábil nessas tarefas. Numa crônicade 1921, o autor de Vi<strong>da</strong>s Secas defendeu que o futebol era uma mo<strong>da</strong>passageira que jamais pegaria no Brasil. Acreditava que o esportecombinava com a personali<strong>da</strong>de ”bronca” <strong>do</strong> <strong>brasil</strong>eiro:Mas por que o football?Não seria, porventura, melhor exercitar-se a moci<strong>da</strong>de em jogosnacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta,por exemplo? Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas entrenós. Mas gosto de in<strong>da</strong>gar se elas serão assimiláveis ou não.No caso afirmativo, seja muito bem vin<strong>da</strong> a instituição alheia,fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbri<strong>do</strong> que possa viver cá em casa.De outro mo<strong>do</strong>, resignemo-nos às broncas tradições <strong>do</strong>s sertanejos e <strong>do</strong>smatutos. Ora, parece-nos que o football não se a<strong>da</strong>pta a estas boas paragens<strong>do</strong> cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve.Quan<strong>do</strong> Graciliano escreveu a crônica, já havia diversos clubes defutebol no país, mas o esporte ain<strong>da</strong> demoraria alguns anos para ganharpopulari<strong>da</strong>de. A imagem <strong>do</strong> Brasil como terra <strong>do</strong> futebol surgiria só a partir<strong>da</strong> Copa de 1950, quan<strong>do</strong> a seleção perdeu a final, no Maracanã, para oUruguai. Na déca<strong>da</strong> de 1920, porém, o futebol ain<strong>da</strong> era uma ativi<strong>da</strong>deestrangeira e elitista como o turfe.Para que um costume intruso possa estabelecer-se definitivamenteem um país, é necessário não só que se harmonize com a ín<strong>do</strong>le <strong>do</strong> povo


que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja toma<strong>do</strong> por outromais antigo, de cunho indígena.É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna, como diz o chavão.[...]Estrangeirices não entram facilmente na terra <strong>do</strong> espinho. Ofootball, o boxe, o turfe, na<strong>da</strong> pega.Na mesma crônica, o escritor patriota ain<strong>da</strong> pediu aos jovens queesquecessem o esporte e resgatassem, em nome <strong>da</strong> cultura <strong>brasil</strong>eira,ativi<strong>da</strong>des nacionais que an<strong>da</strong>vam esqueci<strong>da</strong>s, como a que<strong>da</strong> de braço e arasteira. Isso mesmo, a rasteira. A sugestão de Graciliano produzinvoluntariamente um efeito irônico:Reabilitem os esportes regionais que aí estão aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s: oporrete, o cachação, a que<strong>da</strong> de braço, a corri<strong>da</strong> a pé, tão útil a um ci<strong>da</strong>dãoque se dedica ao arrisca<strong>do</strong> ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, acavalha<strong>da</strong> e, melhor que tu<strong>do</strong>, o cambapé, a rasteira.A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência!


GILBERTO FREYRE ADMIRAVA A KU KLUX KLANQuan<strong>do</strong> publicou Casa-Grande e Senzala, em 1933, o escritor eantropólogo Gilberto Freyre provocou uma revolução: defendeu que osmestiços, até então considera<strong>do</strong>s a causa <strong>do</strong>s problemas <strong>do</strong> país, eram naver<strong>da</strong>de uma agradável particulari<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s <strong>brasil</strong>eiros. Foi uma reviravoltapara ele próprio. Antes de publicar sua obra-prima, o pernambucano, assimcomo os colegas mais velhos, torcia pelo gradual embranquecimento <strong>do</strong>s<strong>brasil</strong>eiros. O antropólogo afirmou, por exemplo, que o Brasil deveria seguira Argentina e clarear a população. ”Temos muito que aprender com osvizinhos <strong>do</strong> Sul”, escreveu ao resenhar o livro Na Argentina, de OliveiraViana, um <strong>do</strong>s grandes defensores <strong>da</strong> eugenia no Brasil. ”Parece que nesteponto a República <strong>do</strong> Prata leva decidi<strong>da</strong> vantagem sobre os demais paísesAmericanos. Em futuro não remoto sua população será praticamentebranca.” Ele também reclama, num artigo escrito para o Diário dePernambuco em 1925, <strong>da</strong>s regiões ”contamina<strong>da</strong>s pelo sangue negro”, onde”o mata-borrão ariano dificilmente chupa, apenas atenua, o colori<strong>do</strong> <strong>da</strong>smuitas manchas escuras”. E torce para que o sangue ”<strong>da</strong> raça superior”pre<strong>do</strong>mine no país.Em Vi<strong>da</strong> Social no Brasil nos Mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Século 19, sua dissertaçãode mestra<strong>do</strong> apresenta<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong>de Colúmbia, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,em 1922, há afirmações ain<strong>da</strong> mais compromete<strong>do</strong>ras. No trabalhoacadêmico, o <strong>brasil</strong>eiro elogiou o esforço <strong>do</strong>s ”cavalheiros <strong>da</strong> Ku Klux KlanAmericana” — grupo que naquela época já executava negros -, chaman<strong>do</strong>osde ”uma espécie de maçonaria guerreira” cria<strong>da</strong> pelos sulistas Americanoscontra a humilhação imposta pelo Norte. Em 1964, quan<strong>do</strong> a dissertação


foi republica<strong>da</strong>, os trechos condescendentes à KKK foram retira<strong>do</strong>s. Nessaocasião, Freyre divulgou o estu<strong>do</strong> como o embrião de Casa-Grande eSenzala.O elogio à Ku Klux Klan não é, na ver<strong>da</strong>de, tão incoerente comCasa-Grande e Senzala. Gilberto Freyre tinha sau<strong>da</strong>de <strong>do</strong> mo<strong>do</strong>aristocrático de viver. Para a historia<strong>do</strong>ra Maria Lúcia Pallares-Burke,autora de Gilberto Freyre, um Vitoriano nos Trópicos, o elogio à Ku KluxKlan era mais uma defesa <strong>da</strong> cultura tradicional <strong>do</strong> Sul <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.O antropólogo lamentava a decadência <strong>do</strong>s hábitos sulistas, para ele uma”coisa deliciosa”, onde ”havia lazer, havia fausto, havia escravos e haviamaneiras gentis” antes de ser destruí<strong>do</strong> pelo Norte industrial. Aqueles quedefendiam a cultura tradicional, afirma a historia<strong>do</strong>ra, ”se soli<strong>da</strong>rizavamcom instituições ou atitudes que se apresentavam como regenera<strong>do</strong>ras deum passa<strong>do</strong> valioso, não questionan<strong>do</strong>, muitas vezes, os méto<strong>do</strong>s execráveisutiliza<strong>do</strong>s para essa regeneração”. Gilberto Freyre tinha uma melancoliasimilar quan<strong>do</strong> pensava no desaparecimento <strong>da</strong>s tradições de Pernambuco -o que preocupa muitos pernambucanos ain<strong>da</strong> hoje. Achava que o esta<strong>do</strong>vivia ”o triste fim de uma aristocracia” reinante numa época em que osnegros eram ”fiéis”. A sau<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s velhos costumes foi fun<strong>da</strong>mental paraele enxergar a escravidão <strong>brasil</strong>eira como um regime mais ”a<strong>do</strong>cica<strong>do</strong>” que ode outros países - o que teria feito <strong>do</strong> Brasil um lugar mais propenso àmestiçagem.


GREGÓRIO DE MATOS ERA UM DEDO-DUROO poeta barroco Gregório de Matos e Guerra, o ”Boca <strong>do</strong> Inferno”,é conheci<strong>do</strong> pelos poemas satíricos com que esbravejava contra líderes epolíticos <strong>da</strong> Bahia. Ele publicava folhas volantes, tipo de panfletos <strong>do</strong> século17, repletas de ofensas e palavrões. Para o governa<strong>do</strong>r Antônio Luís, porexemplo, ele escreveu:Sal, cal, e alhocaiam no teu maldito caralho. Amém.O fogo de So<strong>do</strong>ma e de Gomorraem cinza te reduzam essa porra. Amém.Tu<strong>do</strong> em fogo ar<strong>da</strong>,Tu, e teus filhos, e o Capitão <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong>.Peças como essa renderam a Gregório de Matos a imagem de umartista libertino. A fama que ele tem hoje, sobretu<strong>do</strong> na Bahia, lembra a deum escritor beatnik, um revolucionário que transgrediu padrões morais <strong>da</strong>época e teve coragem de remexer nos segre<strong>do</strong>s <strong>da</strong> elite baiana. Atribui-se aGregório de Matos a defesa <strong>do</strong>s negros e pobres, o que fica muito perto deconsiderá-lo um herói nacional-popular, um ícone <strong>da</strong> ”baiani<strong>da</strong>de”.Ninguém sabe se as peças atribuí<strong>da</strong>s a Gregório de Matos sãomesmo de sua autoria. Nos anos seiscentos, o conceito de indivíduo cria<strong>do</strong>rnão estava bem assenta<strong>do</strong>. A arte barroca era um estilo coletivo: plágioseram comuns e aceitáveis, e os artistas ligavam pouco para assinar as obras.A autoria, assim como a inovação introduzi<strong>da</strong> pelo artista, só ganhariaimportância mais de um século depois, com os poetas românticos. É


provável que, quan<strong>do</strong> seus textos foram compila<strong>do</strong>s, no século 18, boa parte<strong>da</strong> sátira baiana tenha si<strong>do</strong> considera<strong>da</strong> obra sua.De qualquer mo<strong>do</strong>, os poemas satíricos atribuí<strong>do</strong>s a Gregório deMatos têm muito pouco de libertino. Em 1989, o crítico literário JoãoA<strong>do</strong>lfo Hansen, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, defendeu que essa fama <strong>do</strong>Boca <strong>do</strong> Inferno diz mais sobre a Bahia de hoje que a <strong>do</strong> século 17. No livroA Sátira e o Engenho, o crítico mostra que o poeta odiava negros, pobres,índios e judeus - o que era espera<strong>do</strong> de um fi<strong>da</strong>lgo <strong>do</strong> reino português<strong>da</strong>quela época. Escreveu o pesquisa<strong>do</strong>r:Ao contrário <strong>do</strong> que algumas interpretações contemporâneas vêmpropon<strong>do</strong>, a sátira barroca produzi<strong>da</strong> na Bahia não é oposição aos poderesconstituí<strong>do</strong>s, ain<strong>da</strong> que ataque violentamente membros particulares dessespoderes, muito menos transgressão liberta<strong>do</strong>ra de interditos morais esexuais.Entre os poemas atribuí<strong>do</strong>s a Gregório de Matos, vários atacamjudeus e negros. Em Milagres <strong>do</strong> Brasil São, ele afirma que ser mulato é”ter sangue de carrapato”. Em outra peça, diz que ”de mulata sai mula,como de mula mulata”. Um <strong>do</strong>s seus alvos preferi<strong>do</strong>s são os falsos cristãosnovos.Trata-se <strong>do</strong>s judeus que por força <strong>da</strong> perseguição religiosa seconverteram ao catolicismo só na aparência, seguin<strong>do</strong> com os costumesju<strong>da</strong>icos dentro de casa. Como neste trecho de ”O burgo”:Quantos com capa cristãprofessam o ju<strong>da</strong>ísmomostran<strong>do</strong> hipocritamentedevoção às leis de Cristo.


levar pedra<strong>da</strong>s:Outro poema trata o ”Galileu requerente” como um cão que mereceLatis, e cui<strong>da</strong>is, que eu morrode ouvir o vosso latir,e eu zombo de vê-lo ouvir,porque quem late, é cachorro:vós latis, e eu me desforro<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-vos estas pedra<strong>da</strong>s,que quan<strong>do</strong> um cão nas estra<strong>da</strong>slate ao manso caminheiro,assentan<strong>do</strong>-lhe o cacheirodeixa as partes sossega<strong>da</strong>s.O crítico João A<strong>do</strong>lfo Hansen comparou a sátira atribuí<strong>da</strong> aGregório de Matos às denúncias secretas à Inquisição, muito comunsnaquela época. Desde 1591, a Bahia abrigou agentes <strong>do</strong> Santo Ofício,incumbi<strong>do</strong>s de condenar bruxas, homossexuais, judeus e hereges em geral.Na Europa, a condenação incluía ser queima<strong>do</strong> nas enormes fogueiras quemarcaram o fim <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média. Mesmo sem ordenar fogueiras humanasno Brasil, os padres inquisi<strong>do</strong>res espalhavam o terror. Quan<strong>do</strong> apareciam,os ci<strong>da</strong>dãos corriam até eles para fazer denúncias contra hereges, natentativa de parecer bons católicos e livrar a própria barra. Qualquer atitudeincomum era motivo para delação, como usar azeite para fritar comi<strong>da</strong>. Oscatólicos <strong>do</strong> século 16 também viam com maus olhos tomar banho na sextafeira,cruzar as pernas na igreja e ler a Bíblia em espanhol - coisa <strong>do</strong>sluteranos, já que os católicos só tinham o livro sagra<strong>do</strong> em latim. As


delações à Inquisição eram anônimas, mas tinham uma contraparti<strong>da</strong>pública: os poemas satíricos. Assim como as denúncias religiosas, os textosao estilo Gregório de Matos atacavam desvios de conduta, procuravampunir peca<strong>do</strong>res, conter vícios e proteger a tradição católica <strong>do</strong>s rituaispagãos. Uma mostra disso é que os autores denunciam também mulheresque consideram promíscuas. Um poema critica uma tal de Luzia por causade seus desejos sexuais: a moça quer que um amigo lhe dê ”quatro investi<strong>da</strong>s- duas de dia e duas de noite”. Outro fala de Brazia de Calvário, ”outramulata meretriz” que foi pega fazen<strong>do</strong> sexo com um frade. Beatos muitofofoqueiros esses poetas que ganharam o nome de Gregório de Matos.


SAMBA E FASCISMOUm traço comum no carnaval de diferentes épocas e países é o devirar as regras <strong>do</strong> avesso. Durante as festas pagãs <strong>da</strong> Roma Antiga, quederam origem ao carnaval cristão, escravos e seus senhores invertiam ospapéis: por um dia, eram os servos que man<strong>da</strong>vam. Uma inversão pareci<strong>da</strong>acontecia na I<strong>da</strong>de Média. As pessoas faziam missas e procissões cômicas -no lugar <strong>do</strong>s padres, <strong>guia</strong>vam as cerimônias religiosas personagens bizarroscomo o Rei Momo. A véspera <strong>da</strong> quaresma liberava os foliões para tirar umsarro <strong>do</strong>s próprios costumes religiosos e <strong>da</strong> Igreja, autori<strong>da</strong>de indiscutível<strong>da</strong>quela época. Não havia tantos papéis troca<strong>do</strong>s nos primeiros carnavais <strong>do</strong>Brasil, mas uma reviravolta de comportamentos também tomava conta.Durante as festas conheci<strong>da</strong>s como entru<strong>do</strong>s, as pessoas atiravam bolas decera nos outros e faziam guerrinhas d’água pela rua. Em 1832, ao visitar ocarnaval de Salva<strong>do</strong>r com <strong>do</strong>is tenentes <strong>da</strong> Marinha britânica, o joveminglês Charles Darwin se assustou com os perigos <strong>do</strong> carnaval baiano.”Estes perigos consistem principalmente em sermos, impie<strong>do</strong>samente,fuzila<strong>do</strong>s com bolas de cera cheias de água e molha<strong>do</strong>s com esguichos delata. Achamos muito difícil manter a nossa digni<strong>da</strong>de enquantocaminhávamos pelas ruas”, escreveu Darwin em seu diário. Por quase to<strong>do</strong>o país, a polícia até tentava conter os entru<strong>do</strong>s, mas raramente conse<strong>guia</strong>. Afesta dura até hoje - em alguns blocos <strong>do</strong> interior, os carnavalescos ain<strong>da</strong>atiram água, confete e farinha uns nos outros. Na maior parte <strong>da</strong> história <strong>do</strong>Brasil, o carnaval foi uma algazarra deliciosamente sem noção.


Mas suponha que, de repente, um dita<strong>do</strong>r bem metódico, militar efascista, um dita<strong>do</strong>r como o italiano Benito Mussolini, alia<strong>do</strong> de Hitler naSegun<strong>da</strong> Guerra Mundial, tivesse o direito de regular essa bagunça paratorná-la orgulho <strong>da</strong> nação. Como seria o carnaval organiza<strong>do</strong> porMussolini?Imagino que não haveria personagens troca<strong>do</strong>s, arremessos de bolasde cera ou guerrinhas d’água. Como em um desfile patriótico, oscarnavalescos marchariam em linha reta, com tempo metodicamentemarca<strong>do</strong> para ca<strong>da</strong> evolução. Passariam diante <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des <strong>do</strong> governo ede jura<strong>do</strong>s, que avaliariam a disciplina, o figurino e a média de acertos <strong>do</strong>sgrupos, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> notas até dez. A organização <strong>do</strong> carnaval permitiria apenasmúsicas edificantes e patrióticas. Para ressaltar a pátria e deixar de fora ainfluência estrangeira, a melodia só poderia ser executa<strong>da</strong> por instrumentosconsidera<strong>do</strong>s <strong>da</strong> cultura nacional.Se adicionarmos algumas celebri<strong>da</strong>des quase nuas e muitaspenugens, o cenário fica pareci<strong>do</strong> com a Sapucaí. Foi mais ou menos assimque nasceu o desfile <strong>da</strong>s escolas de samba <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Seu formatoatual deve muito a costumes e ideologias fascistas <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930, além<strong>do</strong> interesse <strong>do</strong> presidente Getúlio Vargas de misturar sua imagem à culturanacional e popular, exatamente como Mussolini fazia na Itália. Já haviadesfiles em socie<strong>da</strong>des carnavalescas no começo <strong>do</strong> século 20, é ver<strong>da</strong>de,mas a maioria <strong>da</strong>s regras <strong>da</strong> apresentação moderna nasceu com o fascismo.Em 1937, ano em que o governo de Vargas se tornaria uma ditadura bempareci<strong>da</strong> com a italiana, foi instituí<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os sambas-enre<strong>do</strong>sdeveriam homenagear a história <strong>do</strong> Brasil. As primeiras regras de avaliaçãoe ordem <strong>do</strong> desfile nasceram <strong>do</strong>is anos antes, quan<strong>do</strong> o interventor federal<strong>do</strong> Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, começou a <strong>da</strong>r dinheiro para as escolas.


A apresentação ocorria na Aveni<strong>da</strong> Rio Branco, o mesmo local onde asdemonstrações militares comemoravam a Independência to<strong>do</strong> dia 7 desetembro. Os instrumentos de sopro foram proibi<strong>do</strong>s. Só poderiamparticipar enti<strong>da</strong>des registra<strong>da</strong>s como socie<strong>da</strong>des recreativas civis.Esse carnaval disciplina<strong>do</strong> e patriótico não nasceu só por imposição<strong>do</strong> governo: os grupos também aderiram espontaneamente a ele. A DeixaFalar, primeira escola de samba de que se tem notícia, desfilou em 1929usan<strong>do</strong> comissão de frente cavalos <strong>da</strong> Polícia Militar <strong>do</strong> Rio de Janeiro.Três anos depois, osamba-enre<strong>do</strong> <strong>da</strong> escola era Primavera e a Revolução de Outubro, emhomenagem à toma<strong>da</strong> de poder de Getúlio Vargas em outubro de 1930. Aapresentação contou com participantes vesti<strong>do</strong>s de militares. Não fosse ainfluência <strong>do</strong> fascismo italiano, o famoso desfile <strong>do</strong> carnaval <strong>brasil</strong>eiro nãoexistiria. E, sem ele, o samba que conhecemos hoje seria também muitodiferente. O mesmo patriotismo que deu um empurrão ao desfile decarnaval provocou a folclorização <strong>do</strong> samba.


O SAMBA ANTES DO FOLCLORECostuma-se contar a história <strong>do</strong> samba em <strong>do</strong>is momentos opostos.O primeiro, quan<strong>do</strong> os sambistas eram persegui<strong>do</strong>s pela polícia - quereprimia manifestações culturais <strong>do</strong>s negros - e obriga<strong>do</strong>s a tocarescondi<strong>do</strong>s, em vielas <strong>do</strong>s morros e fun<strong>do</strong>s de quintal. No segun<strong>do</strong>momento acontece o contrário: o governo passa a incentivar o carnaval e asmúsicas populares. Em 1995, com a publicação <strong>do</strong> livro O Mistério <strong>do</strong>Samba, o antropólogo Hermano Vianna revelou que a mu<strong>da</strong>nça de posturacom relação à música não aconteceu assim tão de repente. Estilos negros epopulares faziam parte de festas <strong>do</strong>s ricos e famosos séculos antes de odesfile <strong>da</strong>s escolas de samba virar uma festa oficial. Em 1802, por exemplo,o comerciante inglês Thomas Lindley escreveu que as festas <strong>do</strong>s baianosricos eram anima<strong>da</strong>s pela ”sedutora <strong>da</strong>nça <strong>do</strong>s negros, misto de coreografiaafricana e fan<strong>da</strong>ngos espanhóis e portugueses”. Até mesmo em Portugal osmúsicos populares <strong>brasil</strong>eiros eram bem recebi<strong>do</strong>s. No fim <strong>do</strong> século 18,poucos anos antes de a corte portuguesa fugir para o Brasil, o músicoCal<strong>da</strong>s Barbosa, mestiço filho de uma escrava, encantou a corte de <strong>do</strong>naMaria Primeira, a rainha louca, tocan<strong>do</strong> lundus.Hermano Vianna revelou também que o samba, em sua origem,tinha muito pouco de folclórico ou nacionalista. Os estilos europeus fazemparte <strong>da</strong> raiz ancestral <strong>do</strong> samba tanto ou mais que a percussão africana. Osprimeiros sambistas liam partituras, tocavam instrumentos clássicos,participavam de ban<strong>da</strong>s de jazz, a<strong>do</strong>ravam ouvir tango e conhecer asnovi<strong>da</strong>des musicais nos cabarés parisienses. A cara que o samba tem hoje,de símbolo <strong>da</strong> ”autentici<strong>da</strong>de <strong>brasil</strong>eira” e <strong>da</strong> resistência <strong>da</strong> cultura negra <strong>do</strong>s


morros cariocas, é uma criação mais recente, que de certa forma abafou aprimeira. Afirma Vianna em O Mistério <strong>do</strong> Samba:O samba não se transformou em música nacional através <strong>do</strong>sesforços de um grupo social ou étnico (o ”morro”). Muitos grupos eindivíduos (negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políticos,folcloristas, compositores eruditos, franceses, milionários, poetas - e atémesmo um embaixa<strong>do</strong>r Americano) participaram, com maior ou menortenaci<strong>da</strong>de, de sua ”fixação” como gênero musical de sua nacionalização. Os<strong>do</strong>is processos não podem ser separa<strong>do</strong>s. Nunca existiu um samba pronto,”autêntico”, depois transforma<strong>do</strong> em música nacional.Um exemplo de que o primeiro samba não tinha na<strong>da</strong> de folclóricosão <strong>do</strong>is pioneiros desse estilo musical: Pixinguinha e Donga, que em 1917registrou o primeiro samba grava<strong>do</strong> na história. Os <strong>do</strong>is começaram a tocarjuntos na déca<strong>da</strong> de 1910, provavelmente na casa <strong>da</strong> baiana Hilária Batista<strong>da</strong> Silva, a tia Ciata, na Praça Onze, centro <strong>do</strong> Rio de Janeiro. O quintaldessa casa é frequentemente aponta<strong>do</strong> como ”berço <strong>do</strong> samba”, o lugar queabrigou o nascimento mítico desse novo estilo musical. Negra baiana quemigrou para o Rio ain<strong>da</strong> no século 19, Ciata vendia <strong>do</strong>ces vestin<strong>do</strong> turbantee saia <strong>do</strong> can<strong>do</strong>mblé. Era a típica figura que inspirou a ala <strong>da</strong>s baianas <strong>do</strong>desfile <strong>da</strong>s escolas. À noite e nos fins de semana, músicos, políticos,intelectuais, jornalistas e amigos iam para o samba na casa dela - até então,”samba” significava um evento, uma festa e não um tipo de música. O novoestilo saiu <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele grupo de amigos.Acontece que as composições que surgiram <strong>da</strong> casa <strong>da</strong> baianatinham muito pouco <strong>do</strong> samba que hoje anima a Sapucaí. Lembravam maiso maxixe, o ”tango <strong>brasil</strong>eiro”, ritmo <strong>da</strong>nça<strong>do</strong> a <strong>do</strong>is deriva<strong>do</strong> de polcaseuropeias. Instrumentos de sopro eram comuns - com sua flauta,


Pixinguinha era um <strong>do</strong>s protagonistas <strong>da</strong>quelas festas. O escritor Mário deAndrade, no livro Música de Feitiçaria <strong>do</strong> Brasil, escreveu que a própria tiaCiata ”passava os dias de violão no colo inventan<strong>do</strong> melodias maxixa<strong>da</strong>s”.Pelo Telefone, grande sucesso <strong>da</strong>quele grupo, também lembra mais omaxixe que a percussão <strong>da</strong>s escolas de samba. Apesar de ter si<strong>do</strong>provavelmente uma criação coletiva, foi registra<strong>do</strong> por Donga, estouran<strong>do</strong>no carnaval de 1917. ”Fiz o samba, não procuran<strong>do</strong> me afastar muito <strong>do</strong>maxixe, música que estava bastante em voga”, contou o sambista déca<strong>da</strong>sdepois. Os músicos <strong>da</strong> casa <strong>da</strong> tia Ciata tampouco se achavam defensores deuma etnia, de uma tradição ancestral ou de um símbolo nacional. PeloTelefone citava uma tecnologia e um jogo tão novos para aquela épocaquanto o GPS portátil e o pôquer online um século depois: ”O chefe <strong>da</strong>polícia pelo telefone man<strong>do</strong>u me avisar que na Carioca tem uma roleta parase jogar”.Em 1919, Donga e Pixinguinha criaram a ban<strong>da</strong>. Os Oito Batutaspara animar a sala de espera <strong>do</strong> Cine Palais, no Rio de Janeiro. Essa ban<strong>da</strong>foi a primeira a divulgar o samba pelo mun<strong>do</strong>. Seus integrantes tocavampiano e instrumentos de sopro, apresentavam-se vestin<strong>do</strong> ternos e sapatosengraxa<strong>do</strong>s - o grupo lembrava uma jazz band americana. Como umconjunto de festas de casamento e formaturas nos dias de hoje, tocavam detu<strong>do</strong>: lundus, polcas, batuques, músicas sertanejas, maxixes e sambas. Esserepertório eclético rendeu a eles shows pelo mun<strong>do</strong>. Os Oito Batutas seapresentaram para os reis <strong>da</strong> Bélgica quan<strong>do</strong> visitaram o Brasil, naembaixa<strong>da</strong> americana (o embaixa<strong>do</strong>r admirava o grupo), no pavilhão <strong>da</strong>fábrica <strong>da</strong> General Motors e até mesmo para a princesa Isabel e a famíliareal <strong>brasil</strong>eira em exílio na França. Entre fevereiro de 1922 e abril de 1923,passaram seis meses tocan<strong>do</strong> na boate Le Schéhérazade, de Paris, e outros


seis se apresentan<strong>do</strong> em teatros de Buenos Aires. Durante a viagem àFrança, entre cafés e cabarés cheios de novi<strong>da</strong>des musicais, eles seapaixonaram pelo jazz. Ain<strong>da</strong> em Paris, Pixinguinha ganhou um saxofonede presente. ”Alguns anos mais tarde (fins de 1927), os Oito Batutascirculam pelo sul <strong>do</strong> Brasil”, conta o antropólogo Luís Fernan<strong>do</strong> HeringCoelho. ”O programa <strong>da</strong> apresentação no Teatro Álvaro de Carvalho, emFlorianópolis, no dia 28 de agosto de 1927 os anuncia como Jazz-Band OsBatutas, e no repertório há sambas, marchas, embola<strong>da</strong>s, maxixes, e músicas<strong>do</strong> repertório jazzístico como Who?, Beautiful Girl, Black Bottom, OneStep.”Também era fascina<strong>do</strong> pela música internacional o flautista,pianista e violonista Sinhô. Uma espécie de Roberto Carlos <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de1920, Sinhô tinha o apeli<strong>do</strong> de ”o rei <strong>do</strong> samba”. Deve-se a ele a fixação <strong>do</strong>samba como um estilo musical que pôde ser descoberto pelas grava<strong>do</strong>ras dediscos. ”O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a suapersonificação típica”, escreveu o poeta Manuel Bandeira, admira<strong>do</strong>r <strong>do</strong>sambista. Sinhô encantou o Rio de Janeiro compon<strong>do</strong> valsas, maxixes, fox,charleston, toa<strong>da</strong>s, fa<strong>do</strong>s, e chegou a gravar sambas com orquestras. Essa”personificação típica” <strong>do</strong> povo ligava pouco para a arte popular. Suasmarchinhas carnavalescas eram quase cópias de canções europeias. Numatarde de 1920, quan<strong>do</strong> tentava divulgar partituras de suas músicas na CasaBeethoven, no Rio de Janeiro, ouviu uma freguesa assobiar a valsa francesaC’est pas Difficile. Fascina<strong>do</strong> com a canção, foi para casa e tentou repetir amelodia no piano. Trocan<strong>do</strong> algumas notas e adicionan<strong>do</strong> outras, criou amarchinha Pé de Anjo, caçoan<strong>do</strong> <strong>do</strong> pé grande de China, irmão dePixinguinha. A música foi o hit <strong>do</strong> carnaval de 1920.


Assim era o samba <strong>brasil</strong>eiro — inspira<strong>do</strong> nas novi<strong>da</strong>des europeias eamericanas e forma<strong>do</strong> por instrumentos de sopro e piano - até umaideologia antiga ganhar músculos por aqui: o nacionalismo. Contorcen<strong>do</strong> acabeça <strong>do</strong>s artistas, o nacionalismo provocou o nascimento de um novosamba. Antes de chegar a esse novo estilo musical, é bom <strong>da</strong>r uma voltapelo tipo de nacionalismo que nasceu no Brasil e o mo<strong>do</strong> como ele criou aimagem que hoje temos <strong>do</strong> país.


O BRASIL NACIONALISTASe pudéssemos fazer uma terapia de grupo entre países, surgiriamcomportamentos revela<strong>do</strong>res durante as sessões. Haveria aquele país quemal notaria a existência <strong>do</strong>s outros, como a França, talvez os Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s. A Alemanha se seguraria cala<strong>da</strong>, sofren<strong>do</strong> de culpa, desconfortávelconsigo e com os colegas ao re<strong>do</strong>r. Uma quarentona insone, em crise pornão ser tão rica e atraente quanto no passa<strong>do</strong>, representaria muito bem aArgentina. Claro que haveria também países menos problemáticos, como oChile ou a Suíça, contentes com a sua pouca relevância. Não seria o caso <strong>do</strong>Brasil, paciente que sofreria de diversos males psicológicos. Bipolar,oscilaria entre considerações muito negativas e muito positivas sobre sipróprio. Obceca<strong>do</strong> com sua identi<strong>da</strong>de, em to<strong>da</strong>s as sessões aborreceria oscolegas perguntan<strong>do</strong> ”Quem sou eu?”, ”Que imagem eu devo passar?”, ”Oque me diferencia de vocês?”.Muito mais <strong>do</strong> que entre habitantes de outras pátrias, a identi<strong>da</strong>denacional foi sempre um problema psicanalítico no Brasil. Construí<strong>da</strong> sobtraumas, a imagem que os <strong>brasil</strong>eiros têm de si próprios oscilou entreextremos.Até a déca<strong>da</strong> de 1930, tu<strong>do</strong> aquilo que hoje achamos naturalmente<strong>brasil</strong>eiro - o samba, a feijoa<strong>da</strong>, a capoeira, o futebol - não eram ícones <strong>da</strong>identi<strong>da</strong>de nacional. Considerava-se a feijoa<strong>da</strong> um prato regional como obarrea<strong>do</strong> ou o acarajé. O futebol era um estrangeirismo que muitosintelectuais reprovavam. Nas colônias de imigrantes, pouca gente falavaportuguês - algumas ci<strong>da</strong>des sequer tinham um nome familiar, como acatarinense Dreizehnlinden, hoje Treze Tílias. Os <strong>brasil</strong>eiros não se


econheciam como um povo alegre e cordial - e o mun<strong>do</strong> também nãoassociava essa característica ao Brasil. A falta de identi<strong>da</strong>de era considera<strong>da</strong>um problema desde os tempos <strong>do</strong> Império e se agravou com a República.Quan<strong>do</strong> os militares derrubaram a monarquia, em 1889, acabaram comuma <strong>da</strong>s poucas coisas em comum entre os <strong>brasil</strong>eiros - o fato de seremsúditos de <strong>do</strong>m Pedro Segun<strong>do</strong>. O Brasil, sem a coroa, tinha fica<strong>do</strong> semcara.Os <strong>brasil</strong>eiros também tinham vergonha de si próprios. Nos anos oitocentose no começo <strong>do</strong> século 20, estavam em voga teorias raciais europeias.Acreditava-se que etnias tinham características permanentes, que nãomu<strong>da</strong>vam com a educação ou a cultura de ca<strong>da</strong> região. Um <strong>do</strong>s principaisteóricos racistas foi o conde francês Arthur de Gobineau, para quem amistura racial era grande causa <strong>da</strong> decadência de civilizações e <strong>da</strong>degeneração <strong>do</strong>s povos. Adivinhe o que Gobineau pensava sobre o Brasil.”Os <strong>brasil</strong>eiros só têm em particular uma excessiva depravação. São to<strong>do</strong>smulatos, a ralé <strong>do</strong> gênero humano, com costumes condizentes”, escreveu oconde francês em 1853. Esse pensamento era comum. Depois de visitar opaís, o zoólogo suíço Louis Agassiz escreveu em 1868: ”Que qualquer umque duvide <strong>do</strong>s males <strong>da</strong> mistura de raças [...] que venha ao Brasil, pois nãopoderá negar a deterioração decorrente <strong>da</strong> amálgama <strong>da</strong>s raças mais geralaqui <strong>do</strong> que em qualquer outro país <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”. Quan<strong>do</strong> conheceram essasideias, os intelectuais <strong>brasil</strong>eiros olharam para o Brasil e acharam terentendi<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>: a culpa pelos problemas nacionais era <strong>da</strong> mistura de raças.O sociólogo Nina Rodrigues dedicou em 1899 um livro to<strong>do</strong>, chama<strong>do</strong>Mestiçagem, Degenerescência e Crime, para defender a teoria de quenegros e mestiços eram mais <strong>da</strong><strong>do</strong>s a an<strong>da</strong>r fora <strong>da</strong> lei.


Provavelmente os <strong>brasil</strong>eiros, assim como qualquer ser humano,estavam certos em ter vergonha de si próprios; de qualquer forma aconteceuque, no começo <strong>do</strong> século 20, aquele pensamento virou ao contrário. Foi em1933, quan<strong>do</strong> o sociólogo Gilberto Freyre publicou Casa-Grande e Senzala.Diferentemente <strong>do</strong>s pensa<strong>do</strong>res anteriores, o pernambucano celebrava amistura de índios, negros e brancos, para ele uma riqueza que definia oBrasil. Se em outros países as etnias não se misturaram, resultan<strong>do</strong> emsocie<strong>da</strong>des fecha<strong>da</strong>s e preconceituosas, no Brasil a miscigenação começoulogo quan<strong>do</strong> os portugueses desceram <strong>da</strong>s caravelas. ”O ambiente em quecomeçou a vi<strong>da</strong> <strong>brasil</strong>eira foi de grande intoxicação sexual. O europeusaltava em terra escorregan<strong>do</strong> em índia nua. Os próprios padres <strong>da</strong>Companhia precisavam descer com cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, se não atolavam o pé emcarne”, escreveu ele.Essa mistura original teria aconteci<strong>do</strong> só aqui por causa <strong>do</strong> tipo degente que formou o Brasil. De um la<strong>do</strong>, os portugueses eram ”menosardentes na orto<strong>do</strong>xia que os espanhóis e menos estritos que os ingleses nospreconceitos de cor e de moral cristã”. De outro, os índios <strong>brasil</strong>eiros eram”crianças grandes” que não tinham a ”resistência <strong>da</strong>s grandessemicivilizações americanas, como os Incas e Astecas”. Até Casa-Grande eSenzala, quem se preocupava com identi<strong>da</strong>de nacional não conse<strong>guia</strong> irmuito longe. Ou louvava o índio forte e belo, romântico e distante como ospersonagens de José de Alencar, ou torcia para que o povo embranquecesse,no sangue ou pelo menos nas ideias, adquirin<strong>do</strong> o máximo de culturaeuropeia que pudesse. A absolvição <strong>do</strong>s mestiços era o que faltava para sefortalecer um novo nacionalismo no Brasil.Nas primeiras déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> século 20, a devoção à pátria unia tantodita<strong>do</strong>res <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> quanto <strong>da</strong> direita, como o comunista Josef Stálin e o


nazista A<strong>do</strong>lf Hitler. Em busca <strong>da</strong> alma nacional, <strong>da</strong> autêntica raiz <strong>da</strong>pátria, as nações valorizavam o folclore, recuperan<strong>do</strong> canções, <strong>da</strong>nças ejeitos populares que as diferenciassem. Quan<strong>do</strong> conheceram essa tendência,os intelectuais <strong>brasil</strong>eiros olharam para o Brasil e acharam ter entendi<strong>do</strong>tu<strong>do</strong>: a raiz autêntica <strong>do</strong> Brasil era o mestiço, o caboclo, o popular. Erapreciso defender a ”raça <strong>brasil</strong>eira” como Hitler defendia os arianos.Escritores e poetas correram a pesquisar o folclore e as músicaspopulares, na tentativa de encontrar as ”raízes <strong>da</strong> alma <strong>brasil</strong>eira”. O escritorMário de Andrade publicou obras sobre modinhas <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> império,folclore, música popular, música de feitiçaria e <strong>da</strong>nças dramáticas. Tambémcriou a Socie<strong>da</strong>de de Etnografia e Folclore de São Paulo e organizou oCongresso <strong>da</strong> Língua Nacional Canta<strong>da</strong>, em 1937. Mesmo antes <strong>do</strong>smodernistas, já havia artistas deslumbra<strong>do</strong>s com a cultura e os hábitos <strong>do</strong>povo. O melhor exemplo é o pintor Almei<strong>da</strong> Júnior. Em vez de retratarcenas de momentos ilustres <strong>da</strong> pátria, ele preenchia as telas com cenassimples e humildes, como o caipira tocan<strong>do</strong> viola na janela de casa, objeto<strong>do</strong> quadro O Violeiro, de 1899.Como na Europa, o nacionalismo unia políticos e intelectuais deto<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Em 1936, a Ação Integralista Brasileira, cria<strong>da</strong> nos moldes<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> fascista italiano, tinha l milhão de filia<strong>do</strong>s. O parti<strong>do</strong> deultradireita exaltava o caboclo, considera<strong>do</strong> representante legítimo <strong>do</strong> povo<strong>brasil</strong>eiro. Entre os membros <strong>da</strong> Ação Integralista havia estudiosos defolclore que ain<strong>da</strong> hoje ocupam as estantes de quem liga para a culturanacional. Luiz <strong>da</strong> Câmara Cascu<strong>do</strong>, chefe <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> no Nordeste, escreveu31 livros, a maioria sobre contos populares, alimentação popular, religiãopopular, gestos, len<strong>da</strong>s, cantigas e locuções tradicionais e... populares <strong>do</strong>Brasil. O líder <strong>do</strong> integralismo, Plínio Salga<strong>do</strong>, era também um intelectual


liga<strong>do</strong> aos artistas modernistas. Em 1929, com o pintor e poeta Menotti delPicchia e o escritor Guilherme de Almei<strong>da</strong>, <strong>do</strong>is que tinham participa<strong>do</strong> <strong>da</strong>Semana de Arte de 1922, ele divulgou o movimento Verde-Amarelismo ouEscola <strong>da</strong> Anta. Defendeu ali, sem ironia, a anta como símbolo nacional.Plínio também criou textos muito pareci<strong>do</strong>s com os de Gilberto Freyre oude Mário de Andrade:A meiga ingenui<strong>da</strong>de <strong>do</strong> índio, raça infantil em permanentecomunhão cósmica, raça constituí<strong>da</strong> de homens-árvores, virginais nas suasimpressões e nos seus raciocínios porque vinham agora mesmo <strong>da</strong> terra,misturavam-se a on<strong>da</strong> negra vin<strong>da</strong> <strong>da</strong>s florestas <strong>da</strong> África no bojo <strong>do</strong>snavios, para reiniciar o diálogo de Cam com seus irmãos, interrompi<strong>do</strong> naÁsia, depois <strong>do</strong> Dilúvio. E o branco arremessou de si to<strong>do</strong>s os preconceitospara abraçar seus irmãos.O nacionalismo popular resolveu o complexo de inferiori<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<strong>brasil</strong>eiros, mas criou outro distúrbio - o ”complexo de Zé Carioca”. Comoescreveu a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz num artigo com esse título,apareceu uma ”necessi<strong>da</strong>de de cobrar uma certa singulari<strong>da</strong>de local” e ummal-estar com as expressões culturais que não pareciam genuinamente<strong>brasil</strong>eiras.Assim se completa o transtorno bipolar que acometeu o país. Seantes a cultura europeia era a fonte de civilização, poucos anos depois elavirou a influência que contaminava. Artistas e intelectuais ficariamobceca<strong>do</strong>s com a macumba para turistas, com o que o país tinha de exótico,de singular. Como descreve a historia<strong>do</strong>ra e filósofa Guiomar deGrammont em três ótimas frases <strong>do</strong> livro Aleijadinho e o Aeroplano:Em sua maior parte, os modernistas eram jovens <strong>da</strong> elite quetiveram mais ou menos contato com a cultura europeia, e, em um fenômeno


comum a esse tipo de experiência, o confronto com o ”velho” mun<strong>do</strong> os fezin<strong>da</strong>garem-se sobre a sua própria identi<strong>da</strong>de. Eles inventam uma ”pátria” àqual possam ter orgulho de pertencer. Contu<strong>do</strong>, essa invenção guar<strong>da</strong>muitos traços <strong>do</strong> ”exotismo” e <strong>do</strong> ”primitivismo” com que os europeus apercebiam.


O SAMBA DEPOIS DO FOLCLOREDurante a garimpagem <strong>da</strong>quilo que era exótico na cultura <strong>brasil</strong>eira,a primeira leva <strong>do</strong> samba era cosmopolita demais. No decorrer <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de1920, Pixinguinha, Donga e Sinhô levaram pedra<strong>da</strong>s <strong>da</strong> crítica porque suascomposições pareciam pouco <strong>brasil</strong>eiras. Em 1928, o crítico Cruz Cordeiro,<strong>da</strong> revista Phono-Arte, condenou a influência estrangeira em duascomposições de Pixinguinha e Donga:Não podemos deixar de notar que em suas músicas não se encontraum caráter perfeitamente típico. A influência <strong>da</strong>s melodias e mesmo <strong>do</strong>ritmo <strong>da</strong>s músicas norte-americanas é, nesses <strong>do</strong>is choros, bem evidente.Este fato nos causou sérias surpresas porquanto sabemos que oscompositores são <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s melhores autores <strong>da</strong> música típica nacional.Dois anos depois, Cruz Cordeiro, prestes a virar diretor artístico <strong>da</strong>RCA Victor, a principal grava<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> país, não recomen<strong>do</strong>u a seus leitoreso disco que continha na<strong>da</strong> menos que Carinhoso, a obra-prima dePixinguinha. Seus argumentos:Parece que o nosso popular compositor an<strong>da</strong> muito influencia<strong>do</strong>pelo ritmo e pela melodia <strong>da</strong> música de jazz. É o que temos nota<strong>do</strong> desdealgum tempo, mais de uma vez. Nesse seu choro, cuja introdução é umver<strong>da</strong>deiro fox-trot, apresenta em seu decorrer combinações <strong>da</strong> músicapopular yankee. Não nos agra<strong>do</strong>u.Essa patrulha ideológica pre<strong>do</strong>minava. O próprio Mário deAndrade participou dela. Em cartas e artigos <strong>do</strong> fim <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1920, elefala várias vezes <strong>da</strong> importância <strong>do</strong> folclore para a música <strong>brasil</strong>eira. Numacarta ao escritor Joaquim Inojosa, diz que ”o compositor <strong>brasil</strong>eiro tem de se


asear quer como <strong>do</strong>cumentação quer como inspiração no folclore” porquesenão ”não faz música <strong>brasil</strong>eira não”. Chega até a usar a expressão”influência deletéria <strong>do</strong> urbanismo”:Nas maiores ci<strong>da</strong>des <strong>do</strong> país, no Rio de Janeiro, no Recife, emBelém, apesar de to<strong>do</strong> progresso, internacionalismo e cultura, encontram-senúcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria <strong>do</strong>urbanismo não penetra.Um episódio demonstra como os intelectuais modernistasselecionaram só o que era exótico na cultura <strong>brasil</strong>eira. Na déca<strong>da</strong> de 1920,Mário de Andrade conheceu Pixinguinha durante uma apresentação <strong>do</strong>sOito Batutas em São Paulo. O escritor se interessou pouco pela música <strong>do</strong>grupo: queria mesmo era saber de folclore. Estava escreven<strong>do</strong> Macunaíma eprecisava conversar com algum negro que lhe desse detalhes <strong>do</strong>s rituais demacumba. Pixinguinha explicou como o can<strong>do</strong>mblé funcionava e acabouviran<strong>do</strong> personagem <strong>do</strong> romance de Mário de Andrade. Ganhou no livroum retrato folclórico: ”negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista deprofissão”. O trecho aparece no sétimo capítulo, quan<strong>do</strong> Macunaíma vai aum terreiro de macumba <strong>do</strong> Rio de Janeiro <strong>da</strong> mãe de santo tia Ciata,aquela em cuja casa nasceu o samba. Na vi<strong>da</strong> real, ela não era exótica:casa<strong>da</strong> com um funcionário público, fazia <strong>da</strong>s recepções em casa ocasiõessociais frequenta<strong>da</strong>s por jornalistas e políticos. Mas, no livro, tambémaparece folcloriza<strong>da</strong>, como uma sinistra mãe de santo, ”negra velha com umséculo de sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira brancaesparrama<strong>da</strong>”.A macumba para turistas que tanto fascinava os escritores logo teveum equivalente musical. Trata-se <strong>do</strong> ”samba <strong>do</strong> Estácio”, estilo surgi<strong>do</strong> nofim <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1920. Ao contrário <strong>da</strong>s músicas <strong>da</strong> primeira leva, as novas


não lembravam o maxixe, e sim a marcha, pois a melodia era pontua<strong>da</strong> emtamborins e sur<strong>do</strong>s. Muito pratica<strong>da</strong>s em bares e morros como os <strong>do</strong>Estácio e <strong>da</strong> Mangueira, eram uma ”maneira mais rudimentar de fazersamba, recorren<strong>do</strong> muito ao improviso e a técnicas ’primitivas’, secompara<strong>da</strong>s às desenvolvi<strong>da</strong>s por sambistas e chorões, como Donga, Sinhôe Pixinguinha”. O estilo ain<strong>da</strong> facilitava o desfile <strong>da</strong>s escolas, como contou,em 1974, o sambista Ismael Silva, um <strong>do</strong>s fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res <strong>da</strong> escola de sambaDeixa Falar. ”No estilo antigo, o samba era assim: tan-tantan-tan-tantan.Não <strong>da</strong>va. Como é que um bloco ia an<strong>da</strong>r assim na rua? Aí a gentecomeçou a fazer um samba assim: bumbum paticumbumpruburundum.”Os novos sambistas iam conscientemente contra o estilo anterior.Exaltavam a periferia e os morros <strong>do</strong> Rio apesar de muitos deles serembrancos e terem uma origem mais abona<strong>da</strong> que os sambistas <strong>da</strong> primeirageração. Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, autor de clássicostanto <strong>da</strong> primeira quanto <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> leva (aju<strong>do</strong>u a escrever a letra deCarinhoso e de marchinhas clássicas, como Chiquita Bacana e Balancê) erafilho de um industrial e estu<strong>da</strong>va arquitetura na Escola Nacional de BelasArtes. Noel Rosa, o mais criativo <strong>do</strong>s compositores de sambas <strong>do</strong> Estácio,estu<strong>do</strong>u no tradicional Colégio de São Bento e chegou a entrar na facul<strong>da</strong>dede Medicina. Como outros sambistas dessa geração, Noel Rosa a<strong>do</strong>tou omarketing <strong>da</strong> pobreza, fazen<strong>do</strong> de si um representante <strong>da</strong> periferia carioca.”Noel vestiu rigorosamente o figurino <strong>do</strong> samba <strong>do</strong> Estácio e desconsiderouo resto. Em seus sambas ocorrem várias sau<strong>da</strong>ções a quase to<strong>do</strong>s os recantos<strong>do</strong> samba no Rio de Janeiro, quase to<strong>do</strong>s liga<strong>do</strong>s às recentes escolas desamba e que faziam sambas nos moldes <strong>do</strong> Estácio: Mangueira, Salgueiro,Osval<strong>do</strong> Cruz, Madureira etc.”, escreveu o historia<strong>do</strong>r José AdrianoFenerick. ”No entanto, Noel nunca se referiu à Ci<strong>da</strong>de Nova, local de onde


saíram os sambistas <strong>da</strong> geração de Donga e Pixinguinha, como sen<strong>do</strong>reduto de bambas. Ele, num primeiro momento, desloca o samba <strong>do</strong> fun<strong>do</strong><strong>da</strong>s casas <strong>da</strong>s tias baianas para o morro e o subúrbio [...].”O marketing <strong>da</strong> pobreza deu certo. No meio <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930, onovo estilo já carregava a imagem de expressão cultural <strong>do</strong>s morros e <strong>do</strong>snegros. Tinha se torna<strong>do</strong> folclore, um valor cultural que deveria serpreserva<strong>do</strong> e protegi<strong>do</strong> de influências externas. Em 25 de fevereiro de 1936,o jornalista Carlos Lacer<strong>da</strong> escreveu no Diário Carioca:O samba nasce <strong>do</strong> povo e deve ficar com ele. O samba elegante <strong>da</strong>sfestanças oficiais é deforma<strong>do</strong>: sofre as deformações na passagem de música<strong>do</strong>s pobres para divertimento <strong>do</strong>s ricos. O samba tem de ser admira<strong>do</strong> ondeele nasce, e não depois de rouba<strong>do</strong> aos seus cria<strong>do</strong>res e transforma<strong>do</strong> emsala<strong>da</strong> musical para <strong>da</strong>r lucros aos industriais <strong>da</strong> música popular. O samba émúsica de classe. O lirismo <strong>da</strong> raça negra vive nele.Já nessa época, Carlos Lacer<strong>da</strong> falava <strong>da</strong> música <strong>do</strong>s pobres como seela fosse o samba original, que luta para não ser deforma<strong>do</strong> pelocapitalismo. Na ver<strong>da</strong>de, aconteceu o oposto. O samba nasceu com músicosque queriam ganhar a vi<strong>da</strong> e agra<strong>da</strong>r o público, e não fazer autoetnografia.”O interessante é que o ’autêntico’ nasce <strong>do</strong> ’impuro’, e não o contrário, masem momento posterior o ’autêntico’ passa a posar de primeiro e original, oupelo menos de mais próximo <strong>da</strong>s ’raízes’”, afirma o antropólogo HermanoVianna no livro O Mistério <strong>do</strong> Samba. Ele acrescenta:Não se pode dizer que as escolas de samba fossem fenômenospuros, mas se criou em torno delas um aparato que defende essa pureza,condenan<strong>do</strong> to<strong>da</strong> modificação introduzi<strong>da</strong> no samba.


Os primeiros sambistas, aqueles que também tocavam jazz emaxixe, morreram irrita<strong>do</strong>s com os músicos <strong>do</strong> morro. Em janeiro de 1930,Sinhô se queixou ao jornal Diário Carioca:A evolução <strong>do</strong> samba! Com franqueza, eu não sei se ao que ora seobserva, devemos chamar evolução. Repare bem as músicas deste ano. Osseus autores, queren<strong>do</strong> introduzir novi<strong>da</strong>des ou embelezá-las, fogem porcompleto ao ritmo <strong>do</strong> samba. O samba, meu caro amigo, tem a sua toa<strong>da</strong> enão pode fugir dela. Os modernistas, porém, escrevem umas coisas muitopareci<strong>da</strong>s com marcha e dizem ”samba”. E lá vem sempre a mesma coisa:”Mulher! Mulher! Vou deixar a malandragem”. ”A malandragem eu deixei”.”Nossa Senhora <strong>da</strong> Penha”. ”Nosso Senhor <strong>do</strong> Bonfim”. Enfim, não fogemdisso.No fim <strong>do</strong>s anos 1960, o jornalista Sérgio Cabral (pai <strong>do</strong>governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Rio de Janeiro) testemunhou um debate entre Donga, o rei<strong>do</strong> primeiro samba, e Ismael Silva, cofun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> estilo. Adiscussão começou quan<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is tiveram que responder à pergunta: ”Qualo ver<strong>da</strong>deiro samba?”DONGA: Ué, samba é isso há muito tempo:O chefe <strong>da</strong> políciaPelo telefoneMan<strong>do</strong>u me avisarQue na CariocaTem uma roleta para se jogar...ISMAEL: Isso é maxixe!DONGA: Então o que é samba?ISMAEL: Se você jurarQue me tem amor


Eu posso me regenerarMas se éPara fingir, mulherA orgia, assim não vou deixarDONGA: Isso é marcha!Um fenômeno muito pareci<strong>do</strong> com o <strong>da</strong> folclorização <strong>do</strong> sambaaconteceu com a feijoa<strong>da</strong>. O prato ganhou a cara de comi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s negros,mesmo ten<strong>do</strong> pouquíssima influência africana. Muita gente repete que afeijoa<strong>da</strong> nasceu nas senzalas, cria<strong>da</strong> pelos escravos com feijão e carnesdespreza<strong>da</strong>s na casa-grande. Eis um <strong>da</strong>queles mitos que de tão repeti<strong>do</strong>s setornam difíceis de derrubar. A feijoa<strong>da</strong> tem origem europeia. Quem diz é opróprio folclorista Câmara Cascu<strong>do</strong>.


A ORIGEM DA FEIJOADA É EUROPEIAConforme o que ele conta no livro História <strong>da</strong> Alimentação noBrasil, nem índios nem negros tinham o hábito de misturar feijão comcarnes. A técnica de preparo vem de mais longe: o Império Romano. Desdea Antigui<strong>da</strong>de os europeus latinos faziam cozi<strong>do</strong>s de misturas de legumes ecarnes. Ca<strong>da</strong> região de influência romana a<strong>do</strong>tou sua variação: o cozi<strong>do</strong>português, a paella espanhola, o bollito misto <strong>do</strong> norte <strong>da</strong> Itália. Ocassoulet, <strong>da</strong> França, cria<strong>do</strong> no século 14, é parecidíssimo com a feijoa<strong>da</strong>:feito com feijão branco, linguiça, salsicha e carne de porco. Com o feijãopreto, espécie nativa <strong>da</strong> América que os europeus a<strong>do</strong>raram, o prato virouatração entre os <strong>brasil</strong>eiros mais endinheira<strong>do</strong>s. A citação mais antiga querestou sobre a feijoa<strong>da</strong> mostra a refeição bem longe <strong>da</strong>s senzalas. No Diáriode Pernambuco de 7 de agosto de 1833, o elegante Hotel Théâtre, deRecife, informa sua nova atração <strong>da</strong>s quintas-feiras: ”Feijoa<strong>da</strong> à <strong>brasil</strong>eira”.Apesar <strong>do</strong> desdém <strong>do</strong>s velhos compositores, o samba <strong>do</strong> Estácio,acompanhan<strong>do</strong> o enre<strong>do</strong> <strong>da</strong>s escolas, ganhou o país pelas rádios e comopropagan<strong>da</strong> de Getúlio Vargas. Grupos de samba faziam parte deapresentações folclóricas de eventos oficiais, ao la<strong>do</strong> de <strong>da</strong>nças indígenas. AHora <strong>do</strong> Brasil, programa cria<strong>do</strong> pelo governo Vargas, incluía sambas <strong>da</strong>sescolas na sua programação. Em 29 de janeiro de 1936, a Estação Primeirade Mangueira comemorou o fato de seus sambas terem si<strong>do</strong> transmiti<strong>do</strong>s,numa edição especial <strong>do</strong> programa, para a rádio nacional <strong>da</strong> Alemanhanazista. Enquanto censurava rádios e jornais, amedrontava escritores eartistas e proibia imigrantes europeus de falar línguas estrangeiras em


público, o Departamento de Imprensa e Propagan<strong>da</strong> (DIP) financiavablocos de carnaval e concursos carnavalescos. A transformação <strong>do</strong> samba demúsica regional a ícone nacional deve muito a Getúlio Vargas. Mas não sóa ele. Também é resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> influência de outro personagem famoso: oPato Donald.No fim <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930, o samba se confundia tanto com oBrasil que foi possível existir uma criatura estranha — o samba-cívico. Osmúsicos adulavam o país e o presidente. A composição É Negócio Casar,composta por Ataulfo Alves e Felisberto Martins, em 1941, fala que ”OEsta<strong>do</strong> Novo veio para nos orientar. No Brasil não falta na<strong>da</strong>, mas precisatrabalhar”. Salve 19 de Abril, cria<strong>do</strong> em 1943, comemora o aniversário deGetúlio Vargas, que segun<strong>do</strong> a música ”veio ao mun<strong>do</strong> porque Deus quis, otimoneiro que está com o leme <strong>do</strong> meu país”. Ministério <strong>da</strong> Economia,também de 1943, conta que as coisas melhoraram: ”Sua Excelência mostrouque é de fato, agora tu<strong>do</strong> vai ficar barato, agora o pobre já pode comer, atéencher”.O grande clássico <strong>do</strong> samba cívico foi Aquarela <strong>do</strong> Brasil, de AryBarroso. Composto seis anos depois que Gilberto Freyre publicou Casa-Grande e Senzala, a letra já associava o Brasil aos mulatos: ”Brasil, meuBrasil <strong>brasil</strong>eiro, meu mulato inzoneiro, vou cantar-te nos meus versos”. Amúsica de Ary Barroso estourou no Brasil pouco antes de Walt Disney,cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mickey e <strong>do</strong> Pato Donald, fazer uma visita ao Rio. Acabouviran<strong>do</strong> trilha sonora <strong>do</strong> desenho anima<strong>do</strong> Alô, Amigos, de 1942. Nodesenho, o Pato Donald conhece um novo personagem, chama<strong>do</strong> ZéCarioca. Os <strong>do</strong>is amigos an<strong>da</strong>m por um calçadão carioca, tomam cachaça -o Pato Donald engasga com a bebi<strong>da</strong> enquanto Zé Carioca toca umacaixinha de fósforo - e sambam com Carmen Miran<strong>da</strong>. Na<strong>da</strong> poderia ser


mais significativo para os <strong>brasil</strong>eiros. Na déca<strong>da</strong> de 1940, o Brasil era rural epobre - não participava <strong>da</strong> lista <strong>da</strong>s trinta maiores economias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Derepente, a nação que poucas déca<strong>da</strong>s antes se considerava uma reunião depárias e degenera<strong>do</strong>s ganhou uma homenagem <strong>da</strong> Disney, referênciaartística de um <strong>do</strong>s países mais poderosos. O transtorno bipolar chegou aopico de euforia.Foi assim que o samba virou o símbolo <strong>da</strong> nação e <strong>do</strong> povo<strong>brasil</strong>eiro. Sua ascensão tem pouca coisa de pura e autêntica: veio <strong>da</strong>variação de um estilo anterior, nacionalizou-se com a obsessão <strong>do</strong>s artistascom o exótico, o interesse de um presidente fascista e a influência de umdesenho anima<strong>do</strong>. Uma música não é necessariamente ruim por ter surgi<strong>do</strong>desse jeito - afinal de contas, se existir algum estilo original ou puro, eledeve ser chatíssimo. Não é exatamente o samba que é chato de ouvir, e simtanta gente propagan<strong>do</strong> a la<strong>da</strong>inha de que ele remete à raiz autêntica<strong>brasil</strong>eira.Sobretu<strong>do</strong> porque isso faz mal à música. Em outros países comcultura negra, a música popular não fez cara feia para moderni<strong>da</strong>des e seligou na toma<strong>da</strong>, a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> instrumentos eletrônicos. O jazz, apesar de tersi<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> como propagan<strong>da</strong> americana, não se tornou ícone de identi<strong>da</strong>denacional dentro <strong>do</strong> país. Isso deixou o estilo livre para se misturar e sediversificar - ain<strong>da</strong> hoje renasce em tipos diferentes. No caso <strong>do</strong> samba,sempre que alguém tentou alterá-lo, levou pedra<strong>da</strong>s. Em julho de 1940, noprimeiro show no Brasil depois de uma tempora<strong>da</strong> nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,Carmen Miran<strong>da</strong> cantou sambas em inglês no Cassino <strong>da</strong> Urca. A plateia,cheia de políticos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, recebeu a cantora com um silêncioconstrange<strong>do</strong>r (depois ela revi<strong>da</strong>ria com a música ”Disseram que eu volteiamericaniza<strong>da</strong>...”). Quan<strong>do</strong> João Gilberto misturou o samba com o jazz,


crian<strong>do</strong> a bossa nova, mais pedra<strong>da</strong>s: o novo estilo seria resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong>”alienação <strong>da</strong>s elites <strong>brasil</strong>eiras”, escreveu o crítico José Ramos Tinhorão.Não é só o samba que sofre com esse patrulhamento. Uma crítica pareci<strong>da</strong>atingiu o movimento mangue beat, cria<strong>do</strong> pelo pernambucano ChicoScience. O escritor Ariano Suassuna, enfa<strong>do</strong>nho defensor <strong>da</strong> pureza culturalpernambucana, criticava (ain<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong> de 1990) o cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> manguebeat por misturar a cultura <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> com coisas de fora. Como propuseramos integralistas déca<strong>da</strong>s antes, Suassuna gostava apenas <strong>do</strong> que era folclórico- a parte ”Chico”. ”Com sua parte Science eu não quero negócio não”, diziaao músico. Os próprios sambistas parecem obceca<strong>do</strong>s em deixar o estilonuma jaula de vidro que to<strong>do</strong>s devem apreciar. ”Não deixe o samba morrer,não deixe o samba acabar”, afirma uma composição. ”Tá legal, eu aceito oargumento, mas não altere o samba tanto assim”, diz Paulinho <strong>da</strong> Viola.Com tanta preocupação em cultuar o exótico, alguma escola desamba poderia homenagear o Blanka, personagem <strong>brasil</strong>eiro no videogameStreet Fighter <strong>do</strong>is. Nesse clássico <strong>do</strong>s fliperamas <strong>do</strong>s anos 1990, o joga<strong>do</strong>rpode escolher seu luta<strong>do</strong>r entre vários, ca<strong>da</strong> um representante de umanação. O japonês Ryu é o galã: especialista em artes marciais, luta com umquimono rasga<strong>do</strong> nos braços, deixan<strong>do</strong> os bíceps à mostra. Ken,representante americano, também é uma pessoa normal. Nenhum joga<strong>do</strong>r étão fiel à pátria quanto Blanka. O <strong>brasil</strong>eiro é um monstro corcun<strong>da</strong> com ocorpo verde e o cabelo laranja, que dá choques elétricos como um peixeamazônico, chupa o cérebro <strong>do</strong>s adversários e parece mentalmente menoscapaz. De tão exótico, feio e colori<strong>do</strong>, parece ter saí<strong>do</strong> direto <strong>da</strong> Sapucaí.


UMA VINGANÇA CONTRA O QUESTIONÁRIO DAESCOLAÉ como bonecas de criança ou telefones celulares. Você aperta abarriga e o brinque<strong>do</strong> diz ”Eu te amo!”. Ao captar a palavra ”João”, o celularliga automaticamente para o João. Incrível, não? Um mecanismo eletrônicoigual a esses deve estar implanta<strong>do</strong> na maioria <strong>do</strong>s <strong>brasil</strong>eiros. Funcionaquan<strong>do</strong> muitos de nós mostramos o que sabemos sobre história <strong>do</strong> Brasil.Você pode testar em qualquer pessoa com um conhecimento médiode história, que tenha estu<strong>da</strong><strong>do</strong> um curso de humanas na facul<strong>da</strong>de, e atémesmo em professores pouco prepara<strong>do</strong>s. Para saber como o chip funcionaem títeres de carne, osso, verde e amarelo, basta, em vez de apertar abarriga, pronunciar a expressão ”Guerra <strong>do</strong> Paraguai”.O efeito é imediato. Quan<strong>do</strong> essas palavras atravessam o ar,penetram no tímpano e atingem o lobo temporal, o <strong>brasil</strong>eiro comum passaa repetir, automaticamente e sem controle, que ”o Brasil matou 95% <strong>da</strong>população masculina <strong>do</strong> Paraguai”, ”só sobraram mulheres e crianças” e ”aInglaterra, devi<strong>do</strong> a seus próprios interesses, levou o Brasil à guerra,temen<strong>do</strong> que o Paraguai, uma potência em crescimento, desafiasse seuimperialismo”. Pode reparar. São sempre as mesmas frases, as mesmaspalavras.O primeiro livro a implantar essas expressões em nossa cabeça foiGuerra <strong>do</strong> Paraguai: Grande Negócio, escrito em 1968 pelo historia<strong>do</strong>rargentino León Pomer, militante político que se exilaria no Brasil. Em1979, surgiu uma versão <strong>brasil</strong>eira - Guerra <strong>do</strong> Paraguai: Genocídio


Americano, de Júlio José Chiavenato. Mais roteiro de ficção que pesquisahistoriográfica, os <strong>do</strong>is livros revisaram a primeira versão <strong>do</strong> conflito, aquelaque louvava os feitos heroicos <strong>do</strong>s militares. Mostraram a Inglaterra comoum vilão mais maligno que o Darth Vader de Guerra nas Estrelas. Osingleses teriam feito o exército <strong>brasil</strong>eiro (um personagem forte e ingênuo,tipo o alienígena Chewbacca) empenhar as calças para destruir o vizinho. Eo presidente <strong>do</strong> Paraguai, Solano López, aparece como o mocinho, umLuke Skywalker em busca de um país autônomo, feliz e desenvolvi<strong>do</strong>. Combase nessas duas obras, não seria difícil imaginar as ci<strong>da</strong>des paraguaias comcalça<strong>da</strong>s largas, fontes e bulevares, fábricas, cafés e bons jornais, tu<strong>do</strong>destruí<strong>do</strong> pelos <strong>brasil</strong>eiros entre 1864 e 1870.Poucos livros estavam tão alinha<strong>do</strong>s com o espírito <strong>da</strong> época quantoGenocídio Americano. Enquanto a obra esgotava nas livrarias, a ditaduramilitar desmoronava e a esquer<strong>da</strong> <strong>brasil</strong>eira crescia. Nos palanques <strong>do</strong> ABC,Lula se tornava uma personali<strong>da</strong>de nacional. A campanha <strong>da</strong>s Diretas Jámostrava a força de uma nova opinião pública. Falar mal de militares eraintelectualmente estimulante para os autores e um jeito fácil de ganharpopulari<strong>da</strong>de. Nas escolas, professores de história e geografia ressaltavamver<strong>da</strong>des à esquer<strong>da</strong> que criariam a base <strong>do</strong> senso comum nos anos 2000.No fim de duas déca<strong>da</strong>s, Genocídio Americano teve dezessete reimpressõese inspirou dez em ca<strong>da</strong> dez livros didáticos.Esse revisionismo começou a ruir no fim <strong>do</strong>s anos 1990. Ohistoria<strong>do</strong>r inglês Leslie Bethell dizia, já em 1995, que se a Inglaterra tevealgum papel naquela guerra foi o de tentar evitá-la. Intelectuais <strong>do</strong> próprioParaguai convergiram em direção a essa linha de pensamento, como oescritor paraguaio Gui<strong>do</strong> Alcalá, que considerou Solano López umprecursor <strong>do</strong> totalitarismo moderno. Em 2002, o conflito ganhou um relato


ilhante, o livro Maldita Guerra, de Francisco Doratioto. Historia<strong>do</strong>r ediplomata <strong>brasil</strong>eiro que viveu três anos no Paraguai, Doratioto escavouarquivos e bibliotecas, relatórios estatísticos, cartas de diplomatas e generais.Com olhar científico e mais distante <strong>da</strong> discussão política, descobriu que oBrasil mal tinha noção <strong>do</strong> risco militar <strong>do</strong> país vizinho, tanto menos a ideiade destruí-lo. Revelou também que, se o presidente Solano López fossesensato, não declararia guerra ao Brasil ou teria se rendi<strong>do</strong> em 1865, nosprimeiros meses <strong>do</strong> conflito, em vez de prolongar o sofrimento <strong>do</strong>s seusci<strong>da</strong>dãos por seis anos. Para Doratioto, a historiografia anterior não sebaseava em fontes primárias, mas na opinião política <strong>do</strong>s autores, queacabou se voltan<strong>do</strong> contra eles próprios:Culpar a Grã-Bretanha pelo início <strong>do</strong> conflito satisfez, nas déca<strong>da</strong>sde 1960 a 1980, a distintos interesses políticos. Para alguns, tratava-se demostrar a possibili<strong>da</strong>de de construir na América Latina um modelo dedesenvolvimento econômico não dependente, apontan<strong>do</strong> como umprecedente o Esta<strong>do</strong> paraguaio <strong>do</strong>s López. Acabaram, porém, por negaressa possibili<strong>da</strong>de, na medi<strong>da</strong> em que apresentaram a potência central - aGrã-Bretanha - como onipotente, capaz de impor e dispor de paísesperiféricos, de mo<strong>do</strong> a destruir qualquer tentativa de não dependência.Como resulta<strong>do</strong>, o leitor desavisa<strong>do</strong>, ou os estu<strong>da</strong>ntes queaprenderam por essa cartilha, podem ter concluí<strong>do</strong> que a história <strong>do</strong> nossocontinente não se faz ou não se pode fazer aqui, pois os países centrais tu<strong>do</strong>decidem inapelavelmente. Os latino-americanos, nessa perspectiva, deixamde ser o sujeito de sua própria história, ou, de outro mo<strong>do</strong>, vêem nega<strong>do</strong> seupotencial de serem tais sujeitos.Mesmo antes <strong>da</strong> publicação de Maldita Guerra, os novos estu<strong>do</strong>sfaziam os historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s anos 1960 e 1970 admitirem que tinham


pega<strong>do</strong> pesa<strong>do</strong> demais. O historia<strong>do</strong>r León Pomer escreveu na Folha deSão Paulo:A guerra não foi promovi<strong>da</strong> pelo governo inglês, e eu,pessoalmente, não tenho provas de que os estadistas britânicos a tenhamdeseja<strong>do</strong> (fora <strong>do</strong> âmbito de seus sentimentos pessoais) como parte de umapolítica no Prata.A afirmação, vin<strong>da</strong> de um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>res <strong>da</strong> vitimologia <strong>da</strong> Guerra<strong>do</strong> Paraguai, é de 1997. Era de esperar que, a partir de então, as escolasficassem livres para novos retratos <strong>do</strong> conflito. Mas são poucos os livrosdidáticos que mostram o la<strong>do</strong> cruel <strong>do</strong> dita<strong>do</strong>r paraguaio. Grande partedeles continua implantan<strong>do</strong> os velhos chips de repetição de chavões <strong>da</strong>déca<strong>da</strong> de 1980. O livro História e Vi<strong>da</strong> em circulação em 2008 ain<strong>da</strong>repetia que ”o Paraguai dependia pouco de outros países para satisfazer suasnecessi<strong>da</strong>des básicas”. A apostila de 2007 <strong>do</strong> Objetivo, um <strong>do</strong>s maiorescolégios de São Paulo, desfia uma teoria obsoleta há mais uma déca<strong>da</strong>: ”AGuerra <strong>do</strong> Paraguai deve ser entendi<strong>da</strong> nos quadros <strong>do</strong> imperialismobritânico no século 19. O Paraguai surgia como o país mais desenvolvi<strong>do</strong> <strong>da</strong>América <strong>do</strong> Sul”.Eu fui um <strong>do</strong>s estu<strong>da</strong>ntes que aprenderam a tragédia paraguaia. Eraaluno de um colégio de freiras e considerava os professores de história egeografia meus heróis. Um deles era candi<strong>da</strong>to a deputa<strong>do</strong> estadual, o outroorganizava mutirões para construção de casas na periferia. As provas queeles passavam eram geralmente questionários - ganhava 10 quemrespondesse os lugares-comuns na linha política <strong>do</strong> professor ou <strong>do</strong> livrodidático que ele usava. Demorou para eu perceber que a história <strong>do</strong>genocídio no Paraguai fazia parte de um discurso político. Se aquelas listasde perguntas enfa<strong>do</strong>nhas e de conteú<strong>do</strong> velho ain<strong>da</strong> existem hoje em dia,


então é hora de uma vingança. Como numa sessão de terapia, vamos voltarao passa<strong>do</strong> e exorcizar o velho questionário <strong>da</strong> escola.QUESTIONÁRIORespon<strong>da</strong>, conforme o que foi estu<strong>da</strong><strong>do</strong> em sala, às perguntas de 1 a5.1. Também conheci<strong>da</strong> como Guerra <strong>da</strong> Tríplice Aliança, a Guerra<strong>do</strong> Paraguai foi o maior conflito <strong>da</strong> história <strong>da</strong> América <strong>do</strong> Sul. Que fatorescriaram esse conflito?COMO EU DEVO TER RESPONDIDOA Guerra <strong>do</strong> Paraguai teve início devi<strong>do</strong> ao imperialismo <strong>brasil</strong>eiroe à sua ânsia em <strong>do</strong>minar a América <strong>do</strong> Sul nos aspectos políticos eeconômicos. Em 1863, as forças arma<strong>da</strong>s <strong>brasil</strong>eiras, fortementeinfluencia<strong>da</strong>s pela poderosa elite agrária e pecuarista, invadiram o Uruguai.Independente havia poucas déca<strong>da</strong>s, o Uruguai vivia uma peleja entre duascorrentes políticas opostas, os blancos e os colora<strong>do</strong>s. O Brasil possuíafortíssimos interesses econômicos na região, por isso apoiou o golpe deEsta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s colora<strong>do</strong>s. Esse apoio desequilibrou o quadro de forças,provocan<strong>do</strong> a ira <strong>da</strong> nação paraguaia, que insistia para que o Brasilpermanecesse fora <strong>do</strong> conflito uruguaio. No Natal de 1864, o Paraguai nãoteve alternativa senão invadir o território <strong>brasil</strong>eiro pelo atual Mato Grosso<strong>do</strong> Sul.


COMO EU DEVERIA TER RESPONDIDONa<strong>da</strong> disso, professor. Essa história de fatores não cola. A Guerra<strong>do</strong> Paraguai aconteceu sobretu<strong>do</strong> porque havia naquele país um presidentevai<strong>do</strong>so, cruel, louco e equivoca<strong>do</strong>. No conflito entre blancos e colora<strong>do</strong>s noUruguai, o Paraguai era o menos envolvi<strong>do</strong>. Poderia ter fica<strong>do</strong> em pazquan<strong>do</strong> os <strong>brasil</strong>eiros invadiram o Uruguai. Mas o presidente Solano Lópezestava obceca<strong>do</strong> em entrar em guerra com o Brasil, um vizinho 22 vezesmais populoso. Imaginou que os paraguaios seriam os próximos a serinvadi<strong>do</strong>s pelos <strong>brasil</strong>eiros. Pura loucura, que só aconteceu porque oParaguai não tinha bons diplomatas, jornais priva<strong>do</strong>s e parti<strong>do</strong>s políticospara discutir ideias e moderar ações políticas.É ver<strong>da</strong>de que, no início, brigar contra o Brasil não parecia tãoinsano. Nos primeiros meses de conflito, os paraguaios contavam com ofator surpresa. A guerra começou em novembro de 1864, quan<strong>do</strong> oParaguai confiscou o Marquês de Olin<strong>da</strong>, um navio <strong>brasil</strong>eiro que passavatranquilamente por Assunção para levar um novo governa<strong>do</strong>r ao MatoGrosso. Depois, perto <strong>do</strong> Natal <strong>da</strong>quele ano, 7.700 sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s paraguaios,mil deles a cavalo, invadiram o pantanal <strong>brasil</strong>eiro. Ganharam fácil osprimeiros ataques, já que surpreenderam um exército desprotegi<strong>do</strong>. Quaseto<strong>da</strong> a região Centro-Oeste <strong>do</strong> Brasil era vigia<strong>da</strong> por só 875 militares. Emapenas <strong>do</strong>is dias, os paraguaios ocuparam o Forte de Coimbra, ao sul deCorumbá, e seguiram avançan<strong>do</strong>. A força deles era tanta que o coronelresponsável pela segurança de Corumbá, chama<strong>do</strong> Carlos Augusto deOliveira, man<strong>do</strong>u os mora<strong>do</strong>res fugirem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. O próprio coroneldeban<strong>do</strong>u, subin<strong>do</strong> o rio Paraguai no barco Anhambaí superlota<strong>do</strong>. Osparaguaios foram atrás e alcançaram o vapor <strong>brasil</strong>eiro uma semana depois.


O coronel Oliveira se salvou porque já tinha salta<strong>do</strong> e parti<strong>do</strong> para Cuiabá,onde foi demiti<strong>do</strong> pelo governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mato Grosso. Os marinheiros nãotiveram tanta sorte. ”Poucos marinheiros <strong>brasil</strong>eiros escaparam com vi<strong>da</strong>;foram mortos com espa<strong>da</strong>s e machadinhas aqueles que ficaram a bor<strong>do</strong> e atiros os que tentaram escapar a na<strong>do</strong>”, conta o historia<strong>do</strong>r FranciscoDoratioto.Só com a ofensiva no Pantanal o Brasil se deu conta que o Paraguaiqueria mesmo entrar em guerra. O inimigo tinha um exército com 77 milhomens, contra 18 mil militares <strong>brasil</strong>eiros. O Brasil estava tãodesprotegi<strong>do</strong> que demorou cinco meses para iniciar uma reação. A primeiradificul<strong>da</strong>de foi reunir homens para lutar. Trabalhar nas forças arma<strong>da</strong>s eraconsidera<strong>do</strong> um castigo. Os quartéis eram conheci<strong>do</strong>s por abrigarmiseráveis que não tinham opção senão se alistar no exército. Por isso, pararebater a ofensiva <strong>do</strong>s paraguaios, o Brasil teve que reinventar seu exército,aumentan<strong>do</strong> os salários e crian<strong>do</strong> uma campanha nacional de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>svoluntários, os Voluntários <strong>da</strong> Pátria. Os primeiros sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, vin<strong>do</strong>s de SãoPaulo, Paraná, Goiás e Minas Gerais, reuniram-se em Uberaba em julho de1865, oito meses depois de o Paraguai declarar guerra. Essa marcha,retrata<strong>da</strong> no livro A Retira<strong>da</strong> de Laguna, <strong>do</strong> visconde de Taunay, contoucom menos de 2 mil homens. Eles viajaram até o Pantanal a pé, compouquíssima comi<strong>da</strong>, marchan<strong>do</strong> sob tempestades e enfrentan<strong>do</strong> epidemiasde cólera e varíola. Um terço <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s morreu no caminho, antes dechegar à guerra.A situação <strong>brasil</strong>eira melhorou por causa <strong>da</strong>s trapalha<strong>da</strong>s e <strong>do</strong>complexo de superiori<strong>da</strong>de <strong>do</strong> presidente Solano López. O paraguaio achouque poderia derrotar o Brasil sem antes fechar um acor<strong>do</strong> com a Argentina.Para empreender outra invasão, desta vez ao Rio Grande <strong>do</strong> Sul, as tropas


paraguaias tiveram que cruzar províncias <strong>do</strong> norte argentino. Entre oParaguai e o Rio Grande <strong>do</strong> Sul, havia as províncias de Missiones eCorrientes. Pouco antes de invadir a Argentina, Solano López pediuautorização para que suas tropas cortassem o território de Corrientes,apenas para chegar ao Rio Grande <strong>do</strong> Sul. Recebeu um não. Os argentinos,um pouco mais sensatos, tinham me<strong>do</strong> de que o Brasil os enxergasse comoinimigos. Solano López decidiu, então, declarar guerra ao segun<strong>do</strong> maiorpaís <strong>da</strong> América <strong>do</strong> Sul.Talvez ele pensasse em brigar com a Argentina desde antes decomeçar a guerra. Um <strong>do</strong>s sonhos de Solano López era criar o GrandeParaguai, cujo território agregaria, ao norte, o Mato Grosso; ao sul, oextremo norte argentino, o Rio Grande <strong>do</strong> Sul e o Uruguai. As provínciasde Corrientes e Missiones também poderiam apoiar os paraguaios sozinhas,já que pensavam em se separar de Buenos Aires. A estratégia de SolanoLópez não deu certo. Contribuiu para isso o fato de que os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>sparaguaios, quan<strong>do</strong> invadiram a ci<strong>da</strong>de de Corrientes, não conse<strong>guia</strong>mdeixar de saquear as casas <strong>do</strong>s argentinos. Depararam com tecnologias eprodutos para eles raros, como pianos, pratos de porcelana, punhais,chapéus e artigos de couro. Os saques deixaram os argentinos ain<strong>da</strong> maiscontraria<strong>do</strong>s e propensos a apoiar os <strong>brasil</strong>eiros. Em maio de 1865, aArgentina e o Uruguai apoiaram o Brasil oficialmente, forman<strong>do</strong> a TrípliceAliança.Foi um apoio e tanto. Os argentinos controlavam a navegação nabacia <strong>do</strong> Prata, por onde armas, ferramentas e até comi<strong>da</strong> importa<strong>da</strong>chegavam ao Paraguai. Com permissão para passar por ali com navios deguerra, os <strong>brasil</strong>eiros puderam avançar até o Paraguai por via fluvial. Emjunho de 1865, nove navios <strong>brasil</strong>eiros subiam o rio Paraná quan<strong>do</strong>


depararam com uma embosca<strong>da</strong>. Os paraguaios esperavam a esquadra <strong>do</strong>Brasil com oito navios e, em cima de barrancos nas margens <strong>do</strong> rio Paraná,6 mil sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s arma<strong>do</strong>s com fuzis. Apesar de tanta força e de contar com asurpresa, o Paraguai acabou se atrapalhan<strong>do</strong> no esquema tático e perden<strong>do</strong>a batalha. Depois desse episódio, que ficou conheci<strong>do</strong> como a BatalhaNaval <strong>do</strong> Riachuelo, o país ficou isola<strong>do</strong>. Sem saí<strong>da</strong> para o oceano, SolanoLópez não podia mais receber armas europeias. Meses antes, quan<strong>do</strong>decidiu começar a guerra, aguar<strong>da</strong>va uma encomen<strong>da</strong> europeia de canhõesde quatro encouraça<strong>do</strong>s (navios com o casco de madeira protegi<strong>do</strong> porchapas metálicas). Como o conflito interrompeu a navegação pelo mar, acompra não pôde ser entregue: os barcos acabaram sen<strong>do</strong> usa<strong>do</strong>s peloBrasil.Três meses depois <strong>da</strong> Batalha <strong>do</strong> Riachuelo, houve mais umagrande derrota paraguaia. Com a presença <strong>do</strong> presidente argentino,Bartolomé Mitre, e <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>m Pedro Segun<strong>do</strong>, 17 mil sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<strong>brasil</strong>eiros, uruguaios e argentinos libertaram a ci<strong>da</strong>de gaúcha deUruguaiana. Menos de um ano depois <strong>do</strong> começo <strong>da</strong> guerra, o Paraguai maltinha si<strong>do</strong> ataca<strong>do</strong> em seu território, mas era difícil pensar que poderiavencer. No fim de 1865, mais de 50 mil paraguaios estavam mortos, contra20 mil vítimas <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s alia<strong>do</strong>s. Em vez de se render e preservar apopulação, o presidente Solano López passou cinco anos teiman<strong>do</strong> quevenceria os três países que o cercavam. Começar uma guerra dessas econtinuar nela não foi resulta<strong>do</strong> de fatores – foi autossabotagem de umpresidente louco.


2. Fale sobre a revolução que acontecia no Paraguai antes de eleentrar em guerra.COMO EU DEVO TER RESPONDIDOO Paraguai passava por uma fase de forte desenvolvimento social eeconômico. Lidera<strong>do</strong> por Solano López, o país nacionalizou terras delatifundiários poderosos, que exploravam os menos favoreci<strong>do</strong>s, eimpulsionou a indústria manufatureira. O país também enviava jovens paraestu<strong>da</strong>r no exterior, o que era fun<strong>da</strong>mental para se desenvolver sem precisar<strong>da</strong> aju<strong>da</strong> <strong>da</strong>s grandes potências econômicas. O sentimento de união e ovisível progresso assustaram os vizinhos Brasil e a Argentina, assim como aGrã-Bretanha, maior potência econômica <strong>da</strong> época, empenha<strong>da</strong> emestender seu <strong>do</strong>mínio de âmbito capitalista.COMO EU DEVERIA TER RESPONDIDONão é bem assim, professor. Antes de o Paraguai entrar em guerra,havia pouca coisa acontecen<strong>do</strong> por lá. O país era rural, atrasa<strong>do</strong>, opressor eburocrático. To<strong>do</strong> o dinheiro vinha <strong>da</strong> exportação de erva-mate, tabaco emadeira. Quase to<strong>da</strong>s as terras- cerca de 90% - pertenciam à família de Solano López. Quem quisesseentrar no negócio de erva-mate tinha que ser amigo <strong>do</strong> presidente ou sesubmeter a um trabalho bem pareci<strong>do</strong> com a escravidão. Os camponesesvendiam uma arroba (cerca de 14,7 quilogramas) de erva-mate por umcentavo de libra inglesa. E os figurões que tinham permissão para exploraras terras revendiam o produto por 25 libras. Não havia plantações extensas,


fábricas de fun<strong>do</strong> de quintal ou consumi<strong>do</strong>res. Os empresários tinham si<strong>do</strong>expulsos, em 1820, pelo dita<strong>do</strong>r José Gaspar Francia, que temia ser depostopor uma conspiração. Ten<strong>do</strong> sua força criativa expulsa, o país era um <strong>do</strong>smais dependentes <strong>do</strong>s estrangeiros. Cerca de 75% <strong>do</strong>s produtosindustrializa<strong>do</strong>s, coisas simples como um rolo de teci<strong>do</strong>, talheres e potes devidro, tinham que vir <strong>da</strong> Europa, por meio de casas comerciais inglesasestabeleci<strong>da</strong>s em Assunção e Buenos Aires. Sem a aju<strong>da</strong> <strong>do</strong>s ingleses, osparaguaios mal conse<strong>guia</strong>m fazer uma conserva. Uma guerra, muito menos.A indústria paraguaia era pequena e existia pouco dinheiro em circulação. Aexportação era nanica - em 1864 foi de 560 mil libras, seis vezes menor quea <strong>do</strong> Uruguai, que tinha a metade <strong>da</strong> população.Também não acontecia na<strong>da</strong> na política. O presidente SolanoLópez era um dita<strong>do</strong>r que assustava seus ci<strong>da</strong>dãos. O país só tinha umjornal, controla<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>. Até os padres eram espiona<strong>do</strong>s pelogoverno. Durante a guerra, o regime totalitário proibia as mulheres dechorar em público. Eram obriga<strong>da</strong>s a participar de bailes para festejarbatalhas mesmo quan<strong>do</strong> parentes morriam no campo ou quan<strong>do</strong> o paíshavia si<strong>do</strong> derrota<strong>do</strong>. Um país como esse assustava quem vivia nele. Para osvizinhos, <strong>da</strong>va pena.


3. Quem foi o herói paraguaio Solano López?COMO EU DEVO TER RESPONDIDOFrancisco Solano López assumiu o país em 1862, depois de mortede seu pai, Carlos López. Defendeu bravamente seu país <strong>da</strong> ganância <strong>do</strong>svizinhos que pretendiam destruir o Paraguai, uma potência emergente.Solano López morreu em 1870, cruelmente assassina<strong>do</strong> pelo exército<strong>brasil</strong>eiro.COMO EU DEVERIA TER RESPONDIDOSolano López não foi herói. Ou melhor: foi um herói falsifica<strong>do</strong>,<strong>da</strong>n<strong>do</strong> início à tradição comercial <strong>do</strong> nosso vizinho. Para virar presidente,tomou o cargo <strong>do</strong> irmão, Angel Benigno López. Apesar de se tratar de umaRepública, o presidente <strong>do</strong> Paraguai tinha um cargo vitalício e hereditário.Carlos López, presidente até 1862, tinha o direito de indicar o próximopresidente. Pouco antes de morrer, ele escreveu um testamento indican<strong>do</strong> osucessor. Escolheu, entre os cinco filhos, aquele que considerava maisprepara<strong>do</strong> para o cargo: Angel Benigno, que tinha estu<strong>da</strong><strong>do</strong> na Escola <strong>da</strong>Marinha <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Solano, quan<strong>do</strong> soube <strong>da</strong> escolha, ficou <strong>do</strong>i<strong>do</strong>de raiva. Correu para o leito de morte <strong>do</strong> pai e fez o velhinho mu<strong>da</strong>r deideia. Carlos López acabou alteran<strong>do</strong> o testamento na última hora. Seisanos depois, com a guerra perdi<strong>da</strong> e obceca<strong>do</strong> por supostas conspiraçõescontra seu governo, Solano man<strong>do</strong>u matar o próprio irmão.Tem mais pirataria nessa história. Quan<strong>do</strong> a guerra acabou, em1870, os paraguaios que sobraram odiavam o homem. Solano López era


visto como um tirano que levara o país à desgraça. Foi declara<strong>do</strong> trai<strong>do</strong>r <strong>da</strong>pátria, suas terras foram confisca<strong>da</strong>s, e sua mulher, a prostituta irlandesaElisa Lynch, man<strong>da</strong><strong>da</strong> de volta para a Europa. Diz o escritor Gui<strong>do</strong> Alcalá:Os testemunhos <strong>da</strong> época, escritos por paraguaios que tinhampertenci<strong>do</strong> aos círculos <strong>do</strong> governo [...], incriminam López. Seus autorestentam se justificar, negan<strong>do</strong> responsabili<strong>da</strong>de pessoal nas atroci<strong>da</strong>des <strong>do</strong>dita<strong>do</strong>r (execuções em massa, campos de concentração etc.).Só no começo <strong>do</strong> século 20, quan<strong>do</strong> o sofrimento <strong>da</strong> guerra foiesqueci<strong>do</strong>, o monstro ganhou contornos de herói. O primeiro a enaltecê-lofoi o escritor Juan O’Leary, com o livro História de la Guerra de la TripleAlianza, de 1911. Soube-se depois que esse O’Leary recebia um apoiofinanceiro de Enrique Venâncio Solano López, ninguém menos que o filhomais velho <strong>do</strong> tirano paraguaio. O descendente <strong>do</strong>s López queria melhorara imagem <strong>do</strong> avô para reaver as terras que tinham si<strong>do</strong> confisca<strong>da</strong>s logoapós o fim de guerra. Apesar <strong>da</strong> descoberta dessa provável fraude, ametamorfose de Solano López se completou nas déca<strong>da</strong>s seguintes. Suanova imagem foi oficializa<strong>da</strong> em 1936, com a presidência <strong>do</strong> coronel RafaelFranco, uma espécie de dita<strong>do</strong>r fascista. ”Uma de suas primeiras medi<strong>da</strong>sfoi ditar um decreto para absolver retroativamente o marechal López <strong>da</strong>sacusações que lhe tinham si<strong>do</strong> feitas por seus contemporâneos no séculopassa<strong>do</strong>”, escreveu Gui<strong>do</strong> Alcalá. ”Também terminou a construção <strong>do</strong>Panteão Nacional <strong>do</strong>s Heróis, para trasla<strong>da</strong>r ao monumento as cinzas <strong>do</strong>marechal, milagrosamente resgata<strong>da</strong>s de um túmulo anônimo 66 anosdepois”.A reverência ao desastra<strong>do</strong> presidente continuou nas ditadurasseguintes. O general Alfre<strong>do</strong> Stroessner, líder <strong>do</strong> pais entre 1954 e 1989,gostava que o comparassem a Solano López e prendeu os estudiosos que


criticavam o antigo presidente Stroessner chegou a exumar o corpo de ElisaLynch, a mulher de Solano López, em Paris, para enterrá-la com honras emsolo paraguaio. A partir <strong>do</strong>s anos 1960, o exemplo feu<strong>da</strong>l e isola<strong>do</strong> <strong>do</strong>Paraguai foi considera<strong>do</strong> anticapitalista e caiu no gosto <strong>do</strong>s intelectuaisinfluencia<strong>do</strong>s pelo marxismo. Aconteceu assim uma bizarra uniãoideológica. Dentro <strong>do</strong> país, Solano López passou a ser cultua<strong>do</strong> por típicosmilitares sul-americanos; fora <strong>da</strong>s fronteiras paraguaias, era louva<strong>do</strong> porhistoria<strong>do</strong>res de esquer<strong>da</strong> argentinos, <strong>brasil</strong>eiros e até britânicos. Em 1975,no livro A Era <strong>do</strong> Capital, Eric Hobsbawm espalhou a ideia de que”Argentina, Uruguai e Brasil, com seus rostos e suas economias volta<strong>do</strong>spara o Atlântico, forçaram o Paraguai a sair <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de autossuficiência”.Apesar de esses dita<strong>do</strong>res e acadêmicos considerarem Solano Lópezum herói, ele agia como um general desprepara<strong>do</strong>. Como era comum noséculo 19, pensava mais no heroísmo e na honra <strong>do</strong> combate que naeficiência <strong>do</strong>s ataques. Os generais tinham me<strong>do</strong> de contrariar suasdecisões, mesmo quan<strong>do</strong> não havia coerência estratégica, e tambémsuavizavam a notícia de derrotas que tinham sofri<strong>do</strong>. O dita<strong>do</strong>r sacrificouassim tropas inteiras, jogan<strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s indefesos contra os <strong>brasil</strong>eiros eargentinos. ”São vários os relatos de combatentes alia<strong>do</strong>s quanto à magrezae quase nudez <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s guaranis”, escreveu Doratioto. O pior traço <strong>do</strong>presidente paraguaio foi a vai<strong>da</strong>de. Dono de uma espa<strong>da</strong> incrusta<strong>da</strong> dediamantes, que man<strong>do</strong>u comprar na mesma empresa que fornecia jóias aosreis <strong>da</strong> França, Solano recusava a rendição mesmo diante de milhares deparaguaios esfomea<strong>do</strong>s. Depois de cinco anos fugin<strong>do</strong> <strong>da</strong>s tropas alia<strong>da</strong>s, elefoi captura<strong>do</strong> na Batalha de Cerro Corá, em 1870. Foi fácil para as tropas<strong>brasil</strong>eiras reconhecê-lo. Solano López era o único gor<strong>do</strong> que havia no país.


<strong>do</strong> Paraguai.4. Fale sobre o papel <strong>da</strong> Inglaterra na articulação <strong>da</strong> GuerraCOMO EU DEVO TER RESPONDIDOA Inglaterra, maior potência imperialista <strong>do</strong> século 19, jogou oBrasil e a Argentina contra o Paraguai, uma potência emergente quepoderia abalar o poderio inglês na região. A guerra deixou a Inglaterra livre<strong>do</strong> inimigo em potencial e fez o Brasil se endivi<strong>da</strong>r, já que o país emprestoulargas somas <strong>do</strong>s ingleses.COMO EU DEVERIA TER RESPONDIDOAconteceu o contrário, professor. Se houve alguém que tentoupacificar os paraguaios logo antes <strong>do</strong> conflito, foi o Império Britânico. Atese de que os ingleses eram vilões obceca<strong>do</strong>s em fazer os sul-americanos sedestruírem não tem provas nem coerência. Já a versão de que a Inglaterratentou evitar a guerra está <strong>do</strong>cumenta<strong>da</strong> e faz senti<strong>do</strong>. Em 7 de dezembrode 1864 (logo depois de o Paraguai apreender o vapor Marquês de Olin<strong>da</strong> eantes de invadir o Mato Grosso), o representante britânico na Argentina,Edward Thornton, escreveu ao governo paraguaio. Em tom de súplica,insistiu para que ele não começasse uma guerra:Vossa Excelência sabe que a Inglaterra também está em atritos como Brasil, de mo<strong>do</strong> que tanto por esse motivo, como pela falta de instruçõesde meu governo, não poderia fazer na<strong>da</strong> de oficial com seu governo; masparticularmente sim, se puder servir, no mínimo que seja, para contribuir


para a reconciliação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is países, espero que Vossa Excelência não hesiteem me utilizar.É possível explicar a preocupação inglesa em evitar a guerra atémesmo pelos interesses econômicos. As empresas inglesas eram as que maisinvestiam em projetos de infraestrutura no Paraguai, Brasil e Argentina.Engenheiros e operários ingleses vieram para a América <strong>do</strong> Sul trabalharem companhias de gás e principalmente em estra<strong>da</strong>s de ferro. Em 1870,72% de to<strong>da</strong>s as ferrovias <strong>brasil</strong>eiras pertenciam a quatro empresas inglesas.No Paraguai, cerca de duzentos ingleses, além de suas famílias, trabalhavamem projetos de instalação de telégrafo, casas de fundição e ferrovias. Emcaso de guerra, o risco de perder o dinheiro investi<strong>do</strong> nessas obras ia àsalturas.O Brasil, atola<strong>do</strong> em empréstimos, foi mesmo a ruína com a guerra.O dinheiro gasto no conflito foi onze vezes maior que o orçamento para umano inteiro de administração pública. Essa gastança impediria, vinte anosdepois, que <strong>do</strong>m Pedro Segun<strong>do</strong> indenizasse os <strong>do</strong>nos de escravos comoeles gostariam, o que abalaria a monarquia. Mas o dinheiro empresta<strong>do</strong> nãoveio de Londres. Os principais cre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Império eram bancos <strong>brasil</strong>eiros.Dos 614 mil contos de réis gastos na guerra, 349 mil contos vieram deempréstimos e <strong>da</strong> emissão de títulos públicos. Apenas 8% eram deempréstimos externos. Quem lucrou com a Guerra <strong>do</strong> Paraguai foi aArgentina. No século 19, o país vendia a carne e o couro <strong>do</strong> melhor ga<strong>do</strong> <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, e suas terras planas e férteis eram excelentes para a plantação detrigo. Grande parte <strong>da</strong> fortuna <strong>brasil</strong>eira gasta na guerra foi parar nas mãos<strong>do</strong>s fazendeiros argentinos que forneceram cavalos, carvão para os navios ecarne para as tropas. Impulsiona<strong>da</strong> pela guerra, a riqueza desses fazendeirostinha notorie<strong>da</strong>de mundial.


Tão Cruel quanto o dita<strong>do</strong>r Solano López foi a sua mulher, aprostituta irlandesa Elisa Lynch, os <strong>do</strong>is se conheceram durante a visita <strong>do</strong>paraguaio a um bordel de luxo de Paris. Apaixona<strong>do</strong>, ele resolveu fazer delasua primeira-<strong>da</strong>ma. No Paraguai, Elisa tratou de abusar <strong>do</strong> poder.


ELISA, A CRUEL PRIMEIRA-DAMASegun<strong>do</strong> o escritor Nigel Cawthorne, Elisa Lynch pedia a Solanopara degolar seus desafetos, insistia na continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> guerra e sugeriu queo país passasse por um processo de eugenia, exterminan<strong>do</strong> meninas recémnasci<strong>da</strong>s”para substituir a população feminina <strong>do</strong> Paraguai por meninastrazi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Escócia”. Elisa ordenava que tu<strong>do</strong> de luxuoso saquea<strong>do</strong> nospaíses vizinhos ficassesob seu poder. Há relatos que, de tão impressionantes, pareceminacreditáveis. Conta-se que a primeira-<strong>da</strong>ma saía pelas ruas de Assunçãoatiran<strong>do</strong> moe<strong>da</strong>s aos pobres: aqueles que as deixavam cair eram açoita<strong>do</strong>s.Depois <strong>da</strong> guerra, os sobreviventes expulsaram a cortesã <strong>do</strong> país. ElisaLynch voltou a Paris e morreu miserável, em 1886.Já os ingleses, se tinham algum interesse na América <strong>do</strong> Sul, era emrelação a Buenos Aires. Naquela época, o <strong>do</strong>mínio inglês se estendia pelomun<strong>do</strong>. Em 1805, na Batalha de Trafalgar, a arma<strong>da</strong> <strong>do</strong> coman<strong>da</strong>nteNelson derrotou os navios de Napoleão, abrin<strong>do</strong> o século em que osoceanos seriam ingleses. Com a melhor frota de navios de guerra e mais <strong>da</strong>metade <strong>da</strong>s embarcações comerciais <strong>do</strong> planeta, a Inglaterra <strong>do</strong>minariaterras de to<strong>do</strong>s os extremos <strong>da</strong> Terra: Canadá, Índia, Irã, Austrália, além deum corre<strong>do</strong>r africano que ligava o Egito à África <strong>do</strong> Sul, por meio <strong>do</strong> Sudãoe <strong>do</strong> Quênia. Em junho de 1806 e fevereiro de 1807, navios bombardearamBuenos Aires, na tentativa de tornar a região parte <strong>do</strong> Império Britânico.No entanto, o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s ingleses durou apenas sete semanas. Em agosto


<strong>da</strong>quele ano, os argentinos conseguiram expulsá-los, e fizeram o mesmo noano seguinte, quan<strong>do</strong> houve uma nova invasão.Depois dessas derrotas, os ingleses tomaram consciência de que asrelações com os países sul-americanos seriam basea<strong>da</strong>s no comércio, e nãono <strong>do</strong>mínio político. Talvez como resulta<strong>do</strong> disso, a América <strong>do</strong> Sul foi aúnica região <strong>do</strong> planeta onde não havia territórios britânicos consideráveis.Poucos anos antes <strong>da</strong> Guerra <strong>do</strong> Paraguai, os representantes ingleses poraqui eram instruí<strong>do</strong>s a não se meter em assuntos internos. Quan<strong>do</strong> oconflito estourou,navios de guerra ingleses entraram três vezes no Paraguai para resgatarci<strong>da</strong>dãos britânicos. Fizeram isso sem disparar nenhum tiro de canhão. Dizo historia<strong>do</strong>r Leslie Bethell:Se de fato a Grã-Bretanha tivesse si<strong>do</strong> a maior força por detrás <strong>da</strong>guerra <strong>da</strong> Tríplice Aliança contra o Paraguai, ela estaria a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> política ecomportamento totalmente incompatíveis com as políticas e oscomportamentos que regiam as suas relações com a América Latina comoum to<strong>do</strong>, naquela época.No caso <strong>do</strong> Paraguai, os objetivos ingleses eram muito menores.Quem conhecia o país o considerava um lugar pobre, distante e isola<strong>do</strong>.”Um maior desenvolvimento <strong>da</strong>s relações econômicas com o Paraguaisimplesmente não constituía priori<strong>da</strong>de para o governo britânico ou para osindustriais e comerciantes ingleses”, escreveu Bethell. Na ver<strong>da</strong>de, poucosci<strong>da</strong>dãos ou políticos <strong>da</strong> Inglaterra sabiam o que era o Paraguai. Foi issoque percebeu o viajante e diplomata Richard Burton, que presenciou aguerra e escreveu Cartas <strong>do</strong>s Campos de Batalha <strong>do</strong> Paraguai, um <strong>do</strong>sprincipais relatos sobre o conflito. De volta à Europa, Burton ficouespanta<strong>do</strong> ao perceber que seus compatriotas exibiam ”rostos absolutamente


inexpressivos ao ouvirem mencionar a palavra Paraguai”. Um século depois,esses ingleses indiferentes seriam considera<strong>do</strong>s culpa<strong>do</strong>s pela tragédiaparaguaia.


5. Fale sobre o genocídio cometi<strong>do</strong> pelo Brasil contra opovo paraguaio.COMO EU DEVO TER RESPONDIDOO Brasil praticou atroci<strong>da</strong>des contra os paraguaios. Ao fim <strong>da</strong>guerra, 70% <strong>da</strong> população havia morri<strong>do</strong> – 90% <strong>do</strong>s homens paraguaiosforam vítimas <strong>do</strong> combate. Foi um ver<strong>da</strong>deiro genocídio. Da população demais de 800 mil pessoas, sobraram menos de 200 mil, <strong>da</strong>s quais apenas 14mil homens. Os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>brasil</strong>eiros se acostumaram a matar criançasfamintas e mulheres em farrapos.COMO EU DEVERIA TER RESPONDIDONão houve genocídio algum. Não se pode calcular a porcentagemde paraguaios mortos, porque ninguém sabe quantos paraguaios existiamantes <strong>da</strong> guerra. O censo paraguaio não era confiável. Em 1846, contou 250mil habitantes. Onze anos depois, teria passa<strong>do</strong> para 1,337 milhão. Umcrescimento assim não aconteceu nem na explosão populacional <strong>do</strong> século20. A historia<strong>do</strong>ra Americana Vera Blinn Reber fez, em 1988, um estu<strong>do</strong>detalha<strong>do</strong> sobre a estimativa <strong>da</strong> população paraguaia usan<strong>do</strong> taxasdemográficas <strong>da</strong> época para calcular a população. Segun<strong>do</strong> ela, osparaguaios não passavam de 318 mil pouco antes <strong>da</strong> guerra. E as per<strong>da</strong>shumanas durante o conflito seriam de 8,7% <strong>da</strong> população. No máximo,18%, chutan<strong>do</strong> para cima.Mesmo se o fantástico número de 70% de mortes fosse real, não<strong>da</strong>ria para culpar o Brasil por essa tragédia. Calcula-se que de um terço a


<strong>do</strong>is terços <strong>da</strong>s mortes, entre alia<strong>do</strong>s e paraguaios, aconteceu por <strong>do</strong>enças,como cólera, varíola e diarréia, ou simplesmente por fome e frio. Se houveum responsável por essas mortes, foi o dita<strong>do</strong>r paraguaio Solano López, quecomeçou a guerra e insistiu no seu prolongamento. Durante aqueles cincoanos, batalhas eram um evento raro. O cenário mais comum <strong>da</strong> guerra eramos acampamentos sujos, pobres e apinha<strong>do</strong>s de vende<strong>do</strong>res de cachaça,prostitutas e até familiares <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Não havia água potável e a comi<strong>da</strong>consistia quase sempre em carne com farinha mofa<strong>da</strong> e cheia de moscas.Em 1867, 4 mil sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>brasil</strong>eiros morreram de cólera. No Paraguai,eram cerca de 50 mortes por dia — em 1867 a <strong>do</strong>ença pegou até mesmo opresidente Solano López, que, paranóico, acusou seus médicos de o teremenvenena<strong>do</strong>.No caso <strong>da</strong>s famílias paraguaias, a falta de comi<strong>da</strong> era o maiorproblema. A mobilização militar <strong>do</strong> presidente Solano López foi tão forteque o país ficou sem gente para plantar alimentos e abastecer a população.Nos últimos meses de guerra, mulheres e crianças famintas e em farraposabor<strong>da</strong>vam os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s alia<strong>do</strong>s. Conforme o relato <strong>do</strong> cadete DionísioCerqueira, que participou <strong>do</strong> conflito e depois escreveu o livroReminiscências <strong>da</strong> Campanha <strong>do</strong> Paraguai, tratava-se de ”criancinhasesqueléticas sugan<strong>do</strong> os seios murchos <strong>da</strong>s mães agonizantes”, além de”meninos nus, amarelos, barrigu<strong>do</strong>s, com as costelinhas à mostra, olhan<strong>do</strong>nosespanta<strong>do</strong>s”. Ao se render às tropas alia<strong>da</strong>s, as mulheres e as criançasficavam entregues tanto à violência quanto à soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<strong>brasil</strong>eiros. Ocorreram estupros e assassinatos de paraguaias indefesas, assimcomo casos de aju<strong>da</strong> humanitária e até casamentos. Muitas paraguaiasacabavam viran<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> dia a dia <strong>do</strong>s acampamentos, com as <strong>brasil</strong>eirasque acompanhavam os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e voluntários. De acor<strong>do</strong> com um


<strong>do</strong>cumento de 1870, o último ano <strong>da</strong> guerra, havia no quartel de Humaitá,perto <strong>da</strong> fronteira argentina, ”quatro oficiais e 159 praças, bem como 14praças presos e 48 mulheres, sen<strong>do</strong> 28 paraguaias”. O historia<strong>do</strong>r gaúchoFernan<strong>do</strong> Ortolan descobriu certidões de mais de trezentos casamentos desol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>brasil</strong>eiros com paraguaias logo que a guerra acabou.Até a Primeira Guerra Mundial, era comum o país derrota<strong>do</strong> pagarindenizações de guerra aos vence<strong>do</strong>res. Foi assim no fim <strong>da</strong> Guerra Franco-Prussiana, em 1871. A França, derrota<strong>da</strong>, teve que pagar 5 bilhões defrancos à Prússia, cujas tropas permaneceram em terras francesas até 1873,quan<strong>do</strong> a conta foi paga. Cinco déca<strong>da</strong>s depois, foi a vez de a Alemanhapagar 132 bilhões de marcos aos seus vizinhos. Nenhum país per<strong>do</strong>ou adívi<strong>da</strong> e mesmo assim ninguém culpa a França ou a Inglaterra por teremcometi<strong>do</strong> um genocídio europeu. Já o Brasil, que gastou na guerra 614 milcontos de réis, o equivalente a onze anos de orçamento federal, usou comobase de cálculo para indenização o valor de 460 mil contos. Nenhuma partedesse dinheiro foi paga. A dívi<strong>da</strong> acabou oficialmente per<strong>do</strong>a<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong>de 1930, pelo presidente Getúlio Vargas. O Brasil, na ver<strong>da</strong>de, foibonzinho com o Paraguai.


ALEIJADINHO É LITERATURAUm personagem comum entre os artistas <strong>do</strong> romantismo é o belohorrível.Trata-se de uma figura horren<strong>da</strong>, defeituosa e atormenta<strong>da</strong> que écapaz de praticar as ações mais encanta<strong>do</strong>ras. Uma história bastanteconheci<strong>da</strong> com esse tipo de personagem é A Bela e a Fera, conto bempopular na França já no século 18. A jovem Bela, filha humilde e gentil deum comerciante, toca o coração <strong>da</strong> Fera, um ser assusta<strong>do</strong>r que aos poucosse revela um homem bom. A mesma figura está no romance Frankensteinou o Moderno Prometeu, escrito em 1818 pela inglesa Mary Shelley, queconta o estranho caso <strong>do</strong> monstro cria<strong>do</strong> pelo jovem cientista VictorFrankenstein. Apesar de a to<strong>da</strong> hora ser agredi<strong>do</strong> pelas pessoas comuns porcausa de sua aparência monstruosa, o homem artificial consegue se instruire aprender o comportamento moral. Pensa até mesmo em se matar para seredimir de seus crimes e deixar os humanos em paz. Um terceiro exemplo,talvez o melhor de to<strong>do</strong>s, foi cria<strong>do</strong> em 1831 por Victor Hugo: Quasímo<strong>do</strong>,o corcun<strong>da</strong> de rosto deforma<strong>do</strong> <strong>do</strong> romance Notre-Dame de Paris.A<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> criança por um cardeal, Quasímo<strong>do</strong> cui<strong>da</strong> <strong>do</strong>ssinos na torre <strong>da</strong> Catedral de Notre-Dame. Raramente sai de lá, pois suafeiura espanta e provoca o desprezo <strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos. No desenrolar <strong>do</strong> livro,enquanto as pessoas comuns e decentes cometem atos monstruosos, omonstro <strong>da</strong> história cultiva um amor genuíno à jovem cigana Esmeral<strong>da</strong>.Quasímo<strong>do</strong>, a Fera e o monstro <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Frankensteinexemplificam a ideia romântica de que a beleza teria uma raiz poucoracional. Dependen<strong>do</strong> <strong>da</strong> intuição e <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de de seu cria<strong>do</strong>r, osublime poderia nascer <strong>do</strong> repugnante.


Em 1858, Rodrigo Ferreira Bretas, um jurista, deputa<strong>do</strong> estadual ediretor de ensino de Ouro Preto, resolveu escrever a biografia de AntônioFrancisco Lisboa, um <strong>do</strong>s tantos artesãos que construíram os a<strong>do</strong>rnos e asigrejas durante a corri<strong>da</strong> <strong>do</strong> ouro de Minas Gerais. O escultor haviamorri<strong>do</strong> quase cinco déca<strong>da</strong>s antes e era um mistério. Corria a len<strong>da</strong>popular de que ele tinha uma ou as duas mãos paralisa<strong>da</strong>s por alguma<strong>do</strong>ença, o que viajantes estrangeiros que estiveram em Minas incluíram emseus relatos. Mas nenhum <strong>do</strong>cumento <strong>da</strong> época ou texto mais confiávelcertificava a história ou <strong>da</strong>va detalhes. Apesar <strong>da</strong> escassez de fontes, ointelectual mineiro não se conteve. Publicou no Correio Oficial de Minasum relato minucioso, contan<strong>do</strong> a trajetória de vi<strong>da</strong>, detalhes depersonali<strong>da</strong>de e episódios trágicos. A partir <strong>do</strong>s 47 anos, Antônio FranciscoLisboa teria sofri<strong>do</strong> de uma <strong>do</strong>ença desconheci<strong>da</strong>, provavelmente sífilis oulepra, que o fizera perder os de<strong>do</strong>s, os dentes, curvar o corpo, não conseguiran<strong>da</strong>r a não ser de joelhos e mutilar-se, numa tentativa dramática de que a<strong>do</strong>r nos membros diminuísse. Em poucos meses, teria se transforma<strong>do</strong> nummonstro. Escreveu Bretas:As pálpebras inflamaram-se e, permanecen<strong>do</strong> neste esta<strong>do</strong>,ofereciam à vista sua parte interior, perdeu quase to<strong>do</strong>s os dentes e a bocaentortou-se como sucede frequentemente ao estupora<strong>do</strong>, o queixo e o lábioinferior abateram-se um pouco, assim o olhar <strong>do</strong> infeliz adquiriu certaexpressão sinistra e de feroci<strong>da</strong>de, que chegava mesmo a assustar a quemquer que o encarasse inopina<strong>da</strong>mente.Bem ao costume <strong>do</strong> romantismo, o estilo literário de seu tempo, obiógrafo criou a história de uma pessoa defeituosa e assusta<strong>do</strong>ra que teriaexecuta<strong>do</strong>, com as ferramentas amarra<strong>da</strong>s ao braço, as obras mais belas <strong>do</strong>


arroco mineiro. A esse personagem fascinante, ao mesmo tempo horrível esublime, monstruoso e genial, Bretas deu o nome de Aleijadinho.Muito já se discutiu sobre o que é ou não ver<strong>da</strong>de na história <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> de Aleijadinho - na déca<strong>da</strong> de 1990, o pesquisa<strong>do</strong>r Dalton Sala chegoua questionar se o escultor tinha alguma enfermi<strong>da</strong>de ou mesmo se existiu.Os arquivos de Minas Gerais já foram diversas vezes vasculha<strong>do</strong>s natentativa de achar uma menção a sua <strong>do</strong>ença, mas o máximo que seconseguiu foram alguns recibos assina<strong>do</strong>s por Antônio Francisco Lisboa.Esses <strong>do</strong>cumentos, similares aos de outros artesãos que trabalhavam para asirman<strong>da</strong>des mineiras, comprovam a existência de um artífice com aquelenome, mas na<strong>da</strong> mencionam sobre sua vi<strong>da</strong>, personali<strong>da</strong>de, <strong>do</strong>ença ou sobreo apeli<strong>do</strong> ”Aleijadinho”.A feiúra <strong>da</strong> criatura de Bretas lembra a <strong>do</strong> corcun<strong>da</strong> de Notre-Dame, descrito assim por Victor Hugo ”A careta era o próprio rosto, oumelhor, a pessoa to<strong>da</strong> era uma horrível careta: uma cabeça grande ouriça<strong>da</strong>de cabelos ruivos, entre os <strong>do</strong>is ombros, uma corcun<strong>da</strong> enorme <strong>da</strong> qual ocontragolpe se fazia sentir na parte frontal de seu corpo, um sistema decoxas e de pernas tão estranhamente tortas que se tocavam apenas por meio<strong>do</strong>s joelhos”.A filósofa e escritora Guiomar de Grammont, autora de uma tesede <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo que resultou no excelente livroAleijadinho e o Aeroplano, publica<strong>do</strong> em 2008, preferiu entrar nessapolêmica de outro mo<strong>do</strong>. Ela mostrou como as histórias conta<strong>da</strong>s porBretas e outros escritores são ecos de personagens e cenas <strong>da</strong> literatura.”Compreendemos ‘Aleijadinho’ como um personagem literário,sucessivamente reconstruí<strong>do</strong> na história <strong>do</strong> pensamento em letras e artes noBrasil, de acor<strong>do</strong> com os interesses <strong>do</strong> momento em que se produzia ca<strong>da</strong>


discurso sobre o tema”, escreveu ela. Além <strong>do</strong> clichê belo-horrível, AntônioLisboa ganhou outros traços de artista romântico: o indivíduo isola<strong>do</strong> deseus semelhantes e de geniali<strong>da</strong>de espontânea. Autodi<strong>da</strong>ta, sem ”mestrescientíficos”, como contou Bretas, o homem entocava-se em igrejas,separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> com cortinas improvisa<strong>da</strong>s, para poupar os passantes detopar com suas chagas. A biografia lembra também histórias sobre osmestres <strong>do</strong> Renascimento. Assim como Michelangelo teria feito com opapa Júlio Segun<strong>do</strong>, o Aleijadinho de Bretas deixou cair, de propósito,pe<strong>da</strong>ços de granito na cabeça de um general que vistoriava seu trabalho.Como Rafael, vingou-se de um desafeto usan<strong>do</strong> o rosto dele como modelode uma de suas obras.O personagem <strong>do</strong> monstro genial era tão fantástico e verossímilpara a época que seu cria<strong>do</strong>r logo se consagrou. Bretas ganhou de <strong>do</strong>mPedro Segun<strong>do</strong> o prêmio <strong>da</strong> Ordem <strong>da</strong> Rosa, destina<strong>do</strong> aos grandes artistas<strong>da</strong> nação, e virou sócio-correspondente <strong>do</strong> Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro. O instituto incentivava autores regionais a escrever biografiassobre filhos ilustres e vultos notáveis <strong>da</strong>s províncias, numa tentativa de fazeros <strong>brasil</strong>eiros terem um pouquinho de orgulho <strong>do</strong> país. O maior êxito deBretas foi ter seu texto erigi<strong>do</strong> à condição de <strong>do</strong>cumento de um personagemhistórico. O que era para ser uma dessas curiosas len<strong>da</strong>s locais, que dão coràs ci<strong>da</strong>des históricas e alimentam a fala <strong>do</strong>s <strong>guia</strong>s turísticos, virou íconenacional. Com o passar <strong>do</strong>s anos, o universo de Aleijadinho foi crescen<strong>do</strong> ese cristalizan<strong>do</strong> como reali<strong>da</strong>de, a partir <strong>do</strong> esforço avassala<strong>do</strong>r deestudiosos modernistas, que enxergavam no escultor uma <strong>da</strong>s raízes <strong>da</strong>cultura autenticamente <strong>brasil</strong>eira, de médicos a <strong>da</strong>r detalhes de sua <strong>do</strong>ença,de historia<strong>do</strong>res a falar de sua infância como assistente <strong>do</strong> pai, o arquitetoportuguês Manuel Francisco Lisboa, de críticos a apontar intenções


psicológicas que explicariam o seu trabalho, e de mora<strong>do</strong>res a atribuir aoescultor sem mãos a autoria de centenas de obras de Ouro Preto, Mariana,Congonhas, Caeté, Sabará, Tiradentes, São João Del Rei, Catas Altas,Campanha, Nova Lima e Barão <strong>do</strong>s Cocais, a ponto de que, se to<strong>da</strong>sfossem de fato feitas por ele, o artífice teria de ter vivi<strong>do</strong> em três ci<strong>da</strong>des aomesmo tempo. O empenho dessas pessoas foi similar ao <strong>do</strong> ”hipnotiza<strong>do</strong>rque, para causar maior impressão ao público, começasse por hipnotizar-se asi próprio”, como escreveu Carlos Drummond de Andrade numa crônicasobre Minas. O Quasímo<strong>do</strong> <strong>brasil</strong>eiro virou de repente o maiorrepresentante <strong>da</strong> arte sacra de Minas, <strong>do</strong> Brasil e <strong>da</strong> América <strong>do</strong> Sul, autorde obras em quase to<strong>da</strong>s as vilas <strong>da</strong> corri<strong>da</strong> <strong>do</strong> ouro.O culto a Aleijadinho logo ganhou um problema. A importânciaque ele passou a ter tropeçava numa ver<strong>da</strong>de incômo<strong>da</strong>: nem to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>considerava o monstro genial. A forma e o acabamento de muitas obrasatribuí<strong>da</strong>s a ele pareciam grosseiros - as figuras tinham o narizdesproporcional, maçãs <strong>do</strong> rosto salientes demais, polegar na mesmadireção <strong>do</strong>s outros de<strong>do</strong>s e olhos exagera<strong>da</strong>mente amen<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s. As igrejasque contaram com seu esforço pareciam uma versão pobre de monumentoseuropeus.O pior é que isso ficava mais claro nas obras em que ele certamentetrabalhou. Os recibos e atas confiáveis que citam Antônio Francisco Lisboasugerem que ele construiu esculturas e detalhes <strong>da</strong>s igrejas de Sabará, OuroPreto e <strong>do</strong> Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas. Nocomeço <strong>do</strong> século 19, os viajantes que falaram sobre o conjuntoarquitetônico de Congonhas eram no máximo benevolentes, como seestivessem diante de um artista infantil. ”Embora suas vestimentas e figurassejam por vezes sem gosto e desproporciona<strong>da</strong>s, não se deve desconsiderar


os belos <strong>do</strong>tes de um homem que se formou por si próprio, e nunca viuna<strong>da</strong>”, escreveu o barão de Eschwege, um geógrafo alemão que visitouMinas em 1811, sobre os profetas diante <strong>da</strong> igreja. Falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmoconjunto, o inglês Richard Burton afirmou que ”pouca coisa se tem a dizersobre o interior <strong>da</strong> igreja; as paredes são almofa<strong>da</strong><strong>da</strong>s e pinta<strong>da</strong>s comafrescos pretensiosos e repletas de gravuras sem valor, ao passo que asimagens são abaixo <strong>da</strong> crítica”. Burton escreveu também que o conjunto deCongonhas ”compara-se de maneira desfavorável com a Igreja de BomJesus de Braga, perto <strong>do</strong> Porto, e com o mais humilde <strong>do</strong>s santuáriositalianos”.É ver<strong>da</strong>de que a visão <strong>do</strong>s viajantes estava contamina<strong>da</strong> por um arde superiori<strong>da</strong>de europeia. Ao escrever sobre os países que visitavam, eles seesforçavam para caprichar nos relatos sobre paisagens e ligavam pouco parao que os países exóticos tinham de civiliza<strong>do</strong>. Mas... será que eles nãoestavam certos em sua avaliação? A semelhança entre igrejas e santuários eramuito comum, já que muitos artesãos vinham <strong>da</strong> Europa ou tentavamcopiar monumentos europeus que eram retrata<strong>do</strong>s em livros. Comparan<strong>do</strong>o santuário de Congonhas com o de Portugal, é difícil não concor<strong>da</strong>r com oinglês Richard Burton. Os monumentos são muito pareci<strong>do</strong>s: para chegaràs duas igrejas, é preciso passar por uma esca<strong>da</strong>ria entremea<strong>da</strong> com estátuassacras. Mas enquanto o santuário mineiro tem <strong>do</strong>ze profetas e trêspequenos lances de esca<strong>da</strong>s o de Portugal tem dezenas de estátuas e fontes,além de três esca<strong>da</strong>rias dispostas em formato de labirinto que somam umdesnível de 116 metros. É difícil não achar que a obra-prima de AntônioFrancisco Lisboa é uma cópia sem gracinha <strong>do</strong> santuário português.Não foram só os viajantes estrangeiros que acharam Aleijadinho”abaixo <strong>da</strong> crítica”. No fim <strong>do</strong> século 19, um padre chama<strong>do</strong> Júlio Engrácia


escreveu que as esculturas dele eram ”mais próprias para fazer rir às crianças<strong>do</strong> que para atrair a veneração e a simpatia <strong>do</strong>s corações devotos”, cujos”membros que mais deviam chamar-lhe a atenção artística como rosto,mãos, pés são muito imperfeitos”. O padre se incomo<strong>da</strong>va especialmentecom o nariz <strong>da</strong>s imagens de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s: ”Jamais houve guerreiros romanos tãonarigu<strong>do</strong>s, a não ser que eles usassem suas probóscides como os elefantesusam as trombas”. Tão forte quanto as palavras <strong>do</strong> padre Engrácia é osilêncio <strong>do</strong>s poetas árcades mineiros. Tomás Antônio Gonzaga, CláudioManoel <strong>da</strong> Costa e Basílio <strong>da</strong> Gama, poetas contemporâneos a AntônioFrancisco Lisboa, não gastaram sequer uma linha para falar <strong>do</strong> escultor. Aavaliação <strong>do</strong> trabalho de Aleijadinho mu<strong>do</strong>u só no começo <strong>do</strong> século 20.Foi quan<strong>do</strong> os intelectuais modernistas escolheram o personagem <strong>do</strong>monstro genial como símbolo <strong>da</strong> ”<strong>brasil</strong>i<strong>da</strong>de”, <strong>do</strong> talento mestiço e popular<strong>do</strong> Brasil. Em 1923, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila <strong>do</strong>Amaral fizeram uma excursão a Minas na companhia <strong>do</strong> poeta francêsBlaise Cendrars. Voltaram <strong>da</strong>s vilas mineiras consideran<strong>do</strong> a aventura umaviagem de ”descoberta <strong>do</strong> Brasil”, como disse Oswald. A arte mineiraparecia encaixar-se bem na ”raiz popular <strong>da</strong> cultura <strong>brasil</strong>eira”, ideia quenunca fascinou tanto os intelectuais <strong>brasil</strong>eiros quanto naquela época. EmMinas, eles se encantaram não propriamente pela arte, mas pelo artista. Aprimeira coisa que lhes chamou atenção foi o fato de Aleijadinho ter si<strong>do</strong>mulato, filho de escrava com pai branco, coisa que Bretas, sete déca<strong>da</strong>santes, havia lembra<strong>do</strong> bem superficialmente. A partir dessa informação, osjovens críticos construíram outra literatura sobre Aleijadinho, em que ”ovalor <strong>da</strong>s obras encontra-se não nelas mesmas, mas no artífice que as teriarealiza<strong>do</strong>, pressupon<strong>do</strong>-se anacronicamente nele a imagem de uma luta porigual<strong>da</strong>de racial”, como diz Guiomar de Grammont.


Na hora de defender a importância de Aleijadinho, os modernistastiveram que <strong>da</strong>r um troco às críticas <strong>do</strong> padre Engrácia e <strong>do</strong>s viajantes.Montaram um dispositivo retórico para justificar o fato de as obras deAleijadinho não serem aquela coca<strong>da</strong> to<strong>da</strong>. Não foi propriamente aavaliação que mu<strong>do</strong>u - eles continuaram achan<strong>do</strong> as esculturas resulta<strong>do</strong> de”irregulari<strong>da</strong>de vagamun<strong>da</strong>”, ”diletante mesmo”, como afirmou Mário deAndrade. O que mu<strong>do</strong>u foram os motivos: Aleijadinho não teria cria<strong>do</strong>obras estranhas porque não sabia fazer melhor, e sim porque queria. Deixoude ser um trabalha<strong>do</strong>r interessa<strong>do</strong> apenas em conseguir esculpir direito parase tornar um artista consciente e completo.Mário de Andrade, principalmente ele, viu nas estátuas narigu<strong>da</strong>s aexpressão <strong>da</strong> suposta personali<strong>da</strong>de atormenta<strong>da</strong> <strong>do</strong> suposto artista aleija<strong>do</strong>.Se as obras pareciam grosseiras diante <strong>da</strong> tradição, é porque o escultor semmãos queria romper com os padrões antigos de beleza e ser original,aproximan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> arte gótica. A deformi<strong>da</strong>de imaginária virou um pontoessencial <strong>da</strong> crítica <strong>do</strong>s modernistas. Doente e deforma<strong>do</strong>, o escultor teriaexpressa<strong>do</strong> sua ver<strong>da</strong>de interior como obra de arte. ”Raro realista, ele foi umdeforma<strong>do</strong>r sistemático. Mas a sua deformação é de uma riqueza, dumaliber<strong>da</strong>de de invenção absolutamente extraordinárias”, afirmou o escritorpaulista.Mário dividiu a obra de Aleijadinho em duas fases, antes e depois<strong>da</strong> tal <strong>do</strong>ença. Na fase sã, o artista seria mais equilibra<strong>do</strong> e claro, o que seexpressaria em suas obras de São João Del Rei (apesar de ninguém tercerteza de que Antônio Francisco Lisboa tenha i<strong>do</strong> a essa ci<strong>da</strong>de); e, na fase<strong>do</strong>ente, ”surge um sentimento mais gótico e expressionista” que não seriauma cópia simples <strong>da</strong> arte europeia. ”Antônio Francisco Lisboa tratou obarroco, renovan<strong>do</strong>-o com um espírito ver<strong>da</strong>deiramente genial”, afirmou o


escritor, revelan<strong>do</strong> a origem de um pensamento muito comum sobreAleijadinho quase um século depois. Até Gilberto Freyre arranjou motivospara explicar por que a expressão artística <strong>do</strong> escultor não era lá essas coisas.Sugeriu que as obras eram resulta<strong>do</strong> de uma revolta contra a condição demulato, ”de mo<strong>do</strong> que, na escultura de Aleijadinho, as figuras de ’brancos’,de senhores, de capitães-romanos aparecem deforma<strong>da</strong>s”.O grande ponto fraco <strong>do</strong> dispositivo retórico <strong>do</strong>s modernistas foi oanacronismo. Eles escreveram sobre um escultor barroco como se ele fosseum artista romântico ou integrante <strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s modernas <strong>do</strong> século 20.A ideia de Aleijadinho como um gênio solitário a expressar suapersonali<strong>da</strong>de enraiveci<strong>da</strong> em forma de arte original diz mais sobre comoenxergamos os artistas hoje <strong>do</strong> que sobre aquela época. O marketing que osartistas carregam atualmente - de seres diferentes, <strong>do</strong>nos de umacriativi<strong>da</strong>de espontânea e uma sensibili<strong>da</strong>de especial - é muito recente: vem<strong>do</strong> romantismo europeu. Durante os séculos 18 e 19, enquanto as pessoascomuns passavam os dias aperta<strong>da</strong>s entre as máquinas <strong>da</strong> RevoluçãoIndustrial, o artista romântico se considerava o homem solitário que seperdia em viagens ou divagações na natureza. Essa ideia é muito forte noromance Os Sofrimentos <strong>do</strong> Jovem Werther, escrito por Goethe em 1774,e no quadro O Viajante sobre o Mar de Névoa, cria<strong>do</strong> pelo alemão GasparDavid Friedrich em 1818. Antes de essas obras máximas <strong>do</strong> romantismomu<strong>da</strong>rem a cara <strong>do</strong>s artistas, eles eram muito mais próximos <strong>da</strong>s pessoas emgeral. A arte, especialmente durante o perío<strong>do</strong> barroco, era um esforçocoletivo feito sobretu<strong>do</strong> em louvor a Deus, e não ao próprio artista.Escultores dividiam trabalhos com colegas de corporação, instrutoresassinavam as melhores obras <strong>do</strong>s seus alunos (que encaravam o fato como


uma homenagem), e quase ninguém pensava em expressar seus sentimentosnas obras.No Brasil <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> século 18, muito antes de o romantismo chegarpor aqui, a glamorização <strong>do</strong>s autores começava a acontecer com os poetas.Escultores contrata<strong>do</strong>s pelas irman<strong>da</strong>des, porém, como Antônio FranciscoLisboa, trabalhavam como quem hoje pinta paredes de casas ou faz bolospara festas por encomen<strong>da</strong>. Pouco ligavam para o fato de a obra expressarsua individuali<strong>da</strong>de. Uma mostra disso é que raríssimas igrejas, altares ouestátuas de Minas Gerais levavam assinatura <strong>do</strong>s autores. Quan<strong>do</strong> issoacontecia, era em forma de agradecimento ao patrão ou à comuni<strong>da</strong>de.Numa capela de Santa Rita Durão, por exemplo, está escrito: ”Pintei estepainel, em louvor de N. Sra., e em obséquio ao seu tesoureiro José <strong>do</strong>sSantos Lisboa pelo grande zelo com que este man<strong>do</strong>u pintar esta capela,ain<strong>da</strong> com dispêndio seu no ano de 1792”. As obras não eram feitasindividualmente: os artífices costumavam trabalhar juntos, em oficinaspatrocina<strong>da</strong>s pelas irman<strong>da</strong>des religiosas, e também passavam tarefas paraamigos quan<strong>do</strong> estavam atarefa<strong>do</strong>s demais, como fazem hoje em dia osfreelancers. Acontecia também de um empreiteiro ganhar a encomen<strong>da</strong> deum trabalho sem saber realizá-lo, contratan<strong>do</strong> pessoas capacita<strong>da</strong>s parabotar a mão na massa.Basea<strong>do</strong>s nessa produção coletiva, alguns críticos aproveitaram paramontar uma nova explicação às ”falhas” <strong>da</strong>s imagens atribuí<strong>da</strong>s a AntônioFrancisco Lisboa. Para o historia<strong>do</strong>r de arte francês Germain Bazin, asobras mal-feitas não eram exatamente <strong>do</strong> escultor, mas de seus sócios ouassistentes. Foi o que teria aconteci<strong>do</strong> com as estátuas de madeira <strong>da</strong>s seiscapelas <strong>do</strong> santuário de Congonhas. ”As diferenças de quali<strong>da</strong>de dessasdiversas estátuas levaram a exagerar-se a parte de colaboração nesse


conjunto, retiran<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> artista a autoria de um número muito grandedelas”, afirma ele no livro Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil. Ahipótese <strong>do</strong>s assistentes é central no livro Aleijadinho e sua Oficina,publica<strong>do</strong> pelos pesquisa<strong>do</strong>res Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira,Antônio Fernan<strong>do</strong> Batista <strong>do</strong>s Santos e o estudioso Olinto Rodrigues <strong>do</strong>sSantos Filho, <strong>do</strong> Instituto <strong>do</strong> Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(Iphan). De acor<strong>do</strong> com o livro, publica<strong>do</strong> em 2003, só um terço <strong>da</strong>sestátuas de madeira <strong>da</strong>s capelas de Congonhas teria si<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> porAleijadinho. Mais uma vez, o argumento científico se baseia na literatura:Aleijadinho era um gênio, então aquilo que não é genial deve ter si<strong>do</strong> feitopor outras pessoas. ”Essa forma coletiva de produção hoje provoca esforçospatéticos <strong>do</strong>s críticos de arte no senti<strong>do</strong> de identificar traços oucaracterísticas <strong>do</strong> autor-mito, ’ocultas’ em obras realiza<strong>da</strong>s, em geral, pormais de um oficial”, afirma a filósofa Guiomar de Grammont. ”Nessasocie<strong>da</strong>de, contu<strong>do</strong>, as obras são produzi<strong>da</strong>s coletivamente e não obedecema um código de pertença ou de ’criação’ <strong>do</strong> autor.”Como nenhum trabalho de Antônio Francisco Lisboa foi assina<strong>do</strong>,as obras considera<strong>da</strong>s de sua autoria são aquelas que ganharam o aval decríticos e historia<strong>do</strong>res. Esse processo de promover ou atribuir a grifeAleijadinho foi e continua sen<strong>do</strong> estranhíssimo. Envolveu grandesarquitetos falan<strong>do</strong> enormes besteiras, disputas judiciais para calarpesquisa<strong>do</strong>res e até suspeitas de fraude cometi<strong>da</strong> com o objetivo de valorizaresculturas genéricas. Em alguns casos, <strong>do</strong>cumentos ambíguos e até comsuspeita de terem si<strong>do</strong> adultera<strong>do</strong>s viraram provas de sua autoria. Parasustentar que Aleijadinho participou <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> igreja de SãoFrancisco de São João Del Rei, pesquisa<strong>do</strong>res se basearam numa ata quefala de ”um arquiteto”, vago assim mesmo, sem ter certeza de que o tal


arquiteto era Antônio Francisco Lisboa. Um outro <strong>do</strong>cumento sobre amesma igreja conta que a obra foi feita por Antônio Martins - essesobrenome, porém, está risca<strong>do</strong> e corrigi<strong>do</strong> para ”Francisco Lisboa”.Ninguém sabe quan<strong>do</strong> essa correção aconteceu.Para convencer que uma obra era de Aleijadinho, os críticos usarampoucos argumentos estéticos. Na maioria <strong>da</strong>s vezes, o que valeu foram aautori<strong>da</strong>de e as palavras difíceis <strong>do</strong>s estudiosos. Se se tratava de alguémfamoso, como o homem que projetou a capital <strong>do</strong> país, ficava difícildiscor<strong>da</strong>r. Em 1961, logo depois <strong>da</strong> construção de Brasília, o arquitetoLúcio Costa escreveu sobre Aleijadinho. Atribuiu a ele a escultura de umamulher que fazia parte <strong>do</strong> Chafariz <strong>do</strong> Alto <strong>da</strong> Cruz, construí<strong>do</strong> em OuroPreto em 1761. Recibos mostram que esse chafariz estava a cargo <strong>do</strong>arquiteto Manuel, o pai de Aleijadinho. Mesmo assim, Lúcio Costaconcluiu que havia ”indícios inequívocos de [o chafariz] haver si<strong>do</strong>concebi<strong>do</strong> por seu filho, Antônio Francisco Lisboa, então com 19 anos dei<strong>da</strong>de”. Os indícios não eram na<strong>da</strong> inequívocos. Lúcio Costa a<strong>do</strong>tou comoprovas o uso de pedra-sabão, material comum em Minas, e a ”ousadia <strong>da</strong>temática e <strong>da</strong> colocação <strong>do</strong> busto no lugar tradicionalmente reserva<strong>do</strong> àcruz”. Repare no criativo processo de etiquetagem: os trabalhos quepareciam inova<strong>do</strong>res ou ousa<strong>do</strong>s eram crava<strong>do</strong>s como ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> feitos pelopersonagem que obcecava a ci<strong>da</strong>de — Aleijadinho. Lúcio Costa fez omesmo com outro chafariz, desta vez no Palácio <strong>do</strong>s Governa<strong>do</strong>res, obra de1752 que também era encomen<strong>da</strong> <strong>do</strong> pai <strong>do</strong> escultor. Apesar de não existirnenhuma prova de Aleijadinho ter trabalha<strong>do</strong> desde tão ce<strong>do</strong>, o crítico, emvez de questionar a possibili<strong>da</strong>de de haver um escultor-menino, comoveu-secom o próprio equívoco: achou ”significativo e comovente” o fato de ”apersonali<strong>da</strong>de já estar presente neste risco, feito aos 14 anos”.


Como é de esperar, avaliações como a <strong>do</strong> criativo Lucio Costa sãosubjetivas. Por isso, mu<strong>da</strong>m de acor<strong>do</strong> com o crítico que analisa as obras.De um dia para outro, aleijadinhos se transformam em obras genéricas evice-versa. Nasce <strong>da</strong>í muita polêmica entre coleciona<strong>do</strong>res e estudiosos. Em2003, o engenheiro Renato Whitaker, <strong>do</strong>no <strong>da</strong> maior coleção atribuí<strong>da</strong> aoescultor mineiro, de 36 obras, tentou barrar a circulação <strong>do</strong> livroAleijadinho e sua Oficina, <strong>do</strong>s três pesquisa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Iphan. Os autorestinham concluí<strong>do</strong> que diversas peças <strong>da</strong> coleção de Whitaker e <strong>da</strong>scoleciona<strong>do</strong>ras Le<strong>da</strong> Nascimento Brito e de Beatriz Pimenta Camargo nãotinham si<strong>do</strong> feitas por Antônio Francisco Lisboa, mas por seus aju<strong>da</strong>ntes. AJustiça chegou a man<strong>da</strong>r recolher os exemplares à ven<strong>da</strong>, ordem que durouquase <strong>do</strong>is meses. Os coleciona<strong>do</strong>res ficaram mais satisfeitos com o livroAleijadinho - Catálogo Geral <strong>da</strong> Obra, publica<strong>do</strong> em 2006 por MárcioJardim. Esse advoga<strong>do</strong> e historia<strong>do</strong>r mineiro é o campeão de atribuições aAleijadinho. No livro, ele considera 425 obras como fruto <strong>do</strong> escultorpersonagem,incluin<strong>do</strong> to<strong>da</strong>s as esculturas <strong>do</strong>s coleciona<strong>do</strong>res e outras quepouca gente conhecia. Ten<strong>do</strong> esse número como base, dá para dizer quenunca a obra de um artista cresceu tão rápi<strong>do</strong> em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Se hácinco déca<strong>da</strong>s cerca de 160 peças eram considera<strong>da</strong>s de Aleijadinho, hoje onúmero é quase três vezes maior. E não para de crescer: em abril de 2009,enquanto este livro era escrito, mais sete esculturas ganharam a valiosa grife.O coleciona<strong>do</strong>r José Marcelo Galvão de Souza Lima disse ter encontra<strong>do</strong>obras em antiquários e coleções particulares que pareciam ser deAleijadinho. Meses depois, as peças já tinham lau<strong>do</strong> de autentici<strong>da</strong>de,concedi<strong>do</strong> pelo historia<strong>do</strong>r Márcio Jardim, e foram exibi<strong>da</strong>s em exposiçõesno Rio de Janeiro e em Itu, no interior de São Paulo, como relíquias”autênticas” nunca antes vistas pelo público. Um sistema tão proficiente de


atribuições parece estranho. Para um coleciona<strong>do</strong>r, na<strong>da</strong> melhor que veruma obra sua ser de repente considera<strong>da</strong> fruto de um <strong>do</strong>s artistas maisfamosos <strong>da</strong> história <strong>do</strong> país. ”Tenho razão para desconfiar que existe umconluio entre coleciona<strong>do</strong>res e críticos para valorizar obras anônimas”,disse-me, por telefone, a filósofa Guiomar de Grammont. De qualquermo<strong>do</strong>, a história de Aleijadinho fica ca<strong>da</strong> dia mais interessante. O escultormonstruoso e genial foi capaz não só de trabalhar com de<strong>do</strong>s mutila<strong>do</strong>s emãos paralisa<strong>da</strong>s. Também criou grandes obras depois de morto.


QUANTO CUSTA O ACRE?Apesar de sobrarem suspeitas sobre sua existência, o Acre éfrequentemente objeto de polêmicas. Em 2006, Evo Morales, presidente <strong>da</strong>Bolívia, reclamou que o país deu o território <strong>do</strong> Acre ao Brasil em troca deum cavalo. Logo vieram protestos: na ver<strong>da</strong>de, não foi pelo preço de umcavalo, mas por 2 milhões de libras inglesas de 1903, que em 2006 valeriampor volta de 230 milhões de dólares. Acreanos mais indigna<strong>do</strong>s apareceramdepois que o jornalista Diogo Mainardi, no programa ManhattanConnection, disse que até um pangaré seria um preço alto pelo Acre.A fala <strong>do</strong> presidente Evo Morales fez parecer que o Brasilaproveitou um momento de ingenui<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s vizinhos para fazer umnegócio <strong>da</strong> China. Foi o contrário. A Bolívia aproveitou um momento deingenui<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Brasil para se livrar <strong>do</strong> Acre. Conseguiu ganhar umdinheiro com a ven<strong>da</strong> e largar mão de um território que lhe traria gastosmonumentais. Talvez o governo <strong>brasil</strong>eiro <strong>da</strong> vira<strong>da</strong> <strong>do</strong> século previsse queo Acre seria um mau negócio. Até adquirir a área definitivamente, em1903, o Brasil tinha tenta<strong>do</strong>, por três vezes, empurrá-la para os bolivianos.Só aceitou ficar com a região depois <strong>da</strong> insistência de seringueiros teimosos,militares clandestinos patriotas e até de um visionário espanhol que sonhavaem fazer <strong>do</strong> Acre uma socie<strong>da</strong>de perfeita.A primeira vez que o Brasil tentou se livrar <strong>do</strong> Acre foi em 1867,com o Trata<strong>do</strong> de Ayacucho. Era época <strong>da</strong> Guerra <strong>do</strong> Paraguai. Oimpera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>m Pedro Segun<strong>do</strong> queria agra<strong>da</strong>r os vizinhos para evitar queeles armassem confusão, como fizeram os paraguaios. Ser generoso nos


acor<strong>do</strong>s territoriais era um jeito de reforçar a amizade com a Bolívia eassegurar a paz. Para delimitar a região, os diplomatas <strong>brasil</strong>eiros usaramcomo referência as latitudes e a posição <strong>do</strong>s rios <strong>do</strong> Alto Amazonas. Oextremo oeste <strong>do</strong> país seria marca<strong>do</strong> pela união <strong>do</strong>s rios Beni e Mamoré, deonde sairia uma linha para o oeste, até encontrar o rio Javari, que até hojefaz a fronteira <strong>do</strong> su<strong>do</strong>este <strong>da</strong> Amazônia. Como ninguém sabia muito bemonde esses rios começavam ou convergiam, o artigo terceiro <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> deAyacucho determinava:No prazo de seis meses, conta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> troca <strong>da</strong>s ratificações <strong>do</strong>presente Trata<strong>do</strong>, nomeará ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s altas partes contratantes umComissário; e, no mais breve tempo que for possível, procederão os <strong>do</strong>iscomissários, de comum acor<strong>do</strong>, a demarcação <strong>da</strong> linha divisória, nos pontosem que isso for necessário, e de conformi<strong>da</strong>de com as estipulações queprocedem.Era para ser seis meses. Quase trinta anos depois <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> deAyacucho, os bolivianos não tinham sequer apareci<strong>do</strong> pelo Acre. Ain<strong>da</strong> nãose sabia exatamente o que era o esta<strong>do</strong> e onde ficava a fronteira. Em 1895, oBrasil resolveu <strong>da</strong>r uma aju<strong>da</strong>. Man<strong>do</strong>u para lá uma missão demarcatóriachefia<strong>da</strong> por Gregório Thaumaturgo de Azeve<strong>do</strong>, um oficial obstina<strong>do</strong> quejá havia si<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Piauí. No Rio de Janeiro, os ministros <strong>do</strong>sprimeiros anos <strong>da</strong> República esperavam que o envia<strong>do</strong> fizesse as medições edeterminasse de uma vez por to<strong>da</strong>s qual era a parte boliviana.Thaumaturgo, no entanto, percebeu que povoa<strong>do</strong>s <strong>brasil</strong>eiros cheios deseringais ficariam <strong>do</strong> la<strong>do</strong> boliviano caso o Trata<strong>do</strong> de Ayacucho fosseobedeci<strong>do</strong>. Escreveu ao Rio de Janeiro <strong>da</strong>n<strong>do</strong> o alarme:To<strong>da</strong> essa zona perderemos, aliás explora<strong>da</strong> e povoa<strong>da</strong> por nacionaise onde já existem centenas de barracas, proprie<strong>da</strong>des legítimas e demarca<strong>da</strong>s


e seringais cujos <strong>do</strong>nos se acham de posse há alguns anos sem reclamação <strong>da</strong>Bolívia.Depois de uma comunicação como essa, a atitude mais espera<strong>da</strong> <strong>do</strong>governo era aceitar os avisos <strong>do</strong> oficial, tentar reverter a fronteira <strong>do</strong> Acre egarantir as riquezas que poderiam vir de lá. No século 19, a exportação <strong>da</strong>borracha fez de Manaus e Belém ci<strong>da</strong>des com aveni<strong>da</strong>s e teatrosriquíssimos, cujos mora<strong>do</strong>res importavam vinhos e queijos franceses eman<strong>da</strong>vam engomar camisas em Portugal. Além <strong>do</strong>s impostos provenientes<strong>da</strong> borracha, o governo central tinha outro bom argumento para negociarcom a Bolívia. Naquela época, impasses sobre fronteiras distantes eramgeralmente decidi<strong>do</strong>s pelo princípio <strong>do</strong> uti possidetis, segun<strong>do</strong> o qual asoberania <strong>da</strong> área pertence a quem de fato a ocupa. O Acre vinha sen<strong>do</strong>habita<strong>do</strong> por <strong>brasil</strong>eiros desde 1879, depois que uma grande seca atingiu oCeará e desencadeou uma migração nordestina para a Amazônia. Se ogoverno <strong>brasil</strong>eiro quisesse ficar com a região, tinha motivos. Mas o Rio deJaneiro não deu a mínima para os avisos <strong>do</strong> oficial Thaumaturgo, queacabou afasta<strong>do</strong> <strong>da</strong> missão. Um novo chefe foi nomea<strong>do</strong>, o capitão-tenenteCunha Gomes. Ele tratou de fazer vista grossa para os povoa<strong>do</strong>s <strong>brasil</strong>eirose estabelecer a divisa com base no trata<strong>do</strong> anterior, lembran<strong>do</strong> os bolivianosmais uma vez: o Acre é de vocês. O governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro a<strong>do</strong>rou - atéhoje, Cunha Gomes nomeia a linha reta que delimita a fronteira norte <strong>do</strong>esta<strong>do</strong>.Essa foi a segun<strong>da</strong> vez que o governo tentou se livrar <strong>do</strong> Acre. Em1898, o ministro <strong>da</strong>s Relações Exteriores, Dionísio de Castro Cerqueira,pôde enfim escrever um telegrama ao governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Amazonas. Pediu-lhepara ”concor<strong>da</strong>r no estabelecimento de posto aduaneiro à margem <strong>do</strong> Acreou Aquiri, em território incontestavelmente boliviano, isto é, acima <strong>da</strong> linha


tira<strong>da</strong> <strong>do</strong> Madeira à margem <strong>do</strong> Javari, na ver<strong>da</strong>deira latitude determina<strong>da</strong>pelo capitão-tenente Cunha Gomes”. O governo federal resolveu, assim,ignorar os <strong>brasil</strong>eiros que moravam no Acre. Até hoje os acreanos guar<strong>da</strong>muma raivinha por causa disso. No livro Pláci<strong>do</strong> de Castro, edita<strong>do</strong> em 2003com dinheiro <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> Acre, o professor universitário Valdir deOliveira Calixto diz:Estultice, falta de patriotismo, cega obstinação de Ministrodesqualifica<strong>do</strong> para o exercício <strong>do</strong> cargo, conforme sugeriria ThaumaturgoAzeve<strong>do</strong>? Ou uma atitude calcula<strong>da</strong> de poder, em extrema dificul<strong>da</strong>de paraadministrar uma crise que vinha penosamente se arrastan<strong>do</strong> desde 1895?Com o ok por parte <strong>do</strong> Brasil, a Bolívia tratou de se apossar <strong>do</strong>Acre. A nova região <strong>da</strong>va uma esperança aos bolivianos. Vinte anos antes,durante a Guerra <strong>do</strong> Pacífico, eles tinham perdi<strong>do</strong> para o Chile o territóriode Antofagasta, fican<strong>do</strong> sem saí<strong>da</strong> para o mar. A conquista de terrasdisputa<strong>da</strong>s com o Brasil foi uma pequena compensação. Para tomar o poder<strong>do</strong> Acre, a Bolívia designou José Paravicini, embaixa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> país no Rio deJaneiro. No fim de outubro de 1898, o diplomata se apressou paraemprestar 40 contos de réis <strong>do</strong>s Bancos de Londres e <strong>do</strong> Rio <strong>da</strong> Prata,prometen<strong>do</strong> pagar a dívi<strong>da</strong> com os impostos que o Acre renderia. Enviouain<strong>da</strong> um telegrama para o embaixa<strong>do</strong>r boliviano em Londres, pedin<strong>do</strong> queman<strong>da</strong>sse um bom engenheiro e verbas para a construção <strong>da</strong> sede acreana<strong>do</strong> governo <strong>da</strong> Bolívia, e partiu de barco para a Amazônia. Numa escala emFortaleza, Paravicini recebeu a notícia de que não iriam ao Acre nem oengenheiro inglês, nem o dinheiro solicita<strong>do</strong>, e pensou em desistir <strong>da</strong>aventura e regressar ao Rio. A viagem só continuou porque o diplomataemprestou mais dinheiro <strong>do</strong> Banco de Londres. Conseguiu assim chegar àAmazônia. Por onde passava, a comitiva boliviana recebia sau<strong>da</strong>ções <strong>da</strong>s


autori<strong>da</strong>des <strong>brasil</strong>eiras. Em Belém, Paravicini conseguiu crédito <strong>da</strong> CasaSuarez e Cia, com o qual comprou materiais de construção e contratoupedreiros, ferreiros e carpinteiros. Em Manaus, o representante bolivianofoi recebi<strong>do</strong> com um brinde de champanhe pelo governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Amazonas,Ramalho Júnior.No começo <strong>da</strong> noite de 30 de dezembro, depois de <strong>do</strong>is meses deviagem, a comitiva boliviana enfim chegou às terras <strong>do</strong> Acre. Até então, osseringueiros <strong>da</strong>quela região não tinham si<strong>do</strong> informa<strong>do</strong>s de que nãomoravam mais no Brasil. A chega<strong>da</strong> <strong>do</strong>s estrangeiros causou uma surpresaque o escritor Leandro Tocantins, autor <strong>da</strong> principal obra sobre a história<strong>do</strong> Acre, reconstituiu com tons dramáticos:De repente, destacou-se no silêncio <strong>da</strong> noite o apito prolonga<strong>do</strong> deum navio. To<strong>do</strong>s dirigiram-se, pressurosos, para o barranco, atraí<strong>do</strong>s pelaboa nova <strong>do</strong> gaiola que traria um pouco de vi<strong>da</strong> ao solitário povoa<strong>do</strong>.Jornais de Belém e Manaus, cartas de parentes e amigos, notícias <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, uma pequena amostra de civilização que vinha naquele vapor,certamente abarrota<strong>do</strong> de merca<strong>do</strong>rias, para receber, em troca, as ”pelas”negras, acontecimento comum naquela época de rios cheios.Distinguiram aproximar-se nas sombras <strong>da</strong> noite o navioilumina<strong>do</strong>, vibran<strong>do</strong> as máquinas para vencer a forte correnteza <strong>do</strong> Purus,na manobra de atracação. A bor<strong>do</strong>, uma algazarra invulgar, palavras soltasde um idioma que não era o português.Havia entre os seringueiros um oficial <strong>do</strong> governo <strong>brasil</strong>eirochama<strong>do</strong> José Carvalho. O homem não pôde deixar de ficar ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong> comos forasteiros bolivianos. Escreveu ele anos depois:A noite to<strong>da</strong> passamos numa inquietação indizível de espírito,perdi<strong>do</strong>s num laboratório de cogitações. Para mim — confesso francamente


- aquela toma<strong>da</strong> imprevista <strong>do</strong> Acre era um assalto arroja<strong>do</strong> de aventureirosque poderiam, em poucos dias, fazer uma fortuna numa grossa espoliação<strong>da</strong> borracha.A despeito <strong>da</strong> surpresa <strong>do</strong>s seringueiros <strong>brasil</strong>eiros, Paravicini senomeou delega<strong>do</strong> boliviano no Acre. Seus homens abriram uma clareiranum terreno alto, onde o diplomata hasteou a bandeira <strong>da</strong> Bolívia. Foramcria<strong>da</strong>s duas repartições — a de registro de direitos reais e a de direitosfiscais. Tratava-se <strong>da</strong> estrutura necessária para cobrar impostos <strong>do</strong>sseringueiros. Pela primeira vez, a região tinha um escritório oficial de algumpaís. A questão ficaria resolvi<strong>da</strong>, e o Acre estaria confortavelmente nas mãos<strong>da</strong> Bolívia, não fosse um excêntrico diplomata e jornalista espanhol e seusonho de montar seu próprio país por ali.O nome dele era Luís Gálvez Rodríguez de Arias. Na An<strong>da</strong>luzia, orapaz tinha boa vi<strong>da</strong>: sobrinho de um ministro <strong>da</strong> Marinha espanhola, erasimpático, elegante e tinha um bom trabalho no Banco <strong>da</strong> Espanha. Atéque, em 1891, aos 27 anos, Gálvez se meteu em dívi<strong>da</strong>s de jogo e perdeu oemprego. Derrota<strong>do</strong> e envergonha<strong>do</strong>, resolveu fugir para a América <strong>do</strong> Sul.Tentou a vi<strong>da</strong> em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, mas acabou seestabelecen<strong>do</strong> na Amazônia. Em Manaus, virou <strong>do</strong>no de um cabaré erepórter <strong>do</strong> jornal Commercio <strong>do</strong> Amazonas. Em maio de 1899, Gálvezviajou a Belém exatamente quan<strong>do</strong> o representante Paravicini e alguns deseus funcionários passavam pela ci<strong>da</strong>de. O espanhol acabou participan<strong>do</strong> deum almoço com a comitiva boliviana. Foi quan<strong>do</strong> uma notícia bombásticacirculou à mesa.Gálvez ouviu os bolivianos discutin<strong>do</strong> a hipótese de arren<strong>da</strong>r o Acrepara o Anglo-Bolivian Syndicate e a Companhia de Borracha <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s. As empresas extrairiam borracha para a fabricação <strong>do</strong>s carros <strong>do</strong>s


americanos e <strong>da</strong>riam ao governo boliviano 60% <strong>do</strong>s lucros <strong>da</strong> exportação. Ocaso virou manchete <strong>do</strong> jornal Província <strong>do</strong> Pará de 3 de junho de 1899 eincendiou a Amazônia. Na saca<strong>da</strong> de re<strong>da</strong>ções de jornais de Belém eManaus, deputa<strong>do</strong>s e jornalistas declaravam seu ódio à Bolívia e aosamericanos. No Rio de Janeiro, Rui Barbosa chegou a comentar a questão,dizen<strong>do</strong> que se a região fosse concedi<strong>da</strong> àquelas companhias, poderia cederà política imperialista <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, assim como acontecera noHavaí. Agora os acreanos tinham um trunfo: o patriotismo e o sentimentopopular de ter seu patrimônio ameaça<strong>do</strong>.No meio <strong>da</strong>quela controvérsia, o jornalista espanhol percebeu que arazão de sua existência tinha enfim chega<strong>do</strong>. A questão acreana pedia atosheróicos e ele estava disposto a isso. Bom de papo, Gálvez alarmou ogoverna<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Amazonas sobre a quanti<strong>da</strong>de de impostos que o esta<strong>do</strong>perdia com a intervenção <strong>da</strong> Bolívia ou <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. O Acre vinhaexportan<strong>do</strong> 2 mil tonela<strong>da</strong>s de borracha por ano e os tributos dessa ven<strong>da</strong>não ficavam para o Brasil. O governa<strong>do</strong>r aderiu aos alertas <strong>do</strong> espanhol edeu a ele armas e um canhão para a batalha de reconquista <strong>do</strong> Acre. Gálvezreuniu vinte sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e partiu para seu destino heróico no El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>amazônico. É provável que sua motivação fosse pareci<strong>da</strong> com a <strong>do</strong>seuropeus fascina<strong>do</strong>s pelas utopias <strong>do</strong> século 19, que vieram à AméricaLatina construir socie<strong>da</strong>des perfeitas. Entre 1842 e 1843, por exemplo,cerca de 150 franceses seduzi<strong>do</strong>s pelo socialismo utópico criaram em SantaCatarina o Falanstério <strong>do</strong> Saí, o protótipo de uma socie<strong>da</strong>de que durouapenas um ano. No Paraná, imigrantes italianos montaram uma socie<strong>da</strong>deanarquista, a Colônia Cecília, que teve um princípio de liberação sexual,admitin<strong>do</strong> casamentos de uma mulher com <strong>do</strong>is homens - isso em 1890. Oespanhol deveria nutrir um sonho pareci<strong>do</strong> para o Acre. ”Gálvez foi uma


mistura de Dom Quixote e Lord Jim que reivindicava seu valor depois deum erro cometi<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong>”, afirma o jornalista Alfonso Domingo nabiografia La Estrella Solitária. Apesar de não ter revela<strong>do</strong> essa intenção aogoverna<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Amazonas, o visionário espanhol não queria apenas levantaros seringueiros contra a Bolívia, mas criar uma nova nação: a RepúblicaIndependente <strong>do</strong> Acre.Entre os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de Gálvez havia atores e atrizes de um grupoespanhol de zarzuela. De passagem por Manaus, os artistas foram seduzi<strong>do</strong>spor ele para fun<strong>da</strong>r um país. É interessante imaginar o choque de culturasque deve ter ocorri<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> essa trupe chegou às margens <strong>do</strong> rio Acre, nofim de junho de 1899. Os europeus, cheios de sonhos tira<strong>do</strong>s de livros ecom o coração exaspera<strong>do</strong> por teorias, passaram a viver com os seringueiros,personagens que se destacavam pela desesperança. Como escreveriaEuclides <strong>da</strong> Cunha em 1905, ao visitar o Acre, o seringueiro ”não serebela”, ”não murmura”, ”não reza”, ”não tem diluições metafísicas” e éresigna<strong>do</strong> o suficiente para acreditar que ”os grandes olhos de Deus nãopodem descer até aqueles brejais, manchan<strong>do</strong>-se”. Na fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>República <strong>do</strong> Acre, <strong>do</strong>is grupos tão distintos devem ter protagoniza<strong>do</strong> cenasdignas <strong>da</strong> zarzuela, tipo de teatro que intercala diálogos ridículos commúsicas, lembran<strong>do</strong> uma ópera-cômica.Para conquistar aqueles rudes homens, o visionário Gálvez tocou noassunto que mais os indignava: o fato de o Brasil não estar nem aí paraaquele lugar. No discurso que consta na primeira ata <strong>da</strong> JuntaRevolucionária <strong>do</strong> Acre, ele disse:Aceitamos leis, pagamos tributos e impostos e obedecíamospassivamente to<strong>do</strong>s os julgamentos pratica<strong>do</strong>s pela alta e baixa justiça <strong>do</strong>Delega<strong>do</strong> Nacional <strong>da</strong> Bolívia, na esperança de que nossa i<strong>do</strong>latra<strong>da</strong> Pátria,


a gloriosa e humanitária Nação Brasileira, acudisse em nosso socorro eatendesse nossos justíssimos pedi<strong>do</strong>s. [...]O Governo <strong>do</strong> Brasil nãorespondeu aos nossos patrióticos alarmes. É justo, pois, que ci<strong>da</strong>dãos livresnão se conformem com o estigma de párias cria<strong>do</strong> pelo governo de suaPátria – nem podem de forma alguma continuar sen<strong>do</strong> escravos de umaoutra nação: a Bolívia!O novo país fun<strong>da</strong>n<strong>do</strong> em 14 de junho de 1899 – a <strong>da</strong>ta foiescolhi<strong>da</strong> por Gálvez para coincidir com o 14 de junho francês.A capital ganhou o nome de Ci<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Acre – hoje Porto Acre, nadivisa com o Amazonas. O grupo formou um conselho ministerial, umabandeira e um selo comemorativo. Um barracão de madeira virou o palácio<strong>do</strong> governo em cuja facha<strong>da</strong> havia a inscrição “Pátria e Liber<strong>da</strong>de”.Criaram-se também a Força Pública Nacional, composta de batalhões deinfantaria, cavalaria e corpo de bombeiros, e a Força de Instrução, paraeducar os acreanos. Vinte e sete decretos de Gálvez regulavam os futurosserviços de água, transporte, abastecimento, iluminação pública, osincentivos às indústrias e famílias de colonos que quisessem se instalar porali. Em francês, língua oficial <strong>da</strong> diplomacia <strong>da</strong> época, o “Impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Acre” man<strong>do</strong>u um comunica<strong>do</strong> aos países <strong>da</strong> América <strong>do</strong> Sul anuncian<strong>do</strong> aproclamação <strong>da</strong> nova nação de 6.742 ci<strong>da</strong>dãos. A Argentina, então o paísmais rico <strong>da</strong> América <strong>do</strong> Sul, chegou a reconhecer a legitimi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Acrecomo nação. Gálvez man<strong>do</strong>u também um aviso especial para o presidente<strong>brasil</strong>eiro, Campos Sales. Dizia que, se o Brasil quisesse se apoderar <strong>do</strong>novo país, tu<strong>do</strong> bem. “Se o ato que praticaram [os <strong>brasil</strong>eiros no Acre]podetrazer consequencias desastrosas à Nação Brasileira, o Governo Provisóriodeste Esta<strong>do</strong>, embora tenha que tragar uma <strong>do</strong>lorosa humilhação, cederáperante o que for a conveniência <strong>da</strong> Pátria.” O espanhol provavelmente


queria que o Acre tomasse o rumo <strong>do</strong> Texas, que déca<strong>da</strong>s antes tinha sedeclara<strong>do</strong> independente <strong>do</strong> México para logo depois ser incorpora<strong>do</strong> aosEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. O governo <strong>brasil</strong>eiro, porém, não queria o novo país. Pelaprimeira vez, tentaria se livrar <strong>do</strong> Acre.Em 1900, navios de guerra <strong>brasil</strong>eiros chegaram à região edesfizeram a República Independente <strong>do</strong> Acre. Apesar <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>demilitar, os <strong>brasil</strong>eiros não ficaram com o território: reintegraram sua possepara a Bolívia. Luiz Gálvez foi preso, man<strong>da</strong><strong>do</strong> para Pernambuco e, de lá,de volta para a Espanha, onde morreu em 1935.O governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro só desistiu de recusar o Acre quan<strong>do</strong>uma expedição militar clandestina quase provocou uma guerra de ver<strong>da</strong>decoma a Bolívia. Em 1902, os bolivianos já tinham, além de alfândega,pequenas instalações militares na região. Também haviam declara<strong>do</strong>publicamente que iriam arre<strong>da</strong>r o Acre ao Bolivian Syndicate. A questãoficaria resolvi<strong>da</strong>, e o Acre estaria confortavelmente nas mãos <strong>da</strong> Bolívia ou<strong>do</strong>s americanos, não fosse a intervenção <strong>do</strong> gaúcho José Pláci<strong>do</strong> de Castro,um ex-militar que tinha luta<strong>do</strong> no Rio Grane <strong>do</strong> Sul durante a RevoluçãoFederalista. Patriota radical, Pláci<strong>do</strong> achou um absur<strong>do</strong> a possibili<strong>da</strong>de deamericanos man<strong>da</strong>rem num pe<strong>da</strong>ço <strong>do</strong> Brasil. Em agosto de 1902, elemontou uma tropa de setenta seringueiros-sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e saiu derruban<strong>do</strong> asinstalações bolivianas que encontrava. A Bolívia revi<strong>do</strong>u um mês depois,matan<strong>do</strong> 22 homens <strong>da</strong> tropa de Pláci<strong>do</strong>. Líder militar experiente o<strong>brasil</strong>eiro não desistiu: com pouquíssimos homens, montou um cerco aosbolivianos, fazen<strong>do</strong> mais de 150 deles se render. Em janeiro de 1903, suatropa conseguiu desbancar to<strong>do</strong>s os bolivianos de Porto Acre. O lugar eranovamente uma república, desta vez o Esta<strong>do</strong> Meridional <strong>do</strong> Acre.


Os generais <strong>da</strong> Bolívia preparavam uma revanche avassala<strong>do</strong>ra, quepoderia criar um novo conflito equivalente ao <strong>da</strong> Guerra <strong>do</strong> Paraguai,quan<strong>do</strong> o governo <strong>brasil</strong>eiro percebeu que não tinha mais como ignorar oAcre. O barão <strong>do</strong> Rio Branco, então ministro <strong>da</strong>s Relações Exteriores, foi àBolívia para acalmar os vizinhos. No fim de 1903, em Petrópolis, os <strong>do</strong>ispaíses fecharam um acor<strong>do</strong>. O Brasil se comprometeu a pagar 2 milhões delibras esterlinas pelo Acre, ceder à vizinha um pe<strong>da</strong>ço <strong>do</strong> Mato Grosso eain<strong>da</strong> construir uma ferrovia para que os bolivianos tivessem acesso ao rioAmazonas e, assim, ao oceano Atlântico. Tratava-se <strong>da</strong> ferrovia Madeira-Mamoré, que envolveu 22 mil operários - 2 mil deles morreram naconstrução. O dinheiro <strong>da</strong> obra, vin<strong>do</strong> de bancos europeus, foi gasto emvão. Enquanto os acreanos travavam batalhas patrióticas, seringais maisdensos cresciam na Ásia. Eram fruto de 70 mil sementes que o inglêsHenry Wickham tinha leva<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil em 1876. No Sri Lanka, as árvoresforam planta<strong>da</strong>s uma <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> outra, crian<strong>do</strong> um sistema muito maisinteligente que o <strong>do</strong> extrativismo de árvores distantes <strong>da</strong> Amazônia. O novofornece<strong>do</strong>r logo conquistou o mun<strong>do</strong>. A ven<strong>da</strong> <strong>da</strong> borracha asiática passoude 45 tonela<strong>da</strong>s em 1900 para 107 mil em 1915. Já o Acre, produtor deuma borracha mais cara, nunca mais <strong>da</strong>ria dinheiro. Como os primeirospresidentes <strong>do</strong> Brasil devem ter previsto, adquirir aquele território foi umtremen<strong>do</strong> mau negócio.Existem muitos lugares irrelevantes pelo mun<strong>do</strong> como Porto Rico,a Bélgica, o Paraná -, o que não chega a ser um problema. A questão mu<strong>da</strong>quan<strong>do</strong> esse lugar cria despesas para os outros. O dinheiro gasto em nome<strong>do</strong> Acre não foi tanto o pagamento para adquiri-lo em 1903, mas o que veiodepois. Até hoje, mais de um século após a região passar a fazer parte <strong>do</strong>Brasil, o esta<strong>do</strong> continua custan<strong>do</strong> milhões por ano. Em 2007, o Acre, que


tem um Produto Interno Bruto tão grande quanto o <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Limeira,no interior de São Paulo, arreca<strong>do</strong>u 177 milhões de reais em impostosfederais. No mesmo ano, o orçamento federal executa<strong>do</strong> (a quantia que oAcre tirou <strong>do</strong> Tesouro Nacional) foi três vezes maior: 605 milhões de reais.Os números foram pareci<strong>do</strong>s em 2008: 627 milhões de orçamentoexecuta<strong>do</strong>, arreca<strong>da</strong>ção de impostos de 204 milhões, novamente três vezesmenor. Ou seja: a ca<strong>da</strong> ano, o esta<strong>do</strong> custa mais 400 milhões de reais ànação. O custo Acre pode ser ain<strong>da</strong> maior, já que o orçamento federal nãoinclui investimentos diretos <strong>do</strong>s ministérios nem gastos com deputa<strong>do</strong>sfederais e sena<strong>do</strong>res. Em 2007, segun<strong>do</strong> a ONG Transparência Brasil, ca<strong>da</strong>deputa<strong>do</strong> <strong>brasil</strong>eiro custou 6,6 milhões de reais por ano; ca<strong>da</strong> sena<strong>do</strong>r, 33milhões. Por ano, os oito deputa<strong>do</strong>s e três sena<strong>do</strong>res acreanos custam 150milhões de reais. A montanha de dinheiro que deve ter i<strong>do</strong> para aquelecanto <strong>da</strong> Amazônia é incalculável. Para chegar a uma soma, é melhorignorarmos alguns gastos, mesmo que no fim <strong>da</strong>s contas o custo Acre fiquemenor que o real. Imagine que, em média, desde 1908, tenhamos gasta<strong>do</strong>com o Acre metade <strong>do</strong> rombo de 2008, o que <strong>da</strong>ria mais ou menos 280milhões de reais. Em cem anos, seriam 28 bilhões.Se o Acre e muitos outros esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Amazônia são um martírio,há aqueles que nasceram de um castigo. Alagoas é o exemplo mais acaba<strong>do</strong>.Sua emancipação, de comarca a província independente de Recife, foi umaretaliação pela Revolução Pernambucana de 1817. Em março <strong>da</strong>quele ano,militares pernambucanos ocuparam Recife e man<strong>da</strong>ram embora para o Riode Janeiro o governa<strong>do</strong>r português no esta<strong>do</strong>.


ALAGOAS É FRUTO DE UM CASTIGO...O povo aderiu à revolução provocan<strong>do</strong> tumultos antilusitanos,apedrejamentos de casas de portugueses e destruin<strong>do</strong> bandeiras. A revoltafoi conti<strong>da</strong> em menos de <strong>do</strong>is meses. Como punição, além de executarquatro líderes, o governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro cortouum pe<strong>da</strong>ço de Pernambuco. Declarou, em setembro de 1817, aemancipação de Alagoas, comarca que tinha permaneci<strong>do</strong> fiel à cortedurante a revolta <strong>da</strong>quele ano.”Quatro déca<strong>da</strong>s depois, um castigo pareci<strong>do</strong> fez surgir o Paraná.Desta vez, foi para punir São Paulo. Em 1842, os políticos <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong>Liberal, concentra<strong>do</strong>s em São Paulo e Minas Gerais, ganharam as eleiçõesparlamentares. Os conserva<strong>do</strong>res, porém, acusaram os liberais de teremfrau<strong>da</strong><strong>do</strong> o processo eleitoral. Essa suspeita fez <strong>do</strong>m Pedro Segun<strong>do</strong>, naépoca com 16 anos, fechar a Câmara de Deputa<strong>do</strong>s. Os liberais nãoengoliram a dissolução <strong>da</strong> Câmara. Entre discursos inflama<strong>do</strong>s, formarampequenos exércitos para tomar o poder <strong>da</strong>s províncias. Em São Paulo, umamarcha com 1.500 homens, chama<strong>da</strong> Coluna Liberta<strong>do</strong>ra, saiu de Sorocabapara derrubar o presidente (conserva<strong>do</strong>r) <strong>da</strong> província de São Paulo, José <strong>da</strong>Costa Carvalho, o barão de Monte Alegre.


E O PARANÁ, TAMBÉMA tropa foi lidera<strong>da</strong> pelo brigadeiro Rafael Tobias de A<strong>guia</strong>r, entãonamora<strong>do</strong> <strong>da</strong> marquesa de Santos - a ex-amante de <strong>do</strong>m Pedro Primeiro - ehoje nome de uma tropa <strong>da</strong> Polícia Militar de São Paulo com fama detruculenta, a Rota (Ron<strong>da</strong>s Ostensivas Tobias de A<strong>guia</strong>r). Apesar <strong>do</strong> tomarrogante <strong>do</strong>s discursos liberais, a marcha foi conti<strong>da</strong> com facili<strong>da</strong>de pelastropas <strong>da</strong> corte, ten<strong>do</strong> que <strong>da</strong>r meia-volta antes de chegar a São Paulo.Além de Sorocaba, a revolta teve apoio de outras ci<strong>da</strong>des paulistas que eramnúcleo de políticos liberais, como Taubaté, Pin<strong>da</strong>monhangaba e Lorena.Curitiba e Paranaguá, outras duas importantes ci<strong>da</strong>des então paulistas,ficaram quietinhas, mesmo sen<strong>do</strong> também um núcleo de políticos liberais.A timidez <strong>do</strong>s paranaenses e uma vontade de retaliação a São Paulofacilitaram a separação <strong>do</strong> Paraná de São Paulo em 1853. A emancipaçãoteve um forte apoio <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res, sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong> barão de MonteAlegre. Os paulistas não reclamaram: o Paraná, naquela época, era umequivalente ao Acre nos dias de hoje. Não <strong>da</strong>va dinheiro as ci<strong>da</strong>des efazen<strong>da</strong>s de café <strong>do</strong> norte paranaense só apareceriam no século 20. Como aimigração europeia ain<strong>da</strong> estava começan<strong>do</strong>, a população <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, hojesexta maior <strong>do</strong> país, era de 60 mil habitantes, menos de 1% <strong>da</strong> população<strong>brasil</strong>eira <strong>da</strong> época.É interessante imaginar o que poderia ser feito com esse dinheiro.Uma nova linha de metrô com 13 quilômetros de extensão, como a LinhaAmarela construí<strong>da</strong> em São Paulo enquanto este livro é escrito, exige <strong>do</strong>


governo, em valores de 2007, um investimento inicial de 700 milhões dereais — o resto vem de empréstimos de instituições como o Banco Mundialque acabam sen<strong>do</strong> pagos com os bilhetes <strong>do</strong>s passageiros. Com metade<strong>da</strong>queles 28 bilhões de reais queima<strong>do</strong>s com o Acre nos últimos cem anos,poderiam ser cria<strong>da</strong>s pelo menos vinte linhas de metrô. Se fossemconstruí<strong>da</strong>s em São Paulo, a ci<strong>da</strong>de teria um sistema de metrô com mais260 quilômetros. Soma<strong>do</strong>s às linhas já existentes, seriam 320 quilômetros, oque faria o metrô de São Paulo ser maior que o de Paris, um <strong>do</strong>s maiores <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>. Um cenário pareci<strong>do</strong> seria possível em outras capitais, já queexistem vários outros Acres pelo Brasil: Rondônia, Roraima, Amapá,Tocantins, Alagoas... Esse raciocínio leva a uma conclusão assusta<strong>do</strong>ra. Setivéssemos vendi<strong>do</strong> parte <strong>da</strong> Amazônia ou se algum país tivesse se apossa<strong>do</strong>de pelo menos um pe<strong>da</strong>cinho dela, seríamos hoje muito mais felizes.Quan<strong>do</strong> eu era criança e fazia bagunça demais em casa, minha mãecostumava brincar dizen<strong>do</strong> que, se alguém me sequestrasse, ela <strong>da</strong>ria lmilhão a mais de resgate para o bandi<strong>do</strong> ficar comigo. É mais ou menos oque deveríamos ter feito com o Acre.


ELE NÃO INVENTOU O AVIÃO - NEM O RELÓGIO DE PULSOO avia<strong>do</strong>r mineiro Alberto Santos Dumont foi uma grande figura.Filho de um <strong>do</strong>s maiores cafeicultores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, amigo de magnatas eprincesas e provavelmente gay, era uma estrela <strong>do</strong>s cafés e <strong>do</strong>s bulevares deParis durante a Belle Époque. Nos anos de paz, otimismo e inovação quealegraram a França no começo <strong>do</strong> século 20, enquanto os irmãos Lumièreinventavam o cinema e os expressionistas inovavam a pintura, SantosDumont encantava a capital <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> com os balões. Provou que asestruturas movi<strong>da</strong>s a hidrogênio ou ar quente poderiam ser dirigíveis etornou proprie<strong>da</strong>de pública o direito de alguns de seus inventos, permitin<strong>do</strong>que qualquer pessoa copiasse os projetos de graça. Infelizmente, entre asconquistas <strong>do</strong> <strong>brasil</strong>eiro não se inclui a descoberta <strong>do</strong> avião. Na ver<strong>da</strong>de éum pouco infantil insistirmos que Santos Dumont inventou o avião. Ocrédito dessa descoberta é obviamente <strong>do</strong>s irmãos Orville e Wilbur Wright.Os <strong>do</strong>is fabricantes de bicicletas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s voaram antes, voarammais e contribuíram muito mais para a indústria aeronáutica que o inventor<strong>brasil</strong>eiro.Os patriotas que defendem Santos Dumont como o grandepioneiro <strong>da</strong> aviação costumam se basear em <strong>do</strong>is argumentos principais:1. O argumento <strong>do</strong> registro oficialSantos Dumont foi o primeiro homem a registrar um voocontrolável com um objeto mais pesa<strong>do</strong> que o ar (e não um balão de ar


quente). Essa façanha ocorreu no dia 12 de novembro de 1906, no Campode Bagatelle, arre<strong>do</strong>res de Paris. A bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> 14-Bis, ele voou uma distânciade 220 metros. Apesar de ter atingi<strong>do</strong> uma altura máxima de 6 metros,conquistou um prêmio de 1.500 francos <strong>do</strong> Aeroclube Francês, destina<strong>do</strong> aquem conseguisse voar por mais de 100 metros de distância. Já os irmãosAmericanos Orville e Wilbur Wright e outros pioneiros, que afirmam tervoa<strong>do</strong> antes de1906, não registraram o feito nem o comprovaram em público como fez o<strong>brasil</strong>eiro.2. O argumento <strong>do</strong> estilingueOs aviões <strong>do</strong>s irmãos Wright não saíam <strong>do</strong> chão usan<strong>do</strong> força própria. Umacatapulta os impulsionava no momento <strong>da</strong> decolagem, que também erafacilita<strong>da</strong> por uma linha de trilhos em declive. Como o comitê francês quepremiou Santos Dumont proibia forças externas empurran<strong>do</strong> os aparelhos,a façanha <strong>do</strong>s Wright é inváli<strong>da</strong>. Já o 14-Bis de Santos Dumont realizouum voo autônomo, impulsiona<strong>do</strong> por um motor próprio.Veja a seguir cinco razões para não acreditar nesses <strong>do</strong>isargumentos. E uma boa história sobre prováveis picaretagens <strong>do</strong> grandeherói <strong>brasil</strong>eiro.construía balõesEnquanto os irmãos Wright inventavam o avião, Santos DumontÉ 17 de dezembro de 1903. Das 10 horas e 35 minutos até o meiodia,os irmãos Orville e Wilbur Wright fazem pequenos voos (de 36, 53, 61e 260 metros) numa praia perto de Kitty Hawk, Carolina <strong>do</strong> Norte,


Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. O Museu <strong>do</strong> Ar e <strong>do</strong> Espaço, <strong>da</strong> França, e a AssociaçãoAeronáutica Internacional reconhecem o episódio como a primeira vez emque o homem saiu <strong>do</strong> chão com uma máquina dirigível mais pesa<strong>da</strong> que oar. O Flyer 1 usa correntes de bicicleta, madeiras de construir casas e,exatamente como os aviões <strong>do</strong> futuro, hélices, um motor a gasolina e asaslevemente curvas. O garoto Johnny Moore, o salva-vi<strong>da</strong>s John Daniels emais outras duas pessoas testemunham o fato; uma foto o registra. Umopera<strong>do</strong>r de telégrafo transmite a notícia para o pai, fazen<strong>do</strong> a novi<strong>da</strong>de,contra a vontade <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is irmãos, vazar para a imprensa. O jornal DaytonDaily News começa citan<strong>do</strong> um homem que na época fazia sucesso mundialcom balões dirigíveis:GAROTOS DE DAYTON IMITAM O GRANDE SANTOSDUMONTOrville e Wilbur Wright construíram um avião que fez três testescom sucesso.O jornal logo acrescenta uma novi<strong>da</strong>de frente ao balonismo:O Wright Flyer é uma máquina de voar de ver<strong>da</strong>de. Não tem bolsasde ar ou balão de nenhum tipo, mas é suporta<strong>da</strong> por um par de aerocurvesou velas. E a energia vem de um motor a gasolina.Na mesma época, Santos Dumont mal imagina que pode sair <strong>do</strong>chão com um aparelho desprovi<strong>do</strong> de bolsas de ar quente. Os balões lherendiam fama mundial desde 1901, quan<strong>do</strong>, a bor<strong>do</strong> de um modeloalonga<strong>do</strong>, com hélice e um leme, conseguiu <strong>da</strong>r uma volta na Torre Eiffel.Em 1903, o <strong>brasil</strong>eiro não quer aban<strong>do</strong>nar os balões, pelo contrário. Achaque eles são o futuro <strong>do</strong> transporte urbano. Enquanto, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,


os irmãos Wright voam em aparelhos motoriza<strong>do</strong>s com asas levementecurva<strong>da</strong>s, o <strong>brasil</strong>eiro constrói o dirigível-ônibus. Trata-se de um balão comdez cadeiras enfileira<strong>da</strong>s. O aparelho nunca decolou com mais de umapessoa e não deixou lega<strong>do</strong> nem para o balonismo nem para a aviaçãomoderna.A façanha de Santos Dumont abriu caminho para a criação de enormesbalões transatlânticos, como o Zepelim.Há, sim, provas e testemunhas <strong>do</strong>s voos <strong>do</strong>s irmãos WrightÉ ver<strong>da</strong>de que não houve registro oficial <strong>do</strong> voo <strong>do</strong>s americanos,sobretu<strong>do</strong> porque não existia, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, prêmios e concursospara pioneiros iguais aos que havia na França. Também porque os <strong>do</strong>isirmãos estavam muito mais preocupa<strong>do</strong>s em ganhar dinheiro com afabricação de seu projeto que conquistar prêmios e notícias adulatórias nosjornais. Quan<strong>do</strong> alguém perguntava por que eles não faziam voos públicos,os <strong>do</strong>is diziam: ”Não somos artistas de circo”.Além <strong>da</strong> discrição, os Wright pensavam que, se alguém patenteasseo avião antes deles, to<strong>do</strong> o esforço em construir as estruturas e testá-las iriapelos ares. Temiam que o projeto fosse copia<strong>do</strong> por outros inventores,sobretu<strong>do</strong> o físico Samuel Langley. Ao contrário <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is bicicleteiros,Langley era um inventor influente. Estu<strong>do</strong>s que ele fez fun<strong>da</strong>mentaram aprimeira medição <strong>do</strong> efeito estufa, realiza<strong>da</strong>s pelo químico sueco SvanteArrhenius. Em 1898, o físico americano construiu um pequeno plana<strong>do</strong>rnão tripula<strong>do</strong>, que voou 1.200 metros. Secretário <strong>do</strong> Instituto Smithsonian,o grande centro de museus e pesquisas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, tinha recebi<strong>do</strong>70 mil dólares <strong>do</strong> governo americano para construir um avião tripula<strong>do</strong>. Seesse inventor renoma<strong>do</strong> copiasse o projeto <strong>do</strong>s Wright, os <strong>do</strong>is irmãos


morreriam tentan<strong>do</strong> provar o plágio. Preferiam, portanto, ter certeza de quehaviam inventa<strong>do</strong> o avião antes de divulgar a descoberta.A certeza chegou em 1904, quan<strong>do</strong> os Wright somaram 45minutos de voo. Estavam tão seguros <strong>do</strong> pioneirismo que resolveramchamar a imprensa. voos desse ano e <strong>do</strong> seguinte foram testemunha<strong>do</strong>s porviajantes, empresários e repórteres. Em outubro de 1905, os <strong>do</strong>is man<strong>da</strong>ramtrinta convites para que testemunhas de credibili<strong>da</strong>de os assistissem. E elasse deslumbraram. No dia 5 de outubro, Wilbur Wright voou com o Flyer 3durante 39 minutos, percorren<strong>do</strong> 38,9 quilômetros. Bateu o recorde dedistância e fez os primeiros voos circulares, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> trinta voltas no campo detestes. Cerca de sessenta pessoas assistiram àquela e a outras demonstrações.A lista de testemunhas incluía o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> terreno onde os voos aconteceram,o presidente de um banco <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Dayton, além de um auditorpúblico, o tesoureiro de uma casa de empréstimos, <strong>do</strong>is farmacêuticos, umadministra<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Correios e um bombeiro. Outra testemunha, AmosRoot, um cria<strong>do</strong>r de abelhas meti<strong>do</strong> a jornalista, escreveu uma carta para arevista Scientific American oferecen<strong>do</strong> um artigo sobre a descoberta <strong>do</strong>sirmãos. Os editores recusaram — provavelmente porque naquela épocaanúncios assim eram comuns e quase sempre infun<strong>da</strong><strong>do</strong>s. A revistadesconfiava <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is bicicleteiros. Em fevereiro de 1906, um de seus artigosperguntava se os <strong>do</strong>is eram ”aeronautas ou mentirosos”, visto que tentavamvender seu projeto antes de fazer demonstrações aos compra<strong>do</strong>res. Um anodepois, porém, a Scientific American admitiu o erro. Depois de entrevistar17 testemunhas <strong>do</strong>s voos, a revista voltou atrás e concor<strong>do</strong>u com a versão<strong>do</strong>s Wright.Um ano antes de Santos Dumont exibir-se com o 14-Bis, voar jáera uma rotina para os irmãos Wright. Depois <strong>do</strong>s voos espetaculares de


1905, eles resolveram encerrar a fase de testes. Dedicaram-se a vender aideia e ganhar dinheiro com ela. No dia 19 de outubro de 1905, escreverampara o Departamento de Guerra <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s já com um toque dearrogância:Não pensamos em pedir aju<strong>da</strong> financeira <strong>do</strong> governo. Nóspropomos vender os resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s experimentos feitos com nosso própriodinheiro.Também pediram detalhes <strong>do</strong> negócio:Não podemos fixar um preço nem um prazo de entrega, até ter umaideia <strong>da</strong>s qualificações necessárias para a máquina. Também precisamossaber se vocês desejam reservar o monopólio <strong>do</strong> uso dessa invenção, ou sepermitirão que aceitemos pedi<strong>do</strong>s de máquinas similares para outrosgovernos, e para <strong>da</strong>r demonstrações públicas etc.Se não houve demonstrações na França como aconteceu com o 14-Bis, existem ao menos <strong>do</strong>cumentos provan<strong>do</strong> que os Wright construíamaviões muito antes de Santos Dumont. Em maio de 1906, os <strong>do</strong>isobtiveram o registro de patente número 821.393, referente a controles deuma máquina de voar. A patente contém esboços <strong>do</strong> Flyer 1, detalhan<strong>do</strong>dimensões e o funcionamento <strong>do</strong>s mecanismos de aerodinâmica e controle,possibilitan<strong>do</strong> máquinas voarem para os la<strong>do</strong>s, para cima e para baixo. Nadescrição <strong>do</strong> projeto, os irmãos definem sua criação: ”Nossa invenção érelaciona<strong>da</strong> à classe de máquinas de voar em que o peso é sustenta<strong>do</strong> porreações resultantes em aeroplanos sob um pequeno ângulo de incidência,através <strong>da</strong> aplicação de força mecânica ou pela utilização <strong>da</strong> força <strong>da</strong>gravi<strong>da</strong>de”. Lembra um avião, não? A patente (registra<strong>da</strong>, comprova<strong>da</strong> eexistente até hoje) foi requeri<strong>da</strong> três anos antes, ou seja, em 1903. Demorou


para ser aprova<strong>da</strong>, mas nem tanto. Saiu em maio de 1906, seis meses antesde Santos Dumont ganhar prêmios com o 14-Bis.Se o herói <strong>brasil</strong>eiro não foi tão importante para aviação, pelomenos se atribui a ele, como um prêmio de consolação, a invenção <strong>do</strong>relógio de pulso. A ideia teria surgi<strong>do</strong> num <strong>do</strong>s tantos jantares no ba<strong>da</strong>la<strong>do</strong>restaurante Maxim’s com o joalheiro Louis Cartier.


SANTOS DUMONT NÃO INVENTOU O RELÓGIO DEPULSOQueixan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de de consultar a hora durante os voosnos balões, Santos Dumont teria inspira<strong>do</strong> o amigo a criar o modeloportátil. O <strong>brasil</strong>eiro certamente contribui para o relógio de pulso voltar àmo<strong>da</strong>, mas a invenção <strong>do</strong> aparelho é de muito antes. Relógios assim eramcomuns desde os tempos de Shakespeare- a rainha Elizabeth Primeira (1533-1603) tinha um. Em 1868, aempresa Patek Philippe reinventou a peça, que também foi usa<strong>da</strong> pormilitares nos campos de batalha <strong>do</strong> século 19, como na Guerra Franco-Prussiana.


O 14-BIS NÃO VOAVA: DAVA PULINHOSEm 1905, enquanto os irmãos Wright preparavam o Flyer para a ven<strong>da</strong>,Santos Dumont passava tardes soltan<strong>do</strong> pipa e atiran<strong>do</strong> com arco e flecha.Não era só um passatempo francês. O avia<strong>do</strong>r tentava aprender um poucomais sobre aerodinâmica e asas planas, uma ciência nova para ele.Santos Dumont custou a se convencer de que os balões de ar quentenão eram o futuro <strong>do</strong> transporte aéreo. Na vira<strong>da</strong> <strong>do</strong> século 20, ninguém<strong>do</strong>minava mais essa tecnologia <strong>do</strong> que ele, o que lhe rendia prêmios ehomenagens ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Em 1904, foi convi<strong>da</strong><strong>do</strong> a participar <strong>da</strong>competição aérea <strong>da</strong> feira de Saint Louis, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. A ci<strong>da</strong>desediava as Olimpía<strong>da</strong>s de 1904 e organizava também uma <strong>da</strong>s maioresmostras de ciência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (veja na página 240 o escân<strong>da</strong>lo que envolveuSantos Dumont nessa ci<strong>da</strong>de). De volta a Paris, onde notícias <strong>do</strong>s voos <strong>do</strong>sirmãos Wright já circulavam, o <strong>brasil</strong>eiro percebeu que os pioneirosfranceses já não se importavam tanto com balões. Em outubro de 1904, trêsdesafios foram lança<strong>do</strong>s aos avia<strong>do</strong>res. O maior deles, o Grande Prêmio <strong>da</strong>Aviação, patrocina<strong>do</strong> pelos milionários Ernest Archdeacon e HenryDeutsch, <strong>da</strong>ria 50 mil francos para quem voasse pelo menos um quilômetrocom um aparelho mais pesa<strong>do</strong> que o ar, e não um balão. Santos Dumont,que já tinha ganha<strong>do</strong> um prêmio desses em 1901, quan<strong>do</strong> contornou aTorre Eiffel a bor<strong>do</strong> de um balão, ficou interessadíssimo. Ele a<strong>do</strong>ravaganhar prêmios e sair nos jornais. Com o novo desafio, não perdeu tempo.Correu para estu<strong>da</strong>r as asas planas e apresentar projetos com essatecnologia.


De acor<strong>do</strong> com o biógrafo Paul Hoffman, Santos Dumont pagava trêsempresas de clipping, o serviço de recortes de jornais, para seguir as notíciassobre si próprio.A primeira tentativa é o Número 11, um monoplano (avião com apenasuma linha de asas) sem espaço para o piloto. Reboca<strong>do</strong> por uma lancha paraganhar impulso, o N-11 não descolou <strong>do</strong> rio Sena. Santos Dumont partiuentão para o projeto N-12, um helicóptero com <strong>do</strong>is motores. Tampoucosaiu <strong>do</strong> chão. Sem paciência e sucesso com as máquinas mais pesa<strong>da</strong>s que oar, o avia<strong>do</strong>r voltou aos sau<strong>do</strong>sos balões. O Número 13 é o projeto de umbalão enorme, uma casa flutuante. Seria um aparelho híbri<strong>do</strong>, movi<strong>do</strong> a arquente e gás hidrogênio, que ficaria no ar por dias segui<strong>do</strong>s. O projeto eraum perigo: o gás hidrogênio é um combustível muito potente, usa<strong>do</strong> hojeem dia em foguetes e ônibus espaciais. Adverti<strong>do</strong> pelos amigos sobre apossibili<strong>da</strong>de de o hidrogênio explodir com a chama que aquecia o ar,Santos Dumont cancelou o projeto antes mesmo de apresentá-lo.Veio então o Número 14. O projeto original desse aparelho também eraum híbri<strong>do</strong> - meio balão, meio avião. Uma bolsa de hidrogênio anexa aoavião aliviava o peso de to<strong>da</strong> a estrutura. Como o balão tirava o equilíbrio<strong>da</strong>s asas, Santos Dumont resolveu eliminá-lo (também por causa <strong>da</strong>insistência <strong>do</strong>s amigos de que balão era coisa <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>). O N-14 era umamáquina enorme, com dez metros de comprimento e <strong>do</strong>ze de largura. Aocontrário de quase to<strong>do</strong>s os aviões posteriores, tinha a hélice atrás e as asasna frente. O piloto, como em balões, ia em pé, numa cesta, e as asas tinhamformato de caixas. Apesar <strong>da</strong> estranheza <strong>do</strong> aparelho, o avia<strong>do</strong>r resolveuchamar as autori<strong>da</strong>des para assisti-lo. Depois de uma estreia em outubro,surgiu o dia de sua consagração.


Foi em 12 de novembro de 1906. No Campo de Bagatelle, diantede uma multidão, ele ligou o motor improvisa<strong>do</strong> de um automóvel epercorreu, dentro <strong>do</strong> cesto <strong>do</strong> 14-Bis, 220 metros, chegan<strong>do</strong> a uma alturamáxima de 6 metros. Sem saber que os americanos já tinham voa<strong>do</strong> muitomais nos anos anteriores, os jornais franceses estamparam Santos Dumontcomo o grande pioneiro aéreo. O <strong>brasil</strong>eiro, porém, não ganhou os 50 milfrancos <strong>do</strong> Grande Prêmio <strong>da</strong> Aviação, já que percorreu menos de umquilômetro. Levou <strong>do</strong>is prêmios muito menores: 1.500 francos <strong>do</strong> prêmio<strong>do</strong> Aeroclube, destina<strong>do</strong> a quem conseguisse voar mais de 100 metros comum avião mais pesa<strong>do</strong> que o ar, e 3 mil francos ofereci<strong>do</strong>s por ErnestArchdeacon para quem voasse mais de 25 metros (o milionário era maisgeneroso que o Aeroclube). É preciso repetir essa informação: havia umgrande prêmio para avia<strong>do</strong>res na França, que Santos Dumont não ganhou.Seu feito de novembro de 1906, que os patriotas defendem como o grandedia <strong>da</strong> invenção <strong>do</strong> avião, rendeu apenas prêmios de consolação. O GrandePrêmio foi conquista<strong>do</strong> em 1908 pelo avia<strong>do</strong>r Henri Farman.A distância <strong>do</strong> principal voo <strong>do</strong> 14-Bis foi 180 vezes menor que a<strong>do</strong> voo mais longo <strong>do</strong>s Wright em 1905. Um ano antes de Santos Dumontcriar o 14-Bis, os irmãos americanos voaram cerca de cinquenta vezes,percorren<strong>do</strong> uma distância de 39,5 quilômetros de uma vez só.O herói <strong>brasil</strong>eiro só voaria mais uma vez com o 14-Bis, em abril de1907. Depois de um voo de 30 metros de distância, a máquina sedesequilibrou bruscamente e bateu no chão. A asa esquer<strong>da</strong> despe<strong>da</strong>çou-se.


É instigante imaginar Santos Dumont exatamente nesse momento. Apósmeses tentan<strong>do</strong> tirar o aparelho <strong>do</strong> chão e mantê-lo equilibra<strong>do</strong> no ar, ele sevê dentro de uma geringonça defeituosa e quebra<strong>da</strong>. Em silêncio esecretamente, deve ter percebi<strong>do</strong> a ver<strong>da</strong>de <strong>do</strong>lorosa: o 14-Bis não voava.No máximo, <strong>da</strong>va uns pulinhos.O projeto foi aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. Seu ”pato”, como era chama<strong>do</strong> pelosfranceses(O apeli<strong>do</strong> canard - ”pato” em francês acabou nomean<strong>do</strong> um estilode avião em que o leme fica na parte <strong>da</strong> frente, antes <strong>da</strong>s asas), deixaria umlega<strong>do</strong> pequeno. Nem Santos Dumont nem nenhum outro avia<strong>do</strong>r levariampara frente a ideia de um avião forma<strong>do</strong> com asas em forma de caixa e umacesta de balão para levar o piloto. A comparação <strong>do</strong> 14-Bis com um patonão é de to<strong>do</strong> injusta: soa até como um elogio. Entre as espécies de patos,há diversas aves migratórias, capazes de voar centenas de quilômetros a1.500 metros de altura — superan<strong>do</strong> de longe os limites <strong>do</strong> 14-Bis.


OS FRANCESES ESQUECERAM SANTOS DUMONTQUANDO CONHECERAM OS WRIGHTQuan<strong>do</strong> a notícia <strong>do</strong> voo de Santos Dumont chegou aos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s, os irmãos Wright deram de ombros. Disseram aos jornalistas que afaçanha não tinha para eles ”o mesmo grau de relevância que as pessoas <strong>do</strong>outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Atlântico atribuem”. Nessa época, não estavam interessa<strong>do</strong>sem fazer aviões voar, mas em vendê-los. Em outubro (um mês antes <strong>do</strong>grande voo de Santos Dumont), já fechavam acor<strong>do</strong>s comerciais. CharlesTaylor, um homem de negócios de Nova York, conseguiu permissão paraser o representante de ven<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s Wright na França, Inglaterra eAlemanha. Em maio de 1907, Howard Taft, secretário de Defesa <strong>do</strong>presidente Americano Theo<strong>do</strong>re Roosevelt, escreveu aos Wright pedin<strong>do</strong>que apresentassem uma proposta de ven<strong>da</strong> em série de aviões e instruçõesde voo. Os <strong>do</strong>is irmãos voltaram para a oficina, com o objetivo de construirvárias uni<strong>da</strong>des <strong>do</strong> Flyer 3. No ano seguinte, finalmente convenceriam oseuropeus.A Compagnie Générale de Navigation Aérienne, <strong>da</strong> França, tinhase interessa<strong>do</strong> em comprar a patente e fabricar aviões - não, não os deSantos Dumont, mas os <strong>do</strong>s irmãos Wright. Para fechar o contrato, erapreciso uma demonstração. Ela aconteceu em 8 de agosto de 1908, em LeMans, a 30 quilometros de Paris. Wilbur Wright deixou os francesesestupefatos com seus longos, altos e ininterruptos voos em forma de oito.”O senhor Wright tem to<strong>do</strong>s nós em suas mãos”, disse, depois <strong>do</strong>s testes,Louis Blériot, amigo de Santos Dumont e avia<strong>do</strong>r que no ano seguinte seriaprimeiro homem a sobrevoar o canal <strong>da</strong> Mancha. Uma declaração ain<strong>da</strong>


mais efusiva veio de Ernest Archdeacon, o milionário que <strong>do</strong>is anos antestinha <strong>da</strong><strong>do</strong> 3 mil francos a Santos Dumont. Disse ele:Por muito tempo, os irmãos Wright foram acusa<strong>do</strong>s de seremimpostores. Hoje eles são venera<strong>do</strong>s na França e eu me incluo com prazerentre os primeiros a se corrigir.Os irmãos usavam mesmo uma catapulta e trilhos para impulsionaro Flyer. O mecanismo simplificava a decolagem. Ganhan<strong>do</strong> impulso sobreum par de ro<strong>da</strong>s de bicicleta que corria em trilhos, o avião não sofriasolavancos causa<strong>do</strong>s por buracos ou elevações <strong>do</strong> chão. Além disso, as ro<strong>da</strong>sdeixam o avião mais pesa<strong>do</strong>, o que aumentava a distância que tinha de serpercorri<strong>da</strong> durante a decolagem. Com um contrapeso de 700 quiloscatapultan<strong>do</strong> o avião, os trilhos poderiam ser mais curtos - com apenas 20em vez de 70 metros -, e não precisavam ficar na direção <strong>do</strong> vento. Esseartifício aju<strong>da</strong>va, mas não era imprescindível. Os primeiros voos <strong>da</strong> história,em dezembro de 1903, e outros quarenta (bem mais altos e longos que osde Santos Dumont) aconteceram antes de eles criarem o sistema deimpulso. Em 1908, nas demonstrações <strong>da</strong> França, os técnicos queobservaram o voo de Wilbur Wright questionaram o invento porque eleusava uma força exterior para a decolagem. O americano sequer discutiu.Resolveu decolar sem os trilhos e a catapulta. Voou e quebrou recordes <strong>do</strong>mesmo mo<strong>do</strong>.Entre agosto e novembro de 1908, Wilbur Wright ganharia 4.500francos <strong>do</strong> Aeroclube Francês, por bater o recorde de distância e duração devoo único, o recorde de distância e duração em voo com uma passageira e<strong>do</strong>is recordes de altura. No dia 31 de dezembro, para fechar asapresentações na França, ele ficou no ar durante 2 horas, 18 minutos e 33segun<strong>do</strong>s. Ex-mecânico de bicicletas que resolveu fazer aviões, homem que


ecusava hotéis para <strong>do</strong>rmir no campo de testes, embaixo <strong>da</strong> asa <strong>do</strong> seuinvento, Wilbur voava tão sem cerimônia e quebrava recordes com tantafacili<strong>da</strong>de que, aos olhos franceses, deve ter fica<strong>do</strong> a ideia de que ele voava jáhá alguns anos, talvez desde 1903, como afirmava. ”Quan<strong>do</strong> os irmãosWright realizaram suas demonstrações perto de Mans em 1908, to<strong>do</strong>s osconstrutores franceses disseram: ’Temos que rever nossos estu<strong>do</strong>s’”, afirmaStéphane Nicolaou, historia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Museu <strong>do</strong> Ar e <strong>do</strong> Espaço <strong>da</strong> França, no<strong>do</strong>cumentário Santos Dumont - O Homem Pode Voar, produzi<strong>do</strong> emhomenagem aos cem anos <strong>do</strong> 14-Bis. ”Eles ficaram entusiasma<strong>do</strong>s e aomesmo tempo um pouco abati<strong>do</strong>s por não terem chega<strong>do</strong> àquele ponto.”Em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> (com exceção <strong>do</strong> Brasil), a polêmica sobre opioneirismo <strong>do</strong> avião acabou ali. Em 1908, os Wright mostraram que acriação <strong>do</strong> avião tinha ultrapassa<strong>do</strong> a fase de testes e façanhasextraordinárias. O avião já era uma reali<strong>da</strong>de, bastava apenas alcançar aprodução industrial. O mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> havia se <strong>da</strong><strong>do</strong> conta de que os irmãosamericanos eram incomparavelmente mais importantes para o pioneirismo<strong>da</strong> aviação. ”Até mesmo os franceses mais nacionalistas convenceram-se deque os Wright realmente <strong>do</strong>minavam as máquinas mais pesa<strong>da</strong>s que o ar,pois Santos Dumont permanecera no ar por pouco tempo”, afirma ojornalista Paul Hoffman, ex-diretor-presidente <strong>da</strong> Encyclopedia Britannicae autor de Asas <strong>da</strong> Loucura, a melhor biografia sobre Santos Dumont.Há traços interessantes na vi<strong>da</strong> de Santos Dumont, como o fato deencarar a aviação como uma arte. Também se afirma que era um pacifistaradical. Segun<strong>do</strong> a len<strong>da</strong> em torno de sua morte, em 1932, ele ficou muitotriste depois de ouvir um bombardeio aéreo ocorri<strong>do</strong> perto <strong>do</strong> seu hotel no


Guarujá. Era o auge <strong>da</strong> Guerra Civil, a Revolução Constitucionalista, e SãoPaulo lutava para seseparar <strong>do</strong> Brasil. ”Eu nunca pensei que minha invenção fosse causarderramamento de sangue entre irmãos. O que eu fiz?”, teria dito ele logoantes <strong>do</strong> suicídio.


ELE NÃO ERA PACIFISTAÉ difícil acreditar que o avia<strong>do</strong>r nunca tivesse pensa<strong>do</strong> na utili<strong>da</strong>demilitar <strong>do</strong>s aviões. Assim como as agências espaciais hoje em dia, ospioneiros <strong>da</strong> aviação se interessavam muito pela utili<strong>da</strong>de estratégica <strong>do</strong>sinventos. Quanto mais importância a tecnologia tivesse, mais atenção edinheiro arreca<strong>da</strong>riam. Além disso, elementos voa<strong>do</strong>res como os balõesparticipavam de guerras havia muito tempo. No século 19, estavam naGuerra <strong>da</strong> Secessão nos EUA e foram usa<strong>do</strong>s até pelo Brasil durante aGuerra <strong>do</strong> Paraguai, para avistar a posição <strong>da</strong>s tropas inimigas nastrincheiras.Na ver<strong>da</strong>de, apesar <strong>da</strong> pecha de pacifista nos últimos anosde vi<strong>da</strong>, Santos Dumont sabia <strong>da</strong> utili<strong>da</strong>de militar <strong>do</strong>s elementos aéreos e apromovia. Numa carta envia<strong>da</strong> aos jornais americanos em 1904, ele próprioafirma que ”a França a<strong>do</strong>tou meus planos de balões militares e pretendeaproveitá-los na próxima guerra”, e que o Japão solicitava seus balões parauso militar, o que incluía ”jogar explosivos de alta potência em Port Arthur[no Pacífico]”. Guerra no Pacífico, bombas de alta potência... isso lembra osataques atômicos a Hiroshima e Nagasaki.


O MELHOR AVIÃO DE SANTOS DUMONT É MUITOPARECIDO COM O DOS WRIGHTO <strong>brasil</strong>eiro não compareceu a nenhum voo de Wilbur Wright -eles jamais se conheceram. Enquanto o Americano conquistavapersonali<strong>da</strong>des e fábricas <strong>da</strong> França, o <strong>brasil</strong>eiro estava enfurna<strong>do</strong> na oficina,resolven<strong>do</strong> problemas <strong>do</strong> N-19. A estrutura, construí<strong>da</strong> a partir de 1907,ganhou o nome de Demoiselle - ”Senhorita” em francês. A máquina eraquase o contrário <strong>do</strong> 14-Bis e muito pareci<strong>da</strong> com o Flyer que osAmericanos tinham patentea<strong>do</strong>. O piloto ficava embaixo <strong>da</strong>s asas,senta<strong>do</strong>(não mais em pé numa cesta de balões), o leme, na parte de trás; asasas não eram em forma de caixa, mas simples asas levemente curva<strong>da</strong>s. Nosprimeiros testes, o N-19 pousou mal e quebrou. Depois, colocan<strong>do</strong> o motorembaixo <strong>da</strong> cadeira <strong>do</strong> piloto, Santos Dumont conseguiu fazer <strong>do</strong>Demoiselle um avião confiável, dirigível, que não <strong>da</strong>va apenas pulinhos.Após apresentá-lo em março de 1909 num campo entre Paris e Versalhes,percebeu que tinha enfim chega<strong>do</strong> a um avião de ver<strong>da</strong>de.Com o Demoiselle, o avia<strong>do</strong>r <strong>brasil</strong>eiro quebraria recordesrelevantes: bateria 90 quilômetros por hora no fim de setembro de 1909.Também conseguiu, finalmente, criar alguma coisa cujo lega<strong>do</strong> seestenderia até hoje. O Demoiselle N-20 inspirou não exatamente o avião,mas o popular ultraleve. O pioneiro tornou públicos os direitos <strong>do</strong> projeto -em 1910, a revista Popular Mechanics publicou a planta <strong>do</strong> Demoiselle,fazen<strong>do</strong> aviões similares brotarem em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>.Apesar <strong>do</strong> sucesso como um <strong>do</strong>s grandes pioneiros <strong>da</strong> aviação, o<strong>brasil</strong>eiro já não se animava como antes. Foi pouco a pouco se isolan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s


amigos, acusan<strong>do</strong>-os de o terem aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. Descobriu que sofria deesclerose múltipla e foi embora de Paris. Passou a morar numa casa à beiramarem Benerville, na Normandia. Ficou lá até 1914, quan<strong>do</strong> os alemãesdeclararam guerra à França. A vizinhança achou que o <strong>brasil</strong>eiro era umespião, uma vez que ele an<strong>da</strong>va pela vila fazen<strong>do</strong> observações com umtelescópio alemão. Ofendi<strong>do</strong> com a suspeita, ele decidiu se mu<strong>da</strong>r para oúnico lugar onde ain<strong>da</strong> era conheci<strong>do</strong> como o inventor <strong>do</strong> avião: o Brasil.Por aqui, Santos Dumont voltou a ser uma celebri<strong>da</strong>de. O Brasilera um país carente de heróis nacionais e o avia<strong>do</strong>r a<strong>do</strong>rava cumprir essademan<strong>da</strong>. Apesar de ter recupera<strong>do</strong> um restinho <strong>do</strong> estrelato, ele ficariapara sempre ofendi<strong>do</strong> por ter si<strong>do</strong> esqueci<strong>do</strong> pelos franceses. ”Foi umaexperiência penosa para mim ver - depois de to<strong>do</strong> meu trabalho comdirigíveis e máquinas mais pesa<strong>da</strong>s <strong>do</strong> que o ar - a ingratidão <strong>da</strong>queles quehá pouco tempo me cobriam de glória”, escreveu ele em 1929. Foi o próprioSantos Dumont que criou os argumentos contra os irmãos Wright que os<strong>brasil</strong>eiros usam até hoje. Três anos antes de morrer, o grande avia<strong>do</strong>r<strong>brasil</strong>eiro ain<strong>da</strong> se incomo<strong>da</strong>va com os <strong>do</strong>is americanos. Em 1919, semsaber que houve testemunhas e notícias <strong>do</strong>s voos <strong>do</strong>s Wright, ele escreveuum manuscrito chama<strong>do</strong> L’Homme Mécanique. Disse:Os partidários <strong>do</strong>s irmãos Wright dizem que eles voaram naAmérica <strong>do</strong> Norte de 1903 a 1908. Tais voos teriam ocorri<strong>do</strong> perto deDayton, num campo ao longo de uma linha de bonde. Não posso deixar deficar profun<strong>da</strong>mente espanta<strong>do</strong> com essa reivindicação ridícula. Éinexplicável que os irmãos Wright pudessem ter realiza<strong>do</strong> inúmeros voosdurante três anos e meio sem terem si<strong>do</strong> observa<strong>do</strong>s por um único jornalista<strong>da</strong> perspicaz imprensa americana, que tivesse se <strong>da</strong><strong>do</strong> ao trabalho de assistilose de produzir a melhor reportagem <strong>da</strong> época.


Doente, deprimi<strong>do</strong> e enraiveci<strong>do</strong>, Santos Dumont se suici<strong>do</strong>u em1932, num hotel <strong>do</strong> Guarujá, São Paulo, enforca<strong>do</strong> por duas gravatasvermelhas <strong>do</strong>s tempos de pioneiro <strong>do</strong>s céus de Paris.Um mistério ron<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> de Santos Dumont. Quem era o vân<strong>da</strong>loque sabotava seus balões? A questão é levanta<strong>da</strong> pelo jornalista americanoPaul Hoffman, biógrafo <strong>do</strong> <strong>brasil</strong>eiro. Segun<strong>do</strong> Hoffman, pelo menos trêsvezes, em Londres, Paris e Nova York, o balão que levantaria voo foirasga<strong>do</strong> e perfura<strong>do</strong> a faca logo antes <strong>da</strong> apresentação. O caso mais trágicofoi nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, em 1904, onde o <strong>brasil</strong>eiro participaria de umconcurso aéreo <strong>da</strong> feira de Saint Louis.


SANTOS DUMONT ERA UM PICARETA?O evento <strong>da</strong>ria 100 mil dólares a quem percorresse, no menortempo, um trajeto triangular de 16 quilômetros, desde que numa veloci<strong>da</strong>demínima de 32 quilômetros por hora. Santos Dumont era o favorito, masacabou melan<strong>do</strong> a festa. Primeiro, duvi<strong>do</strong>u que o prêmio seria pago e pediuaos organiza<strong>do</strong>res que lhe adiantassem 20 mil dólares (não sem solicitar quemantivessem a aju<strong>da</strong> de custo em segre<strong>do</strong>). Pedi<strong>do</strong> nega<strong>do</strong>: se adiantassemalgum dinheiro ao <strong>brasil</strong>eiro, os organiza<strong>do</strong>res teriam que aju<strong>da</strong>r os outrosparticipantes. Depois, Santos Dumont insistiu para que diminuíssem aveloci<strong>da</strong>de mínima <strong>da</strong> prova. Como era o principal, senão o únicocompeti<strong>do</strong>r, acabou conseguin<strong>do</strong> - a veloci<strong>da</strong>de ficou em 24 quilômetrospor hora. Ain<strong>da</strong> obteve mais uma concessão: o trajeto, em vez de triangular,virou uma reta. Em i<strong>da</strong> e volta, deman<strong>da</strong>ria apenas uma curva. Só entãoSantos Dumont foi à França pegar o balão, voltan<strong>do</strong> a Nova York em 26 dejunho de 1904.Um dia depois de chegar, o avia<strong>do</strong>r foi acor<strong>da</strong><strong>do</strong> com a notícia deque o seu balão N-7 tinha sofri<strong>do</strong> quatro cortes a faca. Os rasgosatravessaram as cama<strong>da</strong>s <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>, resultan<strong>do</strong> em mais dequarenta furos. Nervoso e contraria<strong>do</strong>, ele recusou a aju<strong>da</strong> de voluntáriosque garantiam conseguir consertar o teci<strong>do</strong>. Disse a to<strong>do</strong>s que o consertolevaria tempo demais e não poderia ser feito nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s ”só confionos operários franceses”.Foi então que a polícia e os organiza<strong>do</strong>res <strong>da</strong> feira começaram adesconfiar <strong>do</strong> próprio Santos Dumont como autor <strong>da</strong> sabotagem. O avia<strong>do</strong>rtinha si<strong>do</strong> adverti<strong>do</strong> várias vezes para manter fecha<strong>da</strong> a caixa que envolvia o


alão e para deixar, no hangar, um <strong>do</strong>s seus funcionários como segurançaadicional. Preferiu não fazer na<strong>da</strong> disso. Veio também a notícia de que <strong>do</strong>isde seus balões já tinham si<strong>do</strong> sabota<strong>do</strong>s a faca<strong>da</strong>s, em Paris e em Londres,apenas um mês antes <strong>do</strong> episódio na América. Pareceu, aos investiga<strong>do</strong>resamericanos, meio improvável que o mesmo vân<strong>da</strong>lo acompanhasse SantosDumont somente para sabotá-lo, ou que pessoas diferentes cometessem umcrime tão pareci<strong>do</strong>. Pior: depois se soube que, ao ter o balão sabota<strong>do</strong> emLondres, o <strong>brasil</strong>eiro fechou um acor<strong>do</strong> com expositores ingleses paracobrar ingressos de quem quisesse ver o teci<strong>do</strong> despe<strong>da</strong>ça<strong>do</strong>. De acor<strong>do</strong>com Hoffman, ele tentou o mesmo acor<strong>do</strong> com os organiza<strong>do</strong>res <strong>da</strong>exposição americana, que recusaram a oferta.Nunca se saberá a identi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> misterioso homem que sabotava osbalões de Santos Dumont em ca<strong>da</strong> país que ele visitava. O fato é que, noano em que os irmãos Wright Americanos fizeram mais de cem voos (sembalões), Santos Dumont foi embora <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s sem tirar os pés <strong>do</strong>chão, e deixan<strong>do</strong> lá a fama de ser um tremen<strong>do</strong> picareta. Não há provas deque o <strong>brasil</strong>eiro tenha ordena<strong>do</strong> a própria sabotagem. Mas parece estranho,não?


O REVOLUCIONÁRIO TRAPALHÃOQuan<strong>do</strong> se fala em comunista <strong>brasil</strong>eiro, o nome que primeiro vemà mente é o <strong>do</strong> gaúcho Luís Carlos Prestes. Ninguém passou tanto tempopregan<strong>do</strong> a revolução no Brasil. Começou em 1924, lideran<strong>do</strong> uma rebeliãode militares gaúchos, e acabou só ao morrer, em 1990, depois de apoiarLeonel Brizola nas eleições presidenciais. Apesar de tantos anos detentativa, ele não chegou à vitória - o máximo que conseguiu foi um cargode sena<strong>do</strong>r em 1945, destituí<strong>do</strong> três anos depois. Sorte nossa. Se tomasse opoder <strong>do</strong> Brasil, Luís Carlos Prestes provavelmente seria mais um <strong>do</strong>stantos tiranos socialistas que ain<strong>da</strong> hoje estarrecem o mun<strong>do</strong>. Sua atuaçãorevolucionária deixou à mostra traços típicos de dita<strong>do</strong>res socialistas, comoa obsessão pela traição e a intolerância com opiniões diferentes. Equívocos,trapalha<strong>da</strong>s e atos irresponsáveis cometi<strong>do</strong>s por ele resultaram na sabotagemde seus próprios planos e na prisão de seus companheiros, em estupros esaques realiza<strong>do</strong>s por seus lidera<strong>do</strong>s e até mesmo na execução, ordena<strong>da</strong> porele, de uma garota de 16 anos.


PARA QUE, AFINAL, SERVIA A COLUNA PRESTES?Em 1924, jovens militares saíram arma<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s quartéis e invadiramSão Paulo. Forçaram a fuga <strong>do</strong> presidente <strong>da</strong> província (equivalente <strong>da</strong>época ao governa<strong>do</strong>r) e exigiram a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> presidente <strong>da</strong> República, ArturBernardes. Quan<strong>do</strong> tropas federais revi<strong>da</strong>ram, atacan<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de comaviões, os cerca de 3 mil rebeldes resolveram fugir para su<strong>do</strong>este, rumo aoParaná. Era época <strong>do</strong> tenentismo, a revolta de jovens militares contra aRepública Velha, e centenas de outros capitães e tenentes <strong>do</strong> país tomavama mesma atitude. Em Foz <strong>do</strong> Iguaçu, os paulistas se uniram a militaresrebeldes que vinham <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul. Um de seus líderes era LuísCarlos Prestes, um capitão de 26 anos que havia aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> o PrimeiroBatalhão Ferroviário de Santo Ângelo. A união de forças gaúchas epaulistas poderia resultar numa nova investi<strong>da</strong> contra São Paulo ou contra oRio de Janeiro. Em vez disso, o ban<strong>do</strong> decidiu acatar uma ideia de Prestes:seguir viagem por regiões remotas, pobres e desprotegi<strong>da</strong>s <strong>do</strong> Brasil. DoParaná, atravessaram Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e cortaram to<strong>do</strong>sos esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Nordeste. Passaram <strong>do</strong>is anos cavalgan<strong>do</strong> cerca de 15 milquilômetros pelo país, sem nunca se aproximar <strong>do</strong> centro <strong>do</strong> governofederal. Acabaram voltan<strong>do</strong> ao Centro-Oeste e se refugian<strong>do</strong> na Bolívia eno Paraguai, em 1927.Depois de tantas déca<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> é difícil entender por que, afinal decontas, aquele grupo viajou tanto. De acor<strong>do</strong> com diversos livros, o objetivo<strong>da</strong> aventura quilométrica era constatar ”de perto a exploração <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>spopulares pelos líderes econômicos locais”, ”denunciar a miséria” e”conscientizar a população”. É preciso ter muito boa vontade para acreditar


nisso. O deslocamento de dezenas ou centenas de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s exige umagrande logística: ga<strong>do</strong> para alimentá-los, carregamentos de farinha, locaisde pouso, água que não provoque <strong>do</strong>enças. Os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s dificilmenteempreenderiam uma expedição tão custosa só para constatar a miséria <strong>da</strong>população. O mais sensato é imaginar que eles planejavam reunir maissol<strong>da</strong><strong>do</strong>s para formar uma tropa capaz de enfrentar o exército <strong>brasil</strong>eiro.Mas, conforme mostram relatos e <strong>do</strong>cumentos recentemente descobertos,os integrantes <strong>da</strong> Coluna Prestes estiveram bem longe de ter apoio popularou mesmo de tentar conquistá-lo. E não só conheceram a miséria <strong>do</strong>interior <strong>do</strong> Brasil como a tornaram ain<strong>da</strong> pior.Em 1999, o Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) <strong>da</strong>Fun<strong>da</strong>ção Getúlio Vargas, abriu um conjunto de 28 mil cartas, manuscritose fotos de Juarez Távora. Um <strong>do</strong>s sobreviventes <strong>da</strong> Revolta <strong>do</strong> Forte deCopacabana, de 1922, a primeira revolta tenentista, Távora formava comPrestes e Miguel Costa a cúpula <strong>da</strong> Coluna. Entre a papela<strong>da</strong> de seuarquivo, havia cartas escritas e recebi<strong>da</strong>s por esses líderes. As mensagens sãoa melhor fonte até hoje descoberta para analisar o cotidiano <strong>do</strong>s cavaleiros ea convivência deles com os povoa<strong>do</strong>s por onde passaram. Revelam que ogrupo não era recebi<strong>do</strong> com festas por onde passava - pelo contrário.Saques, estupros, assassinatos e outras atroci<strong>da</strong>des deixavam a populaçãoaterroriza<strong>da</strong>. Ao saber <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>do</strong>s arruaceiros, o povo costumava fugir<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de para evitar que seu rebanho acabasse no prato <strong>do</strong>s invasores. ”Nãose pôde impedir o esvaziamento quase completo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de”, escreveu umcoronel goiano que apoiava a Coluna. ”A passagem <strong>da</strong> Colunarevolucionária através de nossos sertões e por nossa ci<strong>da</strong>de tem si<strong>do</strong> umlamentável desastre que ficará por alguns anos irreparável. Em poucos dias,


nosso povo, na maioria pobre, viu-se reduzi<strong>do</strong> à quase completa miséria”,escreveu, em outubro de 1925, o padre José Maria Amorim, de Goiás.Mesmo entre os integrantes <strong>do</strong> movimento, a violência sem senti<strong>do</strong>espantava. Um capitão escreveu aos líderes reclaman<strong>do</strong> <strong>do</strong>s saques, estuprose incêndios causa<strong>do</strong>s pelos ”revolucionários” no Paraná, no Paraguai e noMato Grosso. ”Tropa que diz bater-se pela liber<strong>da</strong>de dum povo não praticaincêndios, saques e não viola senhoras indefesas, como até aqui se tempratica<strong>do</strong>”, escreveu o capitão Antonio Teo<strong>do</strong>ro. Cinco anos antes <strong>da</strong>liberação desses <strong>do</strong>cumentos, a jornalista Eliane Brum tinha descoberto omesmo rastro de crimes ao refazer o trajeto <strong>da</strong> Coluna Prestes.Entrevistan<strong>do</strong> antigos mora<strong>do</strong>res que presenciaram a passagem <strong>da</strong> Coluna,ela se deu conta de que a maioria deles guar<strong>da</strong>va ódio de Prestes e seussegui<strong>do</strong>res. Histórias de violência eram comuns <strong>do</strong> Paraná à Paraíba. Aopassar pela ci<strong>da</strong>de de Posse, hoje Tocantins, os cavaleiros torturarammora<strong>do</strong>res para saber onde eles tinham escondi<strong>do</strong> o ga<strong>do</strong>. Perto <strong>da</strong>li,mora<strong>do</strong>res disseram à jornalista que, em abril de 1926, integrantes <strong>da</strong>Coluna invadiram uma casa para estuprar uma mulher na frente de seumari<strong>do</strong>. No Piauí, havia a história de um rapaz que não queria liberar oga<strong>do</strong> aos invasores e por isso acabou amarra<strong>do</strong>, nu e obriga<strong>do</strong> a correr atrás<strong>do</strong>s rebeldes. Com base nessas histórias, surge outra finali<strong>da</strong>de possível paraa Coluna Prestes. Talvez ela fosse o objetivo em si, e não um meio paralutar por ideais democráticos ou para instalar um novo governo no Brasil. Amaioria de seus integrantes, pelo que sugerem os <strong>do</strong>cumentos edepoimentos, queria se aventurar pelo Brasil tiran<strong>do</strong> proveito de ci<strong>da</strong>dessem proteção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Só isso.


Três anos depois <strong>do</strong> fim <strong>da</strong> Coluna Prestes, uma revolta maisfoca<strong>da</strong> e organiza<strong>da</strong> sairia de Minas Gerais e <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul. Emuma semana, seu líder, Getúlio Vargas, tomaria o poder <strong>do</strong> Brasil.


COMO SABOTAR A PRÓPRIA REBELIÃODepois de azucrinar o país com sua Coluna, Prestes se refugiaria naArgentina. Em 1930, pouco antes de Getúlio Vargas virar presidente, eledeclarou que tinha aderi<strong>do</strong> ao comunismo. Revolucionário conheci<strong>do</strong>, foi àUnião Soviética buscar apoio de Josef Stálin, um <strong>do</strong>s maiores tiranos <strong>da</strong>história, para a revolução socialista no Brasil. Voltou em 1934,acompanha<strong>do</strong> por uma equipe internacional de conspira<strong>do</strong>res.Diferentemente <strong>do</strong>s guerrilheiros <strong>do</strong>s anos 1960, quase sempre jovensingênuos atraí<strong>do</strong>s pelo socialismo (veja na segun<strong>da</strong> parte deste capítulo), ogrupo de comunistas <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930 era forma<strong>do</strong> por grandes terroristase revolucionários experientes. Luís Carlos Prestes e os membros <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong>Comunista Brasileiro tramavam o golpe com a aju<strong>da</strong> de 22 estrangeirosenvia<strong>do</strong>s por Moscou. Entre eles, estava Pavel Stuchevski, <strong>da</strong> políciapolítica soviética, Olga Benário, agente <strong>do</strong> Exército Vermelho, ArthurEwert, que tinha si<strong>do</strong> deputa<strong>do</strong> comunista na Alemanha, e Jonny de Graaf,um terrorista especializa<strong>do</strong> em ataques a bomba. Esses conspira<strong>do</strong>res viviamclandestinos, escondi<strong>do</strong>s em apartamentos de Ipanema e Copacabana,usan<strong>do</strong> identi<strong>da</strong>des falsas e se comunican<strong>do</strong> com Moscou por cartas cifra<strong>da</strong>se entre si por meio de bilhetes cheios de códigos e abreviações. Recebiamsalários e verbas para despesas direto <strong>do</strong> governo de Stálin, por meio <strong>da</strong>representação soviética no Uruguai e de comerciantes laranjas de São Pauloe Buenos Aires. No livro Camara<strong>da</strong>s, o jornalista William Waack, que nadéca<strong>da</strong> de 1990 teve acesso a registros soviéticos sobre os comunistas <strong>do</strong>Brasil, revelou que não foi pouco o dinheiro vermelho investi<strong>do</strong> por aqui.Em 1935, o governo de Stálin gastou 60 mil dólares com a operação


asileira, uma fortuna para a época. Esse esquema caro e organiza<strong>do</strong>esbarrou num problema. Luís Carlos Prestes, o líder <strong>da</strong> revolução, feztantas trapalha<strong>da</strong>s que sabotou os planos de to<strong>do</strong> o grupo.As lambanças de Prestes começaram em 25 novembro de 1935,logo depois de levantes militares estourarem em Natal e Recife. Osconspira<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Rio de Janeiro concluíram que deveriam apoiar os oficiaisnordestinos tentan<strong>do</strong> derrubar Getúlio Vargas. Prestes garantia que tinhaum grande apoio de tenentes cariocas e que poderia acioná-los a qualquermomento. Para <strong>da</strong>r tempo de mobilizar quartéis e sindicatos de to<strong>do</strong> o país,os comunistas marcaram o golpe para <strong>do</strong>is dias depois, 27 de novembro.Assim que a decisão foi toma<strong>da</strong>, Prestes correu a disparar bilhetes para seusconheci<strong>do</strong>s. Descobriu que os homens com quem contava não estavamprepara<strong>do</strong>s - muitos tinham até si<strong>do</strong> destituí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> cargo pelo governoVargas. O revolucionário realizou também um passo essencial para quemquer sabotar o próprio golpe de Esta<strong>do</strong>: avisar seus inimigos. Entre aspessoas para quem enviou convites para aderir à revolução, estava NewtonEstillac Leal, coman<strong>da</strong>nte <strong>do</strong> Grupo de Obuses de São Cristóvão. Ohomem nem de longe pensava em participar de uma revolução comunista.Ao receber o bilhete de Prestes, o coman<strong>da</strong>nte tentou prender o mensageiroe foi corren<strong>do</strong> avisar o governo. A essa altura, até mesmo o governobritânico, em Londres, já tinha si<strong>do</strong> informa<strong>do</strong>, por telégrafo, que haveriarebeliões no Brasil. No dia marca<strong>do</strong>, a tentativa de golpe militar deesquer<strong>da</strong> foi derrota<strong>da</strong> mesmo antes mesmo de começar, ganhan<strong>do</strong> oapeli<strong>do</strong> de ”Intentona Comunista”. A polícia chegou às ruas antes <strong>do</strong> povo,que simplesmente não deu as caras. ”Diante <strong>da</strong> pressa, ingenui<strong>da</strong>de edescui<strong>do</strong> - três palavras que caracterizam incompetência - de Prestes nashoras que antecederam o levante, governo nenhum <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> precisava de


agentes duplos ou secretos infiltra<strong>do</strong>s na organização <strong>do</strong>s conspira<strong>do</strong>res”,escreveu o jornalista William Waack.Poucas semanas depois <strong>da</strong> fracassa<strong>da</strong> tentativa de golpe, osconspira<strong>do</strong>res começaram a cair. A combustão espontânea no depósito dematerial de explosivos <strong>do</strong> grupo fez a polícia prender um <strong>do</strong>s membros <strong>do</strong>parti<strong>do</strong>, que sob tortura contou onde morava o casal de espiões alemãesArthur e Elisa Ewert, presos no dia 26 de dezembro. Só então a polícia tevenoção <strong>do</strong> tamanho <strong>do</strong> esquema e de sua ligação com o serviço deespionagem soviético. Encontrou na casa <strong>do</strong>s alemães mais de mil<strong>do</strong>cumentos, entre cartas, tabelas para decifrar códigos, textos assina<strong>do</strong>s porPrestes e uma foto de Olga, então uma desconheci<strong>da</strong> <strong>da</strong> polícia. Aemprega<strong>da</strong> <strong>do</strong> casal sabia o endereço de outros esconderijos e aju<strong>do</strong>u apolícia. Dias depois <strong>da</strong> prisão <strong>do</strong> casal alemão, a polícia chegou aoapartamento de Prestes e Olga. Os <strong>do</strong>is já tinham mu<strong>da</strong><strong>do</strong> de endereço,mas deixaram para trás, dentro de um cofre, centenas de <strong>do</strong>cumentos sobrea conspiração. Prestes tinha instala<strong>do</strong> explosivos no cofre, seguro de quehaveria uma explosão caso a polícia tentasse abri-lo. A polícia tentou, e ocofre não explodiu.Mesmo com a conspiração desmantela<strong>da</strong>, o ”Cavaleiro <strong>da</strong>Esperança” faria mais trapalha<strong>da</strong>s. Apesar <strong>da</strong> insistência de seus colegas,não fugiu <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Teimou em permanecer num esconderijo nobairro <strong>do</strong> Méier, mesmo saben<strong>do</strong> que a polícia estava para encontrá-lo,obrigan<strong>do</strong> Olga, que cui<strong>da</strong>va de sua segurança, a também ficar na ci<strong>da</strong>de.Prestes recebeu por suas próprias fontes (seu serviço de contraespionagemna polícia, composto por ex-integrantes <strong>da</strong> Coluna) aconfirmação de que a repressão fechava o cerco sobre o bairro <strong>do</strong> Méier.Nas déca<strong>da</strong>s seguintes, respondeu quase sempre <strong>da</strong> mesma maneira quan<strong>do</strong>


lhe in<strong>da</strong>garam por que, afinal, não saiu <strong>do</strong> aparelho <strong>da</strong> rua Honório sedispunha de gritantes indícios de que corria sério perigo. ”Eu me sentiaseguro”, repetia Prestes.No dia 9 de março de 1936, a polícia prendeu Prestes e Olga noesconderijo <strong>do</strong> Méier.Outro criminoso <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930 que ganhou a fama de defensor<strong>do</strong> povo foi Virgulino Ferreira <strong>da</strong> Silva, o Lampião. Muitos livros o tratamcomo um Robin Hood <strong>do</strong> Sertão - o historia<strong>do</strong>r britânico Eric Hobsbawm,por exemplo, citou Lampião como exemplo de bandi<strong>do</strong> social, aquele querealiza ”uma forma primitiva de protesto” contra a exploração no campo.Há muito tempo se sabe que o cangaceiro estava mais para o contrário: umdefensor <strong>do</strong>s ricos.


LAMPIÃO É O PAI DO BREGA”Lampião <strong>da</strong>va a vi<strong>da</strong> para estar entre coronéis”, contou, numdepoimento ao historia<strong>do</strong>r Frederico Pernambucano de Melo, o cangaceiroMiguel Feitosa, que conheceu Virgulino na déca<strong>da</strong> de 1920. ”Vivia deCoronel em Coronel”, ele completa. Em 1923, Lampião invadiu a ci<strong>da</strong>dede Triunfo, na Paraíba, só para tirar de lá um homem chama<strong>do</strong> MarcolinoDiniz, que tinha mata<strong>do</strong> o juiz <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de durante uma discussão. A invasãoà delegacia foi um serviço encomen<strong>da</strong><strong>do</strong> pelo sogro <strong>do</strong> assassino, JoséPereira Lima, maior chefe político <strong>do</strong> interior <strong>da</strong> Paraíba <strong>da</strong>quela época. Jácom pobres, mulheres e vilas indefesas, o cangaceiro não era tão camara<strong>da</strong>.Há relatos de que ele marcou, com ferro quente, o rosto de mulheressurpreendi<strong>da</strong>s com vesti<strong>do</strong>s curtos e decotes cava<strong>do</strong>s. Contrário àconstrução de estra<strong>da</strong>s no sertão, em pelo menos cinco ocasiões atirou emoperários quan<strong>do</strong> eles trabalhavam em alguma obra.”A violência contra os fracos, que até então poderia ser vista comoum <strong>do</strong>s instrumentos de <strong>do</strong>minação de classe, com o cangaço de Lampiãose banaliza”, afirma, no livro A Derradeira Gesta, a historia<strong>do</strong>ra LuitgardeOliveira Cavalcanti Barros.Existe um la<strong>do</strong> de Lampião que é menos conheci<strong>do</strong>. O homem erabrega no último. Obceca<strong>do</strong> por luxos, novi<strong>da</strong>des estrangeiras e pela própriaaparência, ele costumava exagerar. Fã de uísque White Horse e licor dementa francês, perambulava pelo Sertão com os botões de ouro no casaco echeio de perfume. ”Os cabelos, negros, lisos, levemente ondula<strong>do</strong>s, unta<strong>do</strong>spor brilhantina <strong>da</strong> melhor quali<strong>da</strong>de, a que fazia juntar respingos generosos


de um <strong>do</strong>s bons perfumes que a França nos man<strong>da</strong>va à época: o Fleurd’Amour”, descreveu o historia<strong>do</strong>r Frederico Pernambucano de Melo.De acor<strong>do</strong> com o autor, Lampião gostava tanto <strong>do</strong> perfume que ocolocava até nos cavalos <strong>do</strong> ban<strong>do</strong>. O cangaceiro tinha uma preocupaçãoespecial com a roupa: usava túnicas de chita de cores berrantes e lenços dese<strong>da</strong>. Ao se apresentar para pessoas importantes, <strong>da</strong>va a elas um cartão devisitas com foto — coisa que só os mais endinheira<strong>do</strong>s <strong>da</strong> época possuíam.Lampião também a<strong>do</strong>rava an<strong>da</strong>r pelo sertão de carro, dentro <strong>do</strong>s primeirosmodelos que chegaram ao Nordeste.”O uso <strong>do</strong> automóvel por Lampião se deu de mo<strong>do</strong> mais pródigo<strong>do</strong> que normalmente se imagina”, afirma Melo. Pessoas vesti<strong>da</strong>s comelegância desmedi<strong>da</strong>, exibin<strong>do</strong>-se em carros novos pelo Sertão... Você já viuo vídeo <strong>da</strong> cantora piauiense Stefhany em seu Cross Fox, hit <strong>do</strong> YouTubeem 2009?


ELZA, A OLGA QUE PRESTES MATOUDas histórias que compõem a Intentona Comunista de 1935, amais famosa é a <strong>da</strong> judia alemã Olga Benário. Depois de captura<strong>da</strong> pelapolícia <strong>brasil</strong>eira ao la<strong>do</strong> de Prestes, foi extradita<strong>da</strong> grávi<strong>da</strong> de sete mesespara a Alemanha nazista. Sem a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> diplomacia soviética, quedesprezava revolucionários fracassa<strong>do</strong>s, morreu seis anos depois, na câmarade gás <strong>do</strong> campo de concentração de Bernburg. Menos conheci<strong>do</strong>, porémigualmente dramático, é o caso de outra jovem a serviço <strong>do</strong>s comunistas.Elvira Cupello Calônio, que usava o codinome Elza e também eraconheci<strong>da</strong> por Garota, foi executa<strong>da</strong> pelos próprios companheiros emfevereiro de 1936, por causa <strong>da</strong> insistência de Prestes e provavelmente coma aprovação de Olga.Elvira ganhou em 2008 uma ótima biografia - Elza, a Garota, <strong>do</strong>jornalista Sérgio Rodrigues. O livro mostra que a menina era uma típicaintegrante <strong>do</strong> povão, aquela classe cujo apoio os intelectuais comunistas<strong>brasil</strong>eiros sonharam conquistar e raramente conseguiram. Vinha de umafamília de operários de Sorocaba, interior de São Paulo. Pobre esemiletra<strong>da</strong>, entrou para o grupo de comunistas <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930 porinfluência <strong>do</strong> namora<strong>do</strong> - Antônio Maciel Bonfim, o Miran<strong>da</strong>, secretáriogeral<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista Brasileiro. Emprega<strong>da</strong> <strong>do</strong>méstica, ela secomportava como man<strong>da</strong>vam as cartilhas comunistas mais radicais, sem sepreocupar com o brilho pessoal e dedican<strong>do</strong>-se entusiasma<strong>da</strong> a tarefasmenos gloriosas. Não se sabe exatamente quantos anos tinha - a i<strong>da</strong>de variade 16, segun<strong>do</strong> os legistas que examinaram seu corpo, para quem caía bemmostrar que os comunistas matavam crianças, a 21 anos, para aqueles que


preferiam suavizar a cruel<strong>da</strong>de <strong>do</strong> assassinato. Costumava sorrir muito e”não aparentava mais de 16 anos”, escreveu anos depois a militante MariaWerneck de Castro, sua companheira na prisão feminina. Perto <strong>do</strong>s outrosconspira<strong>do</strong>res, é certo que era uma menina ingênua, uma ”pequena”, comoPrestes se referiu a ela na carta que a levaria à morte.Elza e o namora<strong>do</strong> Miran<strong>da</strong> foram captura<strong>do</strong>s pela polícia emjaneiro de 1936. A tragédia <strong>da</strong> garota começou não exatamente quan<strong>do</strong> elafoi presa, e sim duas semanas depois, quan<strong>do</strong> a polícia a liberou. Oscomunistas que ain<strong>da</strong> não tinham si<strong>do</strong> captura<strong>do</strong>s pela polícia passaram adesconfiar dela. Naquela altura, a conspiração comunista desabava. Olga,Prestes e o agente russo Pavel Stuchevski, escondi<strong>do</strong>s no Méier,comunicavam-se por cartas com os funcionários <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> ComunistaBrasileiro. Como Miran<strong>da</strong>, o namora<strong>do</strong> de Elza e secretário-geral <strong>do</strong>parti<strong>do</strong>, já tinha si<strong>do</strong> preso, sobraram apenas dirigentes menores, comoHonório de Freitas Guimarães, chama<strong>do</strong> na época de ”Martins”, eFrancisco Nativi<strong>da</strong>de Lyra, o ”Cabeção”. Trocan<strong>do</strong> mensagens secretas, osforagi<strong>do</strong>s achavam que a polícia estava conceden<strong>do</strong> privilégio demais àgarota. Enquanto quase to<strong>do</strong>s os militantes eram tortura<strong>do</strong>s na cadeia, Elzatinha fica<strong>do</strong> livre em duas semanas, reclaman<strong>do</strong> apenas de alguns safanões.Também poderia voltar à cadeia sempre que quisesse visitar o namora<strong>do</strong>.Quan<strong>do</strong> frequentava a prisão, saía de lá entregan<strong>do</strong> bilhetes de Miran<strong>da</strong> acolabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Para o grupo de comunistas, Elza,voluntariamente ou não, estaria a serviço <strong>da</strong> polícia. Ou pecava por traição,ten<strong>do</strong> delata<strong>do</strong> os colegas na cadeia, ou por ingenui<strong>da</strong>de, levan<strong>do</strong>investiga<strong>do</strong>res que a se<strong>guia</strong>m a esconderijos. ”To<strong>do</strong>s acreditam que aGarota - ou G., como ela é trata<strong>da</strong> nessa correspondência em que,


obviamente, ninguém aparece com o nome de batismo, é culpa<strong>da</strong> até amedula”, escreveu Sérgio Rodrigues.Luís Carlos Prestes logo se tornou o mais convenci<strong>do</strong> <strong>da</strong> traição deElza. Numa carta de 5 de fevereiro, disse aos colegas que era preciso”conseguir que ela diga realmente como a preparou a polícia, como ainstruiu, que méto<strong>do</strong>s empregou, com que recursos a comprou”. Achavaque nem mesmo os bilhetes que Elza tinha entrega<strong>do</strong> haviam si<strong>do</strong> escritospor Miran<strong>da</strong>, mas sim forja<strong>do</strong>s pela polícia. Com tantas suspeitas, osintegrantes <strong>do</strong> PCB levaram a garota para uma casa em Gua<strong>da</strong>lupe, naépoca zona rural carioca, para tirá-la de circulação e descobrir de que la<strong>do</strong>ela estava. A menina passava to<strong>do</strong> dia por interrogatórios feitos com basenum questionário cria<strong>do</strong> pelo espião Stuchevski. As perguntas eramtraduzi<strong>da</strong>s por Prestes e envia<strong>da</strong>s aos membros <strong>do</strong> PCB. A ideia era fazer amoça se contradizer e confessar que aju<strong>da</strong>va a polícia.Só que Elza não tinha traí<strong>do</strong> os colegas. Repetia as mesmasrespostas quan<strong>do</strong> questiona<strong>da</strong> sobre o tempo na prisão e não parecia mentir.Os comunistas <strong>do</strong> esconderijo em Gua<strong>da</strong>lupe ain<strong>da</strong> perceberam que a letra<strong>do</strong>s bilhetes que Elza portava era mesmo de Miran<strong>da</strong>. Essa impressão foiencaminha<strong>da</strong>, com os bilhetes, a Prestes, que resolveu a questão com umapicaretagem genial: deu uma de grafólogo. Respondeu aos colegas listan<strong>do</strong>indícios <strong>da</strong> falsificação <strong>da</strong> carta: inclinação diferente, detalhesexagera<strong>da</strong>mente imita<strong>do</strong>s, o ”t” cujo traço variava muito. O problema é quePrestes comparou a letra <strong>do</strong>s bilhetes com o que lembrava <strong>do</strong> estilo deMiran<strong>da</strong>: simplesmente não tinha uma referência para comparação. ”Estalevian<strong>da</strong>de, bem característica <strong>do</strong> mitológico herói, tem a ver com um traçode sua formação intelectual”, afirmou o historia<strong>do</strong>r comunista JacobGorender no livro Combate nas Trevas - ”a completa insensibili<strong>da</strong>de a


informações novas que contradigam decisões toma<strong>da</strong>s com base emprejulgamentos.”Depois de uma semana, Martins voltou a escrever a Prestes,insistin<strong>do</strong>: é ce<strong>do</strong> demais para tomar uma atitude extrema, talvez o melhorseja manter a moça isola<strong>da</strong> porém viva. ”Achamos que, devi<strong>do</strong> àcomplicação que o caso toma, a manutenção <strong>do</strong> statu quo é aconselhável.”Martins ain<strong>da</strong> previu o peso <strong>da</strong> repercussão negativa se os jornaisdescobrissem que eles tinham mata<strong>do</strong> uma menina. Prestes, ciente <strong>da</strong>liderança natural que exercia sobre os seus correspondentes, e apesar deanalisar o caso a distância, escreve um sermão nervoso aos jovenscomunistas, defenden<strong>do</strong> veementemente o assassinato <strong>da</strong> garota e <strong>da</strong>n<strong>do</strong>reprimen<strong>da</strong>s pela ”vacilação” <strong>do</strong>s companheiros. Alguns trechos:Por que modificar a decisão a respeito <strong>da</strong> Garota? Que tem a veruma coisa com outra? Há ou não há uma traição por parte dela?É ou não é ela perigosíssima ao Parti<strong>do</strong>, como elementointeiramente a serviço <strong>do</strong> adversário, conhece<strong>do</strong>r de muita coisa etestemunha única contra um grande número de companheiros esimpatizantes? [...] Com plena consciência de minha responsabili<strong>da</strong>de,desde os primeiros instantes tenho <strong>da</strong><strong>do</strong> a vocês minha opinião sobre o quefazer com ela. [...] Não é possível dirigir sem assumir responsabili<strong>da</strong>des. Poroutro la<strong>do</strong> uma direção não tem direito de vacilar em questões que dizemrespeito à própria segurança <strong>da</strong> organização.No dia seguinte ao seu sermão, a carta vin<strong>da</strong> de Gua<strong>da</strong>lupe mostraque ele tinha consegui<strong>do</strong> mu<strong>da</strong>r a opinião <strong>do</strong>s colegas. ”A coisa será feitadireitinho, pois a questão sentimentalismo não existe por aqui. Acima detu<strong>do</strong> colocamos os interesses <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong>”, responderam eles a Prestes.


Elza foi morta no dia 2 de março de 1936. Segun<strong>do</strong> o depoimentoque Manoel Severiano Cavalcanti, outro participante <strong>do</strong> assassinato, deu àpolícia em 1940, o crime começou quan<strong>do</strong> Martins pediu a Elza que fizessecafé para o grupo, ”no que a vítima, sorridente e satisfeita, prontamenteacedeu”. Depois de levar o café, Elza se preparava para sentar quan<strong>do</strong>Francisco Nativi<strong>da</strong>de Lyra ”aproximou-se rapi<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> menor,envolven<strong>do</strong>-lhe o pescoço com a cor<strong>da</strong>”. No momento em que ela começoua se debater, os outros se juntaram ao ataque para garantir que ela nãorespirasse. Alguns <strong>do</strong>s ossos de Elza foram quebra<strong>do</strong>s, para que o corpopudesse caber num saco, e a garota foi enterra<strong>da</strong> no quintal <strong>da</strong> casa deGua<strong>da</strong>lupe.To<strong>da</strong> a correspondência sobre a garota foi encontra<strong>da</strong> três diasdepois, quan<strong>do</strong> a polícia prendeu Olga e Prestes na casa <strong>do</strong> Méier. Entrecentenas de artigos, <strong>do</strong>cumentos, manuscritos e cartas escritas pelorevolucionário <strong>brasil</strong>eiro, estavam cópias <strong>da</strong>s cartas sobre Elza. Apesar deter encontra<strong>do</strong> a correspondência, a polícia demorou quatro anos paraperceber que a garota não tinha desapareci<strong>do</strong>, e que a expressão ”medi<strong>da</strong>sextremas”, comum nas cartas, significava um assassinato. Seu corpo foiencontra<strong>do</strong> em 1940, depois que os integrantes <strong>do</strong> PCB foram presos,confessaram o crime e indicaram o local <strong>da</strong> cova. O irmão dela e umdentista, que tratara de Elza pouco antes <strong>da</strong> morte, identificaram o corpo.Prestes e outros três envolvi<strong>do</strong>s no caso foram condena<strong>do</strong>s a penas de 20 a30 anos de prisão pelo assassinato de Elza, mas libera<strong>do</strong>s em 1945 com aanistia concedi<strong>da</strong> por Getúlio Vargas. Na época, até mesmo a InternacionalSocialista, em Moscou, investigou o caso, apontan<strong>do</strong> Prestes comoman<strong>da</strong>nte <strong>do</strong> crime, e Martins e Francisco Lyra como os executores.


E Olga? Não há provas de que ela sabia <strong>do</strong> caso <strong>da</strong> garota ou queconcor<strong>da</strong>va com a veemência de Prestes, mas é difícil acreditar queignorasse o caso. Olga era uma típica comunista alemã <strong>do</strong>s anos 1930, <strong>do</strong>nade frieza suficiente para achar preferências pessoais, prazeres, crises deconsciência e sentimentalismos valores burgueses irrelevantes perto <strong>do</strong> ideal<strong>da</strong> revolução. Tanto o jornalista Sérgio Rodrigues quanto William Waack,<strong>do</strong>is grandes entende<strong>do</strong>res <strong>da</strong> história de Elza, disseram, em entrevista pore-mail, que sim, Olga sabia. ”Com to<strong>da</strong> certeza Olga sabia. Acredito que oPrestes inclusive a consultou. Ele na<strong>da</strong> fazia sem falar com ela e com oStuchevski”, diz Waack. ”Olga e Prestes estavam enfia<strong>do</strong>s 24 horas por diano mesmo aparelho no Méier enquanto rolava o processo”, afirma ojornalista Sérgio Rodrigues.O crime contra Elza foi muito famoso nos anos 1940, logo apósdescoberto. A história, de tão repeti<strong>da</strong>, criou um certo cansaço. EnquantoOlga surgia como heroína e vítima, Elza virava uma desconheci<strong>da</strong>. Emcoletâneas <strong>do</strong>s principais episódios e personagens <strong>brasil</strong>eiros, como o livroBrasil: Uma História, de Eduar<strong>do</strong> Bueno, Olga aparece, Elza não. Omesmo acontece em três livros didáticos e apostilas de história largamenteusa<strong>do</strong>s pelas escolas. Na biografia de Olga escrita por Fernan<strong>do</strong> Morais, hápoucas menções a Elza, nenhuma atribuin<strong>do</strong> à garota alguma digni<strong>da</strong>de.”Desequilibra<strong>da</strong>, desprepara<strong>da</strong> ou agente infiltra<strong>da</strong>, a polícia tratou de tirarproveito de Elvira”, escreveu o biógrafo de Olga.Mesmo quan<strong>do</strong> Prestes estava preso pela morte <strong>da</strong> garota, oscomunistas se esforçaram para apagar o caso. No livro O Cavaleiro <strong>da</strong>Esperança, uma biografia poética de Prestes escrita em 1942, Jorge Ama<strong>do</strong>diz que o caso foi uma mentira cria<strong>da</strong> pela polícia. E afirma:


Este é um livro escrito com paixão, sobre uma figura ama<strong>da</strong>. E,quanto ao equilíbrio e a imparciali<strong>da</strong>de, de referência a Luís Carlos Prestessão coisas que não se faz necessário medir. Porque nele os la<strong>do</strong>s negativosnão surgiram nunca, nem nos dias de luta, nem nos dias de triunfo, nemnos dias de prisão, esses dias que despem o homem de to<strong>da</strong>s as capasartificiais e o colocam nu nos seus ver<strong>da</strong>deiros sentimentos Neste diasPrestes apareceu ain<strong>da</strong> maior e mais Herói.


TRÊS COISAS QUE A TORTURA NÃO ESCONDENa historiografia de muitos episódios, o retrato de vítimasfrequentemente se confunde com o de heróis. Se um personagem foi vítimade atos horríveis, fica muito fácil enquadrá-lo como um grande homem,ain<strong>da</strong> que não tenha protagoniza<strong>do</strong> feitos memoráveis ou mesmo sensatos.Dependen<strong>do</strong> de quanto sofrimento o personagem passou, a memóriacoletiva apaga até bobagens e atos perversos que ele cometeu. Um exemploé a imagem que ficou <strong>do</strong> Japão depois <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial. Se opaís não tivesse leva<strong>do</strong> duas bombas atômicas, seu nacionalismo radical esuas cruel<strong>da</strong>des durante a guerra teriam muito mais ressonância hoje emdia. Um efeito similar acontece com os guerrilheiros comunistas quelutaram contra a ditadura de 1964. O regime militar torturou pelo menosduas mil pessoas, com choques, empalações, palmatórias nos seios <strong>da</strong>sprisioneiras, entre outras selvagerias. A tortura resultou em loucura e mortede vários investiga<strong>do</strong>s - alguns deles sem ligação com a militância deesquer<strong>da</strong>. Essa violência, que partiu <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, justamente a instituição quedeveria zelar pela segurança <strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos e assegurar a eles os direitoshumanos, teve mais uma consequência. Deu aos grupos de luta arma<strong>da</strong> umescu<strong>do</strong> anticríticas. Hoje, é <strong>politicamente</strong> <strong>incorreto</strong> lembrar que osguerrilheiros comunistas estavam estupi<strong>da</strong>mente erra<strong>do</strong>s e eram tãoviolentos e autoritários quanto os militares. Por sorte, não é precisodefender torturas e assassinatos políticos para lembrar algumas ver<strong>da</strong>dessobre a luta arma<strong>da</strong> no Brasil.


l. A GUERRILHA PROVOCOU O ENDURECIMENTO DOREGIME MILITARÉ muito repeti<strong>da</strong> a ideia de que os grupos de esquer<strong>da</strong> decidirampartir para a luta arma<strong>da</strong> porque essa era a única resposta possível à rigidez<strong>da</strong> ditadura. Na ver<strong>da</strong>de, antes de os militares derrubarem o presidente JoãoGoulart, já havia guerrilheiros planejan<strong>do</strong> ações e se preparan<strong>do</strong> para elas.Em 1959, quan<strong>do</strong> Fidel Castro chegou ao poder em Cuba, mostrou aomun<strong>do</strong> que era possível vencer os governos de direita por meio de umaguerrilha pequena e organiza<strong>da</strong>. Esse exemplo avivou os sonhos <strong>do</strong>sguerrilheiros <strong>da</strong> América Latina. O próprio Fidel convocava os militantes e<strong>da</strong>va apoio tático para que eles estendessem a luta arma<strong>da</strong> <strong>da</strong> Sierra Maestraaté os Andes. Em 1961, o deputa<strong>do</strong> pernambucano Francisco Julião foi seencontrar com Fidel — voltoude Cuba com o lema ”reforma agrária na lei ou na marra”. Um esquemacubano de apoio à guerrilha no Brasil se tornou público em novembro de1962, quan<strong>do</strong> um Boeing 707 <strong>da</strong> Varig caiu no Peru. O avião levava ocorreio oficial de Cuba. Entre a correspondência, havia três <strong>do</strong>cumentosque revelavam a dificul<strong>da</strong>de que um agente enfrentava para organizar aguerrilha no Brasil. As mensagens tinham provavelmente si<strong>do</strong> escritas porMiguel Brugueras, cubano especialista em guerrilha urbana que operava noRio de Janeiro. Apesar <strong>da</strong> revelação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos, o apoio cubano à lutaarma<strong>da</strong> <strong>brasil</strong>eira seguiu em frente. Um ano antes <strong>do</strong> golpe militar, já havia<strong>do</strong>ze militantes <strong>brasil</strong>eiros aprenden<strong>do</strong> luta arma<strong>da</strong> na ilha comunista. Olíder cubano Fidel Castro apoiava também o Movimento RevolucionárioTiradentes, que planejava ataques em sete esta<strong>do</strong>s e chegou a man<strong>da</strong>rguerrilheiros para Goiás. Quan<strong>do</strong> ações como essas chegavam aos jornais,


contribuíam para o clima de golpe iminente: a esquer<strong>da</strong> ou a direitatomariam o poder à força no Brasil.Leonel Brizola, então deputa<strong>do</strong> mais vota<strong>do</strong> e principal conselheiro<strong>do</strong> presidente João Goulart, tinha planos pareci<strong>do</strong>s. Em 1963, Brizola faziadiscursos inflama<strong>do</strong>s na Rádio Mayrink Veiga, emissora que funcionavacomo um palanque <strong>do</strong>s defensores de Jango. Em seus discursos, chamava apopulação a aderir à luta arma<strong>da</strong> por meio <strong>do</strong>s Grupos de OnzeCompanheiros, também chama<strong>do</strong>s de Coman<strong>do</strong>s Nacionalistas. A ideia eraformar, em to<strong>do</strong> o país, milhares de pequenos grupos guerrilheiros queseriam mobiliza<strong>do</strong>s para uma eventual toma<strong>da</strong> de poder. Um <strong>do</strong>ssiêencontra<strong>do</strong> no começo de 2009, pela Rádio CBN, trouxe à tona relatóriosde uma investigação militar sobre os Grupos de Onze. Os <strong>do</strong>cumentosrevelam os objetivos de Brizola em relação a esses grupos. ”Os G11 serão,como o foi a Guar<strong>da</strong> Vermelha <strong>da</strong> Revolução Socialista de 1917 na UniãoSoviética — <strong>da</strong> qual seguirá o vitorioso exemplo —, os agentes e aríetes <strong>da</strong>Libertação <strong>do</strong> nosso Povo pelo Capital espoliativo norte-americano”, diziao político. Uma cartilha presente no <strong>do</strong>ssiê pede aos integrantes que reúnamarmas, ”de espingar<strong>da</strong>s de carga <strong>do</strong>s camponeses até revólveres, pistolas emetralha<strong>do</strong>ras”; usem mulheres e crianças como escu<strong>do</strong> humano, para”acobertar a ação <strong>do</strong>s G11 <strong>da</strong> reação policial-militar”; e ain<strong>da</strong> executemreféns sem compaixão:No caso de derrota <strong>do</strong> nosso movimento, os reféns deverão sersumária e imediatamente fuzila<strong>do</strong>s.A cartilha mostra que Brizola contava com militares para apoiar oataque opera<strong>do</strong> pelos Grupos de Onze:A escassez inicial de armas poderosas e ver<strong>da</strong>deiramente militaresserá supri<strong>da</strong> pelos alia<strong>do</strong>s militares que possuímos em to<strong>da</strong>s as Forças


Arma<strong>da</strong>s, nota<strong>da</strong>mente, nos Grandes Centros, como Guanabara,Pernambuco, especialmente nos Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rio de Janeiro e no RioGrande <strong>do</strong> Sul, além <strong>do</strong> Corpo de Fuzileiros Navais, que nos fornecera, deimediato, para a Ação Liberta<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> Guanabara, o materialpotencialmente necessário.Mesmo depois <strong>do</strong> golpe militar, não havia tanto motivo assim paraaderir a guerrilhas. Apesar de a ditadura ter começa<strong>do</strong> em 1964, até 1968 ogoverno tinha de levar as leis para serem aprecia<strong>da</strong>s no Congresso e aspessoas podiam responder processos criminais em liber<strong>da</strong>de. Esperava-seque os militares logo promovessem eleições, ain<strong>da</strong> que indiretas, o quepoderia restabelecer o governo civil.O regime só endureceu de ver<strong>da</strong>de em dezembro de 1968, com oAto Institucional número 5. O Congresso Nacional foi fecha<strong>do</strong>, oExecutivo pôde governar arbitrariamente por meio de decretos-lei e ohabeas corpus deixou de existir. O governo poderia prender e manterpessoas na cadeia sem explicar por quê. Para justificar essa radicalização, osmilitares usaram um argumento fácil: era preciso manter a ordem. Durantea reunião de 13 de dezembro de 1968, em que os ministros aprovaram oAI-5, a palavra ”ordem”, no senti<strong>do</strong> de tranquili<strong>da</strong>de pública, é cita<strong>da</strong> 23vezes nos discursos. Quem lê esses pronunciamentos hoje fica com aimpressão de que 1968 foi uma desordem assusta<strong>do</strong>ra. É ver<strong>da</strong>de. Dejaneiro a dezembro <strong>da</strong>quele ano, guerrilheiros praticaram pelo menos vinteassaltos a banco e a automóveis, execuções, ataques a quartéis e atenta<strong>do</strong>s abomba que resultaram em nove mortes e causaram ferimentos em sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s,seguranças de banco, motoristas e até pessoas que passavam pela rua.Em março de 1968, o estu<strong>da</strong>nte Orlan<strong>do</strong> Lovecchio Filho, então com 22anos, foi atingi<strong>do</strong> por uma bomba instala<strong>da</strong> na porta <strong>da</strong> biblioteca <strong>do</strong>


consula<strong>do</strong> americano, em São Paulo. Ele tinha acaba<strong>do</strong> de estacionar ocarro e subia para seu apartamento quan<strong>do</strong> viu fumaça numa caixa depapelão enrola<strong>da</strong> com papel isolante. Assim que se virou de costas paraavisar a segurança <strong>do</strong> prédio — o Conjunto Nacional, na Aveni<strong>da</strong> Paulista— a caixa explodiu. Orlan<strong>do</strong> foi atingi<strong>do</strong> por oitenta estilhaços e teve oterço inferior <strong>da</strong> perna esquer<strong>da</strong> amputa<strong>do</strong>. Também ficou como suspeitode ter instala<strong>do</strong> a bomba até 1992, quan<strong>do</strong> o artista plástico Sérgio Ferro,radica<strong>do</strong> na França, admitiu ter participa<strong>do</strong> <strong>da</strong>quele ataque com algunscolegas <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Arquitetura <strong>da</strong> USP suspeita que nunca foicomprova<strong>da</strong>.Outra vítima <strong>da</strong> barbeiragem <strong>do</strong>s guerrilheiros foi o major alemãoEdward Ernest von Westernhagen. O militar morreu não porque favoreciao regime militar ou porque tinha tortura<strong>do</strong> comunistas - foi assassina<strong>do</strong> porengano. Os integrantes <strong>do</strong> Coman<strong>do</strong> de Libertação Nacional (Colina), <strong>do</strong>qual participava Dilma Rousseff, queriam na ver<strong>da</strong>de executar o majorboliviano Gary Pra<strong>do</strong>, responsável pela morte de Che Guevara um anoantes. Gary era colega de Edward von Westernhagen no Curso de Esta<strong>do</strong>-Maior, no Forte <strong>da</strong> Praia Vermelha. Na noite <strong>do</strong> dia primeiro de julho de1968, os guerrilheiros seguiram o militar pelo bairro <strong>da</strong> Gávea. Numa ruatranquila <strong>do</strong> Jardim Botânico, executaram-no com dez tiros. Ao abrirem apasta que o cadáver largou antes de morrer, depararam com <strong>do</strong>cumentos emalemão. Tinham mata<strong>do</strong> o major erra<strong>do</strong>.Um <strong>do</strong>s mais ativos terroristas <strong>da</strong>quele ano foi Diógenes Carvalhode Oliveira. De março a dezembro, ele participou de cinco assaltos, trêsatenta<strong>do</strong>s a bomba e uma execução. Em junho, fez parte <strong>do</strong> grupo quelançou uma caminhonete carrega<strong>da</strong> de dinamite no quartel <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong>Exército, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> parque <strong>do</strong> Ibirapuera. A caminhonete atingiu o muro


<strong>do</strong> quartel, matan<strong>do</strong> um sol<strong>da</strong><strong>do</strong> e ferin<strong>do</strong> três. Em outubro, <strong>do</strong>is mesesantes <strong>do</strong> AI-5, o capitão Americano Charles Chandler, de 30 anos, foimorto quan<strong>do</strong> saía de casa, no bairro Sumarezinho, em São Paulo. ÉDiógenes o guerrilheiro mais aponta<strong>do</strong> como o autor <strong>do</strong>s seis tiros derevólver que mataram o militar americano. A última ação de Diógenes em1968 foi um assalto a uma casa de armas. Dois dias depois, os militaresaprovaram o AI-5.Afirma o historia<strong>do</strong>r Marco Antônio Villa:Argumentam que não havia outro meio de resistir à ditadura, a nãoser pela força. Mais um grave equívoco: muitos <strong>do</strong>s grupos existiam antesde 1964 e outros foram cria<strong>do</strong>s logo depois, quan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> havia espaçodemocrático (basta ver a ampla ativi<strong>da</strong>de cultural de 1964-1968). Ou seja, aopção pela luta arma<strong>da</strong>, o desprezo pela luta política e pela participação nosistema político e a simpatia pelo foquismo guevarista antecedem o AI-5(dezembro de 1968), quan<strong>do</strong>, de fato, houve o fechamento <strong>do</strong> regime.O terrorismo desses pequenos grupos deu munição (sem trocadilho)para o terrorismo de Esta<strong>do</strong> e acabou usa<strong>do</strong> pela extrema-direita comopretexto para justificar o injustificável: a barbárie repressiva.[...]Conceder-lhes o estatuto histórico de principais responsáveis peladerroca<strong>da</strong> <strong>do</strong> regime militar é um absur<strong>do</strong>. A luta pela democracia foitrava<strong>da</strong> nos bairros pelos movimentos populares, na defesa <strong>da</strong> anistia, nomovimento estu<strong>da</strong>ntil e nos sindicatos. Teve na Igreja Católica umimportante alia<strong>do</strong>, assim como entre os intelectuais, que protestaram contraa censura. E o MDB, na<strong>da</strong> fez? E seus militantes e parlamentares queforam persegui<strong>do</strong>s?E os cassa<strong>do</strong>s?


Alguém poderá dizer que a reação <strong>do</strong>s militares ao terrorismo foi exagera<strong>da</strong>.A ditadura passou um trator de tortura em cima de um punha<strong>do</strong> de jovenscom ideias ingênuas, que dificilmente teriam força para tomar o poder. Issopode ser ver<strong>da</strong>de, mas não era seguro pensar assim naquela época. Qualquernotícia de movimentação comunista era um motivo justo de preocupação. Aexperiência mostrava que poucos guerrilheiros, com a aju<strong>da</strong> de partidáriosinfiltra<strong>do</strong>s nas estruturas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, poderiam sim derrubar o governo. E,depois que isso acontecia, era difícil tirá-los de lá. A guerrilha de FidelCastro, que derrubou Fulgêncio Batista em 1959, começou três anos antescom um grupo de81 sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Em 1961, dissidentes cubanos tentaram, com apoio <strong>do</strong>sEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, derrubar Fidel invadin<strong>do</strong> o país pela Baía <strong>do</strong>s Porcos.Foram to<strong>do</strong>s presos ou mortos pelos comunistas.


2. OS GUERRILEIROS NÃO LUTAM POR LIBERDADESempre que se fala <strong>do</strong>s grupos arma<strong>do</strong>s, usam-se as expressões <strong>do</strong>tipo ”lutavam por liber<strong>da</strong>de”, ”lutavam contra a ditadura”. Como afirma ojornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Escancara<strong>da</strong>, ”a luta arma<strong>da</strong>fracassou porque o objetivo final <strong>da</strong>s organizações que a promoveram eratransformar o Brasil numa ditadura, talvez socialista, certamenterevolucionária. Seu projeto não passava pelo restabelecimento <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>desdemocráticas”.Os historia<strong>do</strong>res Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá,ambos ex-guerrilheiros, reuniram no livro Imagens <strong>da</strong> Revolução estatutosde dezoito grupos de luta arma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de 1960 e 1970. Há<strong>do</strong>cumentos <strong>da</strong>s organizações mais ativas, como a Ação Liberta<strong>do</strong>raNacional (ALN), a Vanguar<strong>da</strong> Popular Revolucionária (VPR), de CarlosLamarca, e também de grupos pequenos, como a OCML (Organização decombate Marxista-Leninista). Dos dezoito textos, catorze descrevem oobjetivo de criar um sistema de parti<strong>do</strong> único e erguer uma ditadura similaraos regimes comunistas que existiam na China e em Cuba. A AçãoPopular, <strong>da</strong> qual participou José Serra, defendia com to<strong>da</strong>s as letras”substituir a ditadura <strong>da</strong> burguesia pela ditadura <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>”. Oobjetivo <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) erainstalar um governo popular ”e não a chama<strong>da</strong> redemocratização”. OParti<strong>do</strong> Revolucionário <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res, uma organização pouco ativa,teve textos exemplares:Para que a guerra revolucionária se desenvolva como o caminho<strong>da</strong> toma<strong>da</strong> <strong>do</strong> poder pela classe operária, o parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> dirigirasimultaneamente as massas explora<strong>da</strong>s em to<strong>da</strong>s as frentes <strong>da</strong> luta de


classes, na ci<strong>da</strong>de e no campo, subordinan<strong>do</strong> to<strong>da</strong>s as táticas parciais aoobjetivo estratégico central <strong>da</strong> luta arma<strong>da</strong> o desenvolvimento, consoli<strong>da</strong>çãoe vitoria <strong>do</strong> exército popular, dirigi<strong>do</strong> por seu parti<strong>do</strong>, a sustentação eexercício de sua ditadura.Entre militares e guerrilheiros, capitalistas e comunistas, to<strong>do</strong>ssabiam o que aconteceria se houvesse uma revolução de esquer<strong>da</strong> por aqui.Os guerrilheiros frequentemente citavam o líder chinês Mao Tsé-tung esonhavam fazer <strong>do</strong> Brasil um ”Cubão”, inspira<strong>do</strong>s na luta de Fidel Castro.Em 1969, o líder comunista Carlos Marighella, numa entrevista para arevista francesa Action, disse que ”O Brasil será o novo Vietnã”, pois,segun<strong>do</strong> ele, o crescimento <strong>da</strong> luta arma<strong>da</strong> faria os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s semeterem no jogo. Também em 1969, o general americano Vernon Walters,ex-adi<strong>do</strong> militar no Brasil, escreveu uma carta para Henry Kissinger, que sepreparava para ser secretário de Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Avisou: ”Se oBrasil se perder, não será uma outra Cuba. Será uma outra China”.Basta olhar para os países comunistas de hoje para perceber o queos heróis <strong>da</strong> luta arma<strong>da</strong> fariam com a gente. Os cubanos não só seprostituem para comprar sabonetes como aprendem na escola que amor é oque Fidel Castro sente pelo povo. A China vigia a internet, prendeblogueiros indesejáveis e censura até mesmo informações de saúde pública,sobre epidemias e infecções em massa. Como não houve socialismo noBrasil, nunca saberemos como teria si<strong>do</strong> o sistema por aqui. Mas podemosimaginar. Ten<strong>do</strong> como base to<strong>da</strong>s as experiências comunistas, é razoávelpensar que a Amazônia seria uma enorme prisão onde alia<strong>do</strong>s incômo<strong>do</strong>s einimigos <strong>do</strong> regime fariam trabalho força<strong>do</strong>, como o gulag soviético.Estu<strong>da</strong>ntes arrastariam seus professores para fora <strong>da</strong> sala de aula e oslinchariam, por acharem que eles representavam a velha cultura, como


aconteceu durante a Revolução Cultural <strong>da</strong> China. Em episódiossemelhantes às mortes nas praias cubanas, ci<strong>da</strong>dãos seriam executa<strong>do</strong>sdepois de flagra<strong>do</strong>s tentan<strong>do</strong> fugir para o Paraguai. Na pior <strong>da</strong>s hipóteses,21% <strong>da</strong> população seria extermina<strong>da</strong>, como fez o Khmer Vermelho noCamboja. Na melhor, burocratas trocariam cargos por sexo e mais de 1% <strong>da</strong>população seria de espiões, como na Alemanha Oriental.Em fevereiro de 2009, um editorial <strong>da</strong> Folha de S. Paulo usou apalavra ”ditabran<strong>da</strong>” para falar <strong>do</strong> regime militar <strong>brasil</strong>eiro.O termo fez chover cartas à re<strong>da</strong>ção e moveu pelo menos trezentosmanifestantes para a porta <strong>do</strong> jornal. Quem se indignou com a palavra pôdese valer de um argumento apropria<strong>do</strong>: basta uma morte por motivo políticopara uma ditadura se configurar. Essa ver<strong>da</strong>de não apaga a outra, que oseditorialistas devem ter tenta<strong>do</strong> defender: a ditadura <strong>brasil</strong>eira foi uma <strong>da</strong>smenos atrozes de to<strong>do</strong> o século 20. É difícil pensar num regime nãodemocrático que tenha mata<strong>do</strong> menos. Em 21 anos, as ações antiterrorismocriaram 380 vítimas, segun<strong>do</strong> a própria Comissão de Familiares <strong>do</strong>s Mortose Desapareci<strong>do</strong>s Políticos. É muito menos que os 30 mil mortos peladitadura argentina ou a estimativa de 3 mil vítimas <strong>do</strong>s militares <strong>do</strong> Chile(país com menos de 10% <strong>da</strong> população <strong>brasil</strong>eira).Fazen<strong>do</strong> algumas contas, é possível supor que a tragédia poderia tersi<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> pior que a <strong>do</strong>s vizinhos sul-americanos. Se o Brasil vivesse umregime como o cubano ou o chinês, como sonhavam os guerrilheiros deesquer<strong>da</strong>, pelo menos mais 88 mil pessoas seriam mortas. Se a ditadurasocialista <strong>brasil</strong>eira matasse 90% menos que a cubana, haveria vinte vezesmais mortos que as vítimas <strong>do</strong>s militares. Por fim, se déssemos o azar de sergoverna<strong>do</strong>s por socialistas mais agressivos, como o dita<strong>do</strong>r Pol Pot, <strong>do</strong>Camboja, assistiríamos ao maior genocídio <strong>do</strong> século 20.


Os militares e a polícia recorreram tanto à tortura para destruir osgrupos de luta arma<strong>da</strong> porque eram pouco experientes na arte de investigare perseguir suspeitos. Em duas grandes movimentações <strong>do</strong> exército naquelaépoca, mais de mil sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s cercaram menos de dez guerrilheiros, semconseguir agarrá-los.


POR QUE ELES TORTURAVAMEm 1969, quase 2 mil fuzileiros navais perseguiram seteguerrilheiros na serra <strong>do</strong> Mar <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Cinco escaparam.Um ano depois, nas matas <strong>do</strong> vale <strong>do</strong> Ribeira, 1.500 sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s passaramquarenta dias procuran<strong>do</strong> o ex-capitão Carlos Lamarca e mais oito homens.Cinco deles fugiram rouban<strong>do</strong> um caminhão <strong>do</strong> próprio exército. Quan<strong>do</strong>pararam numa barreira <strong>do</strong>s militares na estra<strong>da</strong>, o motorista, disfarça<strong>do</strong> desol<strong>da</strong><strong>do</strong>, disse somente: ”É ordem <strong>do</strong> coronel”. E seguiu com os colegasparaSão Paulo.


3. O SONHO ACABOU: QUE BOMEm 1971, o grupo guerrilheiro Ação Popular aderiu aoleninismo(Por favor dê um Google para saber o que isso significa - é muitochato explicar). Seus integrantes decidiram mu<strong>da</strong>r o nome <strong>da</strong> organizaçãopara Ação Popular Marxista-Leninista (AP-ML), sacramentan<strong>do</strong> amu<strong>da</strong>nça com um novo Programa Básico.Escreveram eles:A socie<strong>da</strong>de comunista será uma socie<strong>da</strong>de sem classes e semEsta<strong>do</strong>; uma socie<strong>da</strong>de onde terá desapareci<strong>do</strong> to<strong>da</strong> diferença entreoperários e camponeses, entre ci<strong>da</strong>de e campo e entre trabalho manual eintelectual; uma socie<strong>da</strong>de de abundância para to<strong>do</strong>s, de incalculáveldesenvolvimento técnico e material, onde to<strong>da</strong> penúria e pobreza não maisexistirão; uma socie<strong>da</strong>de onde a proprie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s meios de produção ecirculação <strong>do</strong>s bens estará completamente unifica<strong>da</strong>, sob a forma deproprie<strong>da</strong>de de to<strong>do</strong> o povo;O programa básico <strong>da</strong> Ação Popular Marxista-Leninista é muitosimilar a um texto mais antigo — o Livro de Isaías. Pelo menos 2 mil anosantes <strong>da</strong> AP-ML, o capítulo 65 <strong>do</strong> texto bíblico dizia:Eles edificarão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas e comerão oseu fruto. Não edificarão para que outros habitem; não plantarão para queoutros comam; porque a longevi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> meu povo será como a <strong>da</strong> árvore, eos meus eleitos desfrutarão de to<strong>do</strong> as obras <strong>da</strong>s suas próprias mãos. Nãotrabalharão debalde, nem terão filhos para a calami<strong>da</strong>de, porque são aposteri<strong>da</strong>de bendita <strong>do</strong> Senhor, e os seus filhos estarão com eles.A análise mais interessante que se faz <strong>do</strong> comunismo é considerálouma religião - uma <strong>da</strong>s religiões <strong>da</strong> salvação terrena. Esse ponto de vista


nasceu já no século 19, logo depois de Karl Marx espalhar suas ideias nospubs londrinos. O raciocínio é o seguinte: a partir <strong>do</strong> século 16, a revoluçãocientífica derrubou a ideia de um mun<strong>do</strong> justo, em ordem, acaba<strong>do</strong> e sobharmonia divina. Das descobertas de Galileu a Darwin, nasceu a imagem<strong>do</strong> universo como um lugar caótico, sem finali<strong>da</strong>de e frequentementedesequilibra<strong>do</strong> por terremotos, erupções, extinções em massa. A ideia deharmonia divina, de céu e de paraíso foi aos poucos ruin<strong>do</strong>. Apesar disso, aspessoas continuaram negan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> real em nome de mun<strong>do</strong>s de perfeitaharmonia — desta vez, mun<strong>do</strong>s que seriam cria<strong>do</strong>s pelo próprio homem.Assim como o cristianismo, o socialismo se baseava em paisagens idílicas.Se os cristãos lutavam para ir para o céu, os comunistas buscavam trazer océu à Terra. Lutavam pela socie<strong>da</strong>de revolucionária, um lugar tão perfeito eirreal quanto o paraíso. Como as grandes religiões, o comunismo tinhavisões <strong>do</strong> Paraíso, como mostra o programa <strong>da</strong> Ação Popular. Tambémtinha culpa<strong>do</strong>s pelo peca<strong>do</strong> original. ”Se atribuímos nosso esta<strong>do</strong> ruim aoutros ou a nós mesmos — a primeira coisa faz o socialista, a segun<strong>da</strong>, ocristão, por exemplo — é algo que não faz diferença”, escreveu FriedrichNietzsche em O Crepúsculo <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los, de 1888.Mesmo na história <strong>do</strong> Brasil, em que o comunismo não passou deum plano, é fácil compará-lo a uma religião. As organizações deixaram àmostra o fato de serem muito pareci<strong>da</strong>s com religiões ou seitas radicais.Diversas tinham rituais de iniciação, como batismos, basea<strong>do</strong>s na i<strong>do</strong>latriafanática a personagens míticos. A cartilha <strong>do</strong>s Grupos de Onze, aqueles queLeonel Brizola propagandeava na rádio, propunha um ritual de iniciaçãoem que os participantes deveriam ”proceder à leitura solene, com to<strong>do</strong>s osonze companheiros de pé, <strong>do</strong> texto <strong>da</strong> ata e <strong>da</strong> carta-testamento <strong>do</strong>presidente Getúlio Vargas”. Depois <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> carta, os novos membros


teriam que escrever seu nome abaixo <strong>da</strong> assinatura <strong>do</strong> presidente suici<strong>da</strong>.Comprometiam-se a <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> pelo país assim como fez Getúlio Vargas.Radicais religiosos geralmente se metem em martírios que parecemloucura para quem vê de fora. Às vezes se tornam missionários entorpeci<strong>do</strong>sde esperança e vão evangelizar sozinhos no meio <strong>da</strong> selva. Os guerrilheiroscomunistas fizeram exatamente isso na serra <strong>do</strong> Caparaó, entre o EspíritoSanto e Minas Gerais, no vale <strong>do</strong> Ribeira, no sul de São Paulo, e sobretu<strong>do</strong>no Araguaia, entre o sul <strong>do</strong> Pará e o norte de Tocantins. Esse tipo de açãoera fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong> no foquismo, a ideia de que pequenos focos deresistência no campo desestabilizariam o governo central. Em 1967, ofrancês Régis Debray defendeu a força desse tipo de ação com a obraRevolução na Revolução, um livro pequeno que avivou os sonhos <strong>do</strong>sguerrilheiros. O foquismo deu certo em Cuba, atrapalhava os americanosno Vietnã e tinha em Che Guevara um grande incentiva<strong>do</strong>r. Aos jovens<strong>brasil</strong>eiros, na<strong>da</strong> poderia ser tão sedutor. O sonho de lutar no meio <strong>do</strong> matoaliava a ideia de martírio com o romantismo <strong>da</strong> guerra. Aos poucos, o povoentenderia os motivos sagra<strong>do</strong>s <strong>da</strong> luta e engrossaria as frentes de batalha.Na<strong>da</strong> poderia ser tão fora <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Os guerrilheiros chegavam derepente nas pequenas ci<strong>da</strong>des sem ter com quem lutar, passan<strong>do</strong> o dia to<strong>do</strong>em treinamentos suspeitos. Quan<strong>do</strong> os mora<strong>do</strong>res deparavam com jovensque falavam coisas estranhas e <strong>da</strong>vam tiros para cima no meio <strong>da</strong> selva, iamcorren<strong>do</strong> avisar a polícia. No Araguaia e no vale <strong>do</strong> Ribeira, os mora<strong>do</strong>resdenunciaram até mesmo os guerrilheiros com quem tinham feito amizade.Em 1972, os integrantes <strong>da</strong> guerrilha <strong>do</strong> Araguaia enfim tinham em quematirar: os militares decidiram persegui-los. O conflito acabou com 19sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e 67 guerrilheiros mortos.


Movimentos revolucionários costumam colocar seu ideal políticoacima <strong>do</strong>s valores individuais e <strong>da</strong>s regras tradicionais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Cria-se assimuma superiori<strong>da</strong>de moral que lembra a <strong>do</strong>s cristãos nas cruza<strong>da</strong>s — umpensamento <strong>do</strong> tipo ”eu luto por um mun<strong>do</strong> justo, uma socie<strong>da</strong>de semcontradições, portanto posso matar e roubar em nome desse ideal sagra<strong>do</strong>”.Assim como cristãos fanáticos queimavam hereges na I<strong>da</strong>de Média, osguerrilheiros justificavam, com sua moral superior, expurgos, assaltos eassassinatos sem julgamento de seus próprios colegas. Nas pequenasorganizações de conspira<strong>do</strong>res e guerrilheiros <strong>do</strong>s anos 1960 e 1970, é fácilperceber o controle extremo <strong>da</strong> conduta individual, a violência basea<strong>da</strong> nasuperiori<strong>da</strong>de moral e a obsessão com a traição — a mesma que fez Stálinexecutar companheiros próximos. Seus integrantes praticaram crimes bempareci<strong>do</strong>s com o assassina<strong>do</strong> de Elza, morta a man<strong>do</strong> de Prestes. Em 1973,por exemplo, o professor Francisco Jacques Moreira de Alvarenga,integrante <strong>da</strong> Ação Liberta<strong>do</strong>ra Nacional <strong>do</strong> Rio de Janeiro, foi assassina<strong>do</strong>numa sala de aula <strong>do</strong> Colégio Veiga de Almei<strong>da</strong>. O rapaz foi morto porseus próprios colegas de organização, enquanto montava uma prova para osvestibulan<strong>do</strong>s <strong>do</strong> colégio. Havia sobre ele a acusação de ter delata<strong>do</strong>, sobtortura, membros <strong>da</strong> ALN.O caso mais significativo deve ser o de Márcio Leite de Tole<strong>do</strong>, de26 anos. Conheci<strong>do</strong> como Professor Par<strong>da</strong>l, ele foi assassina<strong>do</strong> no dia 23 demarço de 1971. O rapaz havia acaba<strong>do</strong> de voltar de Cuba, onde tinharecebi<strong>do</strong> treinamento de guerrilha. De volta ao Brasil, logo se tornou um<strong>do</strong>s coordena<strong>do</strong>res <strong>da</strong> ALN em São Paulo. Maior <strong>da</strong>s organizaçõesterroristas que lutaram contra a ditadura, a ALN teve quase trezentosmembros em 1968, adquirin<strong>do</strong> uma imagem mítica. Assaltos e sequestroseram inadverti<strong>da</strong>mente atribuí<strong>do</strong>s a ela, como aconteceu recentemente com


o Coman<strong>do</strong> Vermelho e o PCC. Até aquele ano, era um pouco mais fácilassaltar bancos e sequestrar embaixa<strong>do</strong>res estrangeiros. A euforia inicial <strong>do</strong>sguerrilheiros, o fator surpresa (a polícia mal conhecia os grupos) e a falta deaparelhamento <strong>do</strong> governo militar facilitavam as ações. Em 1969, noentanto, as investigações e a tortura <strong>da</strong> polícia mostraram resulta<strong>do</strong>. Um aum, os grupos de guerrilheiros viam seus participantes serem presos. Emapenas cinco meses, a polícia descobriu 66 esconderijos e prendeu 320pessoas. Em novembro de 1969, os militares executaram, na Alame<strong>da</strong> CasaBranca, em São Paulo, o líder <strong>da</strong> ALN, Carlos Marighella. Ele foisubstituí<strong>do</strong> por Joaquim Câmara Ferreira, morto em outubro de 1970,poucas semanas depois de o Professor Par<strong>da</strong>l voltar de Cuba.Depois <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> líder substituto, o comportamento de MárcioTole<strong>do</strong> mu<strong>do</strong>u. Com o grupo sen<strong>do</strong> destruí<strong>do</strong> pelos militares, ele deve terfica<strong>do</strong> descrente de que a organização conquistaria algum apoio popular.No fim de 1970, o Professor Par<strong>da</strong>l passou quarenta dias sem <strong>da</strong>r notíciasaos colegas. Quan<strong>do</strong> voltou, faltava a encontros e aban<strong>do</strong>nava missões.Disse aos companheiros que pensava deixar a organização e partir paraoutro grupo. Numa carta encontra<strong>da</strong> no seu quarto dias depois de suamorte, escreveu:Não vacilo e não tenho dúvi<strong>da</strong>s quanto às minhas convicções.Continuarei trabalhan<strong>do</strong> pela revolução, pois ela é o meu únicocompromisso. Procurarei onde possa ser efetivamente útil ao movimento esobre isso conversaremos pessoalmente.Ele não teve oportuni<strong>da</strong>de de conversar pessoalmente com oscompanheiros. Alarma<strong>do</strong>s com a possibili<strong>da</strong>de de Márcio ser pego pelapolícia e dedurá-los, os outros líderes <strong>da</strong> ALN em São Paulo montaram umpequeno tribunal para julgá-lo. Por quatro votos a um, decidiram executar o


apaz. O que mais impressiona é como eles fizeram isso. Márcio não pôdese defender - sequer soube que estava sen<strong>do</strong> julga<strong>do</strong>. Os colegas marcaramum encontro com o estu<strong>da</strong>nte na rua Caçapava, nos Jardins, em São Paulo.O jovem esperava na calça<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> um carro passou disparan<strong>do</strong> umaraja<strong>da</strong>. Como se fosse um colabora<strong>do</strong>r <strong>da</strong> ditadura, foi executa<strong>do</strong> com oitotiros, protegen<strong>do</strong> o rosto com as mãos. Morreu a menos de 300 metros <strong>do</strong>local onde Marighella, dezessete meses antes, tinha si<strong>do</strong> executa<strong>do</strong> pelapolícia. Antes de ir embora, os guerrilheiros jogaram panfletos expon<strong>do</strong> asrazões <strong>do</strong> crime. Repare nas palavras deles - algumas expressões poderiamser ditas pelo líder de alguma seita radical <strong>da</strong> Califórnia:Foram ouvi<strong>do</strong>s os companheiros <strong>do</strong> coman<strong>do</strong>, diretamente liga<strong>do</strong>sa ele, e foi <strong>da</strong><strong>da</strong> a decisão. Uma organização revolucionária, em guerradeclara<strong>da</strong>, não pode permitir a quem tenha uma série de informações comoas que possuía vacilação dessa espécie, muito menos suportar uma defecçãodesse grau em suas fileiras. Ca<strong>da</strong> companheiro ao assumir qualquerresponsabili<strong>da</strong>de deve pesar bem as consequencias deste fato. Um recuo,nesta situação, é uma brecha aberta em nossa organização. [...] Tolerância econciliação tiveram funestas consequencias na revolução <strong>brasil</strong>eira.Temperar-nos, saber compreender o momento que passa a GuerraRevolucionária e nossa responsabili<strong>da</strong>de diante dela é uma palavra de ordemrevolucionária. Ao assumir responsabili<strong>da</strong>de na organização ca<strong>da</strong> quadrodeve analisar sua capaci<strong>da</strong>de e seu preparo. Depois disto não se permiterecuos. As divergências políticas serão sempre respeita<strong>da</strong>s. Os recuos dequem não hesitou em aceitar responsabili<strong>da</strong>des, nunca! O resguar<strong>do</strong> <strong>do</strong>squadros e estrutura <strong>da</strong> organização é questão revolucionária. A revoluçãonão admitirá recuos!


Deposto pelo golpe de 1964, o presidente João Goulart ganhou aimagem de homem íntegro que foi impedi<strong>do</strong> pelos militares de fazer umgoverno honesto. Trata-se só mesmo de uma imagem. Em seus <strong>do</strong>is anosde governo, Jango deu uma boa força às falcatruas entre o governo e asempreiteiras. A informação vem <strong>do</strong> livro Minha Razão de Viver, de SamuelWainer. De acor<strong>do</strong> com o jornalista, então diretor <strong>do</strong> Ultima Hora e um<strong>do</strong>s principais alia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> presidente, o esquema <strong>da</strong> época era aquele famosotipo de corrupção que hoje motiva escân<strong>da</strong>los.


JANGO FAVORECIA EMPREITEIRAS”Quan<strong>do</strong> se anunciava alguma obra pública, o que valia não eraa concorrência to<strong>da</strong>s às concorrências vinham com cartas marca<strong>da</strong>s,funcionavam como mera facha<strong>da</strong>”, escreveu Wainer. O que tinha valor era acombinação feita entre homens <strong>do</strong> governo e <strong>da</strong>s empresas por trás <strong>da</strong>scortinas. ”Naturalmente, as empresas beneficia<strong>da</strong>s retribuíam comgenerosas <strong>do</strong>ações, sempre clandestinas, à boa vontade <strong>do</strong> governo.” SamuelWainer afirmou no livro que ele próprio entrou no esquema, lavan<strong>do</strong> odinheiro <strong>da</strong>s empreiteiras por meio de contas de publici<strong>da</strong>de no ÚltimaHora. ”Minha tarefa consistia em, tão logo se encerrasse a concorrência,recolher junto ao empreiteiro premia<strong>do</strong> a contribuição de praxe.” Haviatanta intimi<strong>da</strong>de entre as empreiteiras e o governo Jango que elas chegarama financiar pronunciamentos <strong>do</strong> presidente. ”O famoso comício <strong>da</strong>sreformas ocorri<strong>do</strong> em 13 de marco de 64, por exemplo, teve suas despesaspagas por um grupo de empreiteiros”, contou Wainer.Esse panfleto, cria<strong>do</strong> por uma <strong>da</strong>s organizações de esquer<strong>da</strong> maisativas, mostra que quem pegou em armas e arriscou a vi<strong>da</strong> em nome <strong>do</strong>comunismo estava mais perto <strong>do</strong> messianismo que <strong>da</strong> sensatez. Muitosjovens <strong>da</strong>quela época, para se tornar políticos menos imprudentes, tiveramque aderir à reali<strong>da</strong>de. Eles lembram suas ações com uma ponta devergonha - é comum dizerem frases <strong>do</strong> tipo ”fizemos muita bobagem” ou”hoje eu vejo as coisas com um pouco mais de tranquili<strong>da</strong>de”. Se o governoe a socie<strong>da</strong>de <strong>brasil</strong>eira mantiveram o país longe <strong>do</strong>s comunistas, existe aí


um motivo para nos sentirmos alivia<strong>do</strong>s: o país pôde avançar livre <strong>do</strong>sperigosos profetas <strong>da</strong> salvação terrena. Também há motivo para festejarmos:nos últimos cinquenta anos, enquanto a população quase triplicou, osíndices de quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> mais que <strong>do</strong>braram. Existe aí até mesmo ummotivo para trair a proposta deste livro e expressar um êxtase depatriotismo. Viva o Brasil capitalista.

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