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Sobre o amor e os ciúmes: variações e desventuras

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TEXTOS<br />

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 55-61, jul./dez. 2009<br />

Resumo: O texto aborda o debate promovido por Jacques Lacan nas primeiras<br />

lições do seminário As psic<strong>os</strong>es, sobre a n<strong>os</strong>ologia psiquiátrica e a psicanalíti-<br />

ca, no que se refere à relação entre <strong>os</strong> delíri<strong>os</strong> passionais e a paranoia. Basea-<br />

do em text<strong>os</strong> de Freud e Clérambault, Lacan situa a base da psicopatologia do<br />

discurso delirante na ordem da linguagem. Aprofunda sua tese tomando como<br />

exemplo a construção d<strong>os</strong> delíri<strong>os</strong> passionais (erotomania, reinvindicação e ci-<br />

úme) e a paranoia.<br />

Palavras-chave: delírio de ciúme, delíri<strong>os</strong> passionais, psic<strong>os</strong>e paranoica,<br />

psicopatologia.<br />

JELOUSY DELIRIUM IN THE PSYCHOANALITICAL GRAMMAR: NOTES<br />

ABOUT THE PSYCHOPATHOLOGY OF PASSIONATE DELIRIUM<br />

Abstract: The text discusses the debate promoted by Jacques Lacan in the first<br />

lessons of the Seminar Psych<strong>os</strong>es on psychiatric and psychoanalytic n<strong>os</strong>ology,<br />

regarding the relationship between passionate delirium and paranoia. Based on<br />

texts of Freud and Clérambault, Lacan situates the foundation of the<br />

psychopathology of the discourse in the language order. Lacan deepens his<br />

thesis taking as an example the construction of passionate delirium (erotomania,<br />

claims and jealousy) and paranoia.<br />

Keywords: jealousy delirium, passionate delirium, paranoic psych<strong>os</strong>is,<br />

psychopathology.<br />

1 Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Ciúmes, realizada em Porto Alegre,<br />

abril de 2009.<br />

2 Psicanalista; Psiquiatra; Membro do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e Membro da APPOA. E-<br />

mail: nsibemberg@gmail.com<br />

O DELÍRIO DE CIÚME NA<br />

GRAMÁTICA DA PSICANÁLISE:<br />

Notas sobre a psicopatologia<br />

d<strong>os</strong> delíri<strong>os</strong> passionais 1<br />

Nilson Sibemberg 2<br />

55 55


56<br />

Nilson Sibemberg<br />

F reud ([1921]1981), no texto <strong>Sobre</strong> alguns mecanism<strong>os</strong> neurótic<strong>os</strong> no ciúme,<br />

na paranoia e no hom<strong>os</strong>sexualismo, coloca o ciúme, assim como a<br />

tristeza, como um daqueles estad<strong>os</strong> afetiv<strong>os</strong> que podem<strong>os</strong> chamar de normais.<br />

Desses que, quando parecem faltar em alguém, pensam<strong>os</strong> que sucumbiram de<br />

forma enérgica à repressão; portanto, estariam desempenhando na vida anímica<br />

do sujeito um papel muito importante. No entanto, a clínica psicanalítica n<strong>os</strong><br />

defronta com cas<strong>os</strong> de ciúme anormalmente intens<strong>os</strong>, <strong>os</strong> quais ele distribuiu<br />

em três estrat<strong>os</strong>: o ciúme de rivalidade, o ciúme projetivo e o ciúme delirante.<br />

O ciúme de rivalidade, concorrente, é por ele descrito como comp<strong>os</strong>to de<br />

tristeza e dor, pela ideia de perda do objeto erótico, causa de uma ofensa narcísica<br />

que se manifesta em sentiment<strong>os</strong> h<strong>os</strong>tis contra o rival preferido e, com maior ou<br />

menor autocrítica, quer fazer do eu o responsável pela perda <strong>amor</strong><strong>os</strong>a. Essa<br />

forma de ciúme pode ser tributária do complexo de Édipo ou do complexo fraterno<br />

do período sexual infantil.<br />

O ciúme projetivo nasce, tanto no homem como na mulher, das próprias<br />

infidelidades do sujeito, ou do impulso de cometê-las, recalcadas no inconsciente.<br />

Freud qualifica esse ciúme como de caráter quase delirante, já que não<br />

resiste ao trabalho analítico que revela as fantasias inconscientes de infidelidade<br />

a ele subjacentes.<br />

A terceira forma de ciúme, a que n<strong>os</strong> dirige neste trabalho, é a do ciúme<br />

delirante. Freud ([1911] 1981), para abordar o tema, retoma a tese desenvolvida<br />

no trabalho Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de<br />

paranoia. O delírio de ciúme foi tratado nesse texto também como projeção de<br />

tendências infiéis reprimidas; no entanto, o traço diferencial estava colocado no<br />

caráter hom<strong>os</strong>sexual do objeto <strong>amor</strong><strong>os</strong>o. O ciúme delirante apareceria como<br />

defesa de um impulso hom<strong>os</strong>sexual rejeitado pelo sujeito. N<strong>os</strong> cas<strong>os</strong> de <strong>ciúmes</strong><br />

delirantes podem aparecer, segundo Freud, as três graduações do ciúme.<br />

Ele n<strong>os</strong> apresenta um caso clínico de ciúme paranoico, m<strong>os</strong>trando como esse<br />

delírio passional ocupa um lugar entre as formas clássicas da paranoia.<br />

Lacan ([1955-56] 1985) inicia a lição de 30 de novembro de 1955, do<br />

seminário As psic<strong>os</strong>es, fazendo uma crítica ao modo de explicar o caso do<br />

presidente Schreber, e a paranoia em geral, pela simples rejeição das fantasias<br />

hom<strong>os</strong>sexuais dominantes no inconsciente do sujeito. Ele pergunta no que<br />

consiste essa hom<strong>os</strong>sexualidade, a que ponto da economia do sujeito ela<br />

intervém?<br />

Ele pr<strong>os</strong>segue a construção do conceito do outro, parceiro imaginário da<br />

identificação especular e do grande Outro, distinguido do primeiro pela letra<br />

maiúscula, representando o ordenamento simbólico da lei. O Outro aparece na<br />

vida do sujeito pela palavra que carrega o interdito. No seu limite, essa instância<br />

terceira confunde-se com a ordem da linguagem.


O delírio de ciúme na gramática...<br />

A falta da inscrição da função simbólica do Outro coloca o sujeito numa<br />

p<strong>os</strong>ição objetal diante de um Outro absoluto, onipotente e devorador, o que, no<br />

imaginário masculino, leva o sujeito a ficar situado em p<strong>os</strong>ição feminilizada. Daí<br />

n<strong>os</strong> parece ser tão frequente o fantasma do empuxo à mulher n<strong>os</strong> delíri<strong>os</strong><br />

paranoic<strong>os</strong>.<br />

Ainda nessa lição, Lacan ([1955-56] 1985) traz uma abordagem sobre a<br />

estrutura do fenômeno delirante na sua relação com a linguagem, marcando<br />

uma p<strong>os</strong>ição diferencial entre a abordagem psicanalítica, a fenomenologia de<br />

Jasper e a psiquiatria. É na estrutura da linguagem que ele assenta a base da<br />

psicopatologia psicanalítica. Em se tratando de delírio, se é na fala que o fenômeno<br />

se manifesta, é lá que podem<strong>os</strong> dissecar sua estrutura.<br />

Freud ([1911] 1981) situou o delírio do ciúme como uma das formas clássicas<br />

da paranoia. Getan Gatian de Clérambault ([1921] 2006) propõe, pelo lado<br />

da psiquiatria, a separação n<strong>os</strong>ológica entre <strong>os</strong> delíri<strong>os</strong> interpretativ<strong>os</strong> e <strong>os</strong> delíri<strong>os</strong><br />

passionais do quadro geral da psic<strong>os</strong>e paranoica.<br />

Clérambault situava o delírio interpretativo no grupo da psic<strong>os</strong>e paranoica.<br />

O delírio de ciúme, a erotomania e o delírio de reivindicação ficavam abrigad<strong>os</strong><br />

no grupo das psic<strong>os</strong>es passionais. Enquanto o paranoico, n<strong>os</strong> term<strong>os</strong> de<br />

Clérambault, delira com seu caráter, o passional parte de um nó ideoafetivo<br />

preciso, caracterizado por uma exigência consciente, imediatamente completa,<br />

ligada a uma emoção veemente e profunda.<br />

A erotomania, para Clérambault, não tem como fonte principal o <strong>amor</strong>;<br />

sua marca recai no orgulho. O sujeito é objeto do <strong>amor</strong> de alguém muito importante.<br />

Tem<strong>os</strong> aqui introduzida a noção do narcisismo na esfera da paixão. No<br />

delírio de ciúme e de reivindicação, a indignação e a cólera são as emoções<br />

predominantes.<br />

Jean-Jacques Tyszler, no artigo A propósito das psic<strong>os</strong>es passionais,<br />

defende a tese de que Lacan marca um tronco comum entre a interpretação<br />

delirante, a erotomania, o delírio de reivindicação e o de ciúme dentro da estrutura<br />

da paranoia, mas não deixa de observar uma diferença em como se estabelece<br />

a inércia dialética:<br />

A dialética do ‘ou eu’ ou ‘o outro’, a abordagem pela duplicidade do<br />

eu, não explicita suficientemente a forma particular das psic<strong>os</strong>es<br />

passionais, que trabalham mais do lado do ‘eu’ (Je), do sujeito e<br />

do lado, digam<strong>os</strong>, mais normalmente compreensível desses temas<br />

delirantes (Tyszler, 2005, p.123).<br />

Tyszler se coloca a pergunta de por que Clérambault excluiria <strong>os</strong> delíri<strong>os</strong><br />

passionais da paranoia.<br />

57


58<br />

Nilson Sibemberg<br />

A inércia dialética coloca o acento, como indica Lacan ([1955-56] 1985),<br />

do lado do “eu”, do sujeito, ao passo que nas formações paranoicas trabalhadas<br />

pelo automatismo mental ou pela alucinação, a inflexão está no diálogo imp<strong>os</strong>to<br />

como um “tu”.<br />

A erotomania, que em Lacan está no centro da paranoia, m<strong>os</strong>tra o <strong>amor</strong><br />

como uma relação de eu a eu, na tentativa de formar o “um”. O objeto verdadeiro<br />

do <strong>amor</strong> erotômano porta <strong>os</strong> traç<strong>os</strong> do próprio eu, traç<strong>os</strong> trabalhad<strong>os</strong> pelo orgulho.<br />

No ciúme delirante, o duplo do ciumento carrega <strong>os</strong> traç<strong>os</strong> ignorad<strong>os</strong> do<br />

próprio eu do sujeito, numa p<strong>os</strong>ição idealizada.<br />

Outra característica que vem marcar a distinção entre <strong>os</strong> delíri<strong>os</strong> passionais<br />

e o interpretativo está colocada no tempo de construção e ecl<strong>os</strong>ão do delírio.<br />

Na paranoia, Schreber é aqui n<strong>os</strong>so maior exemplo, a construção delirante<br />

tem dois temp<strong>os</strong>. No primeiro momento, o saber sobre <strong>os</strong> fenômen<strong>os</strong> é exterior<br />

ao sujeito. Ele é objeto de um Outro onipotente, que partilha com o clínico<br />

essa dimensão do saber. Essa p<strong>os</strong>ição objetal o coloca numa relação feminilizada<br />

frente a esse outro todo potente.<br />

No entanto, com o passar do tempo, um deslocamento do lugar do saber<br />

vai operando a ponto de o paranoico afirmar que domina sozinho o conhecimento<br />

de todas as coisas.<br />

N<strong>os</strong> passionais, a construção do saber delirante não se dá nesses dois<br />

temp<strong>os</strong>, ela é imediata. O p<strong>os</strong>tulado se impõe como <strong>amor</strong> à primeira vista.<br />

Essas primeiras notas n<strong>os</strong> colocam na questão da n<strong>os</strong>ologia, mas o que<br />

é que, para a psicanálise, vem a constituir a base de sua psicopatologia?<br />

Lacan diz ([1955-56] 1985, p. 43): “O sistema de linguagem, em qualquer<br />

ponto em que vocês discirnam, nunca se reduz a um indicador diretamente<br />

dirigido a um ponto de realidade, é toda a realidade que está abrangida pelo<br />

conjunto da rede de linguagem”.<br />

De que realidade ele n<strong>os</strong> fala? Ao comentar o texto de Freud, ([1924]<br />

1981) A perda da realidade nas neur<strong>os</strong>es e nas psic<strong>os</strong>es, ele lembra que a<br />

realidade da qual Freud fala é a realidade psíquica. Portanto, a psicopatologia<br />

começa pela maneira como o sujeito se estrutura na linguagem.<br />

O que define o delírio? Freud já deixava claro, no entender de Lacan<br />

([1955-56] 1985), que não se trata do falso ou verdadeiro no conteúdo do pensamento,<br />

em comparação com a realidade exterior compartilhada. Essa diferença<br />

pode aparecer no discurso neurótico. O sujeito, sabem<strong>os</strong> que existe, quando na<br />

fala aparece o engodo. O delírio se distingue por uma forma especial de<br />

discordância com a linguagem comum. Se, na linguagem comum, uma significação<br />

remete a outra significação, no delírio psicótico a significação de alguns<br />

pont<strong>os</strong>-chave na rede de significantes só remete a ela própria, permanece


O delírio de ciúme na gramática...<br />

irredutível. Como lembra Lacan: “... a palavra tem peso em si mesma” (Lacan,<br />

[1955-56] 1985, p.43).<br />

Avançando sobre o texto de Schreber, ele sublinha dois tip<strong>os</strong> de fenômen<strong>os</strong><br />

de linguagem em que se projeta o neologismo. “A intuição delirante é um<br />

fenômeno pleno que tem para o sujeito um caráter submergente, inundante... a<br />

palavra do enigma é a alma da situação” (id., ibid., p. 44).<br />

De outro lado tem<strong>os</strong> a forma cuja significação não remete mais a nada. É<br />

uma repetição estereotipada, manifestação de fala que pode ser encontrada n<strong>os</strong><br />

quadr<strong>os</strong> mais graves de esquizofrenia.<br />

O que há de verdade ou mentira na fala de uma criança pequena que,<br />

após bater em outra, n<strong>os</strong> diz que foi a outra quem bateu nela? O transitivismo<br />

infantil está presente no curso das identificações primárias definidas por Lacan<br />

no estádio do espelho. A fala da criança não é mentir<strong>os</strong>a, mas reveladora da<br />

verdade na estrutura do sujeito.<br />

É, então, na ordem do discurso que podem<strong>os</strong> discernir que se trata de<br />

delírio, e na sua gramática, do que trata esse delírio. A fala é comunicação,<br />

palavra dirigida a outr<strong>os</strong>. A palavra falada é fundadora da p<strong>os</strong>ição d<strong>os</strong> sujeit<strong>os</strong><br />

envolvid<strong>os</strong>.<br />

Em se tratando das psic<strong>os</strong>es passionais, é importante relembrar essas<br />

lições de Lacan, pois n<strong>os</strong> ajudam a diferenciar o ciúme na neur<strong>os</strong>e do delírio de<br />

ciúme na psic<strong>os</strong>e.<br />

No ciúme competitivo, o normal segundo Freud ([1921] 1981), tem<strong>os</strong> uma<br />

relação triangular em que um quarto elemento, o falo, desliza entre <strong>os</strong> três<br />

vértices. Em tratando da psic<strong>os</strong>e, Lacan vai situar o discurso paranoico no prolongamento<br />

do eixo especular.<br />

Ele diz: “O conhecimento dito paranoico é um conhecimento instaurado<br />

na rivalidade do ciúme, no curso dessa identificação primeira que tentei definir a<br />

partir do estádio do espelho” (Lacan, [1955-56] 1985, p. 50).<br />

O ciúme, diz Lacan, está na origem da construção do conhecimento<br />

humano. O ciúme fraterno, descrito por Santo Ag<strong>os</strong>tinho, o de rivalidade e o<br />

concorrencial são superad<strong>os</strong> na fala pela intervenção do terceiro.<br />

A carência de efeito simbólico, da palavra como pacto para chegar a um<br />

acordo, marca uma p<strong>os</strong>ição do Outro como afastada na dialética entre o eu e o<br />

outro, outro do espelho, fonte de todo conhecimento. Na especularidade o outro<br />

é o eu.<br />

Lacan pergunta de que n<strong>os</strong> fala o paranoico e responde: “ele fala com<br />

vocês de alguma coisa que lhe falou” (id., ibid., p.52).<br />

Isso não significa que o paranoico é um papagaio a repetir a fala do outro<br />

materno. Ele coloca que o fundamento da estrutura paranoica está no testemunho<br />

que o sujeito dá de que alguma coisa tomou forma de palavra falada, que lhe<br />

59


60<br />

Nilson Sibemberg<br />

fala. Para entender como isso fala na estrutura do discurso paranoico, Lacan<br />

recorre então a Freud ([1911]1981).<br />

<strong>Sobre</strong> o enunciado “eu o amo, e você me ama”, Freud (ibid., p.1518)<br />

distingue três formas de negação.<br />

A primeira maneira de negar é dizer: “não sou eu que o amo, é ela”, é a<br />

minha mulher que o ama. Nesse caso, o sujeito faz levar sua mensagem por um<br />

outro, a(o) parceira(o). Eis aí a estrutura de delírio de ciúme. “O ego fala por<br />

intermédio do alter ego, que no intervalo mudou de sexo”, diz Lacan ([1955-56]<br />

1985, p. 53).<br />

Freud coloca que mesmo no delírio de ciúme, no qual o que o paranoico<br />

não suporta é o empuxo à mulher, o mecanismo projetivo (o segundo tipo de<br />

ciúme) entra em jogo. No entanto, Lacan faz uma distinção. Não se trata de<br />

simplesmente imputar ao outro suas próprias infidelidades. No delírio de ciúme,<br />

a identificação se dá por alienação invertida. É a sua mulher que o sujeito faz<br />

mensageira de seu próprio desejo rejeitado. Encontram<strong>os</strong> aqui um mecanismo<br />

projetivo que não é da mesma ordem da neur<strong>os</strong>e. O delírio de ciúme paranoico<br />

se estende não para um homem, mas, como ele coloca, para um número de<br />

homens mais ou men<strong>os</strong> indefinido. Isso, porque o delírio de ciúme é indefinidamente<br />

repetível.<br />

No segundo caso, ele diz: “não é ele que eu amo, é ela”, é ela que me<br />

ama. Na erotomania, o outro ao qual se endereça o sujeito é um ser muito<br />

especial. Daí a ideia do orgulho do erotômano, descrita por Clérambault. O sujeito<br />

tem com ele uma relação platônica, à distância. Porém, é o outro que o<br />

ama primeiro. Por isso o erotômano, sujeito de um ser amado, é também objeto<br />

de muito valor. A erotomania é, entre <strong>os</strong> delíri<strong>os</strong> passionais, o que mais n<strong>os</strong><br />

coloca a questão do feminino na psic<strong>os</strong>e, já que sua prevalência é de cerca de<br />

80% em mulheres (Tyzler, 2005).<br />

Na terceira p<strong>os</strong>sibilidade, “eu não o amo, eu o odeio”, uma simples inversão<br />

não é suficiente como defesa. É preciso que intervenha o mecanismo da<br />

projeção: “ele me odeia”. Aí está estabelecido o delírio persecutório. O <strong>amor</strong><br />

recusado virou ódio, o ódio projetado no outro retorna como objeto persecutório.<br />

Todo sistema de relação com o outro fica alterado. O que vem do outro aparece<br />

como reflexo extensivo da sua interpretação do mundo. Como diz Lacan, é a<br />

perturbação imaginária levada ao seu máximo.<br />

A gramática freudiana do delírio paranoico e de suas p<strong>os</strong>ições passionais<br />

n<strong>os</strong> remete ao campo das identificações primárias próprias do estádio do espelho.<br />

Parece que esse outro contra o qual o passional se agita coloca em jogo a<br />

imagem ideal de si mesmo. Ou em que outra p<strong>os</strong>ição poderia estar situada a<br />

atriz vítima da violência passional de Aimée?


O delírio de ciúme na gramática...<br />

REFERÊNCIAS:<br />

CLÉRAMBAULT, G. Gatien. Os delíri<strong>os</strong> passionais: erotomania, reivindicação, ciúme.<br />

[1921]. Revista do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, Rio de Janeiro, mar. 2006.<br />

FREUD, Sigmund. Observaciones psicoanaliticas sobre un caso de paranoia<br />

(Dementia Paranoides) autobiograficamente descrito [1911] In: _____. Obras completas.<br />

4. ed. Madrid: Bibl. Nueva,1981. v.2.<br />

______. <strong>Sobre</strong> algun<strong>os</strong> mecanism<strong>os</strong> neurotic<strong>os</strong> em l<strong>os</strong> cel<strong>os</strong>, la paranoia y la<br />

hom<strong>os</strong>exualidad [1921]. In: _____. Obras completas. 4. ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981.<br />

v.3.<br />

______. La pérdida de la realidad en la neur<strong>os</strong>is y en la psic<strong>os</strong>is [1924] In: _____.<br />

Obras completas. 4. ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v.3.<br />

LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psic<strong>os</strong>es [1955-56]. Rio de Janeiro: J.<br />

Zahar Ed., 1985.<br />

TYZLER, J. Jacques. A propósito das psic<strong>os</strong>es passionais. Revista do Tempo<br />

Freudiano Associação Psicanalítica, Rio de janeiro, jan. 2005.<br />

Recebido em 10/11/2009<br />

Aceito em 15/12/2009<br />

Revisado por Beatriz Kauri d<strong>os</strong> Reis<br />

61


62<br />

TEXTOS<br />

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 62-74, jul./dez. 2009<br />

Resumo: A partir de Dom Casmurro, de Machado de Assis, acompanham<strong>os</strong> a<br />

narrativa em torno de Bento e Capitu. Na vacilação inscrita pela p<strong>os</strong>ição do<br />

personagem-narrador ocorre uma fratura, e nesse lugar surge um terceiro anco-<br />

rado na certeza, que apaga todo o resto. Machado de Assis n<strong>os</strong> oferece, assim<br />

como Shakespeare, Proust e Edgar Allan Poe, algo da verdade do ciúme: fixi-<br />

dez que empurra o sujeito ao lugar de sua sombra.<br />

Palavras-chave: ciúme, fixidez, duplo.<br />

A CLOVE OF JEALOUSY IN THE MACHADIAN FICTION<br />

Abstract: In Dom Casmurro, by Machado de Assis, we follow the narrative<br />

surrounding Bento and Capitu. In the <strong>os</strong>cillation embedded by the narrator-<br />

character perspective, there is a fracture, and out of this place comes out a third<br />

one, anchored onto a certainty which wipes off all the rest. Thus Machado de<br />

Assis grants us, as well as Shakespeare, Proust and Edgar Allan Poe do, with<br />

something from the truth of jealousy: a rigidity which impels the subject to the<br />

reign of his or her own shadow.<br />

Keywords: jealousy, rigidity, double.<br />

UM DENTE DE CIÚME<br />

NA FICÇÃO MACHADIANA 1<br />

Lucia Serrano Pereira 2<br />

1 Este texto foi escrito na referência ao livro: Um narrador incerto entre o estranho e o familiar,<br />

a ficção machadiana na psicanálise (Cia de Freud, 2008).<br />

2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association<br />

Lacanienne Internationale(ALI); Doutora em Literatura Brasileira (UFRGS). Autora d<strong>os</strong> livr<strong>os</strong>: O<br />

conto machadiano: uma experiência de vertigem – ficção e psicanálise (Cia de Freud, 2008);<br />

Um narrador incerto entre o estranho e o familiar, a ficção machadiana na psicanálise (Cia de<br />

Freud, 2004). E-mail: luciasp@portoweb.com.br


Um dente de <strong>ciúmes</strong>...<br />

Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento<br />

para proclamar de peito aberto, no instante mesmo<br />

de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um<br />

sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher<br />

como uma r<strong>os</strong>a. Senão, no instante seguinte ele<br />

se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta<br />

Chico Buarque<br />

Lembrem<strong>os</strong> uma vez mais Capitu (Machado de Assis, [1900] 1997). É justo,<br />

pois não é em torno dela que se arma a grande expressão do mal-estar do<br />

ciúme em n<strong>os</strong>sa literatura?<br />

Dom Casmurro, calado, recluso, Dom por ironia, ares de fidalgo. Ele é o<br />

narrador que reconstitui sua vida, suas memórias. Dom Casmurro, Bentinho,<br />

Bento Santiago. Três nomes do personagem-narrador desdobrando lugares diferentes<br />

na narrativa. Bentinho é o narrador enquanto jovem-menino que, a<strong>os</strong> 15<br />

an<strong>os</strong>, ouve atrás da porta uma conversa entre sua mãe e o agregado da casa,<br />

J<strong>os</strong>é Dias, conversa que indica sua condição: está apaixonado por Capitu, a<br />

menina da casa ao lado, e nem sabia. É J<strong>os</strong>é Dias quem aponta para Dona<br />

Glória o fato, tem observado <strong>os</strong> dois jovens em segredinh<strong>os</strong>, sempre junt<strong>os</strong>.<br />

Para Bentinho, as palavras de J<strong>os</strong>é Dias têm o efeito inusitado de revelação.<br />

O romance: a primeira parte da narrativa apresenta esse tempo, em que<br />

Bentinho vive o <strong>amor</strong> por Capitu. Vai ao seminário, estuda, e volta, tendo feito<br />

um grande amigo, Escobar. Com a ajuda de J<strong>os</strong>é Dias e de Capitu, finalmente,<br />

consegue desfazer-se d<strong>os</strong> vot<strong>os</strong> eclesiástic<strong>os</strong>, que eram compromiss<strong>os</strong> matern<strong>os</strong>,<br />

já que Dona Glória havia feito a promessa de que o filho se tornaria padre.<br />

Diante dessa conquista, Bentinho retorna à casa da família e consegue realizar<br />

com a moça o sonho compartilhado: o casamento.<br />

Primeiro tempo de casad<strong>os</strong>, tudo corre bem, Bentinho já passa a marido e<br />

proprietário, deixa para trás o menino tímido dominado pela mãe, D. Glória. Compartilha<br />

a vida com Capitu e com o casal Sancha e Escobar. O filho demora a vir;<br />

quando nasce é festejado. Nesse primeiro tempo, tudo parece se encaminhar bem<br />

e, então, a tragédia: Escobar, exímio nadador, morre afogado no mar. No velório,<br />

Bento Santiago encontra algo no olhar de Capitu, para seu amigo morto, que começa<br />

a transtorná-lo. O ciúme é deflagrado com violência; tudo vem a ser retroativamente<br />

lembrado como indício da traição e, para culminar, Ezequiel, o filho, começa<br />

a ser visto por Bento como refletindo a imagem de Escobar (padrinho do menino).<br />

Filho do outro, ele conclui, como Otelo (Shakspeare, [1604]1999) deduz<br />

a culpa de Desdêmona. A tragédia shakespeariana de Otelo compõe o pano de<br />

fundo da história de Bento e Capitu, jogando especularmente uma história dentro<br />

da outra, estabelecendo a construção em abismo (mise-en-abîme).<br />

63


64<br />

Lucia Serrano Pereira<br />

A narrativa é produzida desde o ponto de vista de Bento Santiago, certeza<br />

da traição de Capitu, certeza essa que o romance ao mesmo tempo desautoriza<br />

em sua trama.<br />

O mal-estar e a crueldade ganham a cena – Bento Santiago desfaz-se de<br />

Capitu e do filho, mandando-<strong>os</strong> para a Europa, mantendo as aparências com um<br />

exílio sem volta para Capitu. Ela morre no estrangeiro, Ezequiel retorna jovem<br />

adulto. Bento <strong>os</strong>cila entre fugazes impuls<strong>os</strong> <strong>amor</strong><strong>os</strong><strong>os</strong> que sucumbem em um<br />

voto de morte dirigido ao filho: “bem que ele poderia pegar lepra [...]”. O rapaz<br />

efetivamente morre em uma viagem, Bento diz sobre o dia em que soube da<br />

morte do filho: “Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro” (Machado de Assis,<br />

[1900] 1997, p. 944).<br />

A pergunta que Dom Casmurro se faz, para concluir, é se afinal, a Capitu<br />

que trai já estava dentro da Capitu menina. Estrategicamente, o narrador induz<br />

o leitor a convir que sim, que uma já estava dentro da outra como:<br />

[...] a fruta dentro da casca. […] a minha primeira amiga e o meu<br />

maior amigo, tão extrem<strong>os</strong><strong>os</strong> amb<strong>os</strong> e tão querid<strong>os</strong> também, quis<br />

o destino que acabassem juntando-se e enganando-me...A terra<br />

lhes seja leve! (Machado de Assis, [1900]1997, p. 944).<br />

Se a fruta já estava dentro da casca (como na metáfora do repolho e da<br />

r<strong>os</strong>a, em Chico Buarque), de que maneira a pergunta percorre Bentinho na trama<br />

do ciúme?<br />

A transformação da menina em mulher atrai Bentinho e ao mesmo tempo o<br />

perturba. O canapé, simplesmente o nome dessa peça do mobiliário intitula o<br />

capítulo que diz da p<strong>os</strong>ição e do lugar de um e de outro. Um canapé que oferece<br />

em sua palha (sua trama), lugar a<strong>os</strong> dois, alia a intimidade e o decoro. Um canapé<br />

compartilhado por dois homens pode ser lugar do debate, do destino de um império;<br />

por duas mulheres, o interesse por um vestido, diz o narrador, mas se por um<br />

homem e uma mulher, ali se abre à fala sobre si mesm<strong>os</strong>. Bentinho e Capitu, a<br />

jura de <strong>amor</strong>, <strong>os</strong> ded<strong>os</strong> entrelaçad<strong>os</strong>, as cabeças quase juntas, muito próximas...<br />

até que entra o pai da moça. Bentinho se levanta depressa, lembra da cena e de<br />

seu constrangimento, metendo <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> pelas cadeiras. Ela, ao contrário, sem<br />

nenhum ar de mistério, envia as saudações à mãe dele, dá o até breve, estende a<br />

mão, e sai de cena. Confirmação para Bentinho de que ela é mais mulher do que<br />

ele, homem. “Tudo isso é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do v<strong>os</strong>so sexo,<br />

que perturbava assim a adolescência de um pobre seminarista”.<br />

Na verdade, Capitu ia crescendo às carreiras, as formas arredondavam-se<br />

e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente, a


Um dente de <strong>ciúmes</strong>...<br />

mesma cousa. Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita e<br />

à esquerda, mulher por tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> lad<strong>os</strong>, e desde <strong>os</strong> pés até a cabeça.<br />

[...] de cada vez que vinha a casa achava-a mais alta e mais<br />

cheia; <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> pareciam ter outra reflexão, e a boca outro império<br />

(Machado de Assis, [1900]1997, p.892).<br />

Como sustentar o lugar de homem frente, justamente, a essa mulher que<br />

vai surgindo e que o deseja? A p<strong>os</strong>ição de Bentinho vacila, ele ainda guarda algo<br />

do rapazinho que decide contar a D.Glória que, afinal, estava crescido, g<strong>os</strong>tava<br />

da Capitu e não queria voltar para o seminário, mas que quando se encoraja,<br />

afinal, só consegue dizer “Eu só g<strong>os</strong>to de mamãe” (id., ibid., p. 853).<br />

A mulher Capitu cresce a<strong>os</strong> seus olh<strong>os</strong>, metáfora que articula toda a<br />

sequência, essa mulher d<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> e olhares. São destacad<strong>os</strong> <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> que<br />

J<strong>os</strong>é Dias apontou como de “cigana, oblíqua e dissimulada”, e sempre em torno<br />

do olhar vai se armando a cena d<strong>os</strong> naufrági<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> mares e das marés que<br />

organizam <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> de ressaca, redemoinho, “umbigo” do romance.<br />

É no velório de Escobar que Bento se depara com o olhar de Capitu para<br />

o morto. Ele repara, em meio à confusão geral, Capitu olhando o cadáver:<br />

[…] tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem<br />

algumas lágrimas poucas e caladas. […] Momento houve em<br />

que <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> de Capitu fitaram o defunto, quais <strong>os</strong> da viúva, sem o<br />

pranto nem palavras desta, mas grandes e abert<strong>os</strong>, como a vaga<br />

do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da<br />

manhã (Machado de Assis, [1900] 1997, p. 927).<br />

Aqui se concentram <strong>os</strong> cruzament<strong>os</strong> e o ciúme ancora-se de uma vez por<br />

todas. A relação com o olhar de Capitu para o morto, tal qual olhou para ele,<br />

Bentinho, um dia (olhar de delícias, mas também de risco, mortífero); o<br />

deslizamento de Capitu para “olh<strong>os</strong> de viúva”, de fixidez para paixão.<br />

Escobar, o amigo atraído pelo desafio d<strong>os</strong> mares bravi<strong>os</strong>, morre justamente<br />

afogado. Por Capitu? Fica o suspense.<br />

O que vem imediatamente antes dessa morte é a narrativa do encontro,<br />

na noite anterior; d<strong>os</strong> dois casais de amig<strong>os</strong>, a pedido de Sancha, que anuncia<br />

um projeto para <strong>os</strong> quatro, um convite, uma viagem à Europa. Bento percebe<br />

qualquer coisa diferente naquela mulher, uma excitação naquela noite, uns olhares<br />

quentes e intimativ<strong>os</strong> de Sancha para com ele, toda a cena pontuada pela<br />

observação do mar batendo com força, e da ressaca na praia. Bento, na despedida,<br />

com o toque dessa mulher, tem um momento de vertigem e pecado. A<br />

situação é totalmente inusitada, ele tenta achar disso algum registro anterior, e<br />

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66<br />

Lucia Serrano Pereira<br />

observa: “Tive uma certeza só, é que um dia pensei nela como se pensa na bela<br />

desconhecida que passa” (Machado de Assis, [1900]1997, p. 924).<br />

Machado trabalha no intertexto, n<strong>os</strong> leva a associar a bela desconhecida<br />

que passa com a poesia de Baudelaire (1980), a incrível ”passante” 3 , que deixa<br />

seu rastro de forma indelével, inesquecível, com o envio de um raio, de um olhar<br />

fulgurante, derradeiro, antes de desaparecer na multidão. Para Bento, Escobar<br />

havia recebido defunto, aqueles olh<strong>os</strong>.<br />

O ciúme, para Bento Santiago, é rememorado desde o momento em que<br />

o Otelo, de Shakespeare ([1604] 1999), é introduzido no capítulo Uma reforma<br />

dramática. Bento brinca com a p<strong>os</strong>sibilidade de “reformar” a peça, de maneira<br />

que ela começasse pelo fim. Otelo mataria Desdêmona e a si mesmo no primeiro<br />

ato, <strong>os</strong> três seguintes para a ação do ciúme e, por último, uma saída irônica,<br />

com o conselho de Iago, o de meter dinheiro na bolsa. Tudo isso como uma<br />

pergunta sobre o destino que <strong>os</strong> dramaturg<strong>os</strong> não anunciam como a vida – nada<br />

se sabe ao certo, até que o pano caia. Nesse ponto da narrativa, tratava-se da<br />

curi<strong>os</strong>idade de Capitu sobre a companhia de Bentinho, com quem ele ficara na<br />

rua até tarde; é a introdução de Escobar entre eles. Esse outro que serve para<br />

introduzir no romance o que o narrador chamou de “o segundo dente de ciúme”<br />

(o primeiro vem depois, em retroação). A mordida se dá quando Bentinho vê um<br />

rapaz a cavalo passar pela rua e voltar seus olh<strong>os</strong> para Capitu, ao modo d<strong>os</strong><br />

n<strong>amor</strong><strong>os</strong> de antigamente.<br />

Ora, o dandy do cavalo baio não passou como <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>; era a<br />

trombeta do juízo final e soou a tempo; assim faz o Destino, que é<br />

o seu próprio contrarregra. O cavaleiro não se contentou de ir andando,<br />

mas voltou a cabeça para o n<strong>os</strong>so lado, o lado de Capitu, e<br />

olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabeça do<br />

homem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo dente de<br />

ciúme que me mordeu (Machado de Assis, [1900]1997, p. 884-<br />

885).<br />

3 “À une passante. La rue assourdissante autour de mon hurlait. Longue, mince, em grand<br />

deuil, douleur majestueuse, Une femme passa, d’une main fastueuse Soulevan, balançant le<br />

feston et l’ourlet; Agile et noble, avec sa jambe de statue. Moi, je bouvais, crispé comme un<br />

extravagant, Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan, La douceur qui fascine et le plaisir<br />

qui tue. Un éclair… puis la nuit! – Fugitive beauté Don’t le regard m’a fait soudainement<br />

renaître, Ne te verrai-je plus que dans l’éternité? Ailleurs, bien loin d’ici! Trop tard! Jamais<br />

peut-être! Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le<br />

savais! (Baudelaire, 1980, p. 68-69)


Um dente de <strong>ciúmes</strong>...<br />

O “primeiro dente de ciúme” é relatado em seguida. O narrador lembra do<br />

tempo do seminário, quando J<strong>os</strong>é Dias comenta que Capitu não s<strong>os</strong>segaria até<br />

pegar algum peralta da vizinhança que casasse com ela. Bentinho logo pensa<br />

que essa era uma alusão ao cavaleiro, mas ao mesmo tempo se pergunta: “Tal<br />

recordação agravou a impressão que eu trazia da rua; mas não seria essa palavra,<br />

inconscientemente guardada, que me dispôs a crer na malícia de seus<br />

olhares?” (Machado de Assis, [1990] 1997, p.885).<br />

A partir daí, a consistência desse terceiro vai delineando-se, insistindo. Em<br />

Embarg<strong>os</strong> de terceiro, o capítulo, Bento vai ao teatro, mas volta logo preocupado<br />

com Capitu, que havia dito não se sentir bem e preferira ficar em casa. Ele encontra<br />

Escobar descendo as escadas, o amigo teria ido para falar com ele sobre uns<br />

embarg<strong>os</strong>. Antes desse encontro inesperado, o narrador vinha ponderando:<br />

Cheguei a ter <strong>ciúmes</strong> de tudo e de tod<strong>os</strong>. Um vizinho, um par de<br />

valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror e<br />

desconfiança. É certo que Capitu g<strong>os</strong>tava de ser vista, e o meio<br />

mais próprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver também,<br />

e não há ver sem m<strong>os</strong>trar que se vê (Machado de Assis,<br />

[1900]1997, p. 918).<br />

Fica claro que o “terceiro” d<strong>os</strong> embarg<strong>os</strong> vai se armando em torno de<br />

Escobar. Este, que desde a adolescência de Bentinho, aparecia como o amigo<br />

devotado, mas também aquele que tinha <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> “um pouco fugitiv<strong>os</strong>, como as<br />

mã<strong>os</strong>, como <strong>os</strong> pés, como a fala, como tudo” (id., ibid., p.868).<br />

Escobar n<strong>os</strong> é apresentado metonimicamente, por contiguidade, as partes<br />

pelo todo, <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> e as mã<strong>os</strong>. Suas mã<strong>os</strong>, diz o narrador, são daquelas que<br />

não apertam as outras e também não se deixam apertar, ded<strong>os</strong> que quando se<br />

cuida de ter entre <strong>os</strong> seus, já não estão mais (também dissimulad<strong>os</strong>?).<br />

Duas vertentes fortes em Dom Casmurro apontam o surgimento e desdobramento<br />

do ciúme: o olhar de Capitu para Escobar morto, que faz com que<br />

Bento Santiago localize algumas situações que lhe retornam, lembranças de<br />

episódi<strong>os</strong> ambígu<strong>os</strong> que poderiam indicar para a cumplicidade entre Escobar e<br />

Capitu, e, a outra vertente ressaltando a semelhança que passa a ver entre seu<br />

filho Ezequiel e Escobar (portam o mesmo nome de batismo, Escobar chamase<br />

Ezequiel de Sousa Escobar).<br />

A primeira via n<strong>os</strong> remete mais propriamente para a relação de ciúme, e a<br />

segunda, para uma p<strong>os</strong>sibilidade que poderia indicar o caminho do “estranho”,<br />

quase na constituição de um outro que retorna da tumba para vir, de certa maneira,<br />

assombrá-lo (referim<strong>os</strong> “poderia indicar” o estranho por acharm<strong>os</strong> que<br />

essa seria uma aproximação que o texto permite, mas não fecha; a semelhança<br />

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Lucia Serrano Pereira<br />

pode ser lida em Dom Casmurro também como algo mais rarefeito, indefinível,<br />

que vem surgindo a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong>, sem acentuar seu contorno). Nesse percurso,<br />

Bento, que era protagonista do <strong>amor</strong> por Capitu, se vê progressivamente empurrado<br />

para um lugar de sombra, de perda do lugar desejante, de homem e de pai.<br />

Ele é aquele de quem a pintura mal disfarça o corpo da autópsia, derrocada de<br />

sua p<strong>os</strong>ição de sujeito.<br />

Tomem<strong>os</strong> a questão do ciúme em certa transversal, na relação com sua<br />

p<strong>os</strong>sível participação na construção do efeito de “estranho”, que termina por fazer<br />

Bento Santiago achar-se sentado à mesa com esse que “sai da sepultura”.<br />

O ciúme, Freud ([1922] 1969) aponta em <strong>Sobre</strong> alguns mecanism<strong>os</strong> neurótic<strong>os</strong><br />

n<strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong>, a paranoia e a hom<strong>os</strong>sexualidade, assim como a tristeza,<br />

pertencem àqueles sentiment<strong>os</strong> que, de alguma forma, participam da vida normal;<br />

ou seja, vão compor em maior ou menor grau a vida <strong>amor</strong><strong>os</strong>a comum, com<br />

mais ou men<strong>os</strong> recalque. Destaca ainda três formas: o que seria o ciúme dito<br />

normal, o ciúme projetado (quando se deseja fora da relação <strong>amor</strong><strong>os</strong>a e a seguir<br />

se projeta esse desejo “infiel” ao parceiro) e o ciúme delirante. Podem<strong>os</strong> n<strong>os</strong><br />

perguntar se, no final das contas, essas fronteiras seriam tão delimitadas, se<br />

esses element<strong>os</strong> não estão constantemente imbricad<strong>os</strong>. Mas, de qualquer maneira,<br />

há um traço do ciúme que sempre comparece: o de ser fixador, o de<br />

transformar tudo em sinal, em indício, um total desmantelamento da dimensão<br />

polissêmica da linguagem. É nessa via que Lerude (1995) faz uma aproximação<br />

da leitura do ciúme em Proust. Façam<strong>os</strong> um breve desvio até seu texto, referido<br />

a Em busca do tempo perdido (Marcel Proust, 2006), na direção de certo encontro<br />

entre o ciúme em Bento Santiago e Swann, o personagem da Recherche que,<br />

como n<strong>os</strong>so narrador machadiano, se vê tomado em um delírio de ciúme – com<br />

relação a Odete, essa mulher de condição social inferior (nesse ponto também<br />

como Capitu, guardadas as diferenças, Odete era uma cocotte francesa).<br />

Em Quelques remarques a prop<strong>os</strong> d’un amour de Swann, M. Lerude comenta<br />

o ciúme de Swann, na obra de Proust, com relação a Odete:<br />

4 Tradução da autora.<br />

E o ciúme consiste em um esvaziamento da equivocidade da língua,<br />

d<strong>os</strong> fenômen<strong>os</strong>: tudo faz signo, cada palavra, cada situação<br />

indica que Odete está alhures, com um outro, em um outro gozo<br />

que ele ignora, do qual ele é privado, amputado. A vida de Odete<br />

não lhe é, no fundo, mais desconhecida neste momento do que<br />

antes, mas é um “desconhecido” reconhecido como tal que se<br />

trata a partir daí, de preencher infinitamente” (Lerude, 1995, p. 119) 4 .


Um dente de <strong>ciúmes</strong>...<br />

A autora indica o desencadeamento do ciúme no momento em que Odete<br />

não se encontra mais no mesmo lugar. Há o surgimento de um duplo, um semelhante,<br />

nomeado Forcheville (que frequenta o mesmo círculo social de Swann).<br />

Ela não é mais totalmente dele, assim como Capitu não o é de Bento; cai a<br />

miragem de que um homem pudesse p<strong>os</strong>suí-la toda – a mulher – pontuar tod<strong>os</strong><br />

<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> de sua vida.<br />

Capitu é mulher casada, tem relações sociais, o marido observa que ela<br />

g<strong>os</strong>ta disso; e, ponto principal, tem um filho, o que evidencia a não totalidade de<br />

seu olhar na direção de Bento. O ciúme demanda essa exclusividade que é<br />

imp<strong>os</strong>sível.<br />

Roland Chemama (1995) na introdução da Révue Le Trimestre<br />

Psychanalytique – La Jalousie aponta para o fato de que o ciúme, pelo men<strong>os</strong><br />

em parte, corresponde ao desconhecimento disso que podem<strong>os</strong> situar como<br />

uma falta fundamental, uma defesa contra essa falta, defesa contra o que poderíam<strong>os</strong><br />

situar como a castração (é na defesa contra a castração que Freud<br />

desenvolvia a noção do estranho); sendo assim a imp<strong>os</strong>sibilidade, o limite em<br />

realizar o que se quer fica totalmente p<strong>os</strong>to na conta do outro. No lugar de poder<br />

reconhecer um limite que é da estrutura da subjetividade (cada um se constitui,<br />

subjetivamente, através da identificação com o outro – o semelhante – mas isso<br />

tem limite) acha-se alguém que, sup<strong>os</strong>tamente, deve arcar com essa conta. O<br />

ciúme reforça o risco que o imaginário designa como relação de exclusividade:<br />

só há lugar para um, então é um ou outro. Ao mesmo tempo, essa relação<br />

indica, mais do que a rivalidade, um movimento identificatório, e é nisso que o<br />

sujeito pode se ver questionado a respeito de sua p<strong>os</strong>ição; entra em cena a<br />

p<strong>os</strong>sibilidade de sua queda, ligada à colocação em jogo de seu desejo.<br />

Na relação Bento-Ezequiel-Escobar, as coisas iniciam por um apontamento<br />

sutil, no texto, com respeito a um tecido de semelhanças, portanto, de<br />

identificações. No capítulo intitulado O retrato, Bentinho vai à casa de Sancha<br />

para encontrar Capitu com a amiga, e o pai de Sancha refere-se à semelhança<br />

do retrato de sua mulher, já falecida, com a amiga tão querida da filha. Reforça<br />

a opinião com o comentário de todas as pessoas que haviam conhecido a mulher.<br />

Pondera, como que falando de casualidades, “Na vida há dessas semelhanças<br />

assim esquisitas” (Machado de Assis, [1900]1997, p. 829).<br />

Assim o assunto semelhanças tem início. A sequência vem no capítulo<br />

As imitações de Ezequiel. Um só “defeitozinho”, Bento comenta com a mulher<br />

a habilidade do menino em imitar <strong>os</strong> gest<strong>os</strong>, <strong>os</strong> mod<strong>os</strong>, as atitudes. Imita tia<br />

Justina, J<strong>os</strong>é Dias, até um jeito d<strong>os</strong> pés e d<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> de Escobar... Há que se<br />

corrigir com tempo, concordam. É depois da morte de Escobar que o assunto<br />

será problematizado, assumindo, a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong>, o contorno de estranho. Capitu<br />

comenta um dia com o marido:<br />

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Lucia Serrano Pereira<br />

Você já reparou que Ezequiel tem n<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> uma expressão esquisita?<br />

[…] Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto<br />

Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de<br />

papai, não precisa revirar <strong>os</strong> olh<strong>os</strong>, assim, assim… (Machado de<br />

Assis, [1900]1997, p. 931).<br />

É pela mão de Capitu que Bento é levado a estabelecer a conexão que<br />

virá a torturá-lo.<br />

Em especial nesse desenvolvimento do texto, Machado de Assis n<strong>os</strong><br />

oferece, na construção e na trama, toda a maestria de seu estilo: na narrativa,<br />

do ponto de vista do narrador, o trato com a semelhança vai tomando a direção<br />

do sentido único e fixo, tudo leva a Escobar; cada detalhe só confirma a “presença”<br />

de um no outro. Do outro lado, simultaneamente e também pela voz do<br />

narrador, apresentam-se aqui e ali todas as pequenas observações que desautorizariam<br />

a convicção de Bento, mas que ele não pode enxergar, tão obcecado<br />

com esse duplo que escolhe encontrar para usurpar seu lugar de pai, e de<br />

homem, no desejo de sua mulher.<br />

A ambiguidade tem seu desenvolvimento maior. Se J<strong>os</strong>é Dias f<strong>os</strong>se vivo,<br />

Bento diz, “acharia nele minha própria pessoa” (id., ibid., p. 931). Acontece que<br />

J<strong>os</strong>é Dias, ao mesmo tempo, é apresentado ao leitor como alguém não confiável,<br />

o agregado da família que se movimenta sempre pela contingência das conveniências.<br />

Tia Justina pede para rever Ezequiel quando este retorna da Europa; poderia<br />

ser aí outro momento de dar provas ao leitor de que suas fantasias<br />

correspondem (ou não) à realidade. Bento trata de evitar essa visita, até o falecimento<br />

da tia. E fica-se com a dúvida, pois o fato de Capitu mesma levantar a<br />

questão da semelhança não serve para alimentar a dúvida de uma p<strong>os</strong>sível inocência.<br />

Bento pega o que lhe impõe o ciúme e joga o resto fora. Capitu havia<br />

salientado a semelhança do filho, lembrando dois homens, um d<strong>os</strong> quais Bento<br />

descarta imediatamente – o amigo do pai – para manter a exclusividade: “Aproximei-me<br />

de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> de Escobar”<br />

(Machado de Assis, [1900]1997, p. 931). Ap<strong>os</strong>ta até o fim nessa duplicação<br />

identificada. A perplexidade de Capitu, desde então, só conta como um olhar de<br />

plateia, excluído da p<strong>os</strong>sibilidade de qualquer palavra que faça diferença. Ela já<br />

foi cortada da cena. Como o é Desdêmona (Shakspeare, [1604] 1999), na trama<br />

armada por Iago; Otelo não vê mais nada a não ser a mulher e o amigo traidor.<br />

A partir daí, o que se apresenta como semelhança passa a vir diretamente<br />

associado com o morto, é uma identificação que vem como se “desde a<br />

tumba”:


D<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> de Ezequiel vai ressurgindo Escobar.<br />

Um dente de <strong>ciúmes</strong>...<br />

Nem só <strong>os</strong> olh<strong>os</strong>, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa<br />

inteira, iam apurando-se com o tempo. Eram como um debuxo primitivo<br />

que o artista vai enchendo e colorindo a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong>, e a figura<br />

entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a família pendura o<br />

quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui<br />

podia ser e era. […] Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do<br />

seminário e do Flamengo para sentar-se comigo à mesa, receberme<br />

na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite<br />

a benção do c<strong>os</strong>tume (Machado de Assis, [1900] 1997, p. 932).<br />

Lacan ([1962-63]1997) aponta para a figura de um “hóspede” que surge<br />

de repente, com relação à angústia. Ele vem desenvolvendo a questão do<br />

enquadramento da angústia, como ela surge: se a angústia seria relativa ao<br />

tempo de espera, de estado de alerta, como resp<strong>os</strong>ta de defesa a algo que vai<br />

acontecer; termina por dizer que a angústia é outra coisa, e que se a espera tem<br />

sua importância nesse enquadramento, a angústia é quando surge, quando aparece<br />

nesse contexto, “aquilo que já estava muito mais perto, em casa, Heim, o<br />

hóspede, dirão vocês.” (id., ibid., p.83).<br />

Segue, dizendo que esse hóspede que surge inopinadamente tem tudo a<br />

ver com o que se encontra no unheimlich, mas que designá-lo assim é muito<br />

pouco. Ressalta que o termo em francês hóspede, hôte, em seu sentido corrente,<br />

é já alguém bem trabalhado pela espera:<br />

Este hóspede, é o que já havia passado no h<strong>os</strong>til (h<strong>os</strong>tile) [...] Este<br />

hóspede, no sentido comum, não é o heimlich, não é o habitante<br />

da casa, é o h<strong>os</strong>til apaziguado, abrandado, admitido. O que é heim,<br />

o que é Geheimnis, nunca passou por estes rodei<strong>os</strong>... (Lacan,<br />

[1962-63] 1997, p. 83).<br />

Nunca passou pelas redes, pelas peneiras do reconhecimento, continua<br />

Lacan, ele permaneceu unheimlich:<br />

[...] men<strong>os</strong> inabituável que inabitante, men<strong>os</strong> inabitual que inabitado.<br />

Esse surgimento do heimlich no quadro é que é o fenômeno da angústia,<br />

e é por isso que é falso dizer que a angústia é sem objeto (id., ibid., p. 83).<br />

Machado de Assis n<strong>os</strong> faz bem ter a noção dessa dimensão do cerco<br />

que se fecha com a chegada do hóspede, ao dizer: “Eu, p<strong>os</strong>to que a ideia da<br />

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Lucia Serrano Pereira<br />

paternidade do outro me estivesse já familiar, não g<strong>os</strong>tava da ressurreição. Às<br />

vezes, fechava <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> para não ver gest<strong>os</strong> nem nada, mas o diabrete falava e<br />

ria, e o defunto falava e ria por ele” (Machado de Assis, [1900] 1997, p. 942-943).<br />

E quanto mais Escobar ressurge, sendo sempre ressaltado nesse aparecimento<br />

algo da vida, da alegria, do acolhimento e da satisfação do encontro<br />

(afinal, é um menino, depois um rapaz no entusiasmo d<strong>os</strong> encontr<strong>os</strong> e das<br />

descobertas, como Bentinho o era), mais Bento vai virando uma sombra, deixando-se<br />

perder a vida, abrindo mão das relações, passando a<strong>os</strong> pensament<strong>os</strong><br />

de morte para consigo, para com Capitu e Ezequiel, o h<strong>os</strong>til e o agressivo sem<br />

disfarces. No “par maléfico” que reúne o eu a um outro fantasmático, o real não<br />

fica situado do lado do eu, e, sim, colocado do lado do fantasma. Interessante<br />

efeito de torção d<strong>os</strong> lugares, pois não é o outro que duplica a mim, mas, sim, eu<br />

que sou o duplo do outro, observa Clèment R<strong>os</strong>set (1998) em seu trabalho sobre<br />

o real e o duplo. O outro é quem fica com o real, e o sujeito propriamente com a<br />

sombra.<br />

Voltem<strong>os</strong> a Proust por um momento: no estudo de Grimaldi (1994) sobre<br />

o ciúme em Proust, podem<strong>os</strong> seguir algo do cruzamento que com Lerude esboçam<strong>os</strong>,<br />

na trajetória pelo ciúme em Bento e em Swann:<br />

Mas a imaginação ciumenta sempre há de finalmente passar do<br />

que ela ignora ao que já sabe, e recriar o desconhecido como uma<br />

simples excrescência do que já é conhecido. Pois em qualquer<br />

situação, por infame, horrível ou ignóbil que seja, como figurar uma<br />

pessoa a não ser pela própria experiência que dela se tem? Eis<br />

porque embora Swann soubesse muito bem, de maneira abstrata<br />

e geral, ’que a vida d<strong>os</strong> seres é cheia de contrastes’, nem assim<br />

conseguia imaginar tudo o que não conhecia da vida de Odete<br />

senão ‘como idêntico à parte que [dela] conhecia’ (p.186). Desse<br />

modo, assim como a memória é o sótão da imaginação, assim o<br />

ciúme só pode reconstituir <strong>os</strong> <strong>amor</strong>es que ele ignora com o que ele<br />

conheceu do <strong>amor</strong>. É, portanto, com aquilo que foi o tecido da sua<br />

felicidade que lhe cumpre agora talhar a roupa de sua infelicidade.<br />

Como a sombra é o duplo de cada um, Proust pode então dizer<br />

que o ciúme é a sombra do <strong>amor</strong>, já que lhe faz imaginar na escuridão<br />

e no dilaceramento o duplo daquilo que ele viveu na claridade<br />

e na alegria (Grimaldi, 1994, p. 41-42).<br />

Swann fica com Odete, mas vive entre ela e o caminho de Guermantes,<br />

divisão que não se atenua; Bento mata, exila a mulher e o filho; quando o rapaz<br />

retorna, moço, <strong>os</strong>cila entre o <strong>amor</strong> por ele e o voto de morte.


Um dente de <strong>ciúmes</strong>...<br />

Seguindo o desenvolvimento de R<strong>os</strong>set (1998) sobre o eu e a sombra, há<br />

o apontamento para um cuidado: o pior erro a ser cometido por quem se considera<br />

perseguido por um duplo, mas que é, na verdade, o original que ele próprio<br />

duplica, é o de tentar matar o seu duplo:<br />

Matando-o, matará ele próprio, ou melhor, aquele que desesperadamente<br />

tentava ser, como diz muito bem Edgar Poe no final de<br />

William Wilson, quando o único (aparentemente o duplo de Wilson)<br />

sucumbiu a<strong>os</strong> golpes de seu duplo (que é o próprio narrador):<br />

’Venceste e eu sucumbo, mas, de agora em diante, também estás<br />

morto. Morto para o mundo, para o céu, para a esperança! Existias<br />

em mim, e agora que morro, vê nessa imagem que é a tua, como<br />

mataste na verdade a ti mesmo’ (R<strong>os</strong>set, 1998, p.78-79).<br />

Proust, Edgar Alan Poe, Machado. A pintura mal disfarça o corpo da<br />

autópsia, Bento Santiago já desertou de si mesmo. No ciúme ocorre uma espécie<br />

de irrupção real do terceiro, relativo a uma precariedade no campo das identificações<br />

e da identidade. Bento “não era tão homem quanto ela mulher” não<br />

pode legitimar a paternidade, e nessa vacilação do lugar surge um terceiro,<br />

ancorado na certeza, que apaga todo o resto. Machado de Assis n<strong>os</strong> oferece<br />

algo da verdade do ciúme, na sua face dura: a pintura mal disfarça o corpo da<br />

autópsia – Bento, ou mesmo o crime da paixão, exílio de Capitu.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ASSIS, Machado de. Obra completa[1900]. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.<br />

BAUDELAIRE, C. Oeuvres completes. 1. ed. Paris: Éditions Robert Laffont, 1980.<br />

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FREUD, Sigmund. <strong>Sobre</strong> alguns mecanism<strong>os</strong> neurótic<strong>os</strong> n<strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong>, a paranoia e<br />

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completas de Sigmund Freud. 2. ed. Tradução de Jayme Salomão. Rio de<br />

Janeiro: Imago Editora, 1969.v. 18.<br />

GRIMALDI, Nicolas. O ciúme, estudo sobre o imaginário proustiano. São Paulo: Editora<br />

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LACAN, Jacques. Seminário 10: a angústia [1962-1963]. Recife: Centro de Estud<strong>os</strong><br />

Freudian<strong>os</strong> do Recife, 1997. Publicação não comercial<br />

LERUDE, Martine. La jalousie: quelques remarques a prop<strong>os</strong> d´un amour de Swann.<br />

Le Trimestre Psychanalitique, La jalousie. Paris: Association Freudienne<br />

Internationale, 1995, n. 2, p. 113-128.<br />

PEREIRA, Lucia Serrano. Um narrador incerto entre o estranho e o familiar – a ficção<br />

machadiana na psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.<br />

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Lucia Serrano Pereira<br />

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro:<br />

Editora Globo, 2006.<br />

ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Tradução de J<strong>os</strong>é Thomaz Brum. Porto Alegre:<br />

L&PM Editores, 1998.<br />

SHAKSPEARE, W. Otelo [1604]. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999.<br />

Recebido em 07/09/2009<br />

Aceito em 11/10/2009<br />

Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes


TEXTOS<br />

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 75-86, jul./dez. 2009<br />

Resumo: Discute-se, neste artigo, a temática do <strong>amor</strong> e d<strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong> através da<br />

obra de Ibsen O pequeno Eyolf. Os fi<strong>os</strong> desta obra entelaçam-se com a análise<br />

do Homem d<strong>os</strong> rat<strong>os</strong> e com questionament<strong>os</strong> sobre o que seria o tempo do pós-<br />

lacanismo. Tecem-se, também, considerações sobre <strong>os</strong> efeit<strong>os</strong> e o fim de uma<br />

análise.<br />

Palavras-chave: <strong>amor</strong>, <strong>ciúmes</strong>, tragédia, drama.<br />

ON LOVE AND JEALOUSY: VARIATIONS AND MISADVENTURE<br />

THE LITTLE EYOLF<br />

Abstract: The present article discusses love and jealousy on Ibsen´s work. The<br />

lines of this work are interlaced with The Rat Man analysis and with some questions<br />

about the time of p<strong>os</strong>t lacanism. The end of analysis and analysis efects are<br />

also appreciated in this text.<br />

Keywords: love, jealousy, tragedy, drama.<br />

SOBRE O AMOR E OS CIÚMES:<br />

<strong>variações</strong> e <strong>desventuras</strong><br />

O pequeno Eyolf 1<br />

Isidoro Vegh 2<br />

1 Texto elaborado a partir de aula proferida pelo autor.<br />

2 Psicanalista. Membro fundador da Escuela Freudiana de Buen<strong>os</strong> Aires, dentre suas mais<br />

recentes publicações encontram-se: Las intervenciones del analista (Agalma, 2004), El sujeto<br />

borgeano (Agalma, 2005), Lectura del seminário L´etourdit (Escuela Freudiana de Buen<strong>os</strong><br />

Aires, 2007). E-mail: isidoro@vegh.com.ar.<br />

75 75


76<br />

Isidoro Vegh<br />

N o título que escolhi, <strong>Sobre</strong> o <strong>amor</strong> e <strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong>: <strong>variações</strong> e <strong>desventuras</strong>, a<br />

ordem não é arbitrária. Estam<strong>os</strong> ac<strong>os</strong>tumad<strong>os</strong> a falar de como se relacionam<br />

o <strong>amor</strong>, o desejo, o gozo, como se enlaçam ou desenlaçam. Também pelo<br />

ensino de n<strong>os</strong>so mestre Freud tem<strong>os</strong> um trânsito pela questão do intrincamento<br />

e desintrincamento das pulsões, pulsões de vida, pulsões de morte. Mas talvez<br />

tenham<strong>os</strong> men<strong>os</strong> percurso em pensar que há distint<strong>os</strong> tip<strong>os</strong> de <strong>amor</strong>es, que<br />

podem jogar de modo propiciatório, ou bem como barreira para a realização do<br />

<strong>amor</strong>.<br />

O tema que escolhi foi a tragédia do Pequeno Eyolf, desse grande escritor<br />

norueguês que foi Henrik Ibsen (1966), e o tomei porque, além disso, é um<br />

clássico dentro da psicanálise. O pequeno Eyolf é uma associação que faz um<br />

paciente de Freud ([1909]1980), a quem conhecem<strong>os</strong> como O homem d<strong>os</strong> rat<strong>os</strong>.<br />

Tem interesse para nós verm<strong>os</strong> como se situa nesse histórico a direção da<br />

cura. Por que digo isso? Porque estam<strong>os</strong>, como venho insistindo, em temp<strong>os</strong><br />

do pós-lacanismo, assim como houve um tempo do pós-freudismo: é um tempo<br />

em que está em jogo a desvirtuação, no pós-freudismo, do ensino de Freud, e<br />

no pós-lacanismo, do ensino de Lacan. Está em jogo de distint<strong>os</strong> mod<strong>os</strong>. Um é<br />

a acentuação de apenas uma faceta, desconhecendo as demais. Por exemplo,<br />

tem<strong>os</strong> colegas que sublinharam, e muito bem, o valor que tem que o analista<br />

esteja atento ao som do significante, como joga com o equívoco com a letra, o<br />

que se chama de homofonia. No entanto, dizem<strong>os</strong> que reduzir a isso a retórica<br />

do inconsciente é desconhecer o que n<strong>os</strong>sa prática n<strong>os</strong> ensina, o que n<strong>os</strong><br />

ensina a obra de Freud, o que n<strong>os</strong> ensina a própria obra de Lacan, quando n<strong>os</strong><br />

diz, no último capítulo de Encore (Lacan, 1975), que esse significante que retorna<br />

representando o sujeito pode se jogar ao nível do fonema, da palavra, da frase,<br />

do enunciado ou de um conjunto de enunciad<strong>os</strong>. Creio que este tema que escolhi,<br />

a tragédia de Ibsen, vai n<strong>os</strong> servir para testemunhar do empobrecimento que<br />

significaria para n<strong>os</strong>sa prática desconhecer essa variedade que o próprio Lacan<br />

sublinhou.<br />

Do histórico do Homem d<strong>os</strong> rat<strong>os</strong> vou ler a vocês onde Freud o cita ([1909]<br />

1980, p. 168-169): “No entanto, em desafio a todo este rico material, durante longo<br />

tempo não se fez luz alguma sobre o significado de sua ideia obsessiva – a ideia<br />

obsessiva tinha a ver com <strong>os</strong> rat<strong>os</strong>, com a tortura d<strong>os</strong> rat<strong>os</strong> que um capitão lhe<br />

havia contado enquanto ele estava no exército como suboficial de reserva: consistia<br />

em pôr no ânus do torturado uma lata com rat<strong>os</strong> que se introduziam pelo<br />

intestino destruindo-o por dentro – até que um dia apareceu a Senhora d<strong>os</strong><br />

Rat<strong>os</strong>, do Pequeno Eyolf, de Ibsen, e tornou-se irrefutável a conclusão de que<br />

em muitas configurações de seus delíri<strong>os</strong> <strong>os</strong> rat<strong>os</strong> significavam também filh<strong>os</strong>;<br />

quando se investigou a gênese deste novo significado, tropeçou-se em seguida<br />

com as mais antigas e substantivas raízes”. Então fala também d<strong>os</strong> rat<strong>os</strong> que


<strong>Sobre</strong> o <strong>amor</strong> e <strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong>...<br />

poderiam ter saído da tumba do pai, rat<strong>os</strong> que ele podia ter visto no cemitério,<br />

etc. Freud diz “rat<strong>os</strong> eram, então, filh<strong>os</strong>”.<br />

Neste percurso, vam<strong>os</strong> n<strong>os</strong> encontrar com algo já não da magnitude de<br />

um rato, mas tão grande quanto um elefante: me surpreende que nem Freud<br />

nem Lacan o tenham sublinhado.<br />

Lembro a vocês brevemente: o Homem d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong> é um jovem de 27<br />

an<strong>os</strong> que vai a Freud desesperado, com fantasias de suicídio (cortar sua jugular)<br />

por certas ideias obsessivas das quais não pode se desprender. A última, o<br />

desencadeante, é que tem de pagar uns ócul<strong>os</strong> desses que se apoiam no nariz,<br />

que se chamam pincenê, em alemão Zwicker (Zwicken quer dizer beliscar), que<br />

ele havia perdido durante as manobras militares. Ele sabia, mas decidiu seguir<br />

e encomendar outro. A empregada do correio o recebeu, ele acreditou que o<br />

devia ao Tenente A, resultou que era o Tenente B, mas como o capitão lhe disse<br />

“tens que pagar ao Tenente A”, essa ordem se impôs a ele. O que era um<br />

absurdo, porque em definitivo ele sabia que não devia nem ao Tenente A nem ao<br />

Tenente B, mas à empregada do correio. Com essa dúvida obsessiva, e com a<br />

ideia de inventar uma cena absurda, em que ele paga a um, que dá ao outro, e<br />

este à mulher da estafeta, vai ver Freud, desesperado porque, para ele, tudo<br />

isso não era piada. Na primeira entrevista conta a Freud ([1901] 1980) que foi vêlo<br />

por coisas que leu em Psicopatologia da vida cotidiana e que pensava que<br />

podia ajudá-lo. Mas, por sua neur<strong>os</strong>e, pede a Freud um certificado para que <strong>os</strong><br />

tenentes se prestem a sua cena. Freud lhe diz que de maneira alguma, que<br />

unicamente vai se prestar é a ajudá-lo com o que ele pode, que comece a<br />

associar e ele vai ver como o ajuda. Já desde o começo lhe conta, na segunda<br />

entrevista, uma fantasia, que é a dessa tortura que acabo de descrever, a do<br />

próprio capitão que lhe disse “tens que pagar ao Tenente A”. Ou seja, um capitão<br />

que funciona como um Supereu cruel e sádico, e que tem em seu mandato<br />

a própria estrutura do Supereu, um sintagma coagulado, imodificável. Avançando<br />

o histórico, vam<strong>os</strong> ver que essa tortura d<strong>os</strong> rat<strong>os</strong> terá a ver com um jogo<br />

significante, homofônico, que em alemão se escreve assim:<br />

Ratten = rat<strong>os</strong><br />

Raten = dívida<br />

Quando a análise avança, Freud descobre que há algo em relação a<strong>os</strong><br />

rat<strong>os</strong> que tem a ver com uma dívida. Vam<strong>os</strong> ver logo de que dívida se trata.<br />

Agora irei ao relato de Ibsen, O pequeno Eyolf (1966). Ibsen escreve este<br />

relato em sua última etapa, no ano de 1894. Pensem<strong>os</strong> que grande parte de sua<br />

obra foi escrita entre 1860-1870; já era um dramaturgo muito renomado. Há<br />

antecedentes na biografia, mas que não n<strong>os</strong> servem para articular uma resp<strong>os</strong>ta<br />

sobre por que escreveu isto. Efetivamente, dizem que houve uma tia que era<br />

louca e que dizia que era a mulher d<strong>os</strong> rat<strong>os</strong>. Também é verdade que havia um<br />

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78<br />

Isidoro Vegh<br />

irmãozinho que ficou paralítico por um acidente, coisas que aludem à trama da<br />

tragédia. Mas não são suficientes para explicar por que o autor escreveu esta<br />

tragédia.<br />

O pequeno Eyolf n<strong>os</strong> convida a reconhecer uma série de personagens;<br />

para facilitar a trama, vou escrevê-l<strong>os</strong> deste modo:<br />

Estes são <strong>os</strong> personagens que a tragédia de Ibsen n<strong>os</strong> propõe. Irem<strong>os</strong><br />

apresentando-<strong>os</strong> com suas próprias palavras.<br />

Quem é este pai? É alguém que volta, antes do tempo, de uma viagem<br />

que havia feito às montanhas, com a ideia de escrever o grande livro de sua vida,<br />

um livro que se intitularia “<strong>Sobre</strong> a responsabilidade humana”. E diz a sua mulher,<br />

que o esperava, e a sua irmã, que estava de visita, que mudou de ideia, que<br />

não escreveu nada, nem uma letra, e que daqui em diante a obra de sua vida vai<br />

ser outra. Perguntam-lhe o quê e diz:<br />

Alfredo Allmers: Pensei em Eyolf, querida Rita […] Desde aquela<br />

desgraçada queda da mesa…, e mais ainda desde que sem lugar<br />

a dúvidas soubem<strong>os</strong> que o acidente seria irreparável…<br />

Rita: Mas, Alfredo, já não podes te ocupar mais dele!<br />

Alfredo Allmers: Não como um mestre de escola, mas sim como<br />

um pai. E um pai é o que quero ser de hoje em diante para Eyolf.<br />

Alguém diria “que maravilha!” Não, escutem.<br />

Alfredo Allmers: Eyolf será o varão mais completo da família. E eu<br />

empregarei toda minha vida na nova obra de convertê-lo em um<br />

homem cabal (Ibsen, 1966, p. 36).<br />

Vocês imaginam o que é ter um pai dedicado a alguém desse modo?<br />

Sublinho como se inspirou:<br />

Alfredo Allmers: Sim! E ao subir até as infinitas solidões, ao contemplar<br />

o sol nascente iluminando <strong>os</strong> cumes, ao sentir-me mais


<strong>Sobre</strong> o <strong>amor</strong> e <strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong>...<br />

perto das estrelas, quase em comunhão com elas…, foi quando<br />

consegui meu desígnio.<br />

É um pai que se autopropõe no lugar do Ideal e que estende até seu<br />

filho esse Ideal. Mas não o Ideal que põe limite ao Eu. Não é San Martín<br />

dizendo “serás o que deves ser ou não serás nada”, quando o futuro está<br />

dizendo que San Martín, n<strong>os</strong>so pai da pátria, não pensava o Ideal idêntico ao<br />

Eu, mas com uma distância, é o Ideal propiciatório. Este, no entanto, ali nas<br />

alturas, encontrou-se em comunhão com as estrelas, ele passa a ser essas<br />

estrelas e descobre seu desígnio: vai fazer de seu filho um homem cabal,<br />

completo, através de seu filho vai lograr o Ideal que não pôde realizar através<br />

de sua obra.<br />

Quem é a mãe? Vam<strong>os</strong> apresentá-la com algumas de suas frases. Quando<br />

menciona o cortejo que o engenheiro Borgheim faz a sua cunhada, diz:<br />

Rita: Para mim seria uma verdadeira alegria vê-lo casado com Asta.<br />

Alfredo Allmers: E isso por quê?<br />

Rita: Porque ela iria para longe e não viria como vem agora. […]<br />

Porque assim serias ao final só para mim. Mesmo que…não;<br />

tampouco assim me pertencerias por inteiro. (Rompe em soluç<strong>os</strong><br />

convulsiv<strong>os</strong>) Alfredo, Alfredo! Não p<strong>os</strong>so renunciar a ti!<br />

Alfredo Allmers: Mas, Rita…, sê razoável!<br />

Rita: Não quero sê-lo! Não me importa nada no mundo mais que tu<br />

(Abraçando-o) Tu, só tu!<br />

Começa o crescendo da tragédia.<br />

Alfredo Allmers: Por Deus, mulher! Estás me estrangulando!<br />

Rita (separando-se dele): Ah! Se, efetivamente, eu pudesse sufocar-te!<br />

(Lançando fogo pelo olh<strong>os</strong>) Se soubesses quanto te odiei!<br />

Alfredo Allmers: Odiar-me, tu..?<br />

Rita: Sim. Te odiava vendo-te passar horas e horas junto à tua<br />

mesa de trabalho. (Com uma expressão de desaprovação) Que<br />

horas tão longas! Oh Alfredo, não sabes quanto odiei teu trabalho!<br />

Alfredo Allmers: Bem; pois já acabei com ele resolutamente; não<br />

falem<strong>os</strong> mais disso.<br />

Rita: Não; mas agora há algo pior ainda.<br />

Alfredo Allmers: Ainda pior? Te referes ao pequeno?<br />

Rita: Sim, me refiro ao menino! Em n<strong>os</strong>sas relações ele se manifesta<br />

pior ainda que o livro. O menino é algo vivo, que palpita. (Com<br />

crescente calor) Mas isso eu não suportarei, Alfredo! Te digo que<br />

não suportarei!<br />

79


80<br />

Isidoro Vegh<br />

Diz mais algo:<br />

Rita: Sofri cruelmente ao dá-lo à luz; mas suportei tudo goz<strong>os</strong>a por<br />

teu <strong>amor</strong>.<br />

Alfredo Allmers: Eu sei, eu sei!<br />

Rita: Acabou-se! Quero viver contigo sem limitações! Não p<strong>os</strong>so<br />

conformar-me em ser só a mãe de Eyolf! Não p<strong>os</strong>so, não quero!<br />

Quero ser tudo para ti!<br />

E diz uma frase que é digna de atenção: “Rita: Eu estava destinada a ser<br />

mãe, mas não a seguir sendo mãe”.<br />

Rita propõe a seu marido um <strong>amor</strong> p<strong>os</strong>sessivo. Agora, vam<strong>os</strong> ver se isso<br />

surge sem razão ou porque há algo que a situa no mau lugar.<br />

E Eyolf? N<strong>os</strong> é dito que é um menino de nove an<strong>os</strong>, pálido, que anda com<br />

uma muleta porque ficou paralítico desde que teve um acidente.<br />

Neste primeiro ato aparece um personagem estranho, que faz limite com<br />

a lenda: é a Mulher d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong>, uma versão feminina do flautista de Hamelin.<br />

Dedica-se a tirar <strong>os</strong> rat<strong>os</strong> d<strong>os</strong> lugares onde esses pequen<strong>os</strong> animaizinh<strong>os</strong> invadem<br />

a vida cotidiana. No relato clássico, o conto que vocês talvez tiveram oportunidade<br />

de escutar em sua infância, O flautista de Hamelin vai com seu instrumento,<br />

sua flauta, com a qual seduz <strong>os</strong> ratinh<strong>os</strong> que o seguem e, desse modo,<br />

<strong>os</strong> retira d<strong>os</strong> lugares aonde o chamam. O conto relata como em um povoado lhe<br />

pediram ajuda e, quando tiveram de lhe pagar, se negaram. O flautista se vingou<br />

levando, em vez d<strong>os</strong> rat<strong>os</strong>, as crianças. Daí surge a associação de Freud, rat<strong>os</strong><br />

= crianças. Até aí a agudeza de n<strong>os</strong>so Herr Professor. A Mulher d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong> diz,<br />

fazendo sua apresentação, que está de visita na zona, pergunta se precisam de<br />

uma ajuda; dizem-lhe que não, mas fazem-na passar. O pequeno Eyolf escuta<br />

que ela conta como, ajudada por seu cachorrinho, que se chama Mopsemand,<br />

que significa ratoeiro 3 , um cachorrinho preto que causa desg<strong>os</strong>to, trabalham<br />

junt<strong>os</strong>: ela <strong>os</strong> seduz com seu instrumento musical, o cachorrinho vai guiando<strong>os</strong>,<br />

ela sobe num barco, <strong>os</strong> rat<strong>os</strong> não podem deixar de seguir o cãozinho, que<br />

vai nadando, vão adentrando no fiorde – penetrações do mar na terra – até que<br />

tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> animaizinh<strong>os</strong> se afogam. A Mulher d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong> (Ibsen, 1966, p.41) diz<br />

assim: “a Mulher d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong>: a bem da verdade, não se deveria cansar jamais de<br />

3 No original, ratonero. Significa “caçador de rat<strong>os</strong>” e é também uma raça de cães.


<strong>Sobre</strong> o <strong>amor</strong> e <strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong>...<br />

fazer bem a essas pobres criaturas odiadas e perseguidas tão duramente. Mas<br />

chega a ser algo esgotante…” (Ibsen, 1966, p.41). Ambiguidade com que o<br />

poeta n<strong>os</strong> descreve “essas pobres criaturas”: se refere, no manifesto, a<strong>os</strong> ratinh<strong>os</strong>,<br />

mas com o que a mãe de Eyolf confessou, há um desejo de morte e ódio<br />

para com Eyolf que vem de sua própria mãe, e que o condena ao lugar de pobre<br />

criatura.<br />

O primeiro ato termina assim que Eyolf sai ao jardim; <strong>os</strong> adult<strong>os</strong> ficam<br />

conversando entre si. Subitamente, chegam grit<strong>os</strong>, algo aconteceu. Um menino<br />

se afogou. É Eyolf.<br />

No ato seguinte duas cenas resultam terroríficas para esses pais. Houve<br />

um tempo em que o corpo de Eyolf esteve no fundo do fiorde, na água transparente<br />

viam-se <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> abert<strong>os</strong>. Esse olhar que persiste, dirão eles, <strong>os</strong> perseguirá<br />

por toda a vida. Também a muleta, flutuando na superfície. Quando averiguam<br />

como foi que o menino morreu, descobrem que seguiu, até afogar-se, a Mulher<br />

d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong>. A Mulher d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong> aparece como a voz da morte que conduz o<br />

pequeno Eyolf a seu final.<br />

Segundo ato, Eyolf já morreu. Ficam<strong>os</strong> sabendo o que antecede esse<br />

desenlace: tinha havido um tempo no qual esses pais, segundo Rita, haviam se<br />

amado, haviam estado junt<strong>os</strong>. Quando Eyolf era bebê ela tomou Alfredo ardentemente<br />

em seus braç<strong>os</strong>, ele estava cuidando da criança, mas, apaixonado pelo<br />

abraço, tiveram uma relação e ele esqueceu o bebê, que caiu da mesa e ficou<br />

paralítico para o resto de sua vida. O poeta não necessita ler Freud ou Lacan<br />

para reparar em quando o <strong>amor</strong> de um casal pode fazer cair, no real, o fruto da<br />

relação. Nesse encontro <strong>amor</strong><strong>os</strong>o, sexual desses pais, não havia lugar para um<br />

bebê. Cai, cai no real. E fica para sempre excluído, além disso, do jogo com as<br />

demais crianças, porque n<strong>os</strong> inteiram<strong>os</strong> de que não só caiu e a partir daí teve<br />

que usar as muletas, mas de que, desde esse momento, o pai não podia suportar<br />

vê-lo com elas. Então, condenou-o a não brincar com as demais crianças, ia<br />

notar a diferença. Reclamou que estudasse, que estivesse sempre trancado,<br />

lendo. Mesmo que Eyolf dissesse que no dia de amanhã queria ser um soldado,<br />

nem mais nem men<strong>os</strong> que um soldado.<br />

A tragédia vai subindo de tom. Alfredo, totalmente acabado, pensa em<br />

suicidar-se. Sua mulher, desesperada. Alfredo fala com sua irmã Asta, lembrase<br />

de que quando eram pequen<strong>os</strong> o pai havia morrido, e em seguida a mãe de<br />

Asta, eram mei<strong>os</strong>-irmã<strong>os</strong>. Quando ficaram órfã<strong>os</strong>, ele começou a cuidar de sua<br />

irmã e a chamava “pequeno Eyolf”. Amor fraterno. Podem<strong>os</strong> intuir que o <strong>amor</strong><br />

p<strong>os</strong>sessivo de Rita não é produto de um genoma ou de que tivesse um impulso<br />

natural ao <strong>amor</strong> p<strong>os</strong>sessivo. Ele havia lhe contado uma vez, como que de passagem,<br />

em meio a uma relação sexual, em plena intimidade, que chamava sua<br />

irmã, quando eram pequen<strong>os</strong>, de “meu pequeno Eyolf”. Ela sabia que atrás<br />

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82<br />

Isidoro Vegh<br />

desse pequeno Eyolf estava o outro, esse <strong>amor</strong> pela irmã, da qual Rita disse<br />

“quisera que desaparecesse”. Há um ódio que se translada do ciúme a esse<br />

<strong>amor</strong> fraterno ao ciúme e ao desejo de morte do próprio filho.<br />

A tragédia avança no horror, quando alcança a verdade<br />

Quando digo que estam<strong>os</strong> no tempo do pós-lacanismo, assim como antes<br />

Lacan se enfrentou com o pós-freudismo, estou dizendo que estam<strong>os</strong> no<br />

tempo em que, mais uma vez, a verdade tende a se perder. Por exemplo, diz-se<br />

que o povo judeu é o povo escolhido. É o povo escolhido para perder sistematicamente<br />

a verdade. A série d<strong>os</strong> profetas é a daqueles que, uma e outra vez,<br />

tinham que recordar-lhe a verdade que voltava a ser abandonada. Porque o destino<br />

da verdade é seu esquecimento. Quando Newton desenvolve sua fórmula da<br />

atração d<strong>os</strong> grandes corp<strong>os</strong> celestes não diz “senhores, eu venho porque estam<strong>os</strong><br />

em pleno pós-copernicanismo, a verdade de Copérnico se perdeu”. Porque a<br />

ciência moderna exclui a dimensão do sujeito. Não se trata de uma verdade que<br />

concerne ao sujeito, essa de que ninguém quer saber, que só chega quando não<br />

há outro remédio. Quando Einstein produz sua fórmula da relatividade não diz<br />

“venho recuperar a verdade de Newton”; abre um novo espaço onde as fórmulas<br />

de Newton delimitam o lugar de sua eficácia. Mas na psicanálise, que tem<br />

a ver com a verdade, e é a verdade do sujeito, tende a ser reprimida. Cada novo<br />

livro de psicoterapia surge porque o anterior já fracassou e precisa ser prop<strong>os</strong>ta<br />

uma nova opção. Para quê? Para voltar novamente a velar a verdade do<br />

inconsciente.<br />

Leiam<strong>os</strong> como surge o horror da verdade. Rita recorda continuamente<br />

esses olh<strong>os</strong> abert<strong>os</strong> de seu filho. Alfredo também, lhe diz “por favor, não sigas”.<br />

Inclusive alucina a palavra “mu-le-ta”, que ficou flutuando desde que seu filho se<br />

afogou.<br />

Alfredo diz, lentamente, com olhar severo:<br />

Alfredo Allmers: De hoje em diante, é forç<strong>os</strong>o que haja um muro<br />

entre nós dois.<br />

Rita: Por quê?<br />

Alfredo Allmers: Quiçá n<strong>os</strong> observem dia e noite <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> desmesuradamente<br />

abert<strong>os</strong> de um menino (Ibsen, 1966, p.55).<br />

Retorna do real o que havia sido expulso do simbólico. Ter um filho de<br />

verdade instaura uma dívida, não é um bichinho de pelúcia, uma boneca.<br />

Alfredo Allmers: Cedo ou tarde, isso havia de terminar assim, Rita.


<strong>Sobre</strong> o <strong>amor</strong> e <strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong>...<br />

Rita: Que havia de terminar assim o que começou por um <strong>amor</strong><br />

mútuo?<br />

E aqui começa o horror.<br />

Alfredo Allmers: Por minha parte não foi tal desde sempre.<br />

Rita: Então, que sentimento te inspirei…ao princípio?<br />

Alfredo Allmers: Espanto.<br />

Rita: Entendo. Mas como pude, pois, conquistar-te?<br />

Alfredo Allmers (entre dentes): Com tua atração irresistível, Rita.<br />

Rita (Lançando-lhe um olhar de incredulidade): Nada mais que por<br />

isso, Alfredo? Nada mais?<br />

Alfredo Allmers (com esforço): Não…, havia algo mais também.<br />

Rita (em uma exclamação): Já adivinhei! Era minha “gener<strong>os</strong>idade<br />

a mã<strong>os</strong> cheias”, como c<strong>os</strong>tumavas dizer. Não é certo, Alfredo?<br />

Alfredo Allmers: Sim.<br />

Rita: Como pudeste…, como pudeste fazê-lo?<br />

Alfredo Allmers: Tinha que velar por Asta (Ibsen, 1966, p. 62).<br />

Asta, a quem quando menino chamava “pequeno Eyolf”. Freud não o percebeu<br />

e Lacan não o percebeu: é a mesma história do Homem d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong>. A dívida<br />

do pai, a verdadeira dívida, é que se casou com a mãe do Homem d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong> por<br />

dinheiro. Em plena transferência com Freud, quando Freud aumenta <strong>os</strong> honorári<strong>os</strong>,<br />

o Homem d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong> diz a Freud “tant<strong>os</strong> rat<strong>os</strong>, tant<strong>os</strong> florins”. É seu fantasma<br />

fundamental. Um homem dá rat<strong>os</strong> = filh<strong>os</strong> a uma mulher em troca d<strong>os</strong> florins que<br />

recebe. É o que seu pai e sua mãe lhe transmitiram. Quando chega a Freud, e<br />

quer suicidar-se, é porque, tendo terminado seus estud<strong>os</strong> de direito, chegou o<br />

momento, como se diz coloquialmente, de assentar a cabeça. O que lhe diz sua<br />

mãe? Querido, tens que te casar. Repete-se no real a história: ele ama sua prima<br />

pobre (como seu pai amava uma n<strong>amor</strong>ada pobre) e a mãe e o pai, antes de<br />

morrer, lhe dizem que tem de se casar com a prima rica. Quando o Homem d<strong>os</strong><br />

Rat<strong>os</strong> associa com o pequeno Eyolf, o analista faria bem em ir ler a tragédia. Está<br />

contada a trama na qual ele está preso. Uma trama da qual o pequeno Eyolf só<br />

pôde sair no real, com sua morte. Só lhe restava um caminho: completar o ideal<br />

do pai e suportar o desejo de morte de sua mãe. Era um lugar invivível. O chamado<br />

da morte que lhe é oferecido pela Mulher d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong> era a única liberdade que lhe<br />

restava. As duas cenas se somam: quando ele contou a sua mulher que chamava<br />

sua irmã de “pequeno Eyolf” com o momento em que o bebê caiu da mesa. É uma<br />

metáfora realizada, p<strong>os</strong>ta no real. Eyolf cai como filho quando se revela que seu<br />

lugar, em realidade, era o lugar de um <strong>amor</strong> fraterno incestu<strong>os</strong>o.<br />

Tem<strong>os</strong>, então, o <strong>amor</strong> narcisista desse pai que quer se igualar ao lugar do<br />

Ideal, um filho p<strong>os</strong>to como complemento desse Ideal (“será o homem cabal da<br />

83


84<br />

Isidoro Vegh<br />

família”), uma mulher que nisso se sente excluída do <strong>amor</strong> desse homem –<br />

porque vam<strong>os</strong> diferenciar: no momento em que a verdade é dita, Alfredo revela<br />

que se casou com Rita por seus bens e porque a deseja e goza com ela, mas<br />

não porque a ama. Como diz Lacan ([1960-61] 2003), a fórmula forte do <strong>amor</strong>:<br />

dar o que não se tem a alguém que não o é, põe em jogo a falta. Alfredo não põe<br />

em jogo a falta, ele anela identificar-se ao lugar do Ideal, da completude. E se<br />

não pode sê-lo, porque o livro não o logra, propõe que seu filho seja sua obra.<br />

Percebem por que o título Variações e <strong>desventuras</strong> do <strong>amor</strong> e <strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong>? Um<br />

<strong>amor</strong> narcísico pode impedir o <strong>amor</strong> de um casal. O <strong>amor</strong> de um casal pode<br />

articular-se de tal modo que não deixe lugar para o desejo de um filho. Um <strong>amor</strong><br />

fraterno incestu<strong>os</strong>o pode fazer obstáculo para que um homem ame uma mulher.<br />

Variações do <strong>amor</strong>. E é chamativo, como nem Freud nem Lacan registraram,<br />

que, além da equivalência criança = rato, o pequeno Eyolf, como o Homem d<strong>os</strong><br />

Rat<strong>os</strong>, f<strong>os</strong>se o filho de um intercâmbio, o que a frase “tant<strong>os</strong> rat<strong>os</strong>, tant<strong>os</strong> florins”<br />

resume.<br />

O final da tragédia foi discutido n<strong>os</strong> temp<strong>os</strong> de Ibsen (1966, p. 78). Asta<br />

decide ir-se porque conta a seu irmão que descobriu uma carta que sua mãe<br />

havia deixado. Nessa carta, que Alfredo não quer ler, ela lhe diz que há algo que<br />

tem a ver com a história. E ele diz “eu dessa história já tive o bastante, eu tive<br />

que me encarregar de ti porque n<strong>os</strong>so pai te tratava mal. Eu vi que ele te tratava<br />

mal e me parecia injusto”. A história remonta à terceira geração. Asta lhe conta<br />

que descobriu uma carta de sua mãe na qual revela que ela não é irmã de<br />

Alfredo, que a mãe de Asta a havia concebido com outro homem. Por isso, o pai<br />

de Alfredo, e sup<strong>os</strong>tamente de Asta, a odiava. Estrutura de tragédia. Até este<br />

dado poderia se dizer de Alfredo “que porcaria de tipo”, mas não, é uma vítima.<br />

Ele tenta reparar com sua irmã o mau tratamento do pai , mas, por sua vez,<br />

esse homem maltrata a menininha porque evidentemente sabia que não era sua<br />

filha. Como Ibsen é um grande dramaturgo, ninguém se salva. Cada personagem<br />

não apenas tem a contradição com o outro, mas consigo mesmo. Porque<br />

esse homem, o sup<strong>os</strong>to pai, foi traído por sua mulher, casa-se com ela sendo<br />

um homem mais velho. Tem<strong>os</strong> muitas comédias – faz pouco apresentou-se Don<br />

Pascuale, que conta as aventuras de quando um homem ancião quer desfrutar<br />

d<strong>os</strong> encant<strong>os</strong> maritais de uma jovem dama. Mesmo sendo uma especulação<br />

própria d<strong>os</strong> psicanalistas, que pensam<strong>os</strong> mal e acertam<strong>os</strong>, pergunto: por que<br />

essa mulher jovem, a mãe de Asta, casou-se com um homem mais velho, a<br />

quem depois enganou? Como diz o ditado, “bilheteira mata galã”. Não há ninguém<br />

inocente nessta história. Salvo o pequeno Eyolf que é, como diria n<strong>os</strong>so<br />

amigo Lênin, o elo mais frágil da cadeia, o que paga com sua vida.<br />

No final da obra, Alfredo, que se sentiu muito mal, mas não o suficiente<br />

para se matar, aceita uma prop<strong>os</strong>ta que sua mulher lhe faz. Quando lhe diz que


<strong>Sobre</strong> o <strong>amor</strong> e <strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong>...<br />

irá à montanha, à solidão, ela o convence de que poderia fazer algo melhor do<br />

que morrer na solidão. Anuncia-lhe que vai encher a casa de menin<strong>os</strong> pobres,<br />

<strong>os</strong> que vivem n<strong>os</strong> casebres à margem do fiorde, a quem Alfredo havia querido<br />

matar. Ela lhe diz “mas não pensas que esses menin<strong>os</strong> não ajudaram Eyolf a<br />

salvar-se quando caiu no fiorde porque nós nunca fizem<strong>os</strong> nada por eles?”<br />

(p.82). Assim decidem dedicar sua vida a oferecer-lhes sua casa, <strong>os</strong> brinqued<strong>os</strong><br />

de Eyolf, a fazer algo por eles. Reparação altruísta, como tentativa de<br />

transformar a tragédia em drama? Ibsen não era tão ingênuo. O último diálogo<br />

de Rita e Alfredo diz:<br />

A morte está à espreita<br />

Rita: E para onde convém olhar, Alfredo?<br />

Alfredo Allmers: Para cima.<br />

Rita (com um gesto de conformidade): Sim, sim…, para cima.<br />

Alfredo Allmers: Para cima…, para <strong>os</strong> cumes, para as estrelas. E<br />

para o grande silêncio (Ibsen, 1966,p 101).<br />

A psicanálise propõe outra resolução. Sabem<strong>os</strong> que o Homem d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong><br />

concluiu sua análise com Freud, o que lhe serviu para liberá-lo do mandato de<br />

seu pai e de sua mãe, cortar com a que teria sido a repetição trágica da história,<br />

e casou-se com a prima pobre. Lamentavelmente morreu, como tant<strong>os</strong> milhares<br />

de jovens, como soldado na Primeira Guerra Mundial. Mas é certo que pagou a<br />

dívida simbólica. A diferença entre tragédia e drama é que o drama tem resolução,<br />

a tragédia n<strong>os</strong> propõe um destino inexorável, progride de modo inexorável<br />

para seu fim. Uma psicanálise, se tem desenvolvimento adequado, propõe um<br />

corte que poupa a tragédia. É a maneira de recordar o aforismo lacaniano: o que<br />

se expulsa do simbólico, retorna no real. Eu o digo mais forte: o que se expulsa<br />

do simbólico, retorna pior no real. Na análise do Homem d<strong>os</strong> Rat<strong>os</strong>, se não<br />

retornou pior foi porque a análise permitiu esse corte.<br />

REFERÊNCIAS<br />

FREUD, Sigmund. A propósito de un caso de neur<strong>os</strong>is obsesiva: el Hombre de las<br />

Ratas [1909]. In: ______. Obras completas. Buen<strong>os</strong> Aires : Amorrortu Editores, 1980.<br />

Tomo X.<br />

______. Psicopatologia de la vida cotidiana [1901]. In: _______. Obras completas.<br />

Buen<strong>os</strong> Aires: Amorrortu Editores, 1980. Tomo VI.<br />

GRIMM, Jacob e GRIMM, Wilhelm. El flautista de Hamelin [1816/18]. Disponível em < http:/<br />

/www.flautistico.com/articul<strong>os</strong>/el-flautista-de-hamelin-grimm>. Acesso em: 3 jan. 2009.<br />

IBSEN, Henrik: El pequeno Eyolf [1894]. In: _________. Teatro completo. Madrid:<br />

Ediciones Aguilar, 1966.<br />

85


86<br />

Isidoro Vegh<br />

LACAN, Jacques. El seminario de Jacques Lacan, libro 8: la transferencia [1960-61].<br />

Buen<strong>os</strong> Aires: Paidós, 2003.<br />

______. Le seminarie, livre XX: Encore. Paris: Seuil, 1975.<br />

Recebido em 11/11/2009<br />

Aceito em 30/11/2009<br />

Revisado por Sandra Tor<strong>os</strong>sian


TEXTOS<br />

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 87-101, jul./dez. 2009<br />

Resumo: O presente texto, a partir da obra Em Busca do Tempo Perdido – No<br />

Caminho de Swann, narra o desdobramento de uma cena cotidiana que se passa<br />

numa família aristocrática. Tem<strong>os</strong> como ponto-chave dessa narrativa o ciúme<br />

que Swann experimenta em relação à Odette. A partir desse sentimento, apare-<br />

ce o desejo e se desenrola uma relação <strong>amor</strong><strong>os</strong>a, que <strong>os</strong> inscreve simbolicamente,<br />

por meio do casamento. É isso que a autora analisa, tomando o ciúme<br />

como componente essencial e cuja trajetória finalizaria no enigma do <strong>amor</strong> e do<br />

desejo.<br />

Palavras-chave: ciúme, desejo, <strong>amor</strong>.<br />

OBSERVATIONS ON A LOVE OF SWANN<br />

Abstract: This article, based on In search of the l<strong>os</strong>t time – On Swann’s way,<br />

narrates the unfolding of a daily scene that takes place in an aristocracy family.<br />

As key point of this narrative there is the jealousy Swann feels towards Odette.<br />

From that feeling, comes desire and a love relationship develops, which marks<br />

them symbolically, through marriage. That is what the author analyses, taking<br />

jealousy as an essential component, wh<strong>os</strong>e trajectory would end in the enigma<br />

of love and desire.<br />

Keywords: jealousy, desire, love.<br />

ALGUMAS OBSERVAÇÕES<br />

ACERCA DE UM AMOR<br />

DE SWANN 1<br />

Martine Lerude 2<br />

1 Tradução de Patrícia Chittoni Ram<strong>os</strong> Reuillard (UFRGS).<br />

Todas as citações em português são extraídas da obra PROUST, Marcel. No caminho de Swann.<br />

Tradução de Mario Quintana. 20. ed. São Paulo: Globo, 1999; a ela se refere a indicação das<br />

páginas.<br />

2 Psicanalista, Psiquiatra; Membro da Association Lacanienne Internationale (ALI).<br />

87 87


88<br />

Martine Lerude<br />

Isolado do restante da obra Em busca do tempo perdido, No caminho de Swann<br />

(Proust, 1999) poderia ser lido como um percurso <strong>amor</strong><strong>os</strong>o que teria o ciúme<br />

como componente essencial e cuja trajetória finalizaria no enigma do <strong>amor</strong> e do<br />

desejo nesta frase fam<strong>os</strong>a:<br />

E com esta gr<strong>os</strong>seria intermitente que lhe voltava logo que ele não<br />

mais sofria e que rebaixava o nível de seu caráter moral, exclamou<br />

consigo mesmo: “E dizer que estraguei an<strong>os</strong> inteir<strong>os</strong> de minha vida,<br />

que desejei a morte, que tive o meu maior <strong>amor</strong>, por uma mulher que<br />

não me agradava, que não era o meu tipo” (Proust, 1999, p. 365).<br />

Tal conclusão parece deixar Swann livre para mais uma rodada, para um<br />

novo <strong>amor</strong>. Nada disso; não se trata de um <strong>amor</strong>, mas do Amor de Swann, e a<br />

sequência imediata de Em busca do tempo perdido n<strong>os</strong> oferece um Swann<br />

transformado, pai de Gilberte, marido de Odette, além de toda uma parte de<br />

À sombra das raparigas em flor dedicada à senhora Swann, a ex-mundana,<br />

que se tornou excelente esp<strong>os</strong>a, uma mulher “rodeada por sua toalete como<br />

pelo aparato delicado e espiritualizado de uma civilização”, que fascina o<br />

narrador.<br />

O ciúme de Swann assume então valor bem diferente e se inscreve – eis<br />

n<strong>os</strong>sa hipótese – como um momento decisivo de ruptura, como tempo de<br />

flutuação a partir do qual o sujeito, Swann, vai poder realizar um ato, envolver-se,<br />

não ser mais exatamente o mesmo; ele deixará então de ser “o filho Swann”.<br />

Para além da descrição sutil d<strong>os</strong> fenômen<strong>os</strong>, o ciúme de Swann n<strong>os</strong><br />

interessa:<br />

– porque levanta a questão do casamento, isto é, a questão do ato e da<br />

doação simbólica do nome. Esse nome, que ele não pode exaltar, e o título que<br />

lhe falta percorrem implicitamente todo o romance.<br />

– porque a p<strong>os</strong>ição de Swann em relação ao conhecimento e ao reconhecimento<br />

do outro se refere ao ceticismo e permite situar a dimensão da alteridade<br />

do outro sexo do ponto de vista masculino.<br />

– e porque essa p<strong>os</strong>ição cética, inteligente, tem analogia com a neur<strong>os</strong>e<br />

obsessiva.<br />

Como esse ciúme vem se inscrever em relação ao ceticismo?<br />

De início, um rápido olhar sobre o romance<br />

Seu pano de fundo é o salão da casa d<strong>os</strong> Verdurin, verdadeiro organismo<br />

social, cujas discussões são reguladas por afirmações peremptórias e por certa<br />

tolice.


Algumas observações...<br />

Odette de Crecy é uma das raras mulheres assíduas; ali ela se beneficia<br />

de favores e de certa promoção social. Odette é apresentada ao leitor quase<br />

como uma mundana, uma cortesã, “sem grande inteligência e com pouca virtude”.<br />

É uma mulher sustentada ou já o foi. Seu passado é vago, incerto, sua<br />

fortuna se baseia em uma carreira sexual junto a<strong>os</strong> homens. Ela “é charm<strong>os</strong>a,<br />

seu corpo é admirável”. Demonstra saber lidar com <strong>os</strong> homens: Proust insiste<br />

na descrição de sua toalete, de seus enfeites e de seu estilo britânico. É a única<br />

mulher a suportar a ortodoxia e o radicalismo d<strong>os</strong> Verdurin.<br />

Como nesse ponto eram as mulheres mais rebeldes do que <strong>os</strong><br />

homens [...], foram levad<strong>os</strong> a rejeitar sucessivamente tod<strong>os</strong> <strong>os</strong><br />

“fiéis” do sexo feminino (Proust, 1999, p. 187).<br />

Sua beleza não é do tipo que agrada a Swann:<br />

[...] ela se afigurara a Swann não por certo sem beleza, mas de um<br />

gênero de beleza que lhe era indiferente, que não lhe inspirava<br />

nenhum desejo, que até lhe causava uma espécie de repulsa física<br />

(Proust, 1999, p. 194).<br />

É uma mulher livre, sem homens, sem família, uma espécie de duplo<br />

feminino de Swann. Assim como ele, teve muitas relações <strong>amor</strong><strong>os</strong>as. Swann é<br />

um sedutor, enquanto ela conduz o jogo e procura conquistá-lo. Ele a deixa agir,<br />

sem reagir. Mesmo não lhe agradando, Odette se inscreve progressivamente no<br />

quadro da mulher amada e se torna objeto de uma paixão avassaladora, por três<br />

motiv<strong>os</strong>:<br />

– em razão de uma imagem estética; de fato, Swann reconhece nela<br />

cert<strong>os</strong> traç<strong>os</strong> da Céfora de Botticelli (Roma, Capela Sistina);<br />

– em razão da vulgaridade das palavras que acompanham Odette – “mulher<br />

sustentada” – e de tudo que essa fórmula tem de mau g<strong>os</strong>to, de falso<br />

chique, de ignorância mundana, fórmula que a coloca no op<strong>os</strong>to da imagem<br />

estética e que acompanha seu desejo;<br />

– e também em razão de uma imagem sonora, a da “pequena frase” da<br />

sonata de Vinteuil que, ao longo de todo o romance, acompanha o personagem<br />

de Odette.<br />

Não mais apreciou o r<strong>os</strong>to de Odette segundo a melhor ou pior<br />

qualidade de suas faces ou a suavidade puramente carnal que<br />

lhes supunha encontrar ao contato d<strong>os</strong> lábi<strong>os</strong>, se jamais ousasse<br />

beijá-la, mas sim como uma meada de linhas sutis e belas<br />

89


90<br />

Martine Lerude<br />

que seus olhares dobravam, seguindo a curva de seu enrolamento,<br />

ligando a cadência da nuca à efusão d<strong>os</strong> cabel<strong>os</strong> e à flexão das<br />

pálpebras, como num retrato dela em que seu tipo se tornava<br />

inteligível e claro. Contemplava-a: transparecia em seu r<strong>os</strong>to e<br />

em seu corpo um fragmento do afresco, que desde então procurou<br />

vislumbrar sempre que estava junto de Odette ou quando apenas<br />

pensava nela, e embora certamente só se ativesse à obraprima<br />

porque nela encontrava a sua amada, todavia tal parecença<br />

conferia a Odette maior beleza, tornava-a mais preci<strong>os</strong>a (Proust,<br />

1999, p. 220).<br />

Em um primeiro momento, Odette parece conduzir o jogo de sedução.<br />

Ela o visita, lhe envia mensagens e ele – “contradizendo <strong>os</strong> rumores – espera”,<br />

não reage e a deixa assumir pouco a pouco um lugar no quadro, instalar-se em<br />

suas convicções estéticas. “Eu te peço para pedir” parece ser sua p<strong>os</strong>ição.<br />

Assim, ele se apresenta como o que não é: um tímido respeit<strong>os</strong>o de uma mulher,<br />

enquanto Proust o descreve como um galante que sabe forçar <strong>os</strong> favores.<br />

Ela o corteja: “Eu nunca tenho nada que fazer! Sempre estou livre, e para você o<br />

estarei sempre”; leva-o à casa d<strong>os</strong> Verdurin, “Nada me diverte tanto como fazer<br />

casament<strong>os</strong>”, diz o pintor ao recebê-l<strong>os</strong>. Todo um jogo de trocas de cartas, de<br />

visitas, de espera começa entre eles, jogo regulado por uma surpreendente<br />

falsa moralidade (ainda que amb<strong>os</strong> sejam libertin<strong>os</strong>).<br />

Swann é um homem refinado, mundano, reconhecido, que evolui no melhor<br />

clã e que g<strong>os</strong>ta das mulheres. Para conquistar uma mulher, seja duquesa<br />

ou criada, está disp<strong>os</strong>to a fazer uso de todas suas relações, desentender-se<br />

com amig<strong>os</strong>; seu laço social é fundado nas mulheres. Ele g<strong>os</strong>ta daquelas de<br />

beleza bastante vulgar, “A profundeza, a melancolia da expressão, lhe gelavam<br />

<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong>, que despertavam, ao contrário, ante uma carne sadia, abundante e<br />

r<strong>os</strong>ada”.<br />

Ainda que seu nome seja comum e não tenha nenhum título, é recebido<br />

n<strong>os</strong> melhores salões da aristocracia. É um cético, inteligente, e seu ceticismo<br />

se manifesta por suas tendências à denegação. Deste modo, enquanto Odette<br />

tem a fama de não ser nem virtu<strong>os</strong>a nem inteligente, contrariando esse julgamento,<br />

ele a trata como uma mulher virtu<strong>os</strong>a (o que surpreende Odette e todo o<br />

mundinho d<strong>os</strong> Verdurin) e inteligente, expondo-lhe teorias musicais. Isso não<br />

significa que a julgue inteligente ou que a creia virtu<strong>os</strong>a, mas ele saboreia a<br />

inversão d<strong>os</strong> julgament<strong>os</strong>.<br />

E se g<strong>os</strong>ta do mau g<strong>os</strong>to de Odette, se não a contradiz em sua concepção<br />

de elegância (como tampouco corrige seus err<strong>os</strong>), é porque considera que<br />

o mau g<strong>os</strong>to de Odette se iguala a seu g<strong>os</strong>to refinado e que o senso de elegân-


Algumas observações...<br />

cia que ela tem talvez não seja mais inepto do que o seu próprio, é um cético.<br />

Voltarem<strong>os</strong> a isso.<br />

Tendo aliás deixado enfraquecerem as crenças intelectuais da sua<br />

juventude, e havendo o seu cepticismo de mundano penetrado até<br />

elas, sem que o soubesse, pensava (ou pelo men<strong>os</strong> o pensara<br />

tanto tempo que ainda o dizia) que <strong>os</strong> objet<strong>os</strong> do n<strong>os</strong>so g<strong>os</strong>to não<br />

p<strong>os</strong>suem em si mesm<strong>os</strong> um valor absoluto, que tudo é questão de<br />

época, de classe, tudo consiste em modas, as mais vulgares das<br />

quais valem tanto como as que passam por mais distintas (Proust,<br />

1999, p. 241).<br />

O pano de fundo de seu vínculo com Odette é o discurso que anima o clã<br />

d<strong>os</strong> Verdurin. Cada membro desse clã “tem um lugarzinho” à mesa, seu lugar.<br />

Swann vai lá todas as noites, tarde, após ter encontrado sua amante, uma<br />

jovem operária; sua existência é clivada, bem organizada. Ao contrário de sua<br />

liberdade sexual respectiva, Swann e Odette percorrem um Mapa da Ternura 3<br />

regulado pelo estilo obsessivo de Swann: ele não se move, não faz um gesto,<br />

não vai ao fim do que sugere e suscita no outro.<br />

Assim, o simples funcionamento daquele organismo social que<br />

era o pequeno “clã” proporcionava automaticamente a Swann encontr<strong>os</strong><br />

cotidian<strong>os</strong> com Odette e permitia-lhe fingir indiferença de a<br />

ver, ou até desejo de não mais a ver, que não lhe trazia grandes risc<strong>os</strong>,<br />

visto que embora lhe tivesse escrito durante o dia, forç<strong>os</strong>amente a<br />

veria à noite e a conduziria até em casa (Proust, 1999, p. 222).<br />

Odette fica perplexa e interpreta o comportamento de Swann como o de<br />

um ser ideal e tímido.<br />

Cá entre nós, disse a Sra. Verdurin, acho que Odette faz mal e se<br />

porta como uma verdadeira tranca. [...] Como está sem ninguém<br />

no momento, eu lhe disse que deveria deitar-se com Swann (Proust,<br />

1999, p. 223).<br />

3 Carte du Tendre: mapa de um país imaginário, na obra de Madeleine Scudéry (1607-1701),<br />

cuj<strong>os</strong> síti<strong>os</strong> simbolizam as diferentes fases d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> <strong>amor</strong><strong>os</strong><strong>os</strong> (N. de trad.).<br />

91


92<br />

Martine Lerude<br />

Ela precisa apenas estar presente todas as noites na casa d<strong>os</strong> Verdurin,<br />

no lugar e no horário determinad<strong>os</strong>. Swann a seduz, demonstra-lhe seu interesse,<br />

mas não conclui o laço sexual, embora acene para ele, tratando-a com um<br />

respeito que aparentemente contradiz seu desejo. Trata-se de uma estratégia?<br />

De uma denegação obsessiva ou de uma p<strong>os</strong>ição cética de suspensão do julgamento?<br />

Insidi<strong>os</strong>amente, Odette se instala no quadro, ela é ao mesmo tempo<br />

bela e carnal, tal como a Céfora de Botticelli, primeiro pintor das virgens e das<br />

mulheres de carne velada.<br />

Assim, Swann só se interessa por Odette porque ela vem ocupar um<br />

lugar determinado, por seus traç<strong>os</strong> estétic<strong>os</strong> e pela promessa de gozo que<br />

a expressão “mulher sustentada” nele suscita. Ele não tem por ela nenhuma<br />

curi<strong>os</strong>idade, nem outro interesse. É quando Odette vem a faltar nesse lugar,<br />

que é também um lugar à mesa, que o <strong>amor</strong> e o ciúme se desencadeiam.<br />

O desencadeamento do <strong>amor</strong> e do ciúme é simultâneo e brutal: uma<br />

noite, por ter se demorado com a jovem operária, Swann chega mais tarde em<br />

casa d<strong>os</strong> Verdurin. Odette fora embora. Ela falta a seu lugar, e Proust voltará<br />

com frequência ao momento que ele considera decisivo:<br />

O mal se declarara na noite em que não a tinha encontrado n<strong>os</strong><br />

Verdurin. Talvez a essa angústia devia Swann a importância que<br />

Odette tomara para ele (Proust, 1999, p. 231).<br />

É por faltar ao lugar que ele lhe atribuiu, por sair da comp<strong>os</strong>ição, indicando<br />

um espaço aberto e desconhecido (ele parte à sua procura em Paris), que<br />

surge a angústia e que ele consegue enfim, ao reencontrá-la, realizar um ato, no<br />

caso, o ato sexual – isto é, ser homem e reconhecê-la como Outro sexo, tratála<br />

como mulher. Desse modo, parece que, para p<strong>os</strong>suí-la sexualmente, para<br />

concluir, ele deva necessariamente passar pela perda da imagem, pela realização<br />

de sua ausência, pela abertura da comp<strong>os</strong>ição.<br />

Mais tarde, depois de Odette ter se tornado sua amante, a relação deles<br />

pr<strong>os</strong>segue de acordo com um recorte preciso do tempo, seus encontr<strong>os</strong> são<br />

sempre sustentad<strong>os</strong> pelo fundo social d<strong>os</strong> Verdurin e ordenad<strong>os</strong> graças às modalidades<br />

de clivagem, de defesa que Swann aplica.<br />

Novamente, seu <strong>amor</strong> é bem regulado, ele a encontra todas as noites,<br />

acompanha-a em casa, passa um tempo com ela, depois volta para casa após<br />

“fazer catleia”. Swann continua sua vida mundana aparentemente sem grandes<br />

mudanças. No entanto, gradualmente, ele faz em sua vida certo número de<br />

cortes de ordem material, de renúncias que não lhe são solicitadas. “Ele sacrifica<br />

interesses intelectuais e sociais àquele prazer imaginário” (Id., ibid., p. 232)


Algumas observações...<br />

e começa a dar dinheiro a ela. De Odette, de sua pessoa, de seus interesses,<br />

de sua vida, ele não quer saber nada:<br />

Só ia vê-la de noite, e nada sabia do emprego do seu tempo durante<br />

o dia, como nada sabia de seu passado, de modo que lhe faltava<br />

até esse insignificante dado inicial que, permitindo-n<strong>os</strong> imaginar o<br />

que não sabem<strong>os</strong>, n<strong>os</strong> dá desej<strong>os</strong> de o conhecer... Sorria apenas<br />

algumas vezes ao pensar que, an<strong>os</strong> atrás, quando não a conhecia,<br />

lhe haviam falado de uma mulher que, se bem se lembrava, devia<br />

sem dúvida ser ela. Como de uma cortesã, uma mulher sustentada...”<br />

(Proust, 1999, p. 234).<br />

Ainda que reconheça em Odette as mulheres pintadas por Botticelli, a<br />

ponto de dar a seu pescoço, por exemplo, a inclinação do quadro ou de cruzar<br />

suas mã<strong>os</strong> à maneira de uma virgem, ainda que a ame de acordo com um<br />

conhecimento estético, seu desejo está ligado a esta fórmula insistente de “mulher<br />

sustentada”.<br />

Odette realiza a imagem narcísica da dama, ao mesmo tempo que faz<br />

surgir o caráter “fundamentalmente perverso” das mulheres sustentadas, mas é<br />

ao preço de uma negação de sua pessoa, de sua subjetividade que ela se<br />

inscreve tão perfeitamente na construção de Swann. “E a vida de Odette, durante<br />

o resto do tempo, como ele não conhecia nada a seu respeito, lhe aparecia<br />

com o seu fundo neutro e sem cor. ..” (Id., ibid., p. 235).<br />

É preciso que um amigo intervenha e que lhe relate ter cruzado com<br />

Odette para que repentinamente ele perceba “[...] que Odette p<strong>os</strong>suía uma vida<br />

que não era inteiramente dele” (Id., ibid., p. 235).<br />

Após esse período preparatório, o ciúme explode com violência em um<br />

momento de precipitação: em um jantar na casa d<strong>os</strong> Verdurin, Odette convida o<br />

Conde de Forcheville, que se instala à mesa ao seu lado; honrado por Madame<br />

Verdurin, que se arrumou com muito esmero, Forcheville ocupa junto a Odette o<br />

lugar habitualmente atribuído a Swann. O ciúme se expressa então pela associação<br />

de duas ideias. Primeiro, uma denegação que invoca imediatamente a<br />

ideia de casamento:<br />

Por certo não tinha mínima veleidade de <strong>ciúmes</strong>... e quando Brichot,<br />

começando a contar a história da mãe de Branca de Neve “que<br />

estivera durante an<strong>os</strong> com Henrique Plantageneta antes de casar<br />

com ele”, quis que Swann corroborasse, dizendo-lhe: “não é, Sr.<br />

Swann?”. (Proust, 1999, p. 248).<br />

93


94<br />

Martine Lerude<br />

O ciúme irrompe quando Odette não está mais no mesmo lugar, quando<br />

surge um duplo, um semelhante (Forcheville e Swann frequentam o mesmo<br />

mundo), mas semelhante com nome, com título.<br />

De repente, a vida de Odette se m<strong>os</strong>tra a ele com tudo o que tem de<br />

desconhecido, como uma p<strong>os</strong>sibilidade infinita de goz<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, sem ele, com<br />

Forcheville, com outr<strong>os</strong> homens – primeiro, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> homens, depois, as mulheres,<br />

ou seja, como um lugar inapreensível em que goz<strong>os</strong> fora de seu conhecimento,<br />

de seu alcance, de seu próprio imaginário se encadeariam infinitamente.<br />

Ela não é “inteiramente dele”, assim como a sonata de Vinteuil, da qual ele<br />

apreende apenas um fragmento, “a pequena frase”. E o ciúme consiste em um<br />

esgotamento da equivocidade da língua, d<strong>os</strong> fenômen<strong>os</strong>: tudo é signo, cada<br />

palavra, cada situação indica que Odette está em outro lugar, com um outro, em<br />

outro gozo, que ele ignora, do qual é privado, amputado. No fundo, a vida de<br />

Odette não lhe é mais desconhecida agora do que antes, mas é um “Desconhecido”<br />

reconhecido como tal, que é preciso então preencher infinitamente. A verdade<br />

se torna sua paixão, diz Proust, mas de que verdade se trata? Verdade da<br />

distribuição do tempo? Verdade sobre o gozo? Ela goza? E com que goza? São<br />

as perguntas masculinas usuais.<br />

Imaginando Odette n<strong>os</strong> braç<strong>os</strong> de outr<strong>os</strong> homens, ele tenta desesperadamente<br />

trazê-la de volta para a comp<strong>os</strong>ição da qual ela escapa, tenta manter<br />

una sua imagem narcísica de virgem e de puta, sem espaço desconhecido,<br />

Outro. Podem<strong>os</strong> entender essa paixão pela verdade como a questão imp<strong>os</strong>sível<br />

sobre o gozo feminino e como o esforço infinito para que ela permaneça essa<br />

mulher, conforme a imagem narcísica ideal que a aliena.<br />

E, para garantir essa imagem total, ele paga com joias, com dinheiro.<br />

Não há nem troca, nem doação, mas um pagamento que jamais é suficiente.<br />

O <strong>amor</strong> de Swann parece ser essencialmente um <strong>amor</strong> ciumento. E Proust<br />

descreve perfeitamente o tecido de sign<strong>os</strong> no qual o sujeito se debate. Ou o<br />

mundo é desinvestido, inexistente, ou ele não deixa de falar do outro. O apaixonado,<br />

o ciumento não é mais o mesmo; ele é submetido a uma espécie de<br />

loucura que o exclui do senso comum. Homens e mulheres podem se reconhecer<br />

no ciúme de Swann, no desvio de sentid<strong>os</strong> que ele cria, no túnel em que o<br />

sujeito entra e no qual coloca seu ser à prova. Verdadeiro esgotamento do ser, o<br />

ciúme só interessa pelas saídas que levar o sujeito a encontrar. Entretanto, o<br />

ciúme não parece ter valor de experiência. Para Swann, ele constitui um verdadeiro<br />

“fanatismo”, fanatismo privado, individual, suscitado pela dimensão intolerável<br />

da alteridade de sua parceira, que lhe lembra sua própria divisão.<br />

Ele instala Odette em um lugar que organiza seu pensamento, suas interpretações,<br />

sua língua. Ela é colocada no lugar do Outro enquanto desconhecido,<br />

no lugar do gozo, do qual nada se sabe, no lugar da verdade imp<strong>os</strong>sível. É


Algumas observações...<br />

sua imagem de “virgem-mulher sustentada” que, tal como uma nova metáfora,<br />

regula agora as relações de Swann com o mundo. Ela é tudo o que ele não é, e<br />

ele, em op<strong>os</strong>ição, se apequena, fenece. Swann paga em dinheiro, em joias, em<br />

oferendas, faz dela uma mulher sustentada (ele a humilha, saberem<strong>os</strong> mais<br />

tarde) e nada ouve de sua demanda.<br />

E aquela voluptu<strong>os</strong>idade de estar en<strong>amor</strong>ado, de só viver de <strong>amor</strong>,<br />

de cuja realidade outrora duvidava, o preço que em suma lhe custava,<br />

como diletante de sensações imateriais, vinha ainda aumentarlhe<br />

o valor... (Proust, 1999, p. 260).<br />

Swann dá, mas sem fazer nenhuma doação. A dialética da troca está<br />

agora suspensa, porque não é isso e porque seu ciúme é uma verdadeira negação<br />

da alteridade, isto é, da divisão subjetiva (a sua própria, a de Odette). Assim,<br />

ele dá sem dar verdadeiramente nada que o comprometa e é o dinheiro de<br />

seu pai que, no fundo, ele redistribui.<br />

Então, de súbito, indagou se aquilo não seria precisamente<br />

“sustentá-la” (como se, de fato, essa noção de sustentar se pudesse<br />

inferir, não de element<strong>os</strong> misteri<strong>os</strong><strong>os</strong> ou pervers<strong>os</strong>, mas<br />

pertencentes ao fundo cotidiano e privado de sua vida, tal como<br />

aquela nota de mil franc<strong>os</strong>, doméstica e familiar...) e se não se<br />

poderia aplicar a Odette, desde que a conhecia, aquela designação<br />

de “mulher sustentada” que julgara tão incompatível com Odette<br />

(Proust, 1999, p. 261).<br />

Quando surge a ideia do casamento, ela é imediatamente rejeitada.<br />

Ah! Se o destino houvesse permitido que Odette e ele não tivessem<br />

mais que uma só morada, que Swann, estando em sua casa,<br />

estivesse também em casa dela... e se o seu dever de bom esp<strong>os</strong>o<br />

o obrigasse... (Proust, 1999, p. 289).<br />

Logo abandona essa hipótese, temendo perder seu mal, sem o qual ele<br />

não seria mais nada.<br />

Ao longo de todo o texto, o ciúme de Swann se encontra relacionado a<br />

dois term<strong>os</strong>: a inteligência e o conhecimento. Enquanto Swann é descrito como<br />

um homem inteligente, Odette é apresentada como uma “fam<strong>os</strong>a tranca, sem<br />

grande inteligência”. Proust propõe um paradoxo: é Swann, o homem inteligente,<br />

que vai se alienar em uma tolice incompreensível para <strong>os</strong> outr<strong>os</strong> (“O quê? Por<br />

95


96<br />

Martine Lerude<br />

essa mulher, que nem mesmo é inteligente?”, dizem <strong>os</strong> comentári<strong>os</strong>), ao passo<br />

que Odette tem a inteligência da neur<strong>os</strong>e de seu parceiro e sabe utilizar seu<br />

sintoma.<br />

Os significantes conhecimento e reconhecimento balizam o texto. A<br />

inteligência e o conhecimento constituem <strong>os</strong> fundament<strong>os</strong> do ceticismo de<br />

Swann. Para Proust, como para Montaigne, a dúvida é a inteligência, é a<br />

recusa do dogmatismo. O ciúme, ao contrário, efetua uma verdadeira inversão<br />

dessa p<strong>os</strong>ição: ele constitui uma verdadeira humilhação da inteligência, uma<br />

recusa em reconhecer o outro, ele enceta um processo de interpretação<br />

dogmática do outro. O ceticismo inteligente cede o lugar a um fanatismo individual<br />

bestificante.<br />

Um pequeno desvio pela questão do ceticismo<br />

Skepis significa exame, em grego. O uso da palavra ceticismo sofreu<br />

inúmer<strong>os</strong> contrassens<strong>os</strong> (em fil<strong>os</strong>ofia) e seu sentido habitual designa uma atitude<br />

negativa do pensamento, uma mente hesitante, incapaz de se pronunciar<br />

sobre algo; é um erro comum tomar o ceticismo por uma p<strong>os</strong>ição de recusa, de<br />

retraimento. O filósofo cético não se permitiria nenhuma p<strong>os</strong>ição radical, inclusive<br />

dizer “sei que nada sei”.<br />

Seu fundador, que não deixou text<strong>os</strong>, é Pirro de Élida (fim do século IV<br />

a.C.). A fil<strong>os</strong>ofia cética é conhecida graças a<strong>os</strong> historiadores greg<strong>os</strong> Diógenes<br />

Laércio (século II a. C.) e Sexto Empírico, que Montaigne leu e traduziu, e,<br />

evidentemente, graças a<strong>os</strong> historiadores latin<strong>os</strong> Cícero e Aulus Gellius.<br />

Diógenes Laércio e Sexto Empírico estabelecem distinção muito estrita entre<br />

<strong>os</strong> acadêmic<strong>os</strong> que sustentam a imp<strong>os</strong>sibilidade de nada conhecer (Cícero<br />

defende essa ideia) e <strong>os</strong> cétic<strong>os</strong>, tais como Pirro, que tomam a vida e a experiência<br />

como critéri<strong>os</strong> de sua conduta e para quem o conhecimento é relativo.<br />

Os acadêmic<strong>os</strong> são a fonte daqueles que, como Sêneca, Santo Ag<strong>os</strong>tinho,<br />

Hume, Kant ou Hegel, apresentam o ceticismo antigo como um niilismo<br />

radical, que leva à indiferença e à inação. Em contrapartida, para Sexto Empírico<br />

ou Diógenes Laércio, o ceticismo é uma fil<strong>os</strong>ofia do conhecimento e da experiência.<br />

Os cétic<strong>os</strong> são então pesquisadores que praticam a suspensão do julgamento<br />

(epoché), o relativismo. São filósof<strong>os</strong> do inconveniente, da solução não<br />

encontrada. Eles não recusam a ciência e o saber, são, ao contrário, solidári<strong>os</strong><br />

do desenvolvimento da física da percepção. Eles têm o conhecimento d<strong>os</strong> fenômen<strong>os</strong><br />

(o conhecimento do real), mas este permanece relativo ao observador, à<br />

época, à sua cultura, isto é, parcial, incompleto, sempre marcado por uma dimensão<br />

desconhecida. A dialética é o instrumento de uma terapêutica destina-


Algumas observações...<br />

da a dividir a alma em duas partes (o lugar da alma em que se exerce a dúvida<br />

é a memória), isto é, a impedir o juízo de dogmatizar, confiando n<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong><br />

(sensações), ou na vida, na experiência. Para o cético grego, o conhecimento é<br />

relativo, subjetivo, diríam<strong>os</strong>. Os fenômen<strong>os</strong> jamais são apreendid<strong>os</strong> senão parcialmente,<br />

não há conhecimento total universal, mas um real opaco, desconhecido.<br />

Mesmo que o conhecimento progrida, mesmo que o conhecimento permita<br />

vencer o real, sempre subsiste o desconhecido.<br />

O modelo cético de Montaigne, que Proust conhecia, é estritamente<br />

pirrônico. Sua convicção é aquela do relativismo universal. Ele está intimamente<br />

persuadido de que o sujeito é incapaz de ultrapassar a singularidade de suas<br />

impressões, de seus sentid<strong>os</strong> e de sua imaginação para alcançar um conhecimento<br />

universalmente válido. O conhecimento é limitado, relativo, depende<br />

de sua p<strong>os</strong>ição e não pode valer para tod<strong>os</strong>. Montaigne jamais praticou o<br />

desespero acadêmico, mas “ele foi pirrônico de ponta a ponta”, ao julgar que a<br />

honestidade o forçava a falar de maneira singular como ele via o mundo através<br />

de si mesmo, ao invés de adotar um ponto de vista universal definitivo e<br />

dogmático sobre o mundo. Por essa razão, declara ser ele mesmo a matéria<br />

de seu livro, ou seja, que todo conhecimento é relativo a um sujeito, a sentid<strong>os</strong>,<br />

a uma imaginação particular, o que em term<strong>os</strong> lacanian<strong>os</strong> poderia ser<br />

expresso por: não há outra realidade além da realidade psíquica, aquela recortada<br />

pela fantasia.<br />

O ceticismo de Swann, de Proust, filia-se a Montaigne. A pouca inteligência<br />

de Odette se iguala à inteligência de Swann. O mau g<strong>os</strong>to de Odette se<br />

iguala ao g<strong>os</strong>to sutil de Swann. Sua ideia de chique talvez seja tão verdadeira<br />

quanto a de Swann.<br />

Observem<strong>os</strong> que o ceticismo antigo exalta o espírito de tolerância (e<br />

Sexto Empírico foi traduzido para o francês no início do século XVII com essa<br />

preocupação) e que a relatividade faz parte de n<strong>os</strong>so saber científico. Einstein e<br />

Heisenberg revigoraram o relativismo de Pirro.<br />

Deve-se a Santo Ag<strong>os</strong>tinho o contrassenso absoluto no nível do ceticismo.<br />

De fato, ele inaugura a dúvida vivenciada. Não se trata mais de separar em<br />

duas partes as funções da alma. A unidade do espírito humano confere à dúvida<br />

a dimensão total de um desespero integral, e a dúvida se torna então a experiência<br />

crucial no percurso cristão: é um momento de negação que transforma o<br />

saber humano em certeza fundada na fé em Deus. Para Pascal, o ceticismo<br />

tem função apologética: humilhar a inteligência, rebaixar o saber humano, manifestar<br />

a miséria do entendimento abandonado por Deus. Assim, a busca cética<br />

deixa de ser, com <strong>os</strong> pensadores cristã<strong>os</strong>, a busca zetética d<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> de suspensão<br />

do julgamento e se torna o momento de busca de uma verdade que não<br />

se p<strong>os</strong>sui ainda e que a ciência não pode p<strong>os</strong>suir. Dá-se então um deslizamento<br />

97


98<br />

Martine Lerude<br />

do sentido grego da busca cética para o sentido cristão de uma busca da verdade,<br />

una, integral, a de Deus. O ceticismo grego acabou se desviando, de certo<br />

modo, para uma espécie de dogmatismo, até mesmo de fanatismo cristão, que<br />

visava a estabelecer Deus como termo último do conhecimento.<br />

Voltando a Swann<br />

Proust o descreve várias vezes como um cético (Id., ibid., p. 215, 250,<br />

353). Ele suspende seu juízo, aprecia a denegação, sabe que o juízo é relativo<br />

à imaginação, ao lugar social, à língua, às tradições, à cultura a que se pertence.<br />

É inteligente, mas o ciúme vem inverter essa p<strong>os</strong>ição, ele se torna desesperado,<br />

embrutecido, com uma ideia fixa, em busca de uma falsa verdade, engajado<br />

em uma verdadeira negação do conhecimento, do reconhecimento do outro e do<br />

desconhecido irredutível que o constitui. Protege-se da alteridade de sua parceira,<br />

que nada mais é do que a expressão de sua própria divisão. Odette, em<br />

compensação, entende seu parceiro, sua neur<strong>os</strong>e obsessiva, sua clivagem, sua<br />

distância. Distanciando-se, ela sabe se apegar a Swann de maneira bem mais<br />

radical do que com todas suas coqueterias. Desse modo, o ciúme, ao contrário<br />

da dúvida inteligente, instala um fanatismo individual privado. Qual é portanto<br />

sua função?<br />

Antes de conhecer Odette, “Swann gozava da companhia de mulheres<br />

cada vez mais gr<strong>os</strong>seiras, a sedução de obras mais e mais refinadas...”(Id.,<br />

ibid., p. 241).<br />

Odette alia o objeto obsceno do desejo à estética da pintura antiga. Ela<br />

carrega em si – sem o saber – uma representação da clivagem de Swann. O<br />

ciúme corresponderia então ao momento em que é identificada ao objeto causa<br />

do desejo, ao passo que, no <strong>amor</strong>, ela se confundiria com a imagem perfeita de<br />

mulher de Botticelli. Mas talvez as coisas não sejam tão simples.<br />

Pode-se pensar que Swann instala Odette em p<strong>os</strong>ição de ídolo e que, ao<br />

mesmo tempo, ela se torna uma figura da morte, de sua destruição. Com seu<br />

ciúme, ele tenta desesperadamente manter a unidade dessa imagem da mulher<br />

Toda (virgem e puta) que organiza seu pensamento de ciumento. O que Swann<br />

recusa, nega, graças ao processo do ciúme, é que Odette p<strong>os</strong>sa ser uma mulher<br />

que não seja inteiramente apreensível.<br />

Abrindo o quadro da fantasia de Swann, Odette designa um outro lugar, um<br />

além da fantasia desconhecida do sujeito, lugar de um outro gozo que ele supõe,<br />

mas que a linguagem é insuficiente para dizer. Odette presentifica esse desconhecido<br />

para além da linguagem, para além do conhecimento de si mesmo e da<br />

imagem narcísica. Colocada no lugar do Outro, ela designa um real imp<strong>os</strong>sível de<br />

dizer, isto é, esse gozo desconhecido que o sujeito Swann submete à dúvida. A


Algumas observações...<br />

dúvida em ação no ciúme masculino pode ser entendida como uma dúvida que<br />

incide sobre o gozo feminino. Onde o reconhecimento de Deus suspendia a dúvida<br />

e a delimitava, uma mulher colocada nesse lugar não pode senão relançá-la<br />

infinitamente, a men<strong>os</strong> que seja trazida, reconduzida para a ordem simbólica<br />

organizada pelo falo, graças ao casamento, por exemplo, ou por uma outra doação<br />

simbólica de seu parceiro, que lhe garanta enfim um reconhecimento.<br />

A metáfora da sonata de Vinteuil é uma ilustração disso. Swann conhece<br />

somente um fragmento dessa sonata, a “pequena frase” (que cabe em 5 notas).<br />

Infinitamente repetida, tocada pelo pianista, depois por Odette, ela provoca o<br />

mesmo prazer, o mesmo g<strong>os</strong>to conhecido (Id., ibid., p. 338-339).<br />

Quando ele escutar mais tarde toda a sonata, descobrirá fragment<strong>os</strong> nov<strong>os</strong>,<br />

sonoridades insuspeitas, sem nunca conseguir “p<strong>os</strong>suí-la inteira”. A sonata<br />

é a metáfora de Odette; nela, como em Odette, ele encontra – para além do<br />

fragmento conhecido cuj<strong>os</strong> efeit<strong>os</strong> antecipa – o desconhecido, o não-todo, ou<br />

seja, a dimensão inconsciente de seu desejo, aquele mesmo do qual se defende<br />

pela denegação fam<strong>os</strong>a “ela nem mesmo é meu tipo.”<br />

Dando-lhe dinheiro, joias, ele lhe oferece tudo salvo o que ela espera, isto<br />

é, uma aliança, um nome. Ela pede uma doação simbólica, um reconhecimento<br />

diferente daquele de “mulher sustentada”, mas em troca recebe presentes apenas.<br />

Mesmo não sendo muito inteligente, ela tem um saber sobre o outro sexo,<br />

sobre <strong>os</strong> homens: sabe exaltar o objeto sexual (cf. a cena de sedução em seu<br />

salão, as flores, o penhoar que desliza, <strong>os</strong> braç<strong>os</strong> desnud<strong>os</strong>) e, com Swann, ela<br />

sabe encontrar outras soluções. Com suas ausências e suas viagens, ela desenha<br />

territóri<strong>os</strong> desconhecid<strong>os</strong> onde se precipita o imaginário de Swann, seu<br />

ciúme; ciúme que levará finalmente ao casamento.<br />

Ela sabe finalmente fazer com que ele a desp<strong>os</strong>e. Também sabe se<br />

p<strong>os</strong>icionar como sua mulher, por exemplo, apontando seu retraimento, o recolhimento<br />

de sua subjetividade em seu estudo sobre Vermeer. E o ciúme de<br />

Swann se resolve por meio de um sonho (o sonho de Napoleão III, que parte com<br />

Odette), sonho que faz surgir uma imagem paterna narcísica em relação àquela<br />

da dama. A p<strong>os</strong>ição cética de Swann não deixa de ter relação com a neur<strong>os</strong>e<br />

obsessiva sobre <strong>os</strong> pont<strong>os</strong> seguintes. De fato, se o obsessivo “sofre por dever<br />

colocar em discussão todas suas referências, tod<strong>os</strong> seus conheciment<strong>os</strong> adquirid<strong>os</strong><br />

e, portanto, por não poder se fiar em nada nem ninguém ao mesmo<br />

tempo” (Melman), para o cético isso é, ao contrário, um imperativo ético e não<br />

um sofrimento. A dúvida cética não é um sintoma, não é nem forçada nem<br />

imp<strong>os</strong>ta, faz parte da dialética fil<strong>os</strong>ófica de seu conhecimento do mundo.<br />

Em contrapartida, a neur<strong>os</strong>e obsessiva de Swann parece poder ser<br />

identificada em sua relação com o tempo e com o imobilismo (sua divisa parece<br />

ser de que tudo permanece no mesmo lugar) e sobretudo em sua preocupação<br />

99


100<br />

Martine Lerude<br />

de evitar concluir (o ciúme parecendo constituir seu paroxismo), de evitar realizar<br />

um ato, de pôr um ponto final (por mais provisório que seja). Tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> esforç<strong>os</strong><br />

de Swann – ciúme inclusive – consistem em evitar um tipo de conclusão, de<br />

comprometimento. É necessária uma situação de surpresa, de pressa, para<br />

que ele realize um ato. O ciúme fracassa na medida em que o sujeito não<br />

consegue, apesar desse processo, evitar dizer sim – ou dizer não. Mesmo que<br />

ele ganhe tempo, essa política de retraiment<strong>os</strong> sucessiv<strong>os</strong>, de despojamento<br />

do ser, leva-o necessariamente a se retirar do jogo com o outro, ou a encontrar<br />

saídas, e então uma doação simbólica é necessária, tal como o casamento, a<br />

fim de restabelecer a dialética. As ofertas diversas que substituem essa doação<br />

simbólica que ele recusa a Odette não fazem senão aumentar seu tormento e<br />

suas preocupações libidinais.<br />

Conclusão<br />

Que o ciúme p<strong>os</strong>sa constituir um tempo para compreender (tempo de<br />

loucura, em que a língua perde sua equivocidade, em que o mundo é desinvestido),<br />

um tempo necessário para realizar um ato, para reconhecer a negação que está<br />

em jogo (negação de seu desejo, negação da alteridade, negação de sua própria<br />

divisão) para chegar ao termo do que se passou com o outro sexo, conclusão<br />

que pode ser um fim, o final de um laço, ou um casamento (o casamento<br />

significando o comprometimento simbólico do sujeito, e não forç<strong>os</strong>amente o juiz<br />

de paz), é com certeza a leitura que propom<strong>os</strong> desse texto.<br />

No fundo, o ciúme pode ser o caminho paradoxalmente cego e necessário<br />

de um reconhecimento do desejo inconsciente que n<strong>os</strong> conduz e do <strong>amor</strong>, na<br />

medida em que ele se dirige àquilo que, do outro, desconhecem<strong>os</strong> e n<strong>os</strong> escapa,<br />

e que visa um além da imagem narcísica, isto é, a dimensão inconsciente<br />

do outro.<br />

No fundo, Swann passa de “eu te amo por este objeto inominável que tu<br />

escondes sob teu belo adorno ou atrás de tua bela imagem de virgem de Botticelli,<br />

pelo qual pago com dinheiro e múltipl<strong>os</strong> presentes a um eu te amo por esse<br />

gozo que não me pertence, do qual nada sei, e te dou meu nome”.<br />

Reconhecer que não se pode saber com o que goza o outro, mas que se<br />

pode ouvir e responder a seu desejo por uma doação simbólica, talvez seja este<br />

o ponto a que pode levar o caminho tortu<strong>os</strong>o do ciúme. Reconhecer o outro<br />

como sujeito de uma falta, de um desejo, de uma divisão, e não mais como bela<br />

imagem, adorno soberbo que cerca o objeto a (o que destina ou à idolatria ou ao<br />

lixo), não se dá sem dan<strong>os</strong>. O ciúme pode ser então como a passagem obrigatória<br />

que permite se inscrever com o parceiro em uma dialética interessante<br />

inventiva e não somente no fechamento narcísico e mortal.


Algumas observações...<br />

Talvez seja necessário que o obsessivo perca a mulher ideal para poder<br />

encontrar uma mulher e talvez seja isso que está em jogo nesse tempo de<br />

suspensão e de alternância que o ciúme testemunha.<br />

REFERÊNCIAS<br />

MELMAN, Charles. Le scepticisme et le phenomena. Paris: J.P. Dupont, 1972.<br />

PROUST, Marcel. A la recherche du temps perdu. Paris: Bibliothèque de la Pléiade,<br />

Gallimard, 1954. Tome I. [Ed. bras.: PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução<br />

de Mario Quintana. 20. ed. São Paulo: Globo, 1999].<br />

Recebido em 07/08/2009<br />

Aceito em 20/09/2009<br />

Revisado por Gláucia Escalier Braga e Valéria Rilho<br />

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102<br />

TEXTOS<br />

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 102-111, jul./dez. 2009<br />

SER O MANO!<br />

Otávio Augusto Winck Nunes 1<br />

Resumo: O presente artigo discute a relação das fratrias e a irrupção do ciúme<br />

entre <strong>os</strong> irmã<strong>os</strong>, como elemento sintomático frente à demanda materna de tota-<br />

lidade, especificamente entre gême<strong>os</strong>. Para tanto, utiliza a obra de Milton<br />

Hatoum, Dois irmã<strong>os</strong>, como ilustração dessa questão.<br />

Palavras-chave: demanda, <strong>ciúmes</strong>, fratrias, rivalidade, gême<strong>os</strong>.<br />

BROTHERS<br />

Abstract: This article discusses the relationship of brotherhood and the irruption<br />

of jealousy among brothers as a symptomatic element in response to the mother´s<br />

demand of totality, specifically among twins. The article takes the work of Milton<br />

Hatoum, The brothers, as an illustration of this issue.<br />

Keywords: demand, jealousy, brotherhood, rivalry, twins.<br />

1 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Mestre em Psicologia do<br />

Desenvolvimento/UFRGS; Mestre em Psicopatologia e Psicanálise – Universidade Paris 7. E-mail:<br />

otaviown@terra.com.br


Ser o mano!<br />

[...] Nem parece o homem<br />

que eu conheci, é como se<br />

f<strong>os</strong>sem duas pessoas,<br />

Ninguém é uma só pessoa, tu,<br />

caim, és também abel, [...].<br />

J<strong>os</strong>é Saramago<br />

Otema das fratrias é sempre atual. E dentre as questões emergentes sobre<br />

as fratrias, a do ciúme tem, sem dúvida, lugar privilegiado Não houve tempo<br />

em que o desdobramento dessa temática não estivesse presente no interior das<br />

discussões familiares, sociais, religi<strong>os</strong>as ou políticas. Basta lembrar <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong><br />

irmã<strong>os</strong> de que se tem notícia: Caim e Abel, filh<strong>os</strong> de Adão e Eva. Passagem<br />

evocada pelo mais recente romance de Saramago (2009). De maneira mais<br />

ampla, a discussão sobre as fratrias passa pel<strong>os</strong> ideais da Revolução Francesa:<br />

Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Pel<strong>os</strong> “irmã<strong>os</strong>” e pelas “irmãs”, tanto<br />

das congregações religi<strong>os</strong>as quanto da maçonaria. Até <strong>os</strong> atuais “mano” ou<br />

“brothers (“brô”) das trib<strong>os</strong> e, mesmo, no interior de muitas organizações comerciais,<br />

como se tod<strong>os</strong> pertencessem à mesma família2 .<br />

Na psicanálise não seria diferente. Talvez, não ainda em toda a complexidade<br />

teórica que o tema comporta, mas sem dúvida, muitas associações livres<br />

sobre o divã giram em torno dessa caudal<strong>os</strong>a temática.<br />

Freud ocupou-se do tema das fratrias em divers<strong>os</strong> text<strong>os</strong>, de maneiras<br />

distintas. Em <strong>Sobre</strong> as teorias sexuais infantis, texto de 1908, Freud ([1908]<br />

1976) indicava que o conhecimento adquirido em relação à diferença3 sexual,<br />

inicialmente, passava pel<strong>os</strong> pais, e poderia acontecer junto a<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong>. Totem e<br />

tabu (Freud, [1912-13] 1976) talvez seja o texto mais contundente a respeito da<br />

complexidade que a relação das fratrias apresenta na psicanálise. É para assassinar<br />

o pai, o momento em que <strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> se reúnem para formar uma nova<br />

unidade, rebelando-se contra a autoridade paterna – única –, resultando numa<br />

nova forma de relação com o estabelecimento da lei.<br />

Por sua vez, no texto de Freud ([1922] 1976), Alguns mecanism<strong>os</strong> neurótic<strong>os</strong><br />

no ciúme, na paranoia e no hom<strong>os</strong>sexualismo, encontram<strong>os</strong> a indicação<br />

precisa a respeito d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> psíquic<strong>os</strong> que estão envolvid<strong>os</strong> na questão<br />

2 O recente blockbuster Avatar, de James Cameron (2009), começa pela substituição, na missão<br />

espacial, de um irmão gêmeo morto, pelo outro, vivo. Sem falar da atual novela da rede Globo,<br />

Viver a vida, de Manoel Carl<strong>os</strong> (2009-2010), em que a substituição de um irmão gêmeo, pelo<br />

outro, ocorre no campo <strong>amor</strong><strong>os</strong>o. E ainda o Big Brother...<br />

3 A esse respeito, ver o livro A função fraterna, Maria Rita Kehl (org.), Relume Dumará, 2000.<br />

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Otávio Augusto Winck Nunes<br />

das fratrias, em sua imbricação com o ciúme. Segundo Freud, <strong>os</strong> <strong>ciúmes</strong> dividem-se<br />

em três camadas: o normal ou competitivo, o projetivo e o delirante.<br />

No ciúme normal ou competitivo, o que está em jogo é a própria constituição<br />

subjetiva. Ou seja, o ciúme aparece tanto pela sua origem no complexo de<br />

Édipo, quanto pela relação entre irmã<strong>os</strong>. Então, na perspectiva da normalidade<br />

p<strong>os</strong>tulada por Freud, ninguém escaparia da experiência desse “estado emocional<br />

como o luto que pode ser descrito como normal” (Freud, [1922] 1976, p.<br />

271); antes de qualquer derivação, o ciúme é constituinte do sujeito, e sua<br />

origem está no mecanismo psíquico por excelência da neur<strong>os</strong>e, o recalque. O<br />

recalque, quando opera na produção da neur<strong>os</strong>e, não extingue o conflito psíquico.<br />

Ele, apenas, faz com que a expressão do conflito apareça com outra configuração.<br />

Então, o recalque, produzido a partir do complexo de Édipo, age sobre<br />

o ciúme, mas não é capaz de acabar com ele. Ele retorna sob diferentes matizes,<br />

indo da sua negação (<strong>os</strong> mais ciument<strong>os</strong>, diria Freud) até <strong>os</strong> mais violent<strong>os</strong>,<br />

como vem<strong>os</strong> em situações-limite, agressão, sequestro e assassinato de<br />

parceir<strong>os</strong> <strong>amor</strong><strong>os</strong><strong>os</strong>.<br />

Inicialmente, a origem do ciúme era vista a partir da rivalidade presente na<br />

relação vertical entre pais e filh<strong>os</strong>, em que a disputa pelo <strong>amor</strong> de um d<strong>os</strong> genitores<br />

seria a matriz, tendo como objeto de <strong>amor</strong> privilegiado a mãe, o que desencadeia<br />

no filho o ódio pelo seu op<strong>os</strong>itor, o pai. Mas, fez-se necessário pensar, ainda, o<br />

que acontece na horizontalidade das relações fraternas, fato que não passou<br />

despercebido por Freud. Nesse mesmo texto, ele evidencia que a rivalidade existente<br />

entre <strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> pelo <strong>amor</strong> d<strong>os</strong> pais é, também, própria ao ciúme.<br />

Dessa forma, no ciúme encontram<strong>os</strong> a estrutura triangular como característica<br />

privilegiada desse afeto. Por seu turno, a inveja, que muitas vezes pode<br />

ser confundida com o ciúme, apresenta estrutura dual, marcada, no mais das<br />

vezes, pela disputa e pela p<strong>os</strong>se de um objeto. Aliás, tanto um quanto o outro,<br />

o último um d<strong>os</strong> sete pecad<strong>os</strong> capitais, são alv<strong>os</strong> constantes de críticas pela<br />

presença permanente nas relações <strong>amor</strong><strong>os</strong>as.<br />

Aqui vale a recorrência a um texto de Santo Ag<strong>os</strong>tinho (1996), que viveu<br />

no século III, na sua obra Confissões, livro I, A infância, pois retrata de maneira<br />

exemplar o que, p<strong>os</strong>teriormente, começam<strong>os</strong> a entender a partir da psicanálise.<br />

Assim, a debilidade d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> infantis é inocente, mas não a<br />

alma das crianças. Vi e observei uma, cheia de ciúme 4 , que ainda<br />

4 As traduções dessa obra não são unânimes, podem-se encontrar tanto <strong>ciúmes</strong> quanto inveja,<br />

nessa passagem, que embora não sejam a mesma coisa, apresentam certa proximidade. Reforçada<br />

inclusive pela origem etimológica da palavra. A referida passagem faz parte de Prognóstic<strong>os</strong><br />

de víci<strong>os</strong>, justamente antes de Como aprendi a falar, capítulo que segue suas Confissões.


Ser o mano!<br />

não falava e já olhava, pálida de r<strong>os</strong>to colérico para o irmãozito<br />

colaço. Quem não é testemunha do que eu afirmo? Diz-se até que<br />

as mães e as amas procuram esconjurar esse defeito, não sei<br />

com que práticas superstici<strong>os</strong>as. Mas, enfim, será inocente a criança<br />

quando não tolera junto de si, na mesma fonte fecunda do<br />

leite, o companheiro destituído de auxílio e só com esse alimento<br />

para sustentar a vida? Indulgentemente se permitem estas más<br />

inclinações, não porque sejam ninharias sem importância, mas<br />

porque hão de desaparecer com o andar d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>. É este o único<br />

motivo, pois essas paixões não se podem de boa mente sofrer,<br />

quando se encontram numa pessoa mais id<strong>os</strong>a (Santo Ag<strong>os</strong>tinho,<br />

1996, p.45).<br />

Essa passagem é prototípica da experiência do ciúme. Os trabalh<strong>os</strong> que<br />

tratam do tema fazem sistematicamente referência a ela. E é, justamente, a<br />

partir dela que Jacques Lacan dá um passo a mais na sua releitura da obra<br />

freudiana, pois Lacan acrescenta a conhecida rivalidade, a identificação mental,<br />

com o irmão, como elemento constituinte da subjetividade.<br />

A imagem do objeto perdido para aquele, o irmão, que goza, em seu<br />

lugar, do corpo materno, como se o lugar f<strong>os</strong>se seu, é impactante. Como não<br />

odiar esse outro, que pode ser visto como o desdobramento de si mesmo? Será<br />

essa visão – mesmo mítica – condensadora e aprisionante das relações fraternas?<br />

Enfim, o gozo do olhar é privilegiado no ciúme? Seja pelas evidências que<br />

o ciumento encontra como prova cabal da traição sexual ou privilégio <strong>amor</strong><strong>os</strong>o,<br />

tanto em seu aspecto real quanto imaginário?<br />

Vem<strong>os</strong> coincidir na afirmação de Santo Ag<strong>os</strong>tinho um d<strong>os</strong> moment<strong>os</strong><br />

cruciais da constituição subjetiva, o estágio do espelho. Qual é o principal enfoque<br />

dado por Lacan nesse momento? Que, frente à imaturidade biológica, haja uma<br />

operação psíquica que se antecipa ao motor. Se lerm<strong>os</strong> que a alma, apontada<br />

por S. Ag<strong>os</strong>tinho, é o equivalente ao conceito de eu prop<strong>os</strong>to pela psicanálise,<br />

vem<strong>os</strong> que há uma coincidência, a alma ou o eu seriam capazes de, apesar da<br />

debilidade d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> físic<strong>os</strong> da criança, dep<strong>os</strong>itar no olhar toda a carga<br />

emocional que a experiência da amamentação do rival desperta.<br />

Lacan ([1938] 2003), no texto Os complex<strong>os</strong> familiares, utiliza a passagem<br />

acima para ilustrar a experiência do ciúme, em seu estado embrionário.<br />

Nele, Lacan, retomando Freud, apresenta a instituição familiar como o núcleo de<br />

toda a construção subjetiva. Divide o texto em três partes, que dizem respeito à<br />

relação entre o sujeito e a família. O momento inicial é o complexo de desmame,<br />

o segundo, o complexo de intrusão, e a seguir o complexo de Édipo. Ou seja,<br />

apresenta o mais básico da intricada experiência humana para a psicanálise.<br />

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Otávio Augusto Winck Nunes<br />

Mas, para o que interessa aqui discutir, irei me deter no segundo momento,<br />

no complexo de intrusão, o recorte que me parece necessário para<br />

problematizar a questão do ciúme entre irmã<strong>os</strong>, especificamente, de gême<strong>os</strong> 5 .<br />

Lacan pergunta-se, ao final do complexo de intrusão, se a fórmula que ele apresenta<br />

seria confirmada pelo estudo de gême<strong>os</strong> 6 , mas, afinal, de que intrusão se<br />

trataria n<strong>os</strong> cas<strong>os</strong> de gemelaridade? Na medida em que o tempo, em toda a sua<br />

extensão, em que se dá a intrusão é aparentemente suprimido ou suspenso?<br />

Referimo-n<strong>os</strong>, normalmente, a gême<strong>os</strong> quando se fala de crianças nascidas<br />

no mesmo parto, o que poderia aparentar ser um nascimento no mesmo<br />

tempo, mas não é precisamente isso que ocorre. Então, como acontece em<br />

outras fratrias, estabelece-se uma série, o que nasceu primeiro e o que nasceu<br />

após; o primeiro e o segundo, ou o primeiro e o último, o primogênito e o caçula.<br />

Enfim, a linguagem bem que tenta recobrir a ordem que a natureza propõe a<strong>os</strong><br />

human<strong>os</strong>, e nessa tentativa acaba produzindo seus efeit<strong>os</strong>. O que poderia ser<br />

tomado como igual, desde o início já se m<strong>os</strong>tra diferente.<br />

Inventariando o imaginário familiar, não é difícil encontrar a ideia de que,<br />

naquelas famílias em que existam irmã<strong>os</strong>, particularmente gême<strong>os</strong>, incida sobre<br />

eles a expectativa de que sejam amig<strong>os</strong>/companheir<strong>os</strong>/camaradas. Ou ainda,<br />

muito frequentemente, complementares. Mais especificamente, a cultura<br />

familiar invariavelmente espera que <strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> tenham uma relação marcada<br />

pela ausência de conflito, pela ausência de rivalidade, por vezes pela ausência<br />

de diferenças, por uma identificação completa. Pois bem, essa não parece ser<br />

a característica das relações fraternas, pelo men<strong>os</strong> de um bom número delas.<br />

Mas, o que será que acontece nas relações fraternas em que a consanguinidade<br />

não assegura a esperada união? As resp<strong>os</strong>tas às demandas de apaziguamento<br />

ainda podem se tornar as relações fraternas mais belic<strong>os</strong>as?<br />

Atribui-se a consanguinidade como sendo um d<strong>os</strong> limites reais a<strong>os</strong> quais<br />

é preciso deparar-se na família. Por outro lado, o nome de família poderia servir<br />

como o grande “guarda-chuva” que acoberta as divergências existentes no interior<br />

das mesmas, privilegiando a filiação. O problema é que nem um nem outro<br />

conseguem garantir a inexistência de diferenças brutais nas relações humanas,<br />

pois elas precisam de uma c<strong>os</strong>tura que garanta a manutenção d<strong>os</strong> laç<strong>os</strong>, permi-<br />

5 A etimologia latina da palavra gêmeo remete a duplo, dobrado, duplicado.<br />

6 A ciência, em geral, dep<strong>os</strong>ita no estudo de gême<strong>os</strong> expectativas muito grandes em relação à<br />

confirmação de hipóteses, pois não são pouc<strong>os</strong> <strong>os</strong> protocol<strong>os</strong> científic<strong>os</strong> que se utilizam de<br />

estud<strong>os</strong> com gême<strong>os</strong>, em especial, univitelin<strong>os</strong>, por causa da carga genética idêntica, o que<br />

pareceria esclarecer muitas questões.


Ser o mano!<br />

tindo a aproximação, sem fusão, e o afastamento sem ruptura. Ou seja, <strong>os</strong><br />

registr<strong>os</strong> do real, simbólico e imaginário exercem suas funções sem que ocorra<br />

o predomínio de um sobre o outro.<br />

Então, é no interior da cultura familiar que encontrarem<strong>os</strong> <strong>os</strong> element<strong>os</strong><br />

que poderão fornecer algumas pistas para elucidar algumas dessas questões<br />

que aparecem com bastante frequência na clínica, e que não é matéria vencida<br />

em outr<strong>os</strong> âmbit<strong>os</strong>.<br />

Assim, g<strong>os</strong>taria de propor uma apreciação sobre o tema a partir de um<br />

recorte literário. O texto é o já clássico romance Dois irmã<strong>os</strong>, de Milton Hatoum,<br />

editado em 2000. Texto e autor que ganharam inúmer<strong>os</strong> prêmi<strong>os</strong>, tal a pertinência<br />

e apropriação que a leitura do romance suscita.<br />

Na introdução do livro, poder-se-ia dizer o seu ponto zero, a questão que<br />

centraliza o romance. Zana, mãe d<strong>os</strong> gême<strong>os</strong> Yaqub (o primogênito) e de Omar<br />

(o caçula), está no leito de morte, agonizando, e enuncia em árabe (sua língua<br />

materna) a pergunta: “Meus filh<strong>os</strong> já fizeram as pazes? 7 ” (Hatoum, p. 10). A<br />

resp<strong>os</strong>ta é o silêncio. A passagem é contundente.<br />

A partir dessa introdução, o romance passa a ser dividido em capítul<strong>os</strong>.<br />

Em cada um deles é remontada toda a história dessa família, de origem libanesa,<br />

estabelecida em Manaus, comp<strong>os</strong>ta por Zana e Halim, <strong>os</strong> pais; Omar, Yaqub<br />

e Rânia, <strong>os</strong> filh<strong>os</strong>; além d<strong>os</strong> agregad<strong>os</strong>. O narrador do livro é filho de um d<strong>os</strong> dois<br />

irmã<strong>os</strong>: Yaqub ou Omar, com a empregada da família, Domingas, na verdade,<br />

para Zana, “eu (referindo-se ao narrador da história) só existia como rastro d<strong>os</strong><br />

filh<strong>os</strong> dela” (Hatoum, p. 28). A dúvida quanto à paternidade é um enigma que não<br />

se resolve. Filho de um ou do outro, d<strong>os</strong> dois?<br />

Essa dúvida atualiza, na vida adulta, a triangulação (<strong>os</strong> gême<strong>os</strong> com<br />

Domingas), característica das relações de <strong>amor</strong> experimentadas ao longo da<br />

vida d<strong>os</strong> gême<strong>os</strong> com as mulheres. A gr<strong>os</strong>so modo, personificada na infância<br />

entre <strong>os</strong> gême<strong>os</strong> e a mãe, Zana; na tenra juventude entre <strong>os</strong> gême<strong>os</strong> e Lívia,<br />

paixão de adolescência. Ou seja, a repetição situa-se entre <strong>os</strong> dois, horizontalmente,<br />

e uma mulher.<br />

Ou seja, o engate da demanda de <strong>amor</strong> frente às mulheres parece situarse<br />

sempre no registro da totalidade. Os dois amam ou são amad<strong>os</strong> ao mesmo<br />

tempo.<br />

7 A conhecida rivalidade entre árabes não é exclusividade desse povo, talvez só acentue e<br />

evidencie o que ocorre entre <strong>os</strong> laç<strong>os</strong> fratern<strong>os</strong>, como dissem<strong>os</strong> inicialmente no aspecto político,<br />

social ou religi<strong>os</strong>o.<br />

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108<br />

Otávio Augusto Winck Nunes<br />

O desenrolar da história dessa família apresenta, em diversas situações,<br />

a questão da rivalidade, que é uma das mais frequentes experiências entre<br />

irmã<strong>os</strong>, colocando em cena o que na maioria das vezes é traduzido pela disputa<br />

do <strong>amor</strong> materno. Afinal, de quem a mãe g<strong>os</strong>ta mais? Qual é o seu objeto de<br />

<strong>amor</strong> privilegiado? Questão que reaparece na disputa por Lívia. Esse episódio<br />

termina por marcar a única diferença existente na imagem entre <strong>os</strong> irmã<strong>os</strong>: uma<br />

cicatriz no r<strong>os</strong>to de Yacub, em forma de meia lua, resultado da briga com o<br />

irmão Omar. Momento que antecede e desencadeia a separação d<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong>, o<br />

grande temor do pai, Halim:<br />

Ele (o pai) teve que engolir o vexame. Esse e outr<strong>os</strong>, de Yacub e<br />

também do outro filho, Omar, o Caçula, o gêmeo que nascera pouc<strong>os</strong><br />

minut<strong>os</strong> depois. O que mais preocupava Halim era a separação<br />

d<strong>os</strong> gême<strong>os</strong>, ‘porque nunca se sabe como vão reagir depois...’.<br />

Ele nunca deixou de pensar no reencontro d<strong>os</strong> filh<strong>os</strong>, no convívio<br />

após longa separação (Hatoum, p. 12).<br />

Mesmo que essa preocupação estivesse presente desde o início, a separação<br />

torna-se inevitável:<br />

Os pais tiveram de conviver com um filho silenci<strong>os</strong>o. Temiam a<br />

reação de Yacub, temiam o pior: a violência dentro de casa. Então<br />

Halim decidiu: a viagem, a separação. A distância que promete<br />

apagar o ódio, o ciúme, e o ato que <strong>os</strong> engendrou (Hatoum, p. 23).<br />

Pode-se pensar, a partir desse momento, que há uma hesitação entre a<br />

perspectiva de uma separação “física” por assim dizer, e a tomada d<strong>os</strong> gême<strong>os</strong><br />

como um só. Como aparece na seguinte passagem em relação ao caçula: “Ele<br />

não olhou para ninguém: desfilou com um ar de filho único que não era” (Hatoum,<br />

p. 32). Ou nas palavras de Halim, o pai, em conversa com a mãe, Zana: “Ele<br />

discordava: ‘Nada disso, tu tratas o Omar como se ele f<strong>os</strong>se n<strong>os</strong>so único filho’”<br />

(Hatoum, p. 22).<br />

Essa parece ser a grande questão apresentada, a complementaridade, a<br />

formação do um, da totalidade. Elemento tão presente nas fratrias (que não se<br />

restringe a<strong>os</strong> cas<strong>os</strong> entre gême<strong>os</strong>), está na perspectiva da demanda materna<br />

de que <strong>os</strong> filh<strong>os</strong> formem Um, tomad<strong>os</strong> em uma p<strong>os</strong>ição objetal. Claro, n<strong>os</strong> cas<strong>os</strong><br />

da existência da gemeralidade isso aparece com mais força. De qualquer<br />

forma, vale lembrar aqui que, em Totem e tabu (Freud [1912-13] 1976), trata-se<br />

de algo similar, a reunião d<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> para derrotar o pai, e fazer uma nova lei.<br />

Mas, diferentemente no caso do livro Dois irmã<strong>os</strong>, a totalidade formada pel<strong>os</strong>


Ser o mano!<br />

irmã<strong>os</strong> entraria noutra vertente. Ou seja, a reunião d<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> pode ser tomada<br />

na perspectiva de ser uma resp<strong>os</strong>ta à demanda materna, como enuncia Zana? A<br />

derrota da lei paterna, que poderia provocar a separação d<strong>os</strong> filh<strong>os</strong> do corpo<br />

materno? E com isso obstaculizar a dimensão do desejo? “Alguém disse que<br />

ele era mais altivo que o irmão. Zana discordou: ‘Nada disso, são iguais, são<br />

gême<strong>os</strong>, têm o mesmo corpo e o mesmo coração’” (Hatoum, p. 19).<br />

Lacan ([1938] 2001) insiste, no texto d<strong>os</strong> Complex<strong>os</strong> familiares, que não<br />

é só a rivalidade que está presente no complexo de intrusão, mas também o que<br />

chama de identificação mental. Então, não será o apaixonamento d<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong>, a<br />

mesma p<strong>os</strong>ição tomada frente ao <strong>amor</strong> como característico dessa identificação?<br />

E que na totalização haveria um ideal comum que <strong>os</strong> congregaria?<br />

Os dois se olharam. Yacub tomou a iniciativa: levantou, sorriu sem<br />

vontade e na face esquerda a cicatriz alterou-lhe a expressão. Não<br />

se abraçaram. Do cabelo de Yacub despontava uma pequena mecha<br />

cinzenta, marca de nascença, mas o que realmente <strong>os</strong> distinguia<br />

era a cicatriz pálida e em meia-lua na face esquerda de Yacub.<br />

Os dois irmã<strong>os</strong> se encararam. Yacub avançou um passo, Halim<br />

disfarçou, falou do cansaço da viagem, d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> de separação,<br />

mas de agora em diante a vida ia melhorar. Tudo melhora depois de<br />

uma guerra (Hatoum, p. 20).<br />

Desde o estágio do espelho, Lacan anunciava que o reconhecimento da<br />

imagem do espelho como outro que não o “eu” mesmo, proporcionado pelo retorno<br />

da imagem, evidenciava que o “eu” e o “outro” se formam ao mesmo tempo.<br />

Vejam<strong>os</strong> uma passagem do romance:<br />

Agora ele estava de volta: um rapaz tão vist<strong>os</strong>o e alto quanto o<br />

outro filho, o Caçula. Tinham o mesmo r<strong>os</strong>to angul<strong>os</strong>o, <strong>os</strong> mesm<strong>os</strong><br />

olh<strong>os</strong> castanh<strong>os</strong> e graúd<strong>os</strong>, o mesmo cabelo ondulado e preto, a<br />

mesmíssima altura. Yacub dava um suspiro depois do riso, igualzinho<br />

ao outro (Hatoum, p. 13).<br />

Paul-Laurent Assoun (1998) trabalha a questão das fratrias em duas pequenas<br />

obras chamadas Frères e soeurs. Encontram<strong>os</strong> nelas o seguinte esclarecimento<br />

a esse respeito:<br />

Mas o que se revela nessa relação especular básica, é que o duplo<br />

m<strong>os</strong>tra a verdade inconsciente de uma ligação a um irmão. O irmão/ou<br />

irmã produz o efeito, essa p<strong>os</strong>sibilidade existencial que eu<br />

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Otávio Augusto Winck Nunes<br />

me confronto com ele – eu me encontro cara a cara com ele – e eu<br />

perco em dado momento o sentido d<strong>os</strong> meus limites própri<strong>os</strong>, ou<br />

parece que ele invade meus própri<strong>os</strong> limites. Na tentação de antecipar<br />

o duplo com seus gest<strong>os</strong> e p<strong>os</strong>turas, é o ser mesmo desse<br />

desdobramento que está em causa (Assoun, 1998, p. 22) (Tradução<br />

do autor).<br />

Poderia se pensar no olhar materno, em seu caráter demandante, como<br />

o que proporciona o recobrimento existente nas diferenças entre irmã<strong>os</strong>? E<br />

teríam<strong>os</strong> como resp<strong>os</strong>ta a essa demanda, o aparecimento sintomático e gozante<br />

do ciúme? Ou seja, a construção de uma lógica inconsciente do laço fraterno,<br />

que poderia ser lida como: um e outro? Com isso evidenciado, o aparecimento<br />

do objeto terceiro, fálico, e nesse caso, dentro do registro da neur<strong>os</strong>e. Mas que,<br />

também, poderia ser levada ao caso mais extremo, no ciúme, pela via da exclusão,<br />

ou eu ou ele? Que apareceria no campo da psic<strong>os</strong>e?<br />

Na obra Dois irmã<strong>os</strong>, um recorte poderia ilustrar essa questão, pela via<br />

do olhar da irmã, nesse caso, num deslocamento do olhar materno:<br />

Rânia hipnotizava-se com a presença do irmão: uma réplica quase<br />

perfeita do outro, sem ser o outro. Ela o observava, queria notar<br />

alguma coisa que o diferenciasse do Caçula. Olhou-o de perto, de<br />

muito perto, de vári<strong>os</strong> ângul<strong>os</strong>; percebeu que a maior diferença<br />

estava no silêncio do irmão recém-chegado (Hatoum, p. 17).<br />

O silêncio evocado para marcar uma diferença entre <strong>os</strong> gême<strong>os</strong> não faria<br />

evidenciar a questão da imagem? No início do romance a pergunta de Zana<br />

(“Meus filh<strong>os</strong> já fizeram as pazes?”) fica sem resp<strong>os</strong>ta, impera o silêncio. Se a<br />

hipótese que indica o olhar materno como recobridor das diferenças entre <strong>os</strong><br />

irmã<strong>os</strong> procede, produzindo o ciúme como resp<strong>os</strong>ta sintomática, teríam<strong>os</strong> que<br />

pensar numa outra forma de produzir diferença, em que especularidade que<br />

provoca a confusão entre o um e o outro não se fixe, nem pelo silêncio, nem pela<br />

cicatriz.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ASSOUN, Paul-Laurent. Leçons psychanalytiques sur frères et soeurs. Tome 1. Le<br />

lien inconscient. Paris: Anthrop<strong>os</strong>, 1998.<br />

FREUD, Sigmund. <strong>Sobre</strong> as teorias sexuais infantis [1908]. In: ______. Edição<br />

standard das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 9.<br />

p. 213-228.<br />

______. Totem e tabu [1912-13]. In: ______. _____. v. 13. p. 17-193.


Ser o mano!<br />

______.Alguns mecanism<strong>os</strong> neurótic<strong>os</strong> no ciúme, na paranoia e no hom<strong>os</strong>sexualismo<br />

[1922]. In: ______. _____. v. 18. p. 269-281.<br />

HATOUM, Milton. Dois irmã<strong>os</strong>. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.<br />

LACAN, Jacques. Complex<strong>os</strong> familiares [1938]. In: ______. Outr<strong>os</strong> escrit<strong>os</strong>. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 29-90.<br />

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Coleção <strong>os</strong> Pensadores. São Paulo: Editora Nova<br />

Cultural, 1996.<br />

SARAMAGO, J<strong>os</strong>é. Caim. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.<br />

Recebido em 20/10/2009<br />

Aceito em 30/11/2009<br />

Revisado por Deborah Pinho<br />

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