12.07.2015 Views

A cidade sob a visão lírica de Manuel Bandeira - Eutomia

A cidade sob a visão lírica de Manuel Bandeira - Eutomia

A cidade sob a visão lírica de Manuel Bandeira - Eutomia

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Maria José <strong>de</strong> MirandaIUm breve relato crítico <strong>sob</strong>re a <strong>cida<strong>de</strong></strong>Segundo o estudioso francês Michel <strong>de</strong> Certeau, a <strong>cida<strong>de</strong></strong> é o lugar on<strong>de</strong> aenorme massa se mobiliza <strong>sob</strong> o olhar. “Ela se modifica em texturologiaon<strong>de</strong> coinci<strong>de</strong>m os extremos da ambição e da <strong>de</strong>gradação[...]”(CERTEAU, 1994, p. 169). É o lugar que, na contemporaneida<strong>de</strong>, comporta amaioria da população, ou seja, cerca <strong>de</strong> oitenta por cento das pessoas vive nomundo urbano. São milhares <strong>de</strong> praticantes do espaço que circulam pelas ruas ebecos todos os dias, e estes se beneficiam daquilo que as gran<strong>de</strong>s <strong>cida<strong>de</strong></strong>spo<strong>de</strong>m oferecer, mas também sofrem as conseqüências da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.Assim, a <strong>cida<strong>de</strong></strong>, por um lado, é um lugar <strong>de</strong> atração pelo que ela tem <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, pelo progresso e pela sua prati<strong>cida<strong>de</strong></strong>, o que à primeira vistapo<strong>de</strong> parecer mais interessante do que oferecia a vida no campo; e por outro, étambém um lugar <strong>de</strong> repulsa pelos vários sintomas contemporâneos que fazemdas megalópoles um lugar on<strong>de</strong> o ser humano não mais se encontra, antes, éenvolvido pela individualida<strong>de</strong> que o impossibilita <strong>de</strong> ver e se comunicar com ooutro. Sintomas que geram o caos urbano mo<strong>de</strong>rno e contemporâneo.Diante do caos instalado pelas gran<strong>de</strong>s <strong>cida<strong>de</strong></strong>s em que o objeto se<strong>sob</strong>repõe à subjetivida<strong>de</strong>, os praticantes, segundo o estudioso da <strong>cida<strong>de</strong></strong> IuriLotman, em seu livro A estrutura do texto artístico (1978, p. 361), “são homensque se movimentam e se enten<strong>de</strong>m por espaços”, são, portanto, criadores da<strong>cida<strong>de</strong></strong> que é, como ressalta tecnicamente o arquiteto Kevin Lynch no livro Aimagem da <strong>cida<strong>de</strong></strong> (1999, p. 101), “[...] uma organização mutável e polivalente, umespaço com muitas funções, erguido por muitas mãos num período <strong>de</strong> temporelativamente rápido.” Logo, estes agentes são importantes na transformação<strong>de</strong>ste espaço que é modificado da forma possível a cada um. Assim, na medidaem que caminham, recriam o espaço urbano da melhor maneira, ocorrendo,então, uma espécie <strong>de</strong> mapeamento <strong>de</strong>sse espaço citadino:Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 409


Le Système Filtre JUWEL BioflowLe Système Filtre JUWEL Bioflow est un système <strong>de</strong> filtration biologique à 2 phasesdont les composantes sont parfaitement adaptées les unes avec les autres.L'installation du filtre dans l'aquarium rend les raccor<strong>de</strong>ments <strong>de</strong> tuyaux inutiles etexclut les risques <strong>de</strong> fuite. La puissance <strong>de</strong> la pompe n'est pas réduite par <strong>de</strong>s raccords<strong>de</strong> tuyaux, <strong>de</strong>s tuyaux d'aspiration et autres.La capacité <strong>de</strong> la pompe est conçue <strong>de</strong> sorte <strong>de</strong> garantir une filtration biologiqueparfaite car l'eau passera au travers du matériel filtrant <strong>de</strong> manière optimale.L'important volume du filtre assure une excellente filtration mécanique et permet <strong>de</strong>s'aménager <strong>de</strong> larges intervalles <strong>de</strong> nettoyage.La conception du système filtre vous permet l'accès rapi<strong>de</strong> aux différentescomposantes; chauffage, pompe et milieux filtrants, ce qui permet une manipulationpratique lors du nettoyage et <strong>de</strong> la maintenance du système filtre.Bioflow SuperBioflow 3.0Bioflow 6.0Bioflow 8.0Ouate filtrante (blanche)Cette ouate joue le rôle <strong>de</strong> premier filtre mécanique. Elle empêche les particules <strong>de</strong>saleté grossières telles que les morceaux <strong>de</strong> plantes mortes <strong>de</strong> pénétrer plusprofondément dans le filtre.Mousse <strong>de</strong> charbon (noire)Les mousses enrichies <strong>de</strong> charbon actif lié purifient l'eau <strong>de</strong>s métaux lourds toxiqueset <strong>de</strong>s impuretés organiques.Mousse-dénitrateur (verte)L'éponge anti-nitrates contient <strong>de</strong>s microorganismes qui sont en mesure <strong>de</strong> dégra<strong>de</strong>rles nitrates. Dans ce cadre, le filtre JUWEL procure un milieu particulièrementfavorable.Mousses filtrantes à larges pores (bleues)Les mousses filtrantes à larges pores placées au milieu du filtre se chargent <strong>de</strong> lapurification biologique <strong>de</strong> l'eau grâce aux cultures <strong>de</strong> bactéries qui s'y établissent.Mousses filtrantes à pores fins (bleues)Les mousses filtrantes à pores fins qui se trouvent dans la partie inférieure du filtreretiennent même les matières en suspension les plus petites et garantissent laproduction d'une eau claire comme du cristal.CiraxLe matériau filtrant très poreux produit un nettoyage biologique efficace grâce à latrès gran<strong>de</strong> surface et assure une qualité <strong>de</strong> l'eau optimale.Bioflow 3.0Bioflow 6.0Bioflow 8.0Installation du filtre dans votre aquariumLe filtre JUWEL est conçu pour être installé dans l'angle arrière droit <strong>de</strong> votreaquarium.Nous vous conseillons <strong>de</strong> retirer tous les éléments du filtre avant <strong>de</strong> l'installer.Nous avons joint à cette livraison <strong>de</strong> la silicone garantissant une installation sûre dufiltre. Veuillez appliquer respectivement 4 points <strong>de</strong> silicone sur les côtés indiqués surle <strong>de</strong>ssin.Vous <strong>de</strong>vez avoir vidé l'aquarium afin <strong>de</strong> pouvoir essuyer les vitres à sec.Le filtre doit être placé dans l'aquarium <strong>de</strong> sorte qu'il dépasse <strong>de</strong> 1 cm au moins au<strong>de</strong>ssus<strong>de</strong> la surface <strong>de</strong> l'eau lorsque l'aquarium est rempli.Pressez le boîtier du filtre sur les côtés et la vitre arrière et le maintenir durantquelques minutes.Laissez ensuite sécher la silicone durant 24 heures env. afin <strong>de</strong> garantir la bonnefixation du filtre.SILIKON3


Maria José <strong>de</strong> Mirandahumano encontre a si próprio e o outro. E em meio a estas características queestimulam a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, o indivíduo vive, então, em constante busca poralgo perdido, o que torna sua vida ainda mais angustiante, uma vez que talbusca é vã. Porém, entre a angústia e a ilegibilida<strong>de</strong> urbanas, o homem semovimenta e se enten<strong>de</strong> nesse ambiente, já que esta é a maneira que ele tem <strong>de</strong><strong>sob</strong>reviver no labirinto racional geométrico que é a <strong>cida<strong>de</strong></strong>.Espaço que mais parece feito para confundir e <strong>de</strong>sorientar quem passapor ele, posto que a fixi<strong>de</strong>z do cristal se contrapõe à flui<strong>de</strong>z da chama,produzindo a idéia <strong>de</strong> uma enorme teia que se forma <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse espaço que éautoritário, que produz a violência e simboliza o po<strong>de</strong>r, muitas vezes<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadamente, dando a visão <strong>de</strong> labirinto e, portanto, <strong>de</strong> confusão e, comobem observa Gomes (1994, p. 25), “esta <strong>cida<strong>de</strong></strong> geometrizante, clara nopensamento <strong>de</strong> seus planejadores, torna-se obscura, porque feita paraconfundir, <strong>de</strong>sorientar.”E se a <strong>cida<strong>de</strong></strong> é um labirinto, fica ainda mais evi<strong>de</strong>nte que este é tambémum espaço <strong>de</strong> estranhamento e propício à cegueira, já que não se tem uma visãototal <strong>de</strong>ste espaço, o que caracteriza as práticas da <strong>cida<strong>de</strong></strong> habitada (CERTEAU,1994, p, 171). E mesmo labiríntico, este é o principal local habitado naatualida<strong>de</strong>, pois ele já é uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fato, que atrai e impe<strong>de</strong>, que tornainconcebível o olhar e o julgamento externos. O que o torna um universoreunido em um espaço único e que fala <strong>de</strong> todas as épocas convivendo nopresente <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado em que dialogam, ou tentam dialogar inúmeras vozes, enesse sentido, o crítico italiano Alfonso Berardinelli (2007, p. 167) expõe que “a<strong>cida<strong>de</strong></strong> é multiplicação <strong>de</strong> planos espaciais e temporais, uma cena em quedialogam vozes heterogêneas”.As várias vozes dialogizantes em um espaço e tempo tão <strong>de</strong>nsosintensifica a incompreensão do indivíduo diante da <strong>cida<strong>de</strong></strong> Babel dita porGomes (1994), metáfora que se apresenta na imagem das gran<strong>de</strong>s <strong>cida<strong>de</strong></strong>s, asquais são sinônimo <strong>de</strong> confusão, esfacelamento da comunicação e do ser, eRevista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 411


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão lírica <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>iraconseqüentemente, da subjetivida<strong>de</strong> ― que dá lugar ao objeto ― e daindividualida<strong>de</strong>. E o homem encontra-se diante do caos urbano original, que sematerializa nas megalópoles <strong>de</strong> hoje.Nesse sentido, os habitantes da <strong>cida<strong>de</strong></strong> se vêem em meio à incerteza, àfalta <strong>de</strong> comunicação, à violência e se encontram solitários sem armas para lutarcontra os sintomas da <strong>cida<strong>de</strong></strong> mo<strong>de</strong>rna e contemporânea.E <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse emaranhado complexo a missão da literatura tem sido,<strong>sob</strong>retudo nas últimas décadas, o <strong>de</strong> perceber os movimentos urbanos e tornáloslegíveis a partir do imaginário. Assim, a arte literária é capaz <strong>de</strong> trazer paraa experiência textual, a cena mo<strong>de</strong>rna, que se baseia na fragmentação do ser namultidão.A literatura é, pois, a melhor forma <strong>de</strong> captar os movimentos do espaçoconcreto e do aglomerado humano típicos da <strong>cida<strong>de</strong></strong>, on<strong>de</strong> a multidão estáausente <strong>de</strong> si mesma, é anônima e fragmentada na condição <strong>de</strong> habitante doambiente urbano. Observando ainda que a arte literária não se <strong>de</strong>svincula davida, ela tem também a função <strong>de</strong> trazer à tona os conflitos humanos, que até oinício do século XX foram percebidos mais fortemente <strong>de</strong>ntro do espaço rural,uma vez que este era o lugar bastante habitado em tal período, (no caso daliteratura e vida brasileiras). Porém, assim que a <strong>cida<strong>de</strong></strong> se tornou o espaço maishabitado, ou seja, com a chegada da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, também a literatura voltouseus olhares para o espaço urbano a fim <strong>de</strong> retratar o conflito do homem nadureza do espaço concreto. E como afirma Antonio Candido (2002, p. 83; grifodo autor), “[...] a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua comtoda sua gama [...]”. A literatura representa, pois, a vida.Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 412


Maria José <strong>de</strong> MirandaIIA <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão da poesiaO caso <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>iraSendo a <strong>cida<strong>de</strong></strong>, passível <strong>de</strong> leitura somente no plano do imaginário, ouseja, quem consegue fazer uma leitura possível <strong>de</strong>ste espaço é o escritor que ofaz a partir do que ele po<strong>de</strong> ver. Então, é através da literatura, que a <strong>cida<strong>de</strong></strong> vemsendo representada e, na poesia, esse acontecimento vem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIXcom Charles Bau<strong>de</strong>laire e Walt Whitman, que sabiamente trouxeram, por meioda imaginação poética, a visibilida<strong>de</strong> da <strong>cida<strong>de</strong></strong> e da megalópole mo<strong>de</strong>rna, oque foi, para a época, um fenômeno relevante e especial porque <strong>de</strong>svelaramesse lugar <strong>de</strong> estranhamento, a partir do imaginário, mostrando com veemênciaa realida<strong>de</strong> citadina. Posto que, ao falarem poeticamente das experiênciasurbanas, revelaram a <strong>cida<strong>de</strong></strong>.Vários são os escritores brasileiros da prosa e da poesia que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oséculo XX perceberam e se sensibilizaram com a situação complexa da vidaurbana, e cada um a seu modo, representou e tem representado essa angústiado espaço mais habitado na atualida<strong>de</strong>. E um <strong>de</strong>sses escritores foi o poetapernambucano mo<strong>de</strong>rnista <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>ira, que iniciou sua trajetória poética<strong>sob</strong> a ótica parnaso-simbolista, mas que soube, como poucos, transcen<strong>de</strong>r-se a sipróprio tanto nas situações pessoais quanto estéticas. Foi também o primeiropoeta brasileiro a fazer o uso do verso livre e, mesmo conhecendo o risco quecorria ao optar por tamanha inovação, não se esquivou e assim abriu caminhospara muitos outros poetas. É o que também observa o poeta e crítico AdrianoEspínola (1995, p. 120), que ao falar <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira, disse: “[...] ele possibilitou ofortalecimento <strong>de</strong> toda uma concepção e prática poéticas, capazes até <strong>de</strong>popularizar a própria poesia mo<strong>de</strong>rnista entre nós.” Ban<strong>de</strong>ira queria o poemacom intencionalida<strong>de</strong>s, ou seja, além <strong>de</strong> ser lírico, é claro, e falar da experiênciaRevista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 413


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão lírica <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>irapessoal, o poema <strong>de</strong>via, principalmente, atingir o outro, alargando-se nohumano.Dessa forma, o poeta capta o conflito do ser humano, que <strong>sob</strong>revive na<strong>cida<strong>de</strong></strong>, espaço que parece não permitir o encontro do eu consigo mesmo. Eentão em “Meninos Carvoeiros”, <strong>de</strong> O Ritmo dissoluto (1924-1990), o poetaescreve:Os meninos carvoeirosPassam a caminho da <strong>cida<strong>de</strong></strong>.― Eh, carvoero!E vão tocando os animais com um relho enorme.Os burros são magrinhos e velhos.Cada um leva seis sacos <strong>de</strong> carvão <strong>de</strong> lenha.A aniagem é toda remendada.Os carvões caem.(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se comum gemido.)― Eh, carvoero!Só mesmo estas crianças raquíticasVão bem com estes burrinhos <strong>de</strong>sca<strong>de</strong>irados.A madrugada ingênua parece feita pra eles...Pequenina, ingênua miséria!Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!Eh, carvoero!Quando voltam, vêm mor<strong>de</strong>ndo num pão encarvoado,Encarapitados nas alimárias,Apostando corrida,Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos<strong>de</strong>samparados!Ban<strong>de</strong>ira, na época em que escreveu O Ritmo dissoluto, já morava na ruado Morro do Curvelo e “Meninos Carvoeiros” foi um dos poemas em que expôsRevista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 414


Maria José <strong>de</strong> Mirandasuas primeiras experiências <strong>sob</strong> a influência <strong>de</strong>sse espaço do Morro, no Rio <strong>de</strong>Janeiro. Experiências mundanas, oriundas da rua, as quais contribuíram paraessa temática do espaço urbano conflituoso, porém, trata-se ainda <strong>de</strong> um espaçoque não é um gran<strong>de</strong> centro urbano. Das janelas <strong>de</strong> seu apartamento o poetaobservava a rua e suas características e se comovia com a situação dospraticantes da <strong>cida<strong>de</strong></strong> 3 que a preenchem com o humano. Logo, o Morro doCurvelo trouxe ao poeta aquilo que a leitura <strong>de</strong> todos os gran<strong>de</strong>s livros não écapaz <strong>de</strong> substituir: a rua. E como participante <strong>de</strong>ste espaço, ele se irmana aesses seres <strong>de</strong>samparados pelos gran<strong>de</strong>s centros e, por meio da palavra fraterna,propõe a busca <strong>de</strong> um estado social mais justo e solidário em que talvez um diapossam ter a esperança <strong>de</strong> encontrar-se a si mesmos.Em meio a essa busca, o sujeito poético observa os passantes que vão “acaminho da <strong>cida<strong>de</strong></strong>”, vão mapeando esse espaço por on<strong>de</strong> passam. São idas evindas num movimento que começa ainda <strong>de</strong> madrugada, trajeto queprovavelmente se repete todos os dias. Ban<strong>de</strong>ira exibe com perfeição a<strong>de</strong>scrição objetiva das cenas “Os burros não magrinhos e velhos” / “Cada umleva seis sacos <strong>de</strong> carvão e lenha” / “os carvões caem”; além dos animais, as“crianças são raquíticas” na “pequenina, ingênua miséria” e são “Adoráveiscarvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!”.Estes pequeninos seres são, <strong>de</strong> alguma forma, agentes transformadoresdo lugar on<strong>de</strong> vivem e são, por sua vez, transformados em “pequenosespantalhos <strong>de</strong>samparados” pela exclusão da vida citadina. E ao caminharem,revelam uma suposta falta <strong>de</strong> lugar que os acolha dignamente, e como bemdisse Certeau (1994, p. 179): “caminhar é ter falta <strong>de</strong> lugar”. Mas em meio à tãodura luta essas crianças trabalhadoras ainda conseguem fazer do ofício, motivo<strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras, pois voltam do trabalho “Apostando corrida,” / “Dançando,bamboleando nas cangalhas [...]”. Isso, provavelmente, é o que os salva darealida<strong>de</strong> e os faz suportar a falta <strong>de</strong> espaço e ainda <strong>sob</strong>reviver a essa marca da<strong>cida<strong>de</strong></strong> mo<strong>de</strong>rna e contemporânea que é a exclusão.Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 415


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão lírica <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>iraO poeta vê a <strong>cida<strong>de</strong></strong>, ou seja, representa a urbe por meio da chama, isto é,pelas pessoas, que neste caso são os marginalizados. É pela flui<strong>de</strong>z da chama,do humano que os versos <strong>de</strong> “Meninos Carvoeiros” apreen<strong>de</strong>m o espaçourbano. O poema traz, nas imagens <strong>de</strong>stes pequenos maltrapilhostrabalhadores, o que a <strong>cida<strong>de</strong></strong> normalmente escon<strong>de</strong> ou rejeita, já que imagens<strong>de</strong>sse tipo não comungam com a idéia <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e, por isso mesmo, secontrapõem à visão capitalista, restando-lhes apenas a margem. Idéia essa que érecorrente em vários momentos da poesia ban<strong>de</strong>iriana, e que será aindaabordada mais à frente.Por este viés, <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>ira que antes tinha como espaço a natureza euma subjetivida<strong>de</strong> autobiográfica muito particular, agora fala do espaço da ruae da objetivida<strong>de</strong> lírica. Então, o poeta pernambucano, como afirma Arrigucci(2000, p. 11), “é dono <strong>de</strong> um modo inconfundível <strong>de</strong> dizer as coisas quepretendia, com domínio completo do ofício, com emoção na justa medida donecessário ao assunto e <strong>de</strong>sperto para o mundo em torno”.Condições que permitiram ao poeta trazer à tona sua arte poética que étambém amor às realida<strong>de</strong>s humilhadas, logo, sua poesia é a outra voz a clamarpelo outro que tem sua voz sufocada pelos sintomas da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e, nessesentido, diz Octávio Paz:Todos os poetas ouvem a voz outra. É sua e é alheia, é <strong>de</strong> ninguém e é<strong>de</strong> todos. Nada distingue o poeta dos outros homens e mulheres,salvo esses momentos ― raros, embora freqüentes ― em que, sendoele mesmo, é outro. (PAZ, 1993, p. 140; grifos do autor).E se o poeta é ouvidor da voz dos pequenos, sua obra é certamente um grito <strong>de</strong>alerta diante da socieda<strong>de</strong> urbana mo<strong>de</strong>rna e contemporânea, em que o ser vivea individualida<strong>de</strong> e está esfacelado. Idéia que dialoga também com a do filósofoalemão Theodor Adorno em seu texto “Lírica e Socieda<strong>de</strong>”, que expõe:O conteúdo <strong>de</strong> um poema não é mera expressão <strong>de</strong> emoções eexperiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticasquando, exatamente em virtu<strong>de</strong> da especificação <strong>de</strong> seu tomar-formaRevista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 416


Maria José <strong>de</strong> Mirandaestético, adquirem participação no universal. (ADORNO, 1983, p.193-194).A poesia que nasceu em primeira pessoa e que era a pura manifestaçãoda emoção <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mundo mágico criado por ela mesma, a partir damo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>spertou interesse pela realida<strong>de</strong> e, por isso, encontra-seenvolvida pelo outro. E o homem escreve porque o mundo apela para ele eentão, este, por meio <strong>de</strong> sua obra <strong>de</strong> arte, renomeia esse mundo. Logo, po<strong>de</strong>-sedizer que além <strong>de</strong> manifestar a realida<strong>de</strong>, a arte tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> reler e recriar arealida<strong>de</strong>, e no caso da poesia, a ela pertence, a partir da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, umsujeito que é híbrido, porque ao falar <strong>de</strong> si fala da experiência humana. E no quetange o estritamente humano, Ban<strong>de</strong>ira escreve “Poema tirado <strong>de</strong> uma notícia<strong>de</strong> jornal”, <strong>de</strong> Libertinagem (1930-1990):João gostoso era carregador <strong>de</strong> feira-livre e morava no morro da Babilônia[barracão sem número.Uma noite ele chegou no bar Vinte <strong>de</strong> NovembroBebeuCantouDançouDepois se atirou na lagoa Rodrigo <strong>de</strong> Freitas e morreu afogado.Nesse poema, Ban<strong>de</strong>ira transforma uma reles notícia num lirismocomposto por versos totalmente livres, o que se comprova logo no primeiroolhar, pois, o primeiro e último versos são bem maiores que os <strong>de</strong>maisformados apenas por um verbo, indicando várias ações do sujeito. As imagenssão rápidas e precisas como a prati<strong>cida<strong>de</strong></strong> do noticiário, porém ao se tornarpoema, a notícia per<strong>de</strong> sua brevida<strong>de</strong> e dura ao transcen<strong>de</strong>r o tempo. E naspalavras <strong>de</strong> Arrigucci (1990, p. 90), “raras vezes Ban<strong>de</strong>ira conseguiu tanto <strong>de</strong>tão pouco”. O poeta volta seu olhar para o drama do homem João Gostoso queé um verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>svalido no meio urbano da <strong>cida<strong>de</strong></strong> gran<strong>de</strong>, pois este é maisum dos excluídos na <strong>cida<strong>de</strong></strong> mo<strong>de</strong>rna.Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 417


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão lírica <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>iraComo acreditava o poeta, a poesia está em tudo, inclusive naquilo que éprosaico e fugaz como a matéria do jornal e, em pouquíssimos versos, Ban<strong>de</strong>iracomprova sua tese ao poetizar tal situação. Tem-se, então, nesses versos, orelato da vida <strong>de</strong> um e sujeito simples “carregador <strong>de</strong> feira-livre”, porémsensual, e que vai a um bar para aliviar a aspereza <strong>de</strong> sua quase imperceptívelvida, on<strong>de</strong> bebe, canta, dança e <strong>de</strong>pois da alegria última, banalmente morreafogado.O leitor é convidado a a<strong>de</strong>ntrar os versos e se a comover com a situaçãosocial e existencial <strong>de</strong> João Gostoso que é mais um na multidão e que estásozinho, pois esse <strong>de</strong>svalido pratica as ações sem a presença <strong>de</strong> um outro.Apenas o leitor <strong>de</strong>sempenha esse papel <strong>de</strong> receptor da linguagem, ouvinte,companheiro e, que logo se compa<strong>de</strong>ce com tamanha banalida<strong>de</strong> da vida breveque foi possível a esse praticante da <strong>cida<strong>de</strong></strong> sem esperança.A <strong>cida<strong>de</strong></strong> gran<strong>de</strong> se apresenta como um não-lugar on<strong>de</strong> João Gostoso nãotem nem mesmo um <strong>sob</strong>renome que o diferencie dos <strong>de</strong>mais, que realmente onomeie e que o torne digno. E Ban<strong>de</strong>ira, nessa sua fase madura <strong>de</strong> Libertinagem,e com seu gosto refinado pelo “humil<strong>de</strong> cotidiano” capta, como em muitosoutros momentos, o instante poético tirado do banal cotidiano <strong>de</strong>sse pobrehomem, instante do agora que se torna eterno ao entrar na poesia. Instante quefala, ao mesmo tempo, do que é objetivo e do que é humano. Assim,A poesia é uma metafísica instantânea. Num curto poema, ela <strong>de</strong>vedar uma visão do universo e o segredo <strong>de</strong> uma alma, um ser eobjetos, tudo ao mesmo tempo. Se segue simplesmente o tempo davida, ela é menos que esta; só po<strong>de</strong> ser mais que a vida imobilizandoa,vivendo no próprio lugar a dialética das alegrias e das dores.(BACHELARD, 2007, p. 99).Este curto poema fala das alegrias e das dores <strong>de</strong> alguém e <strong>de</strong> todos aomesmo tempo, porque traz o ser humano para sua pequena estrutura que étambém ampla, o que proporcionou ao poeta a síntese da vida humana que é<strong>de</strong>nsa e complexa. Dessa forma, esse instante poético é complexo, comove,Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 418


Maria José <strong>de</strong> Mirandaprova, convida, consola, é espantoso e familiar, tudo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma mo<strong>de</strong>radasimpli<strong>cida<strong>de</strong></strong> ban<strong>de</strong>iriana. Densida<strong>de</strong> também presente em “O Beco”, <strong>de</strong> BeloBelo (1948-1990):Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?― O que vejo é o beco.Aparentemente um ínfimo poema pela brevida<strong>de</strong> estrutural e pelo tema,mas é este repleto <strong>de</strong> sutileza e objetivida<strong>de</strong>, pois em apenas dois versos,Ban<strong>de</strong>ira relata a cena urbana com um modo singular e com a percepção domomento poético. O sujeito poético não se importa mais com “a paisagem, aGlória, a baía e a linha do horizonte”, imagens que representariam asubjetivida<strong>de</strong>, antes, ele mais parece estar num beco sem saída, porém, aotomar consciência <strong>de</strong> sua situação e reconhecer-se no beco ele passa a serconhecedor do que o limita e assim fun<strong>de</strong>-se no objeto, que é a idéia maisprecisa do poema, bem como do mundo mo<strong>de</strong>rno e contemporâneo.A subjetivida<strong>de</strong> dá lugar ao objeto e o sujeito se mistura a esse objeto ou,como cita Gomes (1994. p. 30; grifo do autor), “o sujeito do discurso <strong>de</strong>sloca-sedo lirismo subjetivo para fixar-se objetivamente no ‘cultural’ [...]”. No mínimo,o sujeito está fragmentado e anda lado a lado com o objeto, característica daextrema individualida<strong>de</strong> humana. O sujeito está ali “aprisionado” pelo espaço,contudo, isso lhe basta e, portanto, não há a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> evasão <strong>de</strong>ssacondição porque o sujeito e o objeto são apenas um. E se para Ban<strong>de</strong>ira, a poesiaencontra-se no chinelo ou no que é elevado, se ela é <strong>de</strong> bar ou <strong>de</strong> capela, ouainda, nas palavras <strong>de</strong> Espínola (1995, p. 127), “se encontra passeando pela<strong>cida<strong>de</strong></strong> entre a realida<strong>de</strong> e a imagem das coisas”, aqui ela está no beco e <strong>de</strong>svelaeste espaço também revelador da exclusão. Marca que é escancarada no poema“O Bicho” ainda <strong>de</strong> Belo Belo:Vi ontem um bichoNa imundície do pátioRevista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 419


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão lírica <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>iraCatando comida entre os <strong>de</strong>tritos.Quando achava alguma coisa,Não examinava nem cheirava:Engolia com vora<strong>cida<strong>de</strong></strong>.O bicho não era um cão,Não era um gato,Não era um rato.O bicho, meu Deus, era um homem.Ao falar da poesia <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Ilza Matias <strong>de</strong> Sousa, em seutexto “Paulicéia <strong>de</strong>svairada: a poética da <strong>cida<strong>de</strong></strong>” (1995, p. 165), observa que,pelo imaginário, esse pensador do Mo<strong>de</strong>rnismo brasileiro atinge o coletivo eresgata a origem da <strong>cida<strong>de</strong></strong>, só possível pela forma literária. Idéia tambémverda<strong>de</strong>ira em Ban<strong>de</strong>ira, que, assim como Mário, soube sensivelmente <strong>de</strong>svelara subjetivida<strong>de</strong> ― mesmo que estilhaçada ― individual e coletiva, percebendoque o caos atinge a todos. Todos são vítimas das conseqüências mo<strong>de</strong>rnas,conseqüências <strong>de</strong>sastrosas e irreparáveis que coloca, sem hesitar, o ser àmargem. Mas o poeta faz o caminho inverso e enxerga o que o capitalismoexclui, colocando-se à escuta <strong>de</strong>sse ser marginalizado.E como elabora Jorge koshiyama, (2007, p. 81), “ler um poema é colocarseà escuta <strong>de</strong> um outro ser humano, não apenas <strong>de</strong> uma voz.”. A escuta nessecaso é dolorosa e <strong>de</strong>sperta a compaixão por este ser inominado que mais pareceum bicho do que propriamente humano. Trata-se, pois, <strong>de</strong> uma situaçãodrástica e ― sujeito poético, poeta e leitor, enfim, o ser humano ― está à escuta<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>svalido e todos se encontram diante <strong>de</strong> um mal-estar vivido pelametrópole mo<strong>de</strong>rna e contemporânea provocado pelo capitalismo, situação quetem ocorrido ao largo dos dois últimos séculos e continua acentuada no início<strong>de</strong>ste. A humanida<strong>de</strong> está cega pela alienação, pelo caos urbano, e nesse sentidorelata o crítico André Bueno:Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 420


Maria José <strong>de</strong> MirandaDes<strong>de</strong> o seu sentido mais genérico, o terno alienação <strong>de</strong>signa muito daexperiência urbana, mo<strong>de</strong>rna e contemporânea. Po<strong>de</strong> ser, e tem sidousado para indicar as crises e os conflitos <strong>de</strong> sujeitos sociais cindidos,fragmentados, sem raízes, à <strong>de</strong>riva, muitas vezes anônimos eexpostos à violência <strong>de</strong> uma vida cotidiana burocrática e impessoal,que parece ir muito além <strong>de</strong> qualquer entendimento ou controlehumanos. (BUENO, 2000, p. 89; grifos do autor).Tem-se então, em “O Bicho”, um imaginário que é forte e recorrente,revelando a impotência do homem diante da completa forma <strong>de</strong> exclusãocausada pelo espaço urbano, uma vez que o ser é privado das mínimascondições <strong>de</strong> vida humana. Ele cata no lixo o que vai comer e, sem examinar,<strong>de</strong>vora os restos com vora<strong>cida<strong>de</strong></strong>, e, logo, é confundido com um bicho, ou,po<strong>de</strong>-se dizer que este se encontra em situação pior do que a <strong>de</strong> um animal.Recorrência direta a um mal-estar que se instaura no urbano e esfacela asubjetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>finindo uma linhagem estrutural <strong>de</strong> crítica à civilização urbanacriada pelo capitalismo.Consi<strong>de</strong>rada a perplexida<strong>de</strong> ocasional da realida<strong>de</strong> presente no poema, osujeito poético está pasmado e expressa seu sentimento porque parece nãoacreditar no que vê ― “O bicho, meu Deus, era um homem” ― e não um outroanimal qualquer que vive a revirar ambientes como este.A objetivida<strong>de</strong> das cenas é muito precisa, o que, à primeira vista, leva oleitor a pensar que se trata realmente <strong>de</strong> um animal irracional presente naquelespoucos, porém, <strong>de</strong>nsos versos, os quais representam a dura faceta do cotidiano.E no último verso há um choque ao ser revelado quem é este ínfimo vivente.Idéia que dá ao poema um tom <strong>de</strong> enfraquecimento da subjetivida<strong>de</strong> em que setem uma gran<strong>de</strong> comoção expressa pela “outra voz”, da qual vem a poesiamo<strong>de</strong>rna que, por contrariar os pensamentos <strong>de</strong>sse período, mais pareceantimo<strong>de</strong>rna:A poesia mo<strong>de</strong>rna é antimo<strong>de</strong>rna, é uma verda<strong>de</strong>ira transgressão. Anatureza do poema é antimo<strong>de</strong>rna porque expressa realida<strong>de</strong>s alheiasà mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> .A poesia é trans-histórica porque vai além daRevista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 421


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão lírica <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>irahistória, percebe uma outra realida<strong>de</strong> e parece anterior a todas asreligiões e filosofias. (PAZ, 1993, p. 144)As atitu<strong>de</strong>s dos gran<strong>de</strong>s poetas também vêm <strong>de</strong>ssa negação àmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> porque querem uma realida<strong>de</strong> menos separatista, menosindividualista e mais humana, o que os faz tomar para si a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>gritar pelo outro, <strong>de</strong> gritar por justiça. E porque estes são dotados <strong>de</strong>sta vozoutra e, como disse Adorno (1983, p. 199), “sentem a dor do mundo e extrai <strong>de</strong>lesua poética”, têm ainda mais a função direta <strong>de</strong> sugerir, inspirar, ensinar emostrar, pelo viés da imaginação, a verda<strong>de</strong>ira realida<strong>de</strong> marcada pelaabundância capitalista, a qual não fez ninguém mais feliz, mais sábio e nemmelhor.Idéia essa que faz jus à provocação do crítico José Guilherme Merquior emseu Razão do Poema (1996, p. 112) ao dizer que: “se querem poesia mais amena,primeiro que a vida se faça amena”, portanto, “a poesia é dura porque a vida éassim”.Diante disso, uma pergunta que <strong>de</strong>ve ser feita agora é: como se po<strong>de</strong>assegurar a <strong>sob</strong>revivência humana frente ao que virou a vida nada amena nosgran<strong>de</strong>s centros urbanos? Pergunta que parece ainda não ter resposta e quetalvez a única solução possível esteja na arte, na literatura, que com suagran<strong>de</strong>za, representa até a mais árdua realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro da verda<strong>de</strong> da arte, éclaro. E ainda nas palavras <strong>de</strong> Paz (1983, p. 147), “a poesia exercita nossaimaginação e assim nos ensina a reconhecer as diferenças e a <strong>de</strong>scobrir assemelhanças”, logo, “o poema é um mo<strong>de</strong>lo do que po<strong>de</strong>ria ser a socieda<strong>de</strong>humana.”E porque a vida urbana não é amena, o poeta está cansado da turbulênciada <strong>cida<strong>de</strong></strong> real ― habitável, mas que não acolhe seus moradores como <strong>de</strong>via,pois sua práticas são incompatíveis com as experiências dos habitantes(LYNCH, 1999, p. 125). Por isso ele procura uma forma <strong>de</strong> resolução para oproblema e cria a <strong>cida<strong>de</strong></strong> imaginária, criando, assim, a sua própria Pasárgada quetambém é a do outro, por isso escreve:Vou-me embora pra PasárgadaLá sou amido do reiLá tenho a mulher que eu queroRevista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 422


Maria José <strong>de</strong> MirandaNa cama que escolhereiVou-me embora pra PasárgadaVou-me embora pra PasárgadaAqui eu não sou felizLá a existência é uma aventuraDe tal modo inconscienteQue Joana a Louca <strong>de</strong> EspanhaRainha e falsa <strong>de</strong>menteVem a ser contraparenteDa nora que nunca tiveE como farei ginásticaAndarei <strong>de</strong> bicicletaMontarei em burro braboSubirei no pau-<strong>de</strong>-seboTomarei banhos <strong>de</strong> mar!E quando estiver cansadoDeito na beira do rioMando chamar a mãe-d’água.Pra me contar as históriasQue no tempo <strong>de</strong> eu meninoRosa vinha me contarVou-me embora pra PasárgadaEm Pasárgada tem tudoÉ outra civilizaçãoTem um processo seguroDe impedir a concepçãoTem telefone automáticoTem alcalói<strong>de</strong> à vonta<strong>de</strong>Tem prostitutas bonitasPara a gente namorarE quando eu estiver mais tristeMas triste <strong>de</strong> não ter jeitoQuando <strong>de</strong> noite me <strong>de</strong>rVonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> me matar― Lá sou amigo do rei ―Terei a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada.(Libertinagem, 1930-1990)Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 423


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão lírica <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>iraO poema traz uma oposição entre um aqui e um lá, o tempo presente eum outro tempo. Isso indica que Pasárgada, na verda<strong>de</strong>, <strong>cida<strong>de</strong></strong> lendária daantiga Pérsia, é um outro espaço e um outro tempo. Lugar e tempo que seassemelha ao da infância, posto que o poeta sugere que este é que realmenteteria sido um momento completo para ele, talvez, lugar <strong>de</strong> encontro do serconsigo mesmo. São imagens que retomam ocupações normalmente praticadaspor crianças e que po<strong>de</strong>m ser vistas em: “farei ginástica” / “Andarei <strong>de</strong>bicicleta” e “Subirei no pau-<strong>de</strong>-sebo”. Por meio da fuga do espaço violento econturbado, o poeta encontra a feli<strong>cida<strong>de</strong></strong> e a liberda<strong>de</strong> apenas <strong>de</strong> formaimaginária.O poeta imagina um lugar e tempo para on<strong>de</strong> ele possa fugir quando asimposições sociais do mundo mo<strong>de</strong>rno lhe pesarem muito, já que este sujeitopoético recusa todas estas imposições. Nesse lugar, ele po<strong>de</strong>ria exprimirplenamente sua individualida<strong>de</strong>, lançando mão <strong>de</strong>ssa evasão espacial etemporal.Essa insatisfação e recusa do sujeito pela <strong>cida<strong>de</strong></strong> gran<strong>de</strong>, que não lhepermite ir ao encontro <strong>de</strong> si mesmo, uma vez que “Aqui eu não sou feliz”,supostamente chega ao fim, logo, ele busca, na <strong>cida<strong>de</strong></strong> imaginária Pasárgada, afeli<strong>cida<strong>de</strong></strong>, os prazeres e a liberda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> terá tudo o que <strong>de</strong>seja sem qualquerrestrição, pois, “Lá sou amigo do rei”. Suas vonta<strong>de</strong>s vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as coisas maissimples como andar <strong>de</strong> bicicleta e tomar banho <strong>de</strong> mar até as mais complexascomo os prazeres carnais. E além disso, ou por isso, esta <strong>cida<strong>de</strong></strong> “É outracivilização” on<strong>de</strong> a vida chega a ser quase monótona se comparada com asmegalópoles contemporâneas em que se vive hoje.Apresentando, esta <strong>cida<strong>de</strong></strong>, um modo <strong>de</strong> vida prazeroso, possivelmente,acolhe melhor seus habitantes e respeita a subjetivida<strong>de</strong>, característica nata aoser humano e que po<strong>de</strong> <strong>de</strong>volvê-lo a si mesmo. Esta é a esperança <strong>de</strong>ste sujeitopoético ao cantar essa nova vida urbana imaginária que se contrapõediretamente com a <strong>cida<strong>de</strong></strong> real caótica.Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 424


Maria José <strong>de</strong> MirandaIIIConsi<strong>de</strong>rações finaisO teórico e crítico português Vitor <strong>Manuel</strong> <strong>de</strong> Aguiar e Silva diz que a arteautêntica procura realizar a beleza sem <strong>de</strong>scartar a realida<strong>de</strong>. A arte se encontracom a realida<strong>de</strong> num nível elevado (AGUIAR E SILVA, 1979). E assim a arteeleva a alma humana, ilumina o espírito e liberta o homem. Em que há, então,um <strong>de</strong>svelamento da complexa condição do homem no mundo e, por isso, aliteratura, que faz parte do mundo da arte, é conhecedora do eu profundo e darealida<strong>de</strong> mascarada pelas convenções sociais.Pensando a <strong>cida<strong>de</strong></strong>, elevar a condição humana, por meio do imaginário, éum pouco da pretensão da poesia <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>ira, pois seus versos, apartir do cotidiano dos comuns, dos mais comuns habitantes do centro urbano,reconhecem nas ruas os transeuntes e se coloca ao lado <strong>de</strong>les, nem superior,nem inferior a eles, mas no mesmo patamar <strong>de</strong>stes para então resgatá-los. E osujeito poético capta esse momento <strong>de</strong> revelação permitido pela poesia e dá voza estes <strong>de</strong>svalidos seres massificados. Com esta estratégia, o poeta revela a<strong>cida<strong>de</strong></strong>, principalmente a chama, e seu olhar se aproxima dos excluídos,revelando, pois, ao leitor, outras formas <strong>de</strong> ver este objeto falado por tantosmeios que é a <strong>cida<strong>de</strong></strong>. Tem-se então, pela literatura que representa o imaginário,uma reeducação do olhar próprio e alheio diante da realida<strong>de</strong>.Assim, ao falar do que lhe é próprio, Ban<strong>de</strong>ira fala do que é alheio, umavez que sua poesia simboliza a libertação da alma humana e põe o leitor diante<strong>de</strong> si mesmo, <strong>de</strong>ntro da condição humana. Nesse sentido, elabora EspinheiraFilho (2004, p. 133; grifo do autor): “Toda gran<strong>de</strong> arte é implacável, e assim<strong>de</strong>ve ser a poesia. Implacável no sentido <strong>de</strong> revelar o homem ao homem ― e,assim (talvez), salvá-lo.” Assim sendo, a poesia ban<strong>de</strong>iriana certamentecontribui para que o homem chegue um pouco mais perto <strong>de</strong> si mesmo e sealargue no outro.Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 425


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão lírica <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>iraVisto que o poema, assim como toda boa literatura, é capaz <strong>de</strong> quebrar oracional para chegar ao humano, é portador da vida e da realida<strong>de</strong>. E porque étambém leitor do espaço urbano em suas mais significantes intenções, a vida,portanto apresenta-se a quem se dispuser a enfrentar o poema como expressão<strong>de</strong>sses nexos.REFERÊNCIASADORNO, Theodor. Lírica e socieda<strong>de</strong>. In: BENJAMIN, Walter; HABERMAS,Jüngen; HORKEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Textos escolhidos. Coleção Ospensadores. Trad. José Lino Grunewald et al. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.194-208.AGUIAR E SILVA, Vitor <strong>Manuel</strong> <strong>de</strong>. Teoria da literatura. 3.ed. Coimbra: LivrariaAlmedina, 1979.ARRIGUCCI, Davi Jr. O cacto e as ruínas. 2ed.Coleção Espírito Crítico. SãoPaulo: Duas Cida<strong>de</strong>s, 2000._____. Humilda<strong>de</strong>, paixão e morte: a poesia <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>ira. 2.ed. São Paulo:Companhia das Letras, 1990.BACHELARD, Gaston. A intuição do instante. Trad. Antônio <strong>de</strong> Padua Danesi.Campinas, SP: Verus Editora, 2007.BANDEIRA, <strong>Manuel</strong>. Poesia completa e prosa. 4. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar,1990.BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. Cida<strong>de</strong>s visíveis na poesiamo<strong>de</strong>rna.Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 143-173.BUENO, André. Sinais da <strong>cida<strong>de</strong></strong>: forma literária e vida cotidiana. O imaginárioda <strong>cida<strong>de</strong></strong>. Rogério Lima e Ronaldo Costa Fernan<strong>de</strong>s (org.) Brasília: EditoraUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 89-109.CANDIDO, Antonio. Textos <strong>de</strong> intervenção. A literatura e a formação do homem.São Paulo: Duas Cida<strong>de</strong>s. Editora 34, 2002. p. 77-92.Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 426


Maria José <strong>de</strong> MirandaCERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes <strong>de</strong> fazer. Trad. Ephraim F.Alves. 6ed.. Petrópolis, Rj: Vozes, 1994.ESPÍNOLA, Adriano. As <strong>cida<strong>de</strong></strong>s <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>ira. Terceira Margem.Revista <strong>de</strong> Pós-Graduação da UFRJ. Ano III. Nº 3, 1995. p. 120-131.FERRAZ, Eucanaã. Drummond: a poesia como semiologia da <strong>cida<strong>de</strong></strong>.TerceiraMargem. Revista <strong>de</strong> Pós-Graduação da UFRJ. Ano III. Nº 3, 1995. p. 143-149.FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica mo<strong>de</strong>rna: da meta<strong>de</strong> do século XIX ameados do século XX. Trad. Marise M. Curioni e Dora F. da Silva. São Paulo:Duas Cida<strong>de</strong>s, 1978.GOMES, Renato cor<strong>de</strong>iro. Todas as <strong>cida<strong>de</strong></strong>s, a <strong>cida<strong>de</strong></strong>.Literatura e experiênciaurbana. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1994.KOSHIYAMA, Jorge. O lirismo em si mesmo: leitura <strong>de</strong> “Poética” <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong>Ban<strong>de</strong>ira In: BOSI, Alfredo (org.). Leitura <strong>de</strong> poesia. São Paulo: Ática, 2007.SOUSA, Ilza Matias <strong>de</strong>. Paulicéia <strong>de</strong>svairada: a poética da <strong>cida<strong>de</strong></strong>. TerceiraMargem. Revista <strong>de</strong> Pós-Graduação da UFRJ. Ano III Nº 3, 1995. p. 162-165.LYNCH, Kevin. A imagem da <strong>cida<strong>de</strong></strong>. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:Martins Fontes, 1999.LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema: ensaios <strong>de</strong> crítica e <strong>de</strong> estética.2ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks, 1996.PAZ, Octávio. A outra voz. In:____. A outra voz. Trad. Wladir Dupont. SãoPaulo: Siciliano, 1993. p. 133-148.Notas:1 Maria José <strong>de</strong> Miranda é Mestranda na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás (UFG)2 Alfonso Berardinelli é crítico literário italiano da atualida<strong>de</strong>.3 Conceito usado pelo francês Michel <strong>de</strong> Certeau no livro A invenção do cotidiano.Revista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 427

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!