10.07.2015 Views

Romance romântico e teoria do romance: Lucinde, de ... - Eutomia

Romance romântico e teoria do romance: Lucinde, de ... - Eutomia

Romance romântico e teoria do romance: Lucinde, de ... - Eutomia

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

95<strong>Romance</strong> romântico e <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong>: <strong>Lucin<strong>de</strong></strong>, <strong>de</strong>Friedrich SchlegelWilma Patricia M.D. Maas i (UNESP)Resumo:Investiga-se aqui o estatuto <strong>do</strong> <strong>romance</strong> <strong>Lucin<strong>de</strong></strong>, <strong>de</strong> Friedrich Schlegel,como parte <strong>do</strong> projeto <strong>do</strong> autor para a criação <strong>de</strong> uma <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong>mo<strong>de</strong>rno. Ao mesmo tempo, apontam-se prováveis <strong>de</strong>scendências dasi<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Schlegel sobre a <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong>, como em Lukács e WalterBenjamin.Palavras-chave: Friedrich Schlegel, <strong>Lucin<strong>de</strong></strong>, <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong>.Abstract:Friedrich Schlegel’s novel, <strong>Lucin<strong>de</strong></strong>, is here discussed as being part of awhole project for the establishment of the basis for a theory of mo<strong>de</strong>rnnovel. At the same time we try to point out some possible <strong>de</strong>scendants ofSchlegel’s i<strong>de</strong>as on the theory of the novel, as in Lukács and WalterBenjamin.Keywords: Friedrich Schlegel, <strong>Lucin<strong>de</strong></strong>, Theory of the NovelDa perspectiva da história da literatura, o Primeiro Romantismo Alemão(Frühromantik) <strong>de</strong>ve ser claramente diferencia<strong>do</strong> tanto <strong>do</strong> assim chama<strong>do</strong> Pré-Romantismo,marca<strong>do</strong> pelo caráter wertheriano da obra <strong>do</strong> jovem Goethe e pela produç~o “irracionalista”e revolucionária <strong>de</strong> Hamman e Lenz, por exemplo, quanto <strong>do</strong> assim chama<strong>do</strong> romantismo<strong>de</strong> fato (Romantik e Spätromantik). O termo Primeiro Romantismo Alemão po<strong>de</strong> ser usa<strong>do</strong>


96com referência a um perío<strong>do</strong> muito breve, que se estabelece em diálogo estético antes coma herança clássica da Antiguida<strong>de</strong> <strong>do</strong> que com o Sturm und Drang 1 .A vocação antes filosófica <strong>do</strong> que literária <strong>do</strong> Primeiro Romantismo po<strong>de</strong> serreconhecida já em uma <strong>de</strong> suas tensões mais características: o anseio pelo infinito(Sehnsucht), exposto, entretanto, nas coisas finitas. As formas e dicções cultivadas pelosprimeiros românticos, como a alegoria, o tropo da ironia, o fragmento e a palavraespirituosa, gracejo ou chiste (Witz) são o espaço on<strong>de</strong> se expõe essa tensão na arte.Manfred Frank, um <strong>do</strong>s mais importantes intérpretes atuais <strong>do</strong> Primeiro RomantismoAlem~o, expressa da seguinte maneira esse para<strong>do</strong>xo permanente: “A alegoria é – empoucas palavras – a tendência ao absoluto contida naquilo que é finito. Como alegoria, oparticular supera a si mesmo na direç~o <strong>do</strong> infinito” (FRANK, 1992, p. 129). Também ofragmento primeiro rom}ntico <strong>de</strong>ve ser entendi<strong>do</strong> como uma “express~o falhada <strong>do</strong>Absoluto”, o qual permanece, assim, inatingível. Expressão da consciência fragmentada, ofragmento traz em si a contradição da aspiração <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> no caos por meio da força dasíntese, ao mesmo tempo em que promove não a Totalida<strong>de</strong>, mas sim um coleção <strong>de</strong>posições individuais, que se contradizem umas às outras.Alegoria, símbolo, fragmento, ironia e chiste,mais <strong>do</strong> que a<strong>do</strong>rnos da linguagempoética, são expressões da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se atingir o Absoluto filosófico. Essa tensãose <strong>de</strong>ixa reconhecer em um estilo <strong>de</strong> prosa marca<strong>do</strong> pelo uso constante e mesmo abusivo<strong>de</strong> tropos, <strong>de</strong> linguagem figurada, pelo recurso à linguagem alegórica ou simbólica, à ironiae ao fragmento.Também a <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong> <strong>do</strong>s primeiros românticos alemães <strong>de</strong>ixanecessariamente transparecer essa noção <strong>de</strong> literatura como espaço <strong>de</strong> especulaçãofilosófica. A produção ficcional <strong>de</strong>sse momento emblemático da história da literatura etambém da história da estética está, portanto, necessariamente associada à produçãoteórica. Cientes <strong>de</strong> que as formas <strong>de</strong> que dispunham não eram suficientes para abarcar e<strong>de</strong>screver o advento da poesia mo<strong>de</strong>rna, os românticos <strong>de</strong> Jena propõem-se a praticar umaliteratura que estabeleça os critérios para a reflexão sobre a própria literatura. Em ummomento em que a separação entre disciplinas como literatura, filosofia e filologia ainda1 Na traduç~o <strong>de</strong> Otto Maria Carpeaux, “Tempesta<strong>de</strong> e ímpeto”, <strong>de</strong>nominaç~o sob a qual ficou consagra<strong>do</strong> operío<strong>do</strong> <strong>do</strong> Pré-Romantismo Alemão marca<strong>do</strong> pela figura <strong>do</strong> jovem Goethe).


97não está <strong>de</strong>limitada, a produção <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> Jena é voluntariamente orientada pelo <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong> expressar “poeticamente” os princípios <strong>de</strong> uma nova posiç~o estética.<strong>Romance</strong> romântico e <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong>A personalida<strong>de</strong> controversa <strong>de</strong> Friedrich Schlegel, sua conversão ao catolicismo em1808 e sua fama <strong>de</strong> incompreensível (que seu ensaio sobre a ininteligibilida<strong>de</strong> aju<strong>do</strong>u aconfirmar) acabaram por ocultar um aspecto <strong>de</strong> sua obra teórica que diz respeitoimediatamente à <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong> mo<strong>de</strong>rno. Neste artigo, examinaremos a concepçãoque Schlegel tem <strong>do</strong> <strong>romance</strong> como gênero, concepção essa que vemos recuperada emLukács , Bakhtin e Walter Benjamin.É preciso traçar uma breve trajetória <strong>do</strong> programa estético <strong>de</strong> F. Schlegel, a partir <strong>de</strong>Estu<strong>do</strong> da Poesia Grega (Über das Studium <strong>de</strong>r Griechischen Poesie, 1795), até seus escritosprogramáticos publica<strong>do</strong>s principalmente na revista Athenäum, ápice da sua produçãocrítica e teórica sobre literatura. No Studiumaufsatz, como ficou conheci<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong> sobre apoesia grega, Schlegel opõe o que reconhece como <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> produção poética. Um<strong>de</strong>les, chama<strong>do</strong> “poesia natural”, produzida pela civilização da Antiguida<strong>de</strong>, cujo<strong>de</strong>senvolvimento cíclico segue a trajetória que vai da infância à senilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com asida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Homem. A ela se opõe uma “poesia artística ou artificial” (eine künstliche Poesie),criada a partir <strong>do</strong>s artifícios da razão, distinta, portanto, <strong>de</strong> qualquer experiência da or<strong>de</strong>m<strong>do</strong> natural. Para o Schlegel <strong>de</strong> 1795, a poesia artística sofre <strong>de</strong> uma heterogeneida<strong>de</strong><strong>de</strong>scaracterizante, <strong>de</strong>scrita sob a met|fora <strong>do</strong> “armazém estético”, no qual se alinhamprodutos poéticos varia<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> gosto duvi<strong>do</strong>so:Como em um armazém estético, encontram-se aqui la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> a poesiapopular e a poesia <strong>de</strong> bom-tom, e mesmo o metafísico busca, não semsucesso, o seu próprio sortimento; epopéias nórdicas ou cristãs para osamigos <strong>do</strong> norte e da cristanda<strong>de</strong>; histórias fantasmagóricas para osaprecia<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s horrores místicos, e o<strong>de</strong>s iroquesas ou canibais para osaprecia<strong>do</strong>res <strong>de</strong> carne humana... (SCHLEGEL, 1988, p. 222) 22 Exceto quan<strong>do</strong> indica<strong>do</strong> o contrário, todas as traduções são da autora.


98O repertório aqui é claro: Schlegel usa sua afiada veia irônica para <strong>de</strong>sacreditar comobárbara e <strong>de</strong> mau gosto a produção que será poucos anos <strong>de</strong>pois conhecida como literatura“rom}ntica”, no senti<strong>do</strong> amplo <strong>do</strong> termo, que inclui <strong>de</strong>s<strong>de</strong> contos <strong>de</strong> fada pag~os e crist~osaté a literatura <strong>de</strong> cunho subjetivizante e mesmo erótico. Ao mesmo tempo, esse repertórioé a base <strong>do</strong> que o próprio Schlegel enten<strong>de</strong>rá como poesia “mo<strong>de</strong>rna”. Como lembrou RenéWellek, um <strong>do</strong>s primeiros críticos contemporâneos a atentar para o peso da <strong>teoria</strong> <strong>do</strong><strong>romance</strong> em Schlegel, este enten<strong>de</strong> por poesia mo<strong>de</strong>rnauma produç~o artificial, ‘interessante’, (isto é, não <strong>de</strong>sinteressada, envoltanos fins pessoais <strong>do</strong> autor), ‘característica’,‘amaneirada’ (no senti<strong>do</strong> quedava Goethe à palavra, o qual contrasta a maneira subjetiva com o estiloobjetivo), impura na mistura e confusão <strong>do</strong>s gêneros, impura na suamescla <strong>do</strong> didático e <strong>do</strong> filosófico, impura por incluir até mesmo o feio, omonstruoso e anárquico, e em sua rejeição a leis. A literatura mo<strong>de</strong>rnasente o ‘terrível mas infrutífero <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> espalhar-se até o infinito, a se<strong>de</strong>ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> penetrar o individual.’(WELLEK, 1967, p. 308).É importante ressaltar ainda que, para o Schlegel da época da Athenäum, o emprego<strong>do</strong> termo “rom}ntico” e <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s coinci<strong>de</strong>, no mais das vezes, com seu conceito <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rno. “Rom}ntico” (romantisch) congregava, ao mesmo tempo, significa<strong>do</strong>s diversos,embora integra<strong>do</strong>s, como romântico em oposição ao prosaico, como expressão <strong>do</strong>fant|stico e <strong>do</strong> exótico, ou mesmo como “estória <strong>de</strong> amor”, da mesma forma que apontapara a língua (romanço) e literatura românica popular da Ida<strong>de</strong> Média e Renascença (cf.EICHNER, 1972). O uso que Schlegel faz <strong>do</strong> adjetivo, frequente em seus textos entre 1797 e1800, aponta ainda para mais um significa<strong>do</strong>, o qual, em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar os anteriores,agrega-se a eles. Trata-se <strong>de</strong> “rom}ntico” referin<strong>do</strong>-se ao <strong>romance</strong> como o gênero mo<strong>de</strong>rnopor excelência. Schlegel consi<strong>de</strong>rou o <strong>romance</strong> o “fenômeno central” da poesia“essencialmente mo<strong>de</strong>rna”, a qual ele, por isso mesmo, passa a <strong>de</strong>nominar “rom}ntica”.São três, segun<strong>do</strong> Schlegel, as formas estéticas mais significativas para o mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal:“Três gêneros poéticos agora pre<strong>do</strong>minantes 1, tragédia entre os gregos 2, sátira entre osromanos 3 , <strong>romance</strong> ente os mo<strong>de</strong>rnos (SCHLEGEL, 1988, p. 88, v. XVI, grifo meu).Cabe ainda dizer que, à época <strong>de</strong> Schlegel, a amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> significação <strong>do</strong> termo“<strong>romance</strong>” era bem maior. “<strong>Romance</strong>”(Roman) podia abarcar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o gênerorelativamente jovem e especialmente fluente na Inglaterra da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século


99XVIII como também Faerie Queene, <strong>de</strong> Spenser, Niebelungenlied, Orlan<strong>do</strong> furioso <strong>de</strong> Ariostoou mesmo as peças <strong>de</strong> Shakespeare, que para Her<strong>de</strong>r constituíam “<strong>romance</strong>s filosóficos”.Assim, romantisch qualifica-se, a um tempo, como express~o <strong>do</strong> “essencialmentemo<strong>de</strong>rno”, <strong>do</strong> romanesco, <strong>do</strong> poético e <strong>do</strong> prosaico. Para Schlegel, o gênero <strong>de</strong>ve conterem si to<strong>do</strong>s “os subgêneros possíveis, o drama e o épico, a poesia e a filosofia, o fantástico,o sentimental”; a crítica e a filosofia <strong>de</strong>vem unir-se { poesia, constituin<strong>do</strong> assim a “poesiauniversal”, em verda<strong>de</strong>ira “confus~o rom}ntica”.Não sem razão, o fragmento 116 da revista Athenäum é, possivelmente, um <strong>do</strong>s maisreproduzi<strong>do</strong>s, traduzi<strong>do</strong>s e cita<strong>do</strong>s, conheci<strong>do</strong> mesmo por aqueles que não têm especialinteresse nos estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Primeiro Romantismo Alemão. Ele contém ao mesmo tempo ofundamento e a con<strong>de</strong>nsação <strong>de</strong> uma mo<strong>de</strong>rna <strong>teoria</strong> da literatura, construída a partir da(superação da?) tensão entre uma noção clássica e ahistórica <strong>de</strong> poesia, e da consciência <strong>do</strong>advento <strong>de</strong> uma poesia universal progressiva, incompleta porque infinita, da qual só umacrítica voltada ao futuro po<strong>de</strong>ria dar conta. Enquanto outros gêneros já estão acaba<strong>do</strong>s (nãoé <strong>de</strong>mais lembrar que o termo aqui utiliza<strong>do</strong>, vollen<strong>de</strong>t, significa “termina<strong>do</strong>”, como umprocesso termina, ao mesmo tempo em que é sinônimo <strong>de</strong> “perfeito”), a poesia romântica émo<strong>de</strong>rna porque imperfeita e progressiva, aproximação infinita.A ativida<strong>de</strong> teórica, literária e crítica <strong>de</strong> Schlegel elegeu no fragmento e no <strong>romance</strong>os veículos favoritos <strong>de</strong> manifestação <strong>de</strong>ssa poesia progressiva. O texto <strong>do</strong> fragmento 116 égeneroso na alusão à performance que Schlegel <strong>de</strong>stinará a ambos. Seu próprio conceito <strong>de</strong><strong>romance</strong>, que legar| formalmente na “Carta sobre o <strong>romance</strong>”, também publicada naAthenäum, já se <strong>de</strong>lineia no fragmento 116, quan<strong>do</strong> se trata da mistura <strong>do</strong>s gêneros e daperspectiva épica:A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Ela se <strong>de</strong>stina nãoapenas a reunir to<strong>do</strong>s os gêneros separa<strong>do</strong>s da poesia e a pôr a poesia emcontato com a filosofia e a retórica. Ela quer, e também <strong>de</strong>ve, ora misturar,ora fundir poesia e prosa, genialida<strong>de</strong> e crítica, poesia artística e poesianatural, tornar a poesia viva e sociável, e a vida e a socieda<strong>de</strong> poéticas,poetizar o chiste e encher e saturar as formas artísticas com to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong>substância sólida para a formação, animan<strong>do</strong>-a com as pulsações <strong>do</strong>humor. [...] Só a poesia po<strong>de</strong>, como a epopéia, se tornar um espelho <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> inteiro em volta, uma imagem da época. Ela é capaz da formaçãomais aprimorada e universal, não só <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora, como também <strong>de</strong>fora para <strong>de</strong>ntro. Para cada totalida<strong>de</strong> que seus produtos <strong>de</strong>vem constituir,


100ela organiza uma totalida<strong>de</strong> semelhante. (SCHLEGEL, 1991, p. 139, grifomeu).O termo “poesia”, no perío<strong>do</strong> em it|lico, po<strong>de</strong> ser entendi<strong>do</strong> como a poesia universal, capaz<strong>de</strong> abrigar to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> discurso para além <strong>do</strong> tradicionalmente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> poético, assimcomo “epopeia” refere-se aqui tanto ao gênero narrativo em geral quanto à epopeiaclássica, da qual o <strong>romance</strong> mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong>veria herdar, segun<strong>do</strong> o raciocínio aqui <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>,a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espelhar (refletir) o mun<strong>do</strong>. Os perío<strong>do</strong>s que se seguem alu<strong>de</strong>m àcapacida<strong>de</strong> da poesia/epopeia <strong>de</strong> provocar a formação, tanto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora (como no<strong>romance</strong> “romanesco”) quanto <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro (como na epopeia). A nosso ver, essasugest~o est| presente na compreens~o luk|csiana <strong>do</strong> “<strong>romance</strong> como epopeia burguesa”,assim como na tipologia <strong>do</strong> <strong>romance</strong> que Bakhtin apresenta em Estética da criação verbal.Não por acaso, ambos, assim como Schlegel e Walter Benjamin, ocuparam-se <strong>do</strong> <strong>romance</strong><strong>de</strong> Goethe Os anos <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> Wilhelm Meister (1795-1796), ten<strong>do</strong>, cada um a seumo<strong>do</strong>, enxerga<strong>do</strong> nele a superação da contradição ente o <strong>romance</strong> individualista burguês eo <strong>romance</strong> histórico <strong>de</strong> caráter épico.O próprio Schlegel, cuja personalida<strong>de</strong> intelectual é menos a <strong>de</strong> um autor literário <strong>do</strong>que <strong>de</strong> um crítico genial e sagaz, constrói, em <strong>Lucin<strong>de</strong></strong> (1798-1799), um exemplo <strong>de</strong> narrativacapaz <strong>de</strong> concentrar, programaticamente, os princípios <strong>do</strong> que po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong><strong>romance</strong> romântico por excelência. Tanto as circunstâncias cronológicas quanto sugestõesformais e conteudísticas levam a concluir que Schlegel escreve seu “<strong>romance</strong> rom}ntico”como contraponto e complemento a sua crítica ao Meister <strong>de</strong> Goethe 3 , que veio a público naAthenäum em 1798. <strong>Lucin<strong>de</strong></strong> é também uma tentativa (em alemão,Versuch, mesmo termousa<strong>do</strong> para “ensaio”) <strong>de</strong> composiç~o <strong>de</strong> um <strong>romance</strong> romântico, <strong>de</strong> uma <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong>3 A crítica <strong>de</strong> F.Schlegel ao <strong>romance</strong> <strong>de</strong> Goethe Wilhelm Meisters Lehrjahre é exemplar no que diz respeito àdicção da crítica <strong>de</strong> arte romântica. Ali, a apreciação da obra <strong>de</strong> arte é feita passo a passo, acompanhan<strong>do</strong> opróprio <strong>de</strong>senrolar <strong>do</strong> <strong>romance</strong> <strong>de</strong> Goethe, i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> sua estrutura e composição, para as quais não há, <strong>de</strong>fato, mo<strong>de</strong>los a serem segui<strong>do</strong>s. O ineditismo da composição <strong>do</strong> <strong>romance</strong> goethiano, que amalgama os maisdiferentes discursos, como o filosófico, o poético, o filosófico e o prosaico , <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral, permite queSchlegel construa sua concepção <strong>de</strong> Mischgedicht (poesia mista) ao mesmo tempo em que o enfraquecimentoda posição <strong>do</strong> protagonista,em proveito <strong>de</strong> personagens aparentemente secundárias, permite-lhe forjar umconceito <strong>de</strong> ironia épica, <strong>de</strong> fato presente em Goethe, que influenciará mais tar<strong>de</strong> a <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong> <strong>de</strong>G.Lukács.


101que fosse ela própria um <strong>romance</strong>, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u Schlegel na “Carta sobre o <strong>romance</strong>”, <strong>de</strong>1798.<strong>Lucin<strong>de</strong></strong> tem certamente o estatuto <strong>de</strong> “<strong>romance</strong> ensaio”, <strong>de</strong> narrativa experimentale programática capaz <strong>de</strong> fazer tanto o comentário da obra que se mostrava, segun<strong>do</strong> opróprio Schlegel, como o “indica<strong>do</strong>r <strong>de</strong> caminhos” da época (o <strong>romance</strong> <strong>de</strong> Goethe), quanto<strong>de</strong> realizar, <strong>de</strong> forma cifrada, (e, nesse senti<strong>do</strong>,alegórica), a crítica estética <strong>de</strong>ssa “épocaquímica”. A narrativa, conhecida mais pela liberalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s costumes e pelas censuras <strong>de</strong>obscenida<strong>de</strong> das quais foi objeto, é um exemplo claro <strong>de</strong> como Schlegel concebe umanarrativa capaz <strong>de</strong> abarcar aquilo que vem chaman<strong>do</strong> <strong>de</strong> poesia universal progressiva, capaz<strong>de</strong> unir poesia e filosofia, a obra e sua crítica, para além <strong>de</strong> uma divisão <strong>de</strong> gênerosdiscursivos. Ao la<strong>do</strong> disso, em <strong>Lucin<strong>de</strong></strong> tem-se o procedimento da parábase compreendi<strong>do</strong><strong>de</strong> maneira filosófica. O narra<strong>do</strong>r, Julius, apresenta ao leitor o transcurso <strong>de</strong> seu própriopensamento e fruição. “Genieβ <strong>de</strong>n Genuss”, gozar o próprio gozo, é um termo chave paracompreen<strong>de</strong>r a filosofia da reflexão em Schlegel, procedimento que o coloca na vanguarda<strong>de</strong> uma concepção <strong>de</strong> ironia <strong>de</strong> caráter performativo. Além disso, em <strong>Lucin<strong>de</strong></strong> também sereconhecerá a presença da poesia artificial, alegorizada em formas como o fragmento, ochiste, a ironia e mesmo a incompreensibilida<strong>de</strong>.A fortuna crítica <strong>de</strong> <strong>Lucin<strong>de</strong></strong> está marcada, pre<strong>do</strong>minantemente, pelo caráter“obsceno” da narrativa, que prega o amor livre, o erotismo, e mesmo a igualda<strong>de</strong> entre ossexos no que diz respeito à livre fruição <strong>do</strong> prazer sensual. Mesmo Ernst Behler, um <strong>do</strong>sestudiosos mais assíduos e atentos da obra <strong>de</strong> Schlegel, permanece em um patamar críticoalgo tími<strong>do</strong>, limitan<strong>do</strong>-se quase que a uma espécie <strong>de</strong> resumo da obra. É possível que essecomportamento algo reticente da crítica especializada <strong>do</strong> século XX tenha origem em umfato concreto: a obra “liter|ria” ou “ficcional” <strong>de</strong> Schlegel não correspon<strong>de</strong>, como valor, asua obra crítica. <strong>Lucin<strong>de</strong></strong> é um <strong>romance</strong> experimental, <strong>de</strong> fato, situa<strong>do</strong> em um espaço queprivilegia n~o a obra em si, “mas a reflex~o sobre a obra ausente, <strong>de</strong>sejada ou por vir.”(BERMANN, 2002, p. 128). Esse é o motivo que parece con<strong>de</strong>nar a obra ficcional <strong>do</strong>sprimeiros românticos a interpretações i<strong>de</strong>ológicas, ligeiras ou insatisfatórias. Esse écertamente um sintoma <strong>de</strong> que ao arroja<strong>do</strong> pensamento filológico <strong>do</strong> Primeiro Romantismo


102correspon<strong>de</strong> o advento <strong>de</strong> uma prática poética futura 4 . Assim, a abordagem ao <strong>romance</strong> <strong>de</strong>Schlegel se faz aqui pela via <strong>do</strong> experimental e programático, apontan<strong>do</strong> para a busca <strong>de</strong>sseespaço, para os primeiros românticos nunca precisamente <strong>de</strong>limita<strong>do</strong>, entre a obra e suacrítica.O primeiro capítulo, intitula<strong>do</strong> “Confissões <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sajeita<strong>do</strong>”, começa com a<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um sonho:Os homens, e tu<strong>do</strong> o mais quanto fazem e <strong>de</strong>sejam, pareciam-me, quan<strong>do</strong>me lembrava disso, figuras cinzentas e sem movimento. Mas na sagradasolidão a meu re<strong>do</strong>r tu<strong>do</strong> era luz e cor, e um fresco hálito <strong>de</strong> vida e amoracariciava-me, balançan<strong>do</strong> os galhos das árvores no bosque exuberante[...]. E logo vislumbrei também, com os olhos <strong>do</strong> espírito, minha única eeterna amada sob variadas formas, ora como criança, ora como mulher noauge da energia amorosa e <strong>do</strong> vigor da feminilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois na dignamaternida<strong>de</strong>, com um sério rapazinho nos braços [...]. Eu pensara terenxerga<strong>do</strong> profundamente no interior da natureza oculta das coisas; [...]Mas não me prolonguei no pensamento, pois não estava especialmentedisposto à articulação e <strong>de</strong>sarticulação <strong>de</strong> conceitos [...]. Espreitava, com friareflexão, sob cada traço tênue <strong>de</strong>ssa satisfação íntima, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que nenhum<strong>de</strong>les se me escapasse, crian<strong>do</strong> assim uma lacuna na harmonia. Eu nãoapenas gozava, mas sentia e gozava o próprio gozo. (SCHLEGEL, 1999, p. 11-12).O trecho permite a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> um importante traço da poética primeiro-romântica, ocaráter reflexivo da dicção. Não se trata aqui <strong>de</strong> uma subjetivida<strong>de</strong> centrada noextravasamento lírico <strong>do</strong> eu, mas sim <strong>de</strong> um flagrante, <strong>de</strong> um instantâneo <strong>do</strong> eu captura<strong>do</strong>pela própria consciência em meio ao processo <strong>de</strong> pensar por meio da linguagem. Nasexpressões em itálico, fica evi<strong>de</strong>nte o mecanismo composto por uma série <strong>de</strong>espelhamentos, <strong>de</strong> reflexões, que irão culminar em outro texto <strong>de</strong> Schlegel composto àmesma época, o ensaio sobre a ininteligibilida<strong>de</strong> 5 (nota). O afastamento e distanciamento4 São ricas e importantes as relações entre as proposições estéticas <strong>do</strong>s primeiros românticos e a obra <strong>de</strong>Mallarmé e Valéry, por exemplo, no que se refere à <strong>de</strong>sautomação das relações cotidianas <strong>do</strong> signolinguístico. Veja-se, por exemplo, o seguinte fragmento <strong>de</strong> Novalis: "[...] O poeta <strong>de</strong>sfaz to<strong>do</strong>s os laços. Suaspalavras não são palavras gerais – são sonorida<strong>de</strong>s, palavras mágicas que fazem se moverem ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong>lasbelos grupos. Exatamente como roupas <strong>de</strong> santos conservam forças prodigiosas, muita palavra foi santificadapor algum pensamento prodigioso e tornou-se quase que por si só um poema. Para o poeta,a linguagemnunca é pobre <strong>de</strong>mais, mas sempre geral <strong>de</strong>mais [...] palavras gastas pelo uso". (NOVALIS, Fragmente II, n.1916, p. 50, trad. <strong>de</strong> Maria Emília Pereira Chanut, levemente modificada, apud BERMANN, 2002, p. 169)5 Über die Unverständlichkeit, <strong>de</strong> 1800.


103que espreitam por <strong>de</strong>trás da comoção estética e da empatia são tematiza<strong>do</strong>s eperformatiza<strong>do</strong>s continuamente na obra <strong>de</strong> Schlegel à época da Athenäum:É bom e necessário entregarmo-nos inteiramente ao efeito <strong>de</strong> uma obra,permitir ao artista que faça conosco o que lhe aprouver, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> que areflexão [...], on<strong>de</strong> ainda persistir a dúvida ou a controvérsia, <strong>de</strong>cida ecomplete o senti<strong>do</strong>. Isso é o primordial e o mais importante ... É preciso quenos elevemos acima <strong>de</strong> nossas preferências e que sejamos capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>struirem pensamento aquilo que veneramos. (SCHLEGEL, 1956, pp. 267-8, grifomeu)Em consonância a essa reflexão potencializada e infinita, o texto <strong>de</strong> <strong>Lucin<strong>de</strong></strong> aponta paramais uma constante program|tica <strong>do</strong> Primeiro Romantismo: a “par|base permanente”, aquebra da ilusão no texto ficcional:És tão extraordinariamente sagaz, querida <strong>Lucin<strong>de</strong></strong>, que provavelmente jáchegaste à suposição <strong>de</strong> que tu<strong>do</strong> não passa <strong>de</strong> um belo sonho [...]. Averda<strong>de</strong> é que eu estava à janela [...] Estava à janela e olhava para fora [...].O bosque e as cores mediterrâneas minha visão <strong>de</strong>ve certamente aogran<strong>de</strong> arranjo <strong>de</strong> flores aqui a meu la<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ntre as quais se encontra umnúmero consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> laranjas. To<strong>do</strong> o resto po<strong>de</strong> ser facilmente explica<strong>do</strong>pela psicologia. Era ilusão, minha amiga, tu<strong>do</strong> ilusão, com exceção <strong>do</strong> fato <strong>de</strong>que me encontrava à janela e nada fazia, e que agora sento-me aqui e façoalguma coisa, o que é pouco mais ou pouco menos <strong>do</strong> que não fazer nada.(SCHLEGEL, 1999, pp. 12-13, grifo meu)Mais uma vez, o texto <strong>do</strong> <strong>romance</strong> <strong>de</strong> Schlegel dialoga com outro texto programático, o jácita<strong>do</strong> ensaio sobre a ininteligibilida<strong>de</strong>, no qual a ironia e a quebra da ilusão associam-se aoenuncia<strong>do</strong> no tempo presente, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a reiterar o caráter artístico (künstlerisch) e artificial(künstlich) da obra <strong>de</strong> arte (Kunstwerk). Não seria ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> afirmar que, em Schlegel, aliteratura é ficcional na mesma medida em que é conscientemente artificial, produzida pelarazão e reflexão, o que <strong>de</strong>strói qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> associar seu pensamentofrequentemente critica<strong>do</strong> como <strong>de</strong>lirante e incompreensível a um subjetivismo irracional eou ultrarromântico.Valen<strong>do</strong>-se ainda <strong>do</strong> princípio da reflexão sobre o próprio ato <strong>de</strong> criação artística,Schlegel introduzirá uma alegoria, no senti<strong>do</strong> clássico <strong>do</strong> tropo, <strong>de</strong>dicada a oferecer umpanorama liter|rio <strong>de</strong> sua própria época, em que o advento <strong>de</strong> uma literatura “mo<strong>de</strong>rna” e a


104<strong>de</strong>terminação <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> relação com o passa<strong>do</strong> “cl|ssico” estavam na or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> dia. Depois<strong>de</strong> ter cria<strong>do</strong> a alegoria da opini~o pública como um réptil “incha<strong>do</strong> <strong>de</strong> tanto líqui<strong>do</strong>venenoso”, “gran<strong>de</strong> o bastante para incutir me<strong>do</strong>”, (p.24), Schlegel passa a apresentar osdiferentes tipos <strong>de</strong> <strong>romance</strong>, quatro, no total, em formas <strong>de</strong> jovens travesti<strong>do</strong>srespectivamente em cavaleiro medieval, em cidadão grego, em <strong>romance</strong> pastoril efinalmente em <strong>romance</strong> mo<strong>de</strong>rno. S~o eles introduzi<strong>do</strong>s por “uma forma masculina <strong>de</strong>altura média”, cujas formas <strong>do</strong> rosto eram “trabalhadas e exageradas comofrequentemente vemos em bustos romanos”. É esse mestre <strong>de</strong> cerimônias da Antiguida<strong>de</strong>latina, cujos olhos eram ilumina<strong>do</strong>s “por um fogo amistoso” encima<strong>do</strong>s por uma “frontealtiva”, que irá apresentar ao narra<strong>do</strong>r os “autênticos <strong>romance</strong>s, quatro no número eimortais como nós” (SCHLEGEL, 1999, p. 24). A alegoria prossegue, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que se po<strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntificar ainda um quinto tipo <strong>de</strong> <strong>romance</strong>:Entre as senhoras encontrava-se um jovem que logo reconheci como irmão<strong>do</strong>s outros <strong>romance</strong>s. Um <strong>de</strong>les tal como hoje os vemos, mas muito maiscultiva<strong>do</strong>; seu talhe e seu rosto não eram belos, mas refina<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>expressão inteligente e muito atraente. Po<strong>de</strong>ria ser toma<strong>do</strong> tanto porfrancês como por alemão. Suas vestes e toda sua maneira <strong>de</strong> ser eramsimples, mas bem cuidadas e completamente mo<strong>de</strong>rnas. (SCHLEGEL, 1999,p. 26)Não é difícil i<strong>de</strong>ntificar aqui um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> narrativa que Schlegel <strong>de</strong>sejara para seupróprio <strong>romance</strong>, “cultiva<strong>do</strong>”, “refina<strong>do</strong>”, “inteligente” e, por fim, completamentemo<strong>de</strong>rno. Na “Carta sobre o <strong>romance</strong>”, <strong>de</strong> 1800, po<strong>de</strong>m-se encontrar as diretrizes, <strong>de</strong>stavez <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista teórico, e mesmo uma <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> que Schlegel enten<strong>de</strong>u por“<strong>romance</strong>” { época. Obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> à forma <strong>de</strong> simpósio que organiza to<strong>do</strong> o texto <strong>de</strong>Conversa sobre poesia, o volume no qual está inserida, a “Carta” é lida por Antonio, em vozalta, ao grupo <strong>de</strong> amigos que exercem entre si a crítica da literatura, como juízes queproferem sentenças sobre os bons e os maus <strong>romance</strong>s. É importante dizer que, nessetexto, Schlegel já atingiu a maturida<strong>de</strong> crítica que permite distinguir a “Carta” <strong>do</strong>s escritosda juventu<strong>de</strong>, pois passa a julgar cada obra individualmente. Seu contato com o <strong>romance</strong>francês mo<strong>de</strong>rno, principalmente Di<strong>de</strong>rot e Louvet <strong>de</strong> Couvrays (cf. EICHNER, 2003, p. 176),assim como a leitura <strong>do</strong> Wilhelm Meister <strong>de</strong> Goethe e das novelas italianas, levaram-no a


105aban<strong>do</strong>nar a busca <strong>de</strong> regras apriorísticas para o julgamento estético: “A crítica n~o <strong>de</strong>vejulgar as obras segun<strong>do</strong> um i<strong>de</strong>al universal, mas sim buscar o i<strong>de</strong>al individual <strong>de</strong> cada obra”,lê-se nos Ca<strong>de</strong>rnos liter|rios; “A crítica compara a obra com seu próprio i<strong>de</strong>al 6 ”. Dessemo<strong>do</strong>, a tarefa <strong>do</strong> crítico passa a ser a <strong>de</strong> construir, caso a caso, as leis para cada objeto <strong>de</strong>ajuizamento, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a verificar a coerência da obra em relação a essas próprias leis, emoutras palavras, a verificar sua organicida<strong>de</strong>. É esse o principal critério a nortear ojulgamento <strong>do</strong>s <strong>romance</strong>s discuti<strong>do</strong>s, e que, ao mesmo tempo, permitirá que se confronte o<strong>romance</strong> com a forma épica da Antiguida<strong>de</strong> e com o drama.A discussão começa pelos <strong>romance</strong>s <strong>de</strong> Friedrich Richter, “uma miscel}nea coloridacheia <strong>de</strong> piadas <strong>de</strong> mau gosto”. Mas, ao mesmo tempo, são exatamente a presença <strong>do</strong>aspecto grotesco e <strong>do</strong> tom confessional “os únicos produtos rom}nticos <strong>de</strong> nossa época n~oromântica” (SCHLEGEL, 1988, p. 209), dirá o autor da Carta.Dentre os autores cita<strong>do</strong>s, apenas Sterne e Di<strong>de</strong>rot são objetos <strong>de</strong> um julgamentofavorável. A leitura <strong>de</strong> Sterne provoca uma impressão bem <strong>de</strong>finida, que po<strong>de</strong> ser moldadatanto para o discurso sério quanto para a ironia. O prazer provoca<strong>do</strong> pela leitura <strong>de</strong> Sterne“é afim ao prazer que sentimos quan<strong>do</strong> contemplamos aquelas pinturas lúdicas a quechamamos arabescos” (I<strong>de</strong>m, p. 209).Também Jacques, o fatalista, <strong>de</strong> Di<strong>de</strong>rot é um <strong>romance</strong> elogia<strong>do</strong> pelo aspecto tanto<strong>do</strong> grotesco quanto <strong>do</strong> humor refina<strong>do</strong>, que nem sempre é <strong>de</strong>vidamente compreendi<strong>do</strong>como humor.Na tentativa <strong>de</strong> elaborar um significa<strong>do</strong> contemporâneo para a qualida<strong>de</strong>“rom}ntica” entendida aqui principalmente como atributo <strong>do</strong> <strong>romance</strong>, Schlegel afirmar|que a encontrajunto aos velhos mo<strong>de</strong>rnos (die älteren Mo<strong>de</strong>rnen), junto a Shakespeare,Cervantes, na poesia italiana, na época <strong>do</strong>s cavaleiros, <strong>do</strong> amor e <strong>do</strong>scontos <strong>de</strong> fada, época da qual provém tanto a coisa [o <strong>romance</strong>] quanto apalavra. É apenas isso [o <strong>romance</strong>] que, até agora, po<strong>de</strong> constituir umcontraponto à poesia clássica da Antiguida<strong>de</strong>; só esse sangue eternamentefresco da fantasia é digno <strong>de</strong> tomar o cetro às antigas imagens <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses[...]. Assim como nossa arte poética começou com o <strong>romance</strong>, a <strong>do</strong>s gregos6” (Literary Notebooks 1797-1801, ed.por Hans Eichner, Lon<strong>do</strong>n und Toronto, 1957, Nr. 1733, 1135), apudEICHNER, 2003, p. 176.


106começou com a epopéia e diluiu-se novamente nela. (SCHLEGEL, 1988, p.212)Quan<strong>do</strong> Amália, o <strong>de</strong>stinatário da Carta, pe<strong>de</strong>, por fim, uma <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> <strong>romance</strong>, estavem por meio <strong>de</strong> uma aparente tautologia: “Um <strong>romance</strong> é um livro rom}ntico”. A fórmulaconcentra to<strong>do</strong> o esforço <strong>de</strong>spendi<strong>do</strong> por Schlegel na busca <strong>de</strong> uma forma capaz <strong>de</strong>suportar o advento da poesia mo<strong>de</strong>rna. Romântico é o próprio <strong>romance</strong>, em suaautorreflexão, em sua permissivida<strong>de</strong>, na amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua perspectiva, em sua magnitu<strong>de</strong>épica. É mesmo em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>ssa amplitu<strong>de</strong> que Schlegel consagrará uma dascaracterísticas <strong>do</strong> <strong>romance</strong> <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> épica que Walter Benjamin reconhecerá no BerlinAlexan<strong>de</strong>rplatz <strong>de</strong> Döblin já nas primeiras décadas <strong>do</strong> século XX:Afirmas que o <strong>romance</strong> tem afinida<strong>de</strong> com o gênero narrativo, com ogênero épico; por outro la<strong>do</strong>, eu lembro em primeiro lugar que um cantopo<strong>de</strong> ser tão romântico [ou romanesco] quanto uma história. Eu nemmesmo sou capaz <strong>de</strong> pensar em um <strong>romance</strong> que não seja uma mistura <strong>de</strong>narrativa, canto e outras formas. O próprio Cervantes nunca compôs <strong>de</strong>outro mo<strong>do</strong>, e mesmo o tão prosaico Boccaccio enfeita sua antologia comuma série <strong>de</strong> canções. (SCHLEGEL, 1988, p. 213,grifo meu).Schlegel está aqui em meio à elaboração <strong>de</strong> sua <strong>teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>romance</strong> como uma novapossibilida<strong>de</strong> épica, que acolhe para<strong>do</strong>xalmente a individualização e a autorreflexãojuntamente com a perspectiva ampla <strong>do</strong> espelhamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.A “Carta sobre o <strong>romance</strong>” compõe, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>Lucin<strong>de</strong></strong> e da crítica sobre o Meister <strong>de</strong>Goethe, o projeto <strong>de</strong> Schlegel para o <strong>romance</strong> romântico. É preciso conce<strong>de</strong>r que <strong>Lucin<strong>de</strong></strong>,se julgada exclusivamente como obra ficcional, é uma obra medíocre e <strong>de</strong> difícilcompreensão. No entanto, emoldurada pelas obras <strong>de</strong> crítica, o <strong>romance</strong> <strong>de</strong> Schlegelparece cumprir o <strong>de</strong>sígnio expressa<strong>do</strong> pelo autor, que <strong>de</strong>sejara tera coragem para compor uma Teoria <strong>do</strong> <strong>romance</strong> que fosse ela própria um<strong>romance</strong> [...]. Ali viveriam as velhas entida<strong>de</strong>s em novas configurações; alia sagrada sombra <strong>de</strong> Dante se elevaria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ínfero, Laura voejariacelestialmente a nossa frente, e Shakespeare e Cervantes conversariamconfiadamente; ali, Sancho e Dom Quixote voltariam a pilheriar um com ooutro.” (SCHLEGEL, 1988, p. 215).


107<strong>Lucin<strong>de</strong></strong> é, portanto projeto romântico e ensaio, veículo <strong>de</strong> autorreflexão e objeto estético,<strong>romance</strong>, ainda que em um senti<strong>do</strong> que a crítica da época <strong>de</strong> Schlegel não pô<strong>de</strong> avaliar. Éjustamente a compreensão <strong>do</strong> <strong>romance</strong> <strong>de</strong> Schlegel como exposição estética <strong>do</strong>pensamento que lhe permitirá ocupar seu lugar <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> espaço intermediário entrepensamento e arte.Referências bibliográficasBERMAN, Antoine. A prova <strong>do</strong> estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica.Trad.<strong>de</strong> Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002.EICHNER, H. “Friedrich Schlegels Theorie <strong>de</strong>r Literatur”. In: Against the Grain: SelectedEssays. In: Symington, R. (Ed.) Bern/Berlin/Bruxelles/Frankfurt a.Main/NewYork/Oxford/Wien: Peter Lang, 2003. (Canadian Studies in German Languages andLiterature)___. “Romantisch – Romantik – Romantiker”.In: ___. Romantik and its cognates. TheEuropean History of a Word. Toronto: s.n., 1972.FRANK, M. “Allegorie, Witz, Fragment, Ironie. Friedrich Schlegel und die I<strong>de</strong>e <strong>de</strong>szerrissenen Selbst”. In: Reijen, Willem van. Allegorie und Melancholie. Frankfurt am Main:Suhrkamp, 1992.SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos da revista Lyceum e Fragmentos da revista Athenäum. In:Chiampi, I. (Coord.) Funda<strong>do</strong>res da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Trad. Willy Bolle. São Paulo: Ática, 1991.(Série Temas, v. 25).___. Kritische Schriften und Fragmente 1798-1801. In: Behler, E., Eichner, H.(Ed.)Pa<strong>de</strong>rborn/München/Wien/Zürich : Ferdnand Schöningh, 1988, vol.2.___. Kritische Schriften. Munique: Carl Hansen, 1956.___. <strong>Lucin<strong>de</strong></strong>. Studienausgabe. Stuttgart: Reclam, 1999.Wellek, R. Friedrich Schlegel.In: ___. História da crítica mo<strong>de</strong>rna. O romantismo. Trad. DeLívio Xavier. São Paulo: Editora Her<strong>de</strong>r/EDUSP,1967, v.2


i Wilma Patricia M.D. MAAS, Profa. Dra.Universida<strong>de</strong> Estadual Paulista Júlio <strong>de</strong> Mesquita Filho (UNESP)Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Estu<strong>do</strong>s Literários, Departamento <strong>de</strong> Letras Mo<strong>de</strong>rnaspmaas@uol.com.br108

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!