Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
INOCÊNCIA:<br />
TEMA CARO A<br />
DR. PLINIO
Há momentos, minha Mãe, em que minha alma se sente, no que tem de<br />
mais fundo, tocada por uma saudade indizível. Tenho saudades da época<br />
em que eu Vos amava, e Vós me amáveis, na atmosfera primaveril de minha vida espiritual.<br />
Tenho saudades de Vós, Senhora, e do paraíso que punha em mim a grande<br />
comunicação que tinha convosco. Não tendes também Vós, Senhora, saudades desse tempo?<br />
Não tendes saudades da bondade que havia naquele filho que fui?<br />
Vinde, pois, ó melhor de todas as mães, e por amor ao que desabrochava em mim, restauraime:<br />
recomponde em mim o amor a Vós, e fazei de mim a plena realização daquele filho sem<br />
mancha que eu teria sido, se não fosse tanta miséria.<br />
Dai-me, ó Mãe, um coração arrependido e humilhado, e fazei luzir novamente aos meus<br />
olhos aquilo que, pelo esplendor de vossa graça, eu começara a amar tanto e tanto!<br />
Lembrai-Vos, Senhora, deste David e de toda a doçura que nele púnheis. Assim seja!
Sumário<br />
Na capa:<br />
“Nossa Senhora<br />
menina”,<br />
por Francisco<br />
de Zurbarán<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Jornalista Responsável:<br />
Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Marcos Ribeiro Dantas<br />
Edwaldo Marques<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />
Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
Rua Barão do Serro Largo, 296<br />
03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />
Preços da assinatura anual<br />
Maio de 2001<br />
Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 60,00<br />
Colaborador . . . . . . . . . . R$ 90,00<br />
Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />
Grande Propulsor . . . . . . R$ 300,00<br />
Exemplar avulso . . . . . . . R$ 6,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />
4<br />
5<br />
6<br />
11<br />
15<br />
20<br />
25<br />
29<br />
31<br />
36<br />
EDITORIAL<br />
Para entrar no Reino dos Céus<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Inocência primaveril<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Saudades da infância, saudades<br />
da inocência<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
O convite de Deus a uma alma inocente<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Da brutal barbárie à doçura cristã<br />
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Conselhos de sabedoria para<br />
alcançar a santidade<br />
DONA LUCILIA<br />
Crescente e mútua afeição<br />
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
O problema fundamental<br />
do Brasil<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Grandiosa solidão, convívio celestial<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
Plenitude de Inocência<br />
3
Editorial<br />
Para entrar<br />
no Reino dos Céus<br />
OReino dos Céus é para aqueles que se assemelham<br />
às criancinhas (cfr. Mt 19, 14). Esta<br />
verdade do Evangelho tende a passar sob nossos<br />
olhos sem despertar maior atenção, talvez por se<br />
afigurar meio incompreensível. É, no entanto, fundamental.<br />
Como o Papa João Paulo II explica, Jesus, ao<br />
ordenar que deixassem aproximar-se um menino, “fez<br />
dele o próprio símbolo do comportamento que se tem de<br />
assumir, se se quiser entrar no Reino de Deus” (Novo<br />
Millennio ineunte, 10).<br />
Comportamento obrigatório? O tema causa estranheza.<br />
Como poderá um adulto, provado pelos embates<br />
da existência, carregado das cicatrizes de muitas<br />
quedas — tão “vivido”, conforme se diz — como poderá<br />
ele fazer-se um pequenino?<br />
Entretanto, é disto mesmo que se trata. Nos seus escritos,<br />
o Sumo Pontífice procura avivar a nossa reflexão<br />
a tal respeito, ressaltando que Nosso Senhor designa<br />
as crianças como “símbolo eloqüente e esplêndida<br />
imagem daquelas condições morais e espirituais que são<br />
essenciais para se entrar no Reino de Deus e para viver a<br />
sua lógica de total abandono ao Senhor” (Christifideles<br />
laici, 47). É necessária uma atitude de alma correspondente<br />
à “vida de inocência e de graça” (idem) característica<br />
dos pequenos.<br />
Quem nunca se encantou em observar o comportamento<br />
de uma criança inocente? Ela é desinteressada,<br />
generosa, sem fraude, despretensiosa, entusiasmada por<br />
aquilo que o merece, afetuosa com respeito. Procura<br />
o maravilhoso, emocionando-se, por exemplo, com narrações<br />
de histórias de fadas, de cavaleiros, de princesas.<br />
Pela ação da graça, tem movimentos de louçania<br />
com algo de celestial. Enleva-se com a atmosfera sobrenatural<br />
do Natal, com as figuras do presépio iluminadas<br />
na penumbra da noite, com os raios do sol que<br />
atravessam um belo e colorido vitral, com castelos, com<br />
desenhos de nuvens num céu de azul profundo, com<br />
as figuras de um caleidoscópio. E rejeita o mal. Faz<br />
uma correlação instintiva do verum e do bonum com o<br />
pulchrum, chegando a conclusões ricas como: “Mentir<br />
é feio!” — em vez de um simples “mentir é errado”.<br />
Em tudo é o oposto da alma orgulhosa e egoísta,<br />
superficial e vulgar, voltada apenas para o material, o<br />
prático, o utilitário.<br />
Como restaurar esse tesouro perdido, para assim nos<br />
fazermos “como um desses pequeninos”?<br />
Tal assunto foi objeto de estudos e conferências de<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, que o considerava fundamental para o progresso<br />
de cada um nas vias da perfeição. O ponto de<br />
partida para suas cogitações foi observar “a insensibilidade<br />
das almas para a inocência primaveril” — disse<br />
ele certa vez. “Eu gemia de dor por ver perdida a inocência<br />
de tanta gente, o recanto áureo da alma transformado<br />
em depósito de toda espécie de recordações inúteis”.<br />
E deixou-nos este precioso conselho: “Quando, na<br />
idade madura, quisermos pensar no Céu, andaremos muito<br />
avisadamente se procurarmos rememorar os ímpetos<br />
e alegrias da infância. Então haveremos de recordar alegrias<br />
que dificilmente se repetem ao longo da vida. Aí os<br />
egoísmos desaparecem, assim como as tristezas, as divisões,<br />
as melancolias, os rancores. Nosso espírito adquire<br />
meios de discernir o maravilhoso que o embotamento da<br />
vida leva a não perceber”.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Inocência primaveril<br />
Maio de 1967. Segundo seu costume,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, após fazer sua última conferência<br />
do dia e atender a algumas<br />
consultas, saiu para fazer uma refeição ligeira no<br />
Giordanno, um dos poucos restaurantes que funcionavam<br />
na noite paulistana. Invariavelmente ele<br />
pedia pizza.<br />
Era uma época em que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> estava aprofundando<br />
suas reflexões e observações a respeito<br />
de um tema que só considerará explicitado satisfatoriamente<br />
alguns anos depois: a inocência “primaveril”<br />
da criança, tornada ainda mais preciosa<br />
pelas graças do Batismo.<br />
Naquele noite, muitos o haviam acompanhado,<br />
formando uma roda grande de conversa. Entre um<br />
prato e outro, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> passou a discorrer sobre<br />
o tesouro que é a inocência. “Infelizmente”, dizia<br />
ele, “com exceção de Nossa Senhora, e talvez de São<br />
José, ninguém pode ter certeza de que pelo menos um<br />
pouquinho dessa graça primeiríssima, não se tenha<br />
perdido ao longo do caminho”. E exortava os circuns-<br />
tantes a rezarem, pedindo a restauração dessa inocência.<br />
Tocado pela graça, um dos que o ouviam<br />
pediu-lhe que compusesse uma oração neste sentido.<br />
“Vou ditá-la a vocês” — respondeu <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
sem hesitar. E começou: “Há momentos, minha<br />
Mãe, em que minha alma se sente, no que tem de<br />
mais fundo, tocada por uma saudade indizível...”<br />
As palavras foram brotando do coração de <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> num só jorro, demonstrando o quanto já meditara<br />
sobre o assunto.<br />
Nascia a mais bela prece que ele nos deixou,<br />
com termos cogentes, que calam no fundo da alma,<br />
constituindo uma verdadeira oração de contemplação.<br />
Alerta-nos para a importância capital da recuperação<br />
da inocência, e nos faz um premente convite<br />
para a implorarmos a Nossa Senhora.<br />
Sendo agora <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nosso intercessor junto à<br />
Rainha dos Céus, peçamos-lhe que apresente a Maria<br />
esta súplica que ele mesmo nos ensinou: “Lembrai-Vos,<br />
Senhora, deste David e de toda a doçura<br />
que nele púnheis. Assim seja”.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em março de 1968, poucos meses após compor a sua mais bela prece<br />
5
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO
As palavras movem, os exemplos arrastam. Eis por que os mais jovens ouvintes<br />
das conferências de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> costumavam pedir-lhe que ilustrasse com<br />
“fatinhos” — quer dizer, com pequenas reminiscências de sua vida — a doutrina que<br />
expunha. Algumas vezes ele acedeu. Na matéria aqui transcrita, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> trata da<br />
profunda influência que exerce numa alma a inocência batismal.<br />
Quando vemos os poetas ou<br />
os literatos escreverem a respeito<br />
de sua infância, notamos<br />
que sempre se referem a ela com<br />
saudades. Saudades de uma espécie de<br />
época áurea da vida, em que todas as<br />
podridões, decepções e dificuldades<br />
deste mundo de lutas não se lhes tinha<br />
apresentado. Época em que tudo era<br />
dourado, bonito, bom, aprazível, deleitável,<br />
e cada um deles, criança, vivia<br />
feliz no regaço de sua mãe.<br />
Lembro-me daquela poesia de Gonçalves<br />
Dias: “Ai! que saudades que tenho<br />
da aurora de minha vida, de minha<br />
infância querida, que os anos não trazem<br />
mais!” Ele era um grande poeta,<br />
muito influente no seu tempo, com<br />
imensa expressão no cenário nacional.<br />
Entretanto, ele — que havia chegado<br />
ao auge da carreira e<br />
certamente ambicionara<br />
ser o que foi — guardava<br />
saudades do tempo<br />
em que não tinha o que<br />
alcançara na maturidade.<br />
E constatava que algo<br />
daquilo que ele possuía<br />
outrora, perdera no<br />
caminho. Algo que valia<br />
mais do que tudo quanto<br />
conquistara.<br />
Assim como eu, a<br />
maioria dos que aqui me<br />
ouvem, embora tão jovens,<br />
já experimentou<br />
sentimento análogo.<br />
Meu quarto de brinquedos era destinado<br />
também para minha irmã, para<br />
uma prima que estava sendo educada<br />
conosco e eu estudarmos. Nossa governanta,<br />
a Fräulein Mathilde, nos dava<br />
aulas ali. No cômodo havia um armário<br />
enorme, cheio de livros didáticos<br />
para o nosso uso, naquela época em<br />
que o ensino era exigente com os muito<br />
mocinhos. Existia também uma escada,<br />
pendurada no teto e usada por<br />
mim nas minhas ginásticas. Devia subila<br />
várias vezes, como exercício recomendado<br />
por um ortopedista para corrigir<br />
um desvio na coluna.<br />
Havia ainda algo cujo uso era freqüente<br />
no meu tempo, e creio que hoje<br />
já completamente superado: ornavam<br />
as paredes quadros vindos da Europa,<br />
reproduções baratas e bonitas de pinturas<br />
célebres. Por exemplo, “A rendição<br />
de Breda”, de Velasquez. Breda era<br />
uma cidade holandesa que os espanhóis<br />
venceram depois de um prolongado cerco.<br />
Aparecia então o prefeito — o burgomestre<br />
— para entregar ao Marquês<br />
de Spínola as chaves da cidade. O prefeito<br />
era um burguês rotundo, dando<br />
a impressão de ser obeso até nas pálpebras.<br />
Vinha com um ar meio risonho<br />
e um chapéu na mão, cuja pena quase<br />
se arrastava no solo. O Marquês, pelo<br />
contrário, um homem alto, quase esguio,<br />
revestido de uma couraça brilhante<br />
dos pés à cabeça, e com uma faixa<br />
cor-de-rosa na cintura, distintivo de seu<br />
generalato. Demonstrando muita bondade,<br />
pegava as chaves com uma mão<br />
e com a outra apertava a destra do vencido,<br />
numa espécie de consideração<br />
Recordação dos<br />
tempos<br />
da infância<br />
Uma vez que me pedem<br />
“fatinhos”, lembrome<br />
de minha infância.<br />
No seu quarto de estudos, no Palacete Ribeiro dos Santos (acima), costumava o pequeno<br />
<strong>Plinio</strong> analisar as impressões e sensações que lhe tocavam a alma<br />
7
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
que só os homens de espírito elevado<br />
têm para com os derrotados.<br />
Estampas de quadros como esse<br />
eram muito acessíveis, formavam pilhas<br />
nas livrarias e papelarias, e a criançada<br />
escolhia o que mais lhe agradava.<br />
Uma lição muda, porém<br />
expressiva<br />
Para ornamentar nosso quarto havia<br />
também um quadro. Ele retratava<br />
dois cachorros da raça dackel, cães<br />
<strong>Plinio</strong>, aos<br />
4 anos<br />
caseiros, com grandes orelhas cobertas<br />
por um pavilhão enorme, caindo<br />
como se fosse uma peça de cortina. O<br />
pêlo era de um marrom claro reluzente,<br />
quase cor de café com leite, e numa<br />
situação de muito bem-estar. Tinhase<br />
a impressão de bichos supercontentes,<br />
que haviam acabado de comer e<br />
estavam fazendo uma digestão ultraagradável.<br />
O fato de estarem juntos deixava<br />
transparecer uma grande amizade.<br />
Esta não existe entre os bichos, mas<br />
é uma forma de prazer de estarem reunidos<br />
que os animais gregários possuem.<br />
Há os que gostam<br />
de viver sozinhos, e<br />
outros que são gregários.<br />
Os cachorros muito<br />
freqüentemente o são,<br />
e esses o eram.<br />
Aquela tranqüilidade<br />
era salutar para as crianças,<br />
fazendo-as compreender<br />
que a alegria, a satisfação<br />
e o bem-estar<br />
não estão só em correr,<br />
em fazer barulho, sobretudo<br />
não só em excitarse;<br />
que excitação é o erro,<br />
e a calma, o acerto.<br />
Esse quadro poderia<br />
ter como título: “Tranqüilidade<br />
saborosa”. Porque<br />
era a tranqüilidade,<br />
e todos os gostos e sabores<br />
dela estavam ali<br />
representados. A criança<br />
que o olhasse ficava<br />
meio propensa a também<br />
entrar naquele estado<br />
de espírito.<br />
Debaixo desse ponto<br />
de vista, nós, entes humanos,<br />
tomávamos uma<br />
lição muda, mas muito<br />
expressiva, de um convite<br />
à tranqüilidade.<br />
Enquanto freqüentei<br />
aquela sala, gostava de<br />
considerar esses cachorros,<br />
sem saber ao certo<br />
a razão de tal comprazimento.<br />
Pensava que fosse<br />
pela cor deles. Apenas<br />
bem mais tarde cheguei<br />
a perceber que não era a cor — a<br />
qual também me deleitava —, mas sim<br />
a calma tranqüila, estável, significativa<br />
de um valor que a criança deve ter.<br />
A formação do pensamento<br />
nos momentos de soledade<br />
Passada a infância, fiquei muitos<br />
anos sem voltar à sala de brinquedos.<br />
Ela permanecia fechada, e esporadicamente<br />
uma limpadeira a abria para<br />
fazer a faxina. Certo dia, entrei nela<br />
de repente e vi aqueles cachorros. Eles<br />
me trouxeram à lembrança tanta coisa,<br />
que eu podia repetir com Gonçalves<br />
Dias: “Ai! que saudades que tenho da<br />
aurora da minha vida, da minha infância<br />
querida, que os anos não trazem<br />
mais!”<br />
No meu tempo de menino, o que me<br />
diferenciava de uma parte de meus<br />
amigos?<br />
Nos momentos de brincadeira, éramos<br />
todos muito companheiros uns dos<br />
outros. Em outras ocasiões, porém,<br />
agradava-me ficar sozinho. Nessas horas<br />
a sós é que começava a se formar<br />
em mim uma zona de minha personalidade,<br />
para assim me exprimir, da qual<br />
de próximo em próximo, em próximo,<br />
em próximo, através das décadas, constituiu-se<br />
o que temos hoje.<br />
Os quartos destinados aos folguedos<br />
das crianças eram preparados de<br />
maneira a terem um chão tão limpo<br />
que se pudesse brincar sem sujar-se.<br />
Eu, então, ficava esticado no assoalho,<br />
às vezes lidando com algum brinquedo,<br />
mas pensando. No quê? Em tudo e em<br />
nada, muito mais em tudo do que em<br />
nada, e desfrutando da tranqüilidade<br />
que eu apreciava naqueles cachorros.<br />
Analisando a repercussão<br />
das coisas externas<br />
Quer dizer, sentindo-me só e sentindo<br />
como as coisas refletiam em mim.<br />
Perfumes; sons vindos da rua ou de<br />
dentro de casa; uma música que alguém<br />
estivesse tocando aí ou em alguma<br />
das residências vizinhas; enfim, toda<br />
espécie de impressões que vinham<br />
8
“Eu fora batizado.<br />
E sentia uma<br />
ligeireza de espírito<br />
para apreender tudo,<br />
formando a minha<br />
personalidade, com a<br />
aceitação dos frutos<br />
bonitos postos por<br />
Deus na Terra”<br />
árvore produzia em mim certos efeitos<br />
agradáveis, que eu gostava de sentir e,<br />
sobretudo, de analisar. Quando recebo<br />
o perfume e a harmonia bonita desta<br />
acácia, o que se dá comigo?<br />
Passa-se algo pelo qual um tanto de<br />
cultura e de civilização penetra em mim.<br />
É diferente de olhar uma minhoca, por<br />
exemplo. Comprazia-me ver como eu<br />
ficava mais flexível, menos selvagem,<br />
olhando para a acácia. E como, com<br />
essas disposições, eu crescia em algo<br />
que não sabia definir.<br />
Muitas outras coisas produziam em<br />
mim esse bom efeito, e até mais profundo.<br />
Entre elas, fotografias de armaduras<br />
medievais. Aquela armadura brilhante,<br />
com o cavaleiro segurando uma<br />
espada, a viseira baixa, luvas de metal<br />
nas mãos, perneiras, braçadeiras e aquela<br />
resolução! Agradava-me contemplálas<br />
longamente. Tinha a impressão de<br />
que algo da robustez daqueles cavaleiros,<br />
da sua vontade indomável e da<br />
sua deliberação me influenciava. E ficava<br />
encantado.<br />
Pia Batismal<br />
em que <strong>Plinio</strong><br />
recebeu as<br />
águas do<br />
Santo<br />
Batismo<br />
do exterior e se estabeleciam na minha<br />
alma, produzindo nela um certo efeito,<br />
uma determinada sensação que eu gostava<br />
de notar.<br />
Então, por exemplo, no centro do<br />
jardim de casa havia uma árvore com<br />
uma flor bonita, chamada camélia. A<br />
árvore era linda, uma das poucas cujo<br />
tronco eu achava igualmente belo. Era<br />
prateado, com uma espécie de azuladocinzento<br />
revestindo a casca.<br />
Outra árvore erguia-se com os vários<br />
ramos de tamanho muito proporcionado,<br />
armando uma copa interessante,<br />
com folhazinhas todas feitas dessa<br />
espécie de veludo cinza-prata. Como<br />
flor dava umas bolinhas pequenas<br />
entre amarelo e dourado, muito perfumadas,<br />
constituídas de fiozinhos que<br />
formavam uma espécie de esponjinha.<br />
Era a acácia. Uma esplêndida árvore.<br />
Perto da acácia havia um caramanchão,<br />
e sob este um banco de madeira,<br />
pintado de verde-garrafa. Eu gostava<br />
de me sentar e ficar olhando a acácia...<br />
“Ali está ela e aqui estou eu”. Aquela<br />
Uma “alfândega” interior<br />
como fruto da inocência<br />
batismal<br />
Alguém me dirá: “Mas o que fazia<br />
com que as coisas repercutissem tão<br />
intensamente no senhor? O que fazia<br />
com que, numa idade ainda tão tenra,<br />
o senhor percebesse as diferenças entre<br />
o que lhe causava boa influência e<br />
o que poderia influenciar de modo nocivo,<br />
e estabelecesse uma espécie de<br />
alfândega dentro de sua alma?”<br />
É que eu fora batizado. Era a inocência.<br />
A inocência e, enquanto eu não<br />
pecasse, a habitação do Divino Espírito<br />
Santo na minha alma. Essa presença<br />
se verifica em todo inocente, a tal<br />
ponto que Orígenes, uma das grandes<br />
figuras dos primórdios do Cristianismo,<br />
diante de uma criança que acabava<br />
de ser batizada, osculava-a no peito.<br />
E quando lhe indagavam a razão desse<br />
gesto, ele respondia:<br />
— Deus mora aí.<br />
Ora, eu sentia qualquer coisa de<br />
uma ligeireza de espírito para apreen-<br />
9
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
der tudo, para, à maneira de uma<br />
criança, analisar tudo, recusando o<br />
que fosse contra essa inocência, e, pelo<br />
contrário, aceitando o que fosse a<br />
favor. Através desses sentimentos, ia<br />
formando a minha própria mentalidade,<br />
com a aceitação dos frutos<br />
bonitos postos por Deus na Terra.<br />
Dª Lucilia, Nossa Senhora<br />
e o Coração de Jesus<br />
Mais do que a acácia, porém, mais<br />
do que o cavaleiro, mais do que os dois<br />
cachorros, mais do que todo o resto,<br />
agradava-me o convívio com Dª Lucília.<br />
Um só olhar dela bastava para fazer<br />
em mim o que horas de acácia ou de<br />
cavalaria não fariam. Um timbre de<br />
sua voz ou a sensação do carinho dela<br />
me batendo no rosto para agradar, tocavam-me<br />
de maneira superlativa.<br />
“Um só olhar de<br />
Dona Lucilia,<br />
ou a sensação do<br />
carinho dela me<br />
afagando, tocavamme<br />
de maneira<br />
superlativa.<br />
Mais do que ela,<br />
todavia, era<br />
considerar<br />
a imagem<br />
do Sagrado<br />
Coração<br />
de Jesus...”<br />
Mais do que ela, todavia, era<br />
olhar para as imagens do Sagrado<br />
Coração de Jesus e do Coração<br />
Imaculado de Maria, era ir à<br />
Igreja do Coração Jesus, rezar<br />
ali, sentir algo que me envolvia e<br />
que mais tarde eu saberia tratarse<br />
da graça espargida pelo Espírito<br />
Santo.<br />
Com essas considerações julgo<br />
ter atendido o pedido que me fizeram.<br />
Roguemos a Nossa Senhora, enquanto<br />
Esposa do Divino Espírito Santo,<br />
que nos conceda a restauração dessa<br />
inocência, que a graça restabelece<br />
muito além do que podemos ter perdido,<br />
para assim voarmos alto nos firmamentos<br />
de Deus. v<br />
10
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Inocente e agraciada com<br />
inapreciáveis favores divinos,<br />
a bem-aventurada Osana de<br />
Mântua desde cedo<br />
acostumou-se a uma intensa<br />
vida de oração e ascese;<br />
recebeu os estigmas da<br />
Paixão, e deixou esta vida<br />
como membro da Ordem<br />
Terceira Dominicana<br />
Já assinalamos<br />
outras vezes que<br />
“Santo do Dia”<br />
era o título de uma<br />
série de conferências<br />
quase diárias dadas<br />
durante muitos anos<br />
por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
Em cada ocasião,<br />
eram-lhe apresentadas<br />
as biografias dos Santos<br />
celebrados na data,<br />
e ele escolhia uma<br />
delas para comentar.<br />
Foi o que ocorreu naquela<br />
noite de sextafeira,<br />
há cerca de três<br />
décadas...<br />
O convite de Deus a<br />
uma alma inocente<br />
Afesta de hoje é de Santo Efrém,<br />
da Síria, diácono, confessor e<br />
Doutor da Igreja. Chamado<br />
“cítara do Espírito Santo”, grande devoto<br />
da Virgem, lutou contra os hereges<br />
no século IV. Estamos também no terceiro<br />
dia da novena do Sagrado Coração<br />
de Jesus. Tenho ainda aqui a ficha da<br />
bem-aventurada Osana de Mântua.<br />
Qual delas comentar? Tenho certa preferência<br />
por esta última, porque nunca<br />
ouvi falar dessa bem-aventurada. Vejamos<br />
o que diz o autor:<br />
Osana Andreazzi, nascida em Mântua<br />
em 17 de Janeiro de 1449, num esplen-<br />
11
DR. PLINIO COMENTA...<br />
doroso palácio, pertencia a nobilíssima<br />
família vinda da Hungria. Com seis anos,<br />
um dia passeava sozinha pelas margens<br />
do rio Pó, quando ouviu uma voz clara,<br />
que lhe dizia com firmeza: “A vida e a morte<br />
consistem em amar a Deus”. Extasiada,<br />
viu-se erguida do solo por um grande<br />
e belo Anjo. “Para entrar no Céu é necessário<br />
que a Deus muito ames. Ama-o.<br />
Ele a tudo criou para que O amem”,<br />
disse o Anjo.<br />
Diante de Deus, então, ela rezou: “Ó<br />
Deus, Deus meu, por amor Vós me criastes<br />
para Vos amar e ser a Vós reconhecida<br />
por vossas imensas e inumeráveis bondades.<br />
Ó meu Deus e Senhor! inclinai<br />
os ouvidos de vossa bondade e escutai<br />
um pouco o meu pedido, não desdenheis<br />
minha intenção e meu santo desejo. Rezo,<br />
Senhor, porque tenho receio de não<br />
Vos amar e de não Vos conhecer como deveis<br />
ser conhecido. Eis que, ó Bondade<br />
Eterna, estou disposta no meu espírito a<br />
só tomar a Vós. Ó meu doce Senhor! eu<br />
queria encontrar a maneira de, com atenção,<br />
poder abraçar-Vos a Vós só. Por isso<br />
rogo-Vos, iluminai-me com o fogo do Espírito<br />
Santo, ensinai-me, estabelecei-me<br />
de tal modo que perfeitamente possa<br />
amar-Vos e só a Vós, meu Deus, e de<br />
coração perfeito possa servir-Vos”.<br />
Um grande desejo de ser teóloga invadiu-a<br />
avassaladoramente. Mas o pai<br />
achava que aquilo não convinha a uma<br />
criança. Proibiu-lhe. Osana, então, recorreu<br />
à oração, e a própria Mãe de Deus<br />
veio ensinar-lhe, ministrando-lhe lições.<br />
E a bem-aventurada dominou o latim,<br />
chegando a um sólido conhecimento da<br />
Escritura Sagrada, e podendo até citar<br />
Padres da Igreja. A proibição paterna a<br />
pouco e pouco se atenuou, caindo por<br />
terra. Faleceu com 56 anos, em 1505. Seu<br />
corpo, intacto depois de 400 anos, achase<br />
atualmente na catedral da cidade.<br />
Aí temos o esplendor e, ao mesmo<br />
tempo, a dificuldade de se fazer idéia<br />
do que seja um santo através de narrações<br />
desse tipo. Conta um fato realmente<br />
admirável da vida dela, que se passou<br />
na infância. Depois informa que ela ficou<br />
teóloga, mas não nos diz quais foram<br />
suas cogitações, o que ela estudou,<br />
que pensamentos externou, nada! Fica-se<br />
sabendo depois que ela morreu e<br />
que o corpo não se putrefez. Com esses<br />
escassos elementos, é muito árduo<br />
formar a idéia de um todo. Temos apenas<br />
fulgurações dentro das penumbras<br />
de uma vida cujo unum se gostaria de<br />
conhecer, para se ter uma noção geral<br />
do que ela fez.<br />
Por exemplo, se casou-se ou não; se<br />
entrou para uma Ordem religiosa; se<br />
foi perseguida por amor de Deus; se<br />
teve lutas com hereges ou com autoridades<br />
temporais simoníacas; se teve<br />
provações extraordinárias; se teve consolações,<br />
etc. Nada disso nos é possível<br />
saber. Em primeiro lugar, porque<br />
uma simples ficha não pode contar tudo<br />
isso. De outro lado, é muito possível<br />
que a biografia não conte mais do<br />
que isso. É-me, pois, difícil apresentar<br />
um comentário que, de fato, atinja o<br />
seu fim, que é de proporcionar a todos<br />
uma vontade séria, não uma veleidade,<br />
mas um firme propósito de nos tornarmos<br />
santos.<br />
Porém, os fatos aqui selecionados<br />
são muito bonitos e se prestam a algumas<br />
considerações que podem nos interessar.<br />
Caminhando pelas margens do aprazível<br />
rio Pó, a pequena Osana teve a aparição<br />
do magnífico Mensageiro divino
Uma pequena teóloga que<br />
na sua inocência começa<br />
a falar<br />
Sabemos que os estudos de Teologia<br />
e Filosofia, por sua grande profundidade,<br />
exigem um exercício muito grande<br />
da razão. É verdade que a Teologia é baseada<br />
em dados da Fé, todavia é uma<br />
elucubração racional a respeito desses<br />
dados, exigindo uma profunda aplicação<br />
da razão. São, portanto, estudos que<br />
convêm a pessoas maduras.<br />
Ora, deparamos com uma situação<br />
curiosa: a Providência decide estimular<br />
a esses estudos uma menina de apenas<br />
Diante da<br />
proibição<br />
paterna, Osana<br />
recorreu aos céus<br />
e foi atendida: a<br />
própria Mãe de<br />
Deus encarregouse<br />
de ensiná-la,<br />
abrindo seu<br />
conhecimento<br />
para o latim e as<br />
Escrituras<br />
Sagradas<br />
5 ou 6 anos de idade, que<br />
está passeando às margens<br />
do lindíssimo rio<br />
Pó (aliás, tive ocasião de<br />
percorrê-lo longamente<br />
entre Milão e Veneza, encantando-me<br />
com as belezas<br />
dos panoramas). Enquanto<br />
ela caminhava, apareceu<br />
diante dela um Anjo,<br />
um ser magnífico, que lhe<br />
fez a seguinte comunicação:<br />
“Para entrar<br />
no Céu é preciso<br />
que a Deus<br />
muito se ame.<br />
Veja: todas as<br />
coisas cantam-<br />
Lhe a glória e O proclamam<br />
aos homens. Ame-O, ame tudo<br />
o que criou, para que O amem”. O sentido<br />
das palavras é: Ele criou tudo e<br />
deve ser amado.<br />
Por que a aparição de um Anjo para<br />
dizer essas coisas? Qual o Anjo que<br />
teria dito isso? Qual o modo de proceder<br />
do Anjo sobre a alma da menina?<br />
O Anjo tinha a menina provavelmente<br />
colocada num panorama bonito e impressionada<br />
— como acontece na infância<br />
e na inocência primeira — com as<br />
belezas da natureza. Mas é evidente que<br />
quando o Anjo se revelou a ela, a mais<br />
bela coisa que Osana tinha diante dos<br />
olhos era ele, um ser de uma beleza toda<br />
espiritual e esplendorosa, a quem ela<br />
teve a graça de conhecer e de contemplar<br />
face a face.<br />
Quando o Anjo disse: “Veja como todas<br />
as coisas que Deus criou são belas;<br />
ame-as”, naturalmente sabia ser ele próprio<br />
a maior beleza que a menina já tinha<br />
visto. E ao afirmar: “Deus criou todas<br />
as coisas, todas as coisas refletem a<br />
Deus, ame-O”, ele queria significar sobretudo<br />
o seguinte: “Eu fui criado por<br />
Deus, eu reflito a Deus de um modo<br />
magnífico, ame a Deus contemplando a<br />
mim”.<br />
Deus fez a essa menina um convite<br />
enfático, arrebatador, para que ela,<br />
através da visão do Anjo, compreendesse<br />
a magnificência do Criador e de toda<br />
a ordem da criação, que fica fora do<br />
alcance dos nossos sentidos. E com isso<br />
convidá-la a transpor-se além de tudo<br />
quanto é sensível, a situar o espírito naquilo<br />
que tem muito mais densidade de<br />
ser, que são as criaturas meramente espirituais<br />
e, infinitamente acima delas,<br />
Nosso Senhor.<br />
Qual era a intenção de Deus? Era fazer<br />
dela, já nessa primeira apresentação,<br />
uma pessoa destinada à reflexão. Porque<br />
nas palavras do Anjo o que está dito<br />
é o seguinte: Todas as coisas refletem<br />
a Deus. Faça um esforço de inteligência<br />
para, através desse reflexo, conhecê-Lo.<br />
Aí está indicado o caminho de sua santificação.<br />
Aí está indicado o prêmio: se<br />
um Anjo é tão belo, quanto mais belo<br />
será Deus Nosso Senhor! Aplique-se à<br />
meditação.<br />
Neste modo de dizer do Anjo, é tão<br />
pronunciado o chamado para a Teologia,<br />
que ela responde com uma oração<br />
que já é um verdadeiro tratadinho teológico.<br />
E era uma menina de seus 6 anos<br />
de idade! É uma teologazinha que na<br />
sua inocência começa a falar.<br />
Como se desenvolveu o<br />
espírito da bemaventurada?<br />
Vamos imaginar a cena: o Rio Pó<br />
que deflui tranqüilo e luminoso, um<br />
barranco acima do rio, um jardim. A<br />
ficha biográfica nos diz que ela era de<br />
13
DR. PLINIO COMENTA...<br />
O Espírito Santo<br />
sopra onde quer, e fez<br />
da bem-aventurada<br />
Osana uma insigne<br />
pensadora católica.<br />
Seu corpo, incorrupto<br />
há 400 anos,<br />
encontra-se na<br />
Catedral de Mântua<br />
uma família nobilíssima. Naquele<br />
tempo as famílias nobres em geral<br />
eram ricas e, o mais das vezes, as<br />
famílias ricas eram nobres. Podemos<br />
conceber, portanto, uma menina<br />
rica e vestida como se trajavam<br />
as meninas naquele tempo.<br />
Ora, como se vestia uma menina<br />
daquele tempo? Não era com o<br />
que se chama de traje de criança<br />
em nossos dias. Era com uma miniatura<br />
do traje das pessoas adultas.<br />
Temos, portanto, de imaginála<br />
vestida como uma mulherzinha,<br />
com saia comprida, com cintura,<br />
cabelo penteado de um certo modo<br />
e, possivelmente, com uma flor<br />
na mão. E temos de figurar uma<br />
criança assim — verdadeira boneca<br />
de se expor em vitrine — que<br />
de repente tem um êxtase. Vê um<br />
Anjo, e os que estão em torno dela<br />
nada vêem. E, diante dos circunstantes<br />
arrebatados, a menina, com o timbre<br />
delicado da voz feminina, acentuado<br />
pelo timbre infantil, com os fulgores<br />
da inocência primeva, sai com<br />
todo esse tratadinho de oração.<br />
O que se passou nessa criança para<br />
ela se ter iluminado de tal maneira?<br />
Qual foi esse convite da graça para ela?<br />
O que aconteceu para que ela fizesse<br />
algo que uma criança não consegue fazer,<br />
que é raciocinar tão bem e com essa<br />
segurança?<br />
Mais. Já nessa hora ela disse uma<br />
palavra que é o seu ecce ancila Domini:<br />
“Eu aceito, vou contemplar a Deus a<br />
vida inteira. Vou contemplá-Lo enquanto<br />
Criador das coisas que existem; vou<br />
contemplá-Lo enquanto presidindo e<br />
conservando a ordem dessa Criação.<br />
E essa contemplação, eu a farei como<br />
a finalidade de minha vida”.<br />
Podemos imaginar o que seria a infância<br />
de uma menina assim. Não era<br />
uma doutorazinha, a toda hora dardejando<br />
uma lição, mas brincava com boneca,<br />
com casinha, de costura, etc., enquanto<br />
se entregava a reflexões. Ajudada<br />
pela graça, parava e dizia alguma coisa<br />
que havia excogitado. É assim que<br />
devemos supor o desenvolvimento normal<br />
do espírito dela, assim como foi o<br />
do Menino Jesus — que teve verdadeiramente<br />
infância, mas era Ele! —<br />
ou como terá sido com Nossa Senhora.<br />
Podemos pensar, também, nas pessoas<br />
piedosas moradoras naquela casa,<br />
vivendo sob o influxo do ambiente<br />
medieval, encantadas com a menina e<br />
considerando que ela não era qualquer<br />
uma: Deus, por ela, queria fazer<br />
maravilhas.<br />
Tendo Nossa Senhora<br />
como Mestra<br />
Mas, sente-se na descrição o embate<br />
do mundanismo. A menina quis ser<br />
teóloga, e o pai não o permitiu. Compreende-se<br />
que ele não tenha querido.<br />
Entrevê-se que desejava para ela uma<br />
carreira terrena e não a de teóloga, que<br />
era raríssima em se tratando de mulher.<br />
Ele almejava para a filha uma carreira<br />
de grande dama, e chegou a proibir o<br />
curso de teologia para uma menina tão<br />
fortemente chamada por Deus. Ele tinha<br />
um milagre diante de si, mas disse<br />
não a Deus.<br />
Vemos a saída que Deus deu ao caso:<br />
“Está bom, não pode estudar teologia?<br />
Nossa Senhora ensinará a ela”.<br />
É um curso. Esse dado é muito encantador.<br />
A ficha é muito categórica: “A<br />
própria Mãe de Deus veio ensinar-lhe,<br />
ministrando-lhe lições. Em pouco tempo<br />
a bem-aventurada dominou o latim,<br />
chegando a um sólido conhecimento<br />
da Escritura Sagrada, e podendo<br />
até citar Padres da Igreja”.<br />
Quer dizer, Nossa Senhora deu<br />
a ela uma interpretação da Sagrada<br />
Escritura. Podemos imaginá-la já<br />
mocinha e, de vez em quando, Nossa<br />
Senhora que aparece e lhe ensina<br />
alguma coisa da Bíblia, dá lições<br />
de teologia e, provavelmente, o próprio<br />
método de pensar da teologia.<br />
E ela se torna assim uma pesquisadora<br />
autorizada e sólida da Escritura<br />
Sagrada.<br />
Vemos aqui a vitória dos desígnios<br />
da Providência e uma luz que<br />
se acende na Igreja: não mais a do<br />
pensador, mas a da pensadora. Exceção<br />
legítima, válida, magnífica,<br />
que mostra não ser por inferioridade<br />
que a mulher não é pensadora,<br />
mas por uma vocação adequada à sua<br />
missão na Terra.<br />
Mostra também que o Espírito sopra<br />
onde quer. Creio que todos sentimos<br />
a mesma curiosidade: não haverá<br />
um livro da bem-aventurada Osana de<br />
Mântua que tenha as meditações dela<br />
sobre as Escrituras? E não constarão<br />
nele também as meditações que Nossa<br />
Senhora lhe ensinou? Pois Nossa<br />
Senhora não se limitou a revelar. Ensinou,<br />
adestrou o exercício da razão para<br />
conhecer as verdades que deveria conhecer.<br />
Seria muito bonito colocar, na entrada<br />
de uma universidade católica, um<br />
grupo de esculturas, tendo Nossa Senhora<br />
em pé, ensinando, e a Bem-Aventurada<br />
Osana sentada junto ao pupitre,<br />
não na mera contemplação, mas escrevendo<br />
e estudando com seriedade. Até<br />
mais: eu me atreveria a pô-la fazendo<br />
uma pergunta, e Nossa Senhora respondendo.<br />
Aí o fato dessa relação de<br />
vida mística se tornaria mais claro.<br />
Alguém me dirá: “Essas são considerações<br />
muito sumárias sobre uma<br />
vida que se gostaria de conhecer mais<br />
a fundo.”<br />
Ora, o “Santo do Dia” tem a finalidade,<br />
não de dar a conhecer uma vida,<br />
mas de provocar o desejo de conhecêla.<br />
Se obtive esse resultado, considero<br />
esta conferência bem empregada. v<br />
14
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
DA BRUTAL<br />
BARBÁRIE<br />
À DOÇURA CRISTÃ<br />
Uma “ enorme estátua erguia-se diante de<br />
vós; (...). Sua cabeça era de fino ouro,<br />
seu peito e braços de prata, seu ventre<br />
e quadris de bronze, suas pernas de ferro, seus pés<br />
metade de ferro e metade de barro.<br />
Contempláveis (essa estátua) quando uma<br />
pedra descolou da montanha, sem intervenção de<br />
mão alguma, veio bater nos pés, que eram de ferro<br />
e barro, e os triturou.<br />
Então o ferro, o barro, o bronze, a prata e o<br />
outro foram com a mesma pancada reduzidos a<br />
migalhas, (...) enquanto que a pedra que havia<br />
batido na estátua tornou-se uma alta montanha,<br />
ocupando toda a região.” (Da 2, 31-35).<br />
Assim falava Daniel, interpretando o sonho<br />
do rei de Babilônia, Nabucodonosor. E explicava ao<br />
soberano o simbolismo dessas imagens: quatro impérios<br />
se sucederiam, até Deus suscitar “um reino<br />
que jamais passará a outro povo: destruirá e aniquilará<br />
todos os outros, enquanto ele subsistirá<br />
eternamente” (Da 2, 44). A maior parte dos teólogos<br />
católicos vêem nesses impérios o babilônio, o persa,<br />
o grego e o romano; na pedra vencedora identificam<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Quando aluno do Colégio São Luís, ao deparar com descrições dos aspectos aviltantes e<br />
brutais do mundo anterior a Cristo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se perguntava se valia a pena tomar conhecimento<br />
deles. A conclusão: vale, pois assim é possível medir a amplitude da transformação sofrida pela<br />
humanidade em virtude do Sacrifício da Cruz, e a superioridade de uma civilização regida pelas<br />
leis do Evangelho.<br />
Transcrevemos aqui excertos de aulas e conferências de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nas quais ele compara<br />
o mundo antigo e a civilização implantada pela Igreja.<br />
Considero o Egito como a mais gloriosa das nações<br />
antigas.<br />
Dele os gregos tiraram grande parte de sua cultura,<br />
e os romanos, por sua vez, foram colher na Grécia muito<br />
de sua civilização.<br />
De outro lado, a moral do povo egípcio era superior em<br />
vários pontos à de outros povos da antiguidade. Por exemplo,<br />
ao contrário de outros povos contemporâneos seus, recomendava<br />
ele a benignidade, o respeito do filho ao pai, da<br />
mulher ao marido e vice-versa, do inferior para o superior,<br />
etc.<br />
acreditavam que o contato com esse animal comunicava<br />
impureza — não material, mas essencial — atingindo o homem<br />
na sua alma. O banho no Nilo seria purificador. Ora,<br />
eles consideravam normal que os porcos fossem tratados<br />
por pessoas da classe popular.<br />
Abaixo desta última, havia ainda um quarto grupo, que<br />
não era considerado classe social: o dos escravos. Viviam<br />
em situação pior que a dos animais. Não usufruíam de direito<br />
algum, podiam ser maltratados à vontade pelo senhor,<br />
separados da família, e votados a trabalhos penosos.<br />
Não tinham direito nem à própria vida: um escravo podia<br />
A civilização egípcia<br />
não estava<br />
isenta de graves<br />
chagas<br />
No entanto, como no restante<br />
do mundo antigo, reinava<br />
na sociedade egípcia uma<br />
desigualdade desproporcionada<br />
entre os homens. Assim, o<br />
faraó e as duas primeiras classes<br />
sociais — a sacerdotal e a<br />
guerreira — possuíam a totalidade<br />
do território nacional, na<br />
razão de um terço para cada.<br />
Já os elementos da classe popular,<br />
embora considerados livres<br />
(isto é, podiam mudar de<br />
emprego, de casa, etc.), não tinham<br />
qualquer possibilidade de<br />
manter uma propriedade. Além<br />
disso, eram muito mal remunerados<br />
e viviam miseravelmente.<br />
Para se ter uma idéia da situação<br />
de desprezo à qual era<br />
relegada essa classe, basta dizer<br />
o seguinte: quando um egípcio<br />
de certa posição tocava em<br />
um porco, mesmo com a ponta<br />
do manto, ficava na obrigação<br />
de banhar-se no rio Nilo, pois<br />
A esfíngie e, ao fundo, as grandes pirâmides de Gizé: monumentos que<br />
atravessaram as eras, ostentando aos olhos da humanidade toda a glória e a<br />
magnificência do Antigo Egito<br />
16
ser morto, mesmo não havendo razão para tal, por um simples<br />
capricho de seu dono.<br />
É um tanto difícil de compreender como o Egito, país tão<br />
civilizado, pudesse chegar a esse ponto. É verdade que a existência<br />
da escravidão é peculiar a todas as sociedades antigas,<br />
mesmo a chinesa. Esse regime degradante só foi eliminado<br />
do mundo com o advento do Cristianismo, que difundiu<br />
entre os homens a idéia da verdadeira fraternidade.<br />
Com Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu a noção de que<br />
os homens são iguais perante o Altíssimo,só então apareceu<br />
a idéia da justa distribuição das condições da vida, a<br />
fim de que todos pudessem, enfim, viver com dignidade<br />
humana. Antes do advento do Cristianismo, uns viviam<br />
com gozos materiais imensos, outros, completamente espezinhados<br />
pela prepotência dos primeiros, numa desigualdade<br />
chocante.<br />
No Ocidente, foi apenas com a decadência da Civilização<br />
Cristã e o advento da Primeira Revolução — Humanismo,<br />
Renascimento e Protestantismo —, que a escravidão voltou<br />
a ser praticada em larga escala, e não na Europa, mas nas<br />
Américas.<br />
Menos que a pata de um cavalo...<br />
A sociedade, para funcionar bem, supõe desigualdades:<br />
de importância, de ilustração, de situação, etc. Porém, que<br />
não sejam extravagantes, exorbitantes, mas harmoniosas, proporcionadas.<br />
Aí começa a colaboração dos desiguais, cada<br />
qual com sua missão própria. Temos, então, a sociedade humana<br />
funcionando em ordem. Temos a Civilização Cristã.<br />
Essas desigualdades limitadas, mas muito autênticas, nasceram<br />
na Terra junto com o cristianismo. Antes da religião<br />
católica ser pregada aos homens, essas desigualdades moderadas<br />
não existiam.<br />
A este propósito, lembro-me de uma fórmula de saudação<br />
a que os egiptólogos costumam se referir, encontrada<br />
numa carta escrita a um faraó, em ladrilho, por um agente<br />
que representava os interesses do Egito na Síria. Era pessoa<br />
Povo pagão, reinava na antiga sociedade egípcia uma<br />
desproporcionada desigualdade entre os homens.<br />
Acima, o Faraó Tutancamon é representado no encosto de<br />
seu trono; abaixo, numa arca pintada, ele aparece<br />
guerreando os asiáticos<br />
de certa graduação, correspondendo a um cônsul de hoje.<br />
Tratando de assuntos comerciais, assim introduzia sua missiva:<br />
“Ao faraó, meu divino senhor. Fulano de tal (dava o<br />
nome dele), indigno de beijar vossos pés, indigno de beijar<br />
as patas dos vossos cavalos, beija o pó onde as patas dos vossos<br />
cavalos pousaram”.<br />
É uma fórmula tão espantosa que nunca mais me saiu da<br />
cabeça. Isto é levar a desigualdade a uma desproporção<br />
absurda! Sob o ponto de vista da humanidade,<br />
assim como todos nós, os dois eram iguais.<br />
Não há razão para um homem considerar-se indigno<br />
de beijar as patas do cavalo do faraó. Qualquer<br />
ser humano vale imensamente mais do que<br />
um quadrúpede! Nosso Senhor Jesus Cristo morreu<br />
pela nossa salvação, e não pela de um eqüino.<br />
Ora, manifestações de desigualdade como estas<br />
são próprias aos povos pagãos. A Civilização<br />
Cristã as atenuou e modelou de tal maneira que,<br />
na história dela, não encontramos nenhuma manifestação<br />
de desigualdade indigna de um homem.<br />
Ela respeita em cada um, por pouco que ele seja, a<br />
natureza humana que é igual em todos.<br />
17
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Compararemos essas atitudes absurdas com as maneiras<br />
dos reis da era cristã. Há algo pouco narrado em livros, mas<br />
Luís XIV — rei que certos historiadores chamam de orgulhoso,<br />
cheio de desdém para com seus inferiores — cumprimentava,<br />
tirando o chapéu, toda senhora que encontrasse<br />
no caminho, até mesmo as criadas. Fazia-o por causa do respeito<br />
cavalheiresco que o homem deve ter para com uma<br />
senhora, considerando que ela é uma criatura humana como<br />
ele, e que, portanto, tem direito à deferência dele.<br />
A ferocidade de assírios e babilônios<br />
Esculturas em alto relevo, com cenas de batalha dos<br />
babilônios (acima) e dos assírios (abaixo). Os<br />
soberanos desses dois povos perpetravam acerbas<br />
crueldades contra os vencidos de guerra<br />
Pior que a história do faraó e seu diplomata, é o fato que<br />
passo a narrar.<br />
Lembro-me da impressão terrível que os assírios e babilônios<br />
me davam, no meu curso ginasial. No livro de história<br />
que eu folheava, havia fotografias de alto-relevos feitos<br />
por eles, estupendos trabalhos em cerâmica, encontrados<br />
nas ruínas de Nínive e Babilônia, que deixam ver características<br />
desses povos, que aliás tiveram muita glória.<br />
Após terminarem suas guerras, eles realizavam aparatosos<br />
desfiles, em que os reis e generais carregavam com<br />
grande ostentação os objetos saqueados aos inimigos. Furavam<br />
os olhos dos prisioneiros, cortavam-lhes as orelhas, arrancavam<br />
o nariz, e os faziam entrar na cidade acorrentados,<br />
como se fossem animais, sob apupos do povo vencedor.<br />
Os reis assírios e babilônios vangloriavam-se de suas<br />
crueldades e de sua depravação. Num alto-relevo que atravessou<br />
os milênios, podemos observar um soberano que toma<br />
atitude perante os vencidos. É algo confrangedor. O monarca,<br />
de físico avantajado, tinha sua estatura aumentada<br />
por um chapéu em cone truncado. Vê-se tratar-se de um chapéu<br />
de material rico. E o rei, com uma tal abundância de cabeleira,<br />
que de dentro da cobertura escachoam os cabelos,<br />
frisadinhos, direitinhos, formando filas, como se diria de soldados<br />
em ordem de batalha. E a barba dele do mesmo<br />
jeito: enorme, com dois, três dedos inteiramente lisa, depois<br />
uma série de cachinhos; em seguida, mais três dedos<br />
lisa, outros frisados e assim por diante, até o fim da barba.<br />
Na fisionomia, uma expressão feroz; os olhos, não amendoados<br />
mas compridos, característicos daqueles povos; nariz<br />
adunco de ave de rapina, e com uma lança na mão.<br />
18
Diante dele, uma série de prisioneiros,<br />
em tamanho menor, todos<br />
com argola atravessando o<br />
lábio inferior, presas por cordéis<br />
que chegam até a mão do rei. À<br />
frente deste, dois de joelhos e,<br />
atrás, mais dois em fila. Ele os<br />
cumprimenta, na iminência de furar<br />
os olhos dos quatro. Quando<br />
saíam da presença real, estavam<br />
cegos. E assim ia ele perpassando<br />
os olhos dos derrotados, às centenas,<br />
para se vingar e para depois<br />
ter braço que não precisasse controlar.<br />
Sem ver, não podiam fugir<br />
e, portanto, não necessitavam de<br />
vigilância. Carregavam e serviam<br />
como animais de tração, onde fosse<br />
preciso.<br />
Essa é uma desigualdade maldita,<br />
que não considera o fato de<br />
todos os homens possuírem a mesma<br />
natureza humana na qual um<br />
dia se encarnaria Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo. Portanto, a desigualdade tem limite, e não pode<br />
levar um homem a fazer este uso de um semelhante. É<br />
algo abominável, fruto da civilização pagã.<br />
Com o advento da Cristandade, tudo isso desaparece.<br />
Mais ou menos como quando surge a manhã: as aves de mau<br />
agouro, os animais daninhos, todos se encolhem nas suas<br />
tocas; assim também todas essas brutalidades se eclipsam.<br />
O Sol de Justiça, Nosso Senhor Jesus Cristo, vai aparecendo.<br />
Os “benigníssimos” persas<br />
Falemos dos persas. Quando estes, derrotando os caldeus,<br />
destruíram o império mesopotâmio, foram os judeus<br />
— até então cativos — restituídos à liberdade por um decreto<br />
de Ciro. Pelo texto desse indulto sabe-se que Ciro permitiu<br />
aos judeus a reconstrução do Templo em Jerusalém,<br />
fato confirmado também pela Bíblia.<br />
Isto não nos deve levar a supor que os persas foram uma<br />
nação de inigualável benignidade. Episódios como os narrados<br />
impressionam o espírito da maioria dos povos da antiguidade,<br />
em geral dotados de grande inclinação para a<br />
crueldade, e fizeram com que os persas passassem para a<br />
história como benigníssimos.<br />
Tal critério pode nos conduzir, à primeira vista, a juízos<br />
errôneos a respeito do caráter deste povo. Convém fixar<br />
bem este caráter, porque por ele se define toda a antiguidade.<br />
Aliás, por esse conhecimento podemos ver até que<br />
ponto eram considerados naquela época os sentimentos de<br />
bondade, solidariedade e misericórdia, quase inexistentes<br />
entre os demais povos de então. Seja como for, encontramos<br />
entre os persas gestos acusativos de grande crueldade, pois<br />
Encravado na rocha, um gigantesco mausoléu abriga os túmulos dos antigos e<br />
“benignos” imperadores persas<br />
sabe-se que chegaram a mutilar prisioneiros vencidos, cortando-lhes<br />
o nariz, as orelhas e tudo o que havia de “cortável”<br />
no rosto deles.<br />
Pois este era o povo com fama de “benigno” na antiguidade.<br />
Uma ou outra vez, usavam de misericórdia para com<br />
os povos vencidos. Entretanto, freqüentemente, à maneira<br />
dos caldeus, usavam de grande crueldade com os povos por<br />
eles dominados. Tinham, inclusive, o costume de crucificar<br />
os prisioneiros.<br />
Outro caso que merece menção especial é o de Creso, rei<br />
da Lídia, aprisionado pelos persas. Ele foi condenado à fogueira,<br />
juntamente com quatorze crianças da nobreza de<br />
seu país. Porém, numa atitude bastante sensata, Ciro pensou<br />
que poderia acontecer com ele o mesmo sucedido ao monarca<br />
estrangeiro. Então mandou libertá-lo e o nomeou seu ministro.<br />
Nesse gesto transparece o verdadeiro caráter da benignidade<br />
de Ciro, baseada inteiramente no temor de um infortúnio.<br />
Ainda com referência à crueldade, conhecemos episódios<br />
muito interessantes que mostram a existência deste instinto<br />
entre o persas. Conta-se que suas tropas, mal-sucedidas numa<br />
empresa de conquista da Etiópia, sofreram horrores nos<br />
desertos africanos. Esgotados seus víveres, os soldados persas<br />
começaram a se matar e a comer uns aos outros.<br />
Noutra ocasião, apenas pelo fato de ter sofrido um desacato<br />
em Memphis, no Egito (que havia invadido), o imperador<br />
persa Cambises mandou executar duas mil pessoas<br />
desta cidade.<br />
Assim eram os persas, povo que passou para a história<br />
como um dos mais benignos da antiguidade — época em que<br />
imperava a lei da força.<br />
v<br />
19
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Conselhos<br />
de sabedoria<br />
para alcançar<br />
a santidade<br />
20
Ao redigir, por volta<br />
de 1940, um memorando<br />
sobre vida espiritual<br />
(para esclarecimento<br />
de um sacerdote<br />
vinculado à Ação Católica),<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não teve<br />
dificuldade em discorrer<br />
sobre o caminho que leva<br />
à virtude: ele mesmo<br />
o procurava trilhar desde<br />
a infância. Daí suas<br />
observações não serem<br />
meras normas abstratas,<br />
colhidas em algum<br />
manual de vida espiritual,<br />
mas o resultado de<br />
experiências vividas no<br />
fragor das batalhas interiores.<br />
Aqui reproduzimos<br />
a segunda parte desse<br />
trabalho.<br />
21
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
T<br />
endo<br />
em vista a tremenda decadência<br />
moral de nossa época,<br />
a ninguém será possível<br />
conservar uma perfeita pureza de corpo<br />
e alma sem uma vigilância constante sobre<br />
o seu interior. As más sugestões pululam<br />
por toda parte e provocam movimentos<br />
desordenados da sensibilidade,<br />
que podem passar despercebidos no<br />
início, simular-se mesmo de bons sentimentos<br />
e de virtudes, até que a onda<br />
avolumada se lance impetuosamente<br />
e já quase não haja mais como resistir-lhe.<br />
Assim, muitas vezes o incauto<br />
alimenta, com ingenuidade culposa, a<br />
própria chama em que arderá.<br />
Maior perigo corre, ainda, a integridade<br />
da fé. Nesse mundo desvairado<br />
de nossos dias, a nossa sabedoria católica<br />
pode ser substituída por loucura,<br />
se não a guardarmos com escrupuloso<br />
cuidado. Há muitos que pensam manter<br />
íntegra a sua fé, mas, na verdade,<br />
conservam apenas as exterioridades do<br />
dogma, sem a substância, porque o mais<br />
íntimo e oculto recanto da inteligência<br />
lhes adere à terra. Isto porque, nos afazeres<br />
quotidianos, não tiveram a devida<br />
reflexão, e se expuseram às surpresas<br />
de uma natureza decaída, e, assim,<br />
deformou-se-lhes a mentalidade, como<br />
já ficou visto. Principalmente, sem este<br />
prudente hábito de ver, julgar e agir em<br />
si mesmo, não será possível a formação<br />
do senso católico, esta delicada flor da<br />
fé, que nos dá a capacidade de sentir,<br />
nas mínimas coisas, o bom odor de Cristo<br />
ou o cheiro pestilencial da mundanidade;<br />
e de saber a cada<br />
momento o que é mais favorável<br />
à Igreja, pois que o amor ardoroso<br />
tem pressentimentos daquilo<br />
que o entendimento ainda não viu.<br />
Dominar as tendências<br />
desordenadas<br />
O homem é livre, isto é, determina-se<br />
no seu agir, sendo senhor de seus atos.<br />
Não quer isto dizer que não sinta a<br />
atração dos objetos vários, que lhe aparecem<br />
como fins possíveis de sua atividade,<br />
mesmo porque, sem esta atração,<br />
a vontade humana não poderia agir. De<br />
fato, a vontade se inclina de si mesma<br />
para o bem, e, portanto, não<br />
se pode mover se<br />
algum bem<br />
não lhe é<br />
São Luís G. de<br />
Montfort e a<br />
basílica que leva<br />
seu nome, em St.<br />
Laurent-sur- Sèvre.<br />
Ensina-nos ele que,<br />
para alcançarmos a<br />
perfeição, precisamos<br />
nos esvaziar do que<br />
há de mau em<br />
nosso interior<br />
22
A verdade de<br />
que não é<br />
possível ao<br />
homem, sem o<br />
auxílio da graça,<br />
cumprir durável e<br />
totalmente os<br />
Mandamentos<br />
divinos foi<br />
estabelecida<br />
pelo Concílio de<br />
Trento (ao lado)<br />
proposto. Entretanto, o bem para o qual<br />
a vontade se inclina própria e necessariamente<br />
é o bem absoluto, pois a experiência<br />
prova, irrefragavelmente, que<br />
todos desejamos uma felicidade ilimitada.<br />
Tal felicidade, porém, não pode<br />
ser dada por nada deste mundo, porque<br />
as coisas deste mundo são limitadas em<br />
si mesmas. Logo, nada deste mundo pode<br />
atrair irresistível e absolutamente<br />
a vontade. E quando a vontade escolhe<br />
algum objeto, ela o faz tendo em vista<br />
aquela felicidade ilimitada, para cuja<br />
consecução o objeto escolhido contribui<br />
de alguma forma.<br />
Muitas vezes, embora vejamos o verdadeiro<br />
bem, sentimos o peso das más<br />
tendências que nos impelem para objetos<br />
que não nos podem saciar o nosso<br />
ardente desejo de uma felicidade plena,<br />
antes afastam dela, mas que iludem<br />
esse desejo com uma aparente satisfação,<br />
que logo se dissipa. Cedemos, então,<br />
muitas vezes, mas cedemos livremente,<br />
sabendo que abandonamos o<br />
caminho do verdadeiro bem, movidos<br />
pelo imediatismo, que acha muito longo<br />
e difícil aquele caminho. E, livremente,<br />
abdicamos de nossa liberdade,<br />
entregando-nos às forças tremendas<br />
que o pecado original desgarrou em<br />
nós. Assim, de queda em queda, vai-se<br />
enfraquecendo o poder da vontade,<br />
até que aquelas forças se tornam mais<br />
poderosas e escravizam o pecador, que,<br />
daí por diante, só se utiliza da liberdade<br />
para entregar-se a elas. É necessário,<br />
portanto, fortalecer a vontade pelo<br />
exercício sistemático de atos austeros,<br />
para que ela possa, sem perigo, dominar<br />
as tendências desordenadas que todos<br />
possuem por causa do pecado original,<br />
e, assim, pôr ordem na alma.<br />
O que mais fortalece a<br />
vontade é a graça de Deus<br />
Nada, porém, pode robustecer tanto<br />
a vontade e iluminar a inteligência a respeito<br />
do bem como a graça de Deus,<br />
que nos vem abundantemente de Jesus<br />
Cristo, Nosso Senhor. Neste sentido,<br />
há uma dupla definição do Concílio Tridentino<br />
que ilumina singularmente o<br />
assunto. Em primeiro lugar, é heresia<br />
afirmar que os infiéis não possam praticar<br />
atos virtuosos, porque, se assim<br />
acontecesse, o homem não seria naturalmente<br />
livre. Entretanto, quem afirmar<br />
que é possível ao homem, sem o<br />
auxílio da graça, cumprir durável e totalmente<br />
os mandamentos, seja anátema,<br />
por que isso seria negar os efeitos<br />
do pecado original. Assim, aquela educação<br />
da vontade nunca poderia ser<br />
completada sem a graça, mas pela graça<br />
adquire seu verdadeiro significado:<br />
é a correspondência livre do homem ao<br />
dom inestimável de Deus.<br />
Alem disso, a graça transforma os<br />
nossos atos, dando-lhes um valor sobrenatural.<br />
Assim, é da graça que dependem a<br />
possibilidade e a excelência da obra<br />
de nossa santificação; mas é de nossa<br />
vontade que depende sua realização.<br />
Do contrário, já não haveria mérito;<br />
e seria absurdo supor que aquilo que<br />
nem o pecado original tirou, fosse suprimido<br />
pela graça, isto é, a liberdade.<br />
Não é assim, mas a graça é um conforto<br />
para a vontade, que, fortalecida,<br />
sabe afirmar-se entre tantas forças<br />
dissidentes, e seguir sua inclinação natural<br />
para o verdadeiro bem, e não a<br />
sua decadência, escolhendo livremente,<br />
segundo o seu critério interior, o que<br />
lhe parece melhor. E se a graça é um<br />
conforto, é necessário que a vontade<br />
se sirva deste conforto, para não acontecer<br />
que a graça fique vazia em nós<br />
e, portanto, inútil, conforme ao que<br />
diz o Apóstolo.<br />
Assim, será ilusão pensar numa santificação<br />
automática pela graça. A vida<br />
dos santos, pelo contrário, demonstra<br />
que a santificação é uma luta ardorosa<br />
e tenaz.<br />
23
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Meios para vencer a<br />
batalha da santificação<br />
A prece verbal ou mental, particular<br />
ou litúrgica, não constitui o fim da<br />
vida espiritual. Este fim é a santificação,<br />
isto é, a morte à nossa natureza decaída<br />
e nossa reedificação em Jesus Cristo<br />
(Rom. 6, 3-11). Mas a prece é um<br />
meio eficaz para dotar o católico de<br />
maiores recursos para o combate interior.<br />
O auxílio divino, porém, é concedido<br />
segundo a reta intenção de quem<br />
pede, em qualquer espécie de prece.<br />
Assim também os sacramentos, embora<br />
contenham objetivamente a graça,<br />
e sejam por aí um recurso certo, de nada<br />
servem sem a correspondência interior<br />
de quem os recebe. Da mesma<br />
forma, o Santo Sacrifício da Missa é<br />
uma torrente caudalosa de graças, mas<br />
a maior ou menor recepção delas, com<br />
maior ou menor aproveitamento, depende<br />
essencialmente das disposições<br />
interiores dos assistentes.<br />
A graça nos torna capazes<br />
de vencer dificuldades cada<br />
vez maiores<br />
A santificação é uma luta ardorosa e tenaz, na qual a oração é um dos<br />
nossos maiores recursos de vitória. Acima, Santa Teresinha do Menino Jesus<br />
Uma graça assim correspondida por<br />
nós, e que em nós produziu fruto, é penhor<br />
de novas e maiores graças. E, ao<br />
conceder-nos esta maior liberdade,<br />
Deus exige de nós mais numerosos e<br />
excelentes frutos de santificação, até<br />
nossa perfeita consumação em Jesus<br />
Cristo. Assim, a maior abundância de<br />
graças conferidas a uma pessoa não se<br />
destina a privar a sua vida espiritual de<br />
todos os obstáculos, mas a torná-la capaz<br />
de vencer obstáculos sempre maiores.<br />
De fato, a nossa natureza foi deformada,<br />
de alto a baixo, pelo pecado original.<br />
Diz São Luís Grignion de Montfort:<br />
“Nossas melhores ações ordinariamente<br />
são manchadas e corrompidas pelo<br />
mau fundo que há em nós. Quando se<br />
põe água limpa e clara num vaso que<br />
cheira mal, ou vinho numa pipa cujo interior<br />
está sujo de um outro vinho que<br />
lá houve, a água clara e o bom vinho se<br />
alteram, e tomam, facilmente, o mau cheiro.<br />
Igualmente, quando Deus põe no vaso<br />
de nossa alma, deteriorado pelo pecado<br />
original e atual, suas graças e seus orvalhos<br />
celestiais ou o vinho delicioso de<br />
seu amor, seus dons ordinariamente são<br />
danificados e deteriorados pelo mau fermento<br />
e pelo mau fundo que o pecado<br />
deixou em nós. Nossas ações, mesmo as<br />
virtudes mais sublimes, se ressentem disso.<br />
É, pois, de uma enorme importância<br />
para adquirir a perfeição, o que só se<br />
consegue pela união a Jesus Cristo, esvaziar-nos<br />
do que há de mau em nós: do<br />
contrário, Nosso Senhor, que é infinitamente<br />
puro e odeia infinitamente a menor<br />
mancha na alma, rejeitar-nos-á, e<br />
não quererá unir-se a nós”.<br />
E continua pouco depois: “Para esvaziar-nos<br />
de nós mesmos é necessário<br />
todos os dias morrer a nós mesmos: quer<br />
dizer que é preciso renunciar às operações<br />
das potências de nossa alma e dos<br />
sentidos do corpo, que é preciso ver como<br />
se não víssemos, ouvir como se não<br />
ouvíssemos, servir-se das coisas deste<br />
mundo como se não nos servíssemos<br />
delas” (La vraie dévotion, cap. 2º, art.<br />
III, §§ 78 e 81).<br />
Assim, é necessário que destruamos<br />
o edifício viciado de nossa natureza<br />
pecaminosa, para reedificá-lo em Cristo.<br />
E quanto mais progride e se aprofunda<br />
este trabalho, com a graça de<br />
Deus, mais dificultoso se torna, porque<br />
remontamos para a causa de todos os<br />
nossos defeitos, até chegarmos àquele<br />
ponto em que mereçamos receber<br />
do Espírito Santo a transformação final.<br />
Não só mereçamos recebê-la, mas<br />
tenhamos ânimo de suportá-la.<br />
(Continua no próximo número)<br />
24
DONA LUCILIA<br />
Crescente<br />
e mútua afeição<br />
Temos visto a solicitude materna de Dª Lucilia para com o<br />
jovem <strong>Plinio</strong>, expressa de modo especial nas cartas dessa boa<br />
mãe. É notável o acerto de seus conselhos e orientações, numa<br />
ocasião em que seu filho já ia trilhando com seus próprios<br />
passos os caminhos da vida.<br />
25
DONA LUCILIA<br />
Sob a proteção do<br />
Sagrado Coração<br />
de Jesus<br />
Além de estar cursando a Faculdade<br />
de Direito, <strong>Plinio</strong> tinha começado a fazer<br />
a “linha de tiro” (“EM52”) — o serviço<br />
militar. Em carta enviada a ele do<br />
Paraná, onde se encontrava com sua<br />
filha, Dª Lucilia manifesta com afeto<br />
o desejo de o ver fardado, pergunta por<br />
seus estudos e saúde, e reitera sua firme<br />
confiança de que o Sagrado Coração<br />
de Jesus nunca deixaria de proteger o<br />
“filho querido de seu coração”.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> (dentro do carro) na estrada para o Rio de Janeiro,<br />
durante a viagem feita por ele em julho de 1930<br />
Cambará, 23-5-929<br />
Filho querido!<br />
Com tantas saudades tuas, tão desejosa<br />
de uma prosinha contigo, e no entanto<br />
há dias que não te escrevo, porque<br />
tive uma forte reboldosa de fígado que<br />
me prendeu alguns dias na cama, onde<br />
fui tratada com um carinho e dedicação<br />
por tua irmãzinha, que me fizeram bem<br />
ao coração! Estou ainda com o fígado<br />
muito inchado, e sinto-me abatida, também<br />
em conseqüência da longa e forte<br />
dieta em que me acho.<br />
24-5-929<br />
Interrompi ontem esta, porque Rosée<br />
teve três visitas ontem até à noite, e, coisa<br />
extraordinária que tenho a te contar, fui<br />
ontem ao circo, que é perto de casa, onde<br />
assisti meio espetáculo, e fui e voltei de<br />
automóvel muito devagar, e lá dei umas<br />
boas risadas. Estou hoje bem melhor, mas<br />
ainda com medo da volta! A Sorocabana<br />
pula, corcoveia, que até dá impressão de<br />
que “sem se querer”, está-se a amansar<br />
um cavalo bravo!<br />
Enviei-te uma longa carta registrada,<br />
em resposta àquela em que me falavas<br />
no jantar do Clube Comercial, e pelo que<br />
vejo, não a recebeste, o que me aborreceu<br />
muito. Estou ansiosa por ver-te fardado....<br />
e “entusiasmado” pelas marchas e contramarchas.<br />
Tens estudado muito? Há quatro<br />
dias que não tenho cartas daí, será<br />
possível que estejas de novo com alguma<br />
gripe na garganta? Deus permita que<br />
não! Quero encontrar-te bem forte, e<br />
bonitão.<br />
Agradou-me muito, imenso, saber que<br />
quando tens saudades minhas, rezas diante<br />
do meu oratório! Eu também rezo tanto<br />
por ti, e o Sagrado Coração de Jesus,<br />
nosso amor, será teu salvaguarda e protetor!<br />
filho querido de meu coração.<br />
Recebe com minha bênção, muitos e<br />
muitos beijos de tua mamãe muito saudosa<br />
e extremosa,<br />
Lucilia<br />
“Insisto sobre a tua<br />
vinda quanto antes”<br />
De regresso a São Paulo, Dª Lucilia<br />
pouco tempo permaneceu na capital<br />
paulista, pois em julho foi com Dª Gabriela<br />
a Santos, onde ficou até o fim do<br />
mês.<br />
A despretensão, o desejo de fazer o<br />
bem e de conviver com seu filho são uma<br />
constante nas cartas por ela escritas.<br />
Santos, 16-7-929<br />
Filho querido!<br />
Tua tia Zili devia ter-te entregue ontem<br />
uma carta minha, e esqueceu-se de fazêlo,<br />
devido à pressa em que andou por aí,<br />
e preocupação com o negócio da casa.<br />
Insisto sobre a tua vinda quanto antes,<br />
pois devemos regressar no dia trinta,<br />
se Deus quiser, e agora é uma boa oportunidade<br />
para que tenhas repouso e mudança<br />
de clima, e em minha companhia,<br />
o que é mais difícil. Não é preciso que esperes<br />
que a tal moça tome conta do emprego,<br />
para que possas sair, pois não tens<br />
nenhum compromisso para isso, e mesmo<br />
se fosse necessária tua presença, serias<br />
chamado pelo telefone. Venha logo.<br />
Teu pai deve chegar aí amanhã cedo, e vir<br />
à tarde.<br />
Beija-te e abençoa-te muito tua mamãe<br />
extremosa,<br />
Lucilia.<br />
Lembranças à Frau, e pessoal de casa.<br />
Os estudos de Direito muito absorvem<br />
ao filho e ele demora para se pôr<br />
a caminho. Como as cartas rareiam, ou<br />
pelo pouco tempo de que dispõe ele,<br />
ou porque o correio não as entrega, Dª<br />
Lucilia se queixa por não receber notícias.<br />
Com palavras cheias de carinho,<br />
ele se defende da “infundada” reclamação<br />
de sua mãe. A missiva, num tom ligeiramente<br />
jocoso, dá-nos bem idéia de<br />
como o caráter tradicional e elevado<br />
do trato de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> com ela comportava<br />
o leve gracejo, como saboroso tempero.<br />
Meu Queridíssimo amorzinho<br />
Recebi hoje com muitas saudades a<br />
sua carta, porém ao sentimento intenso<br />
de saudades se superpôs outro, o de ressentimento.<br />
Será possível, Mãezinha, que<br />
a Senhora pense que não sinto saudades<br />
suas pelo simples fato de lhe ter escrito<br />
uma carta que não foi nem recebi-<br />
26
da e nem respondida? Será possível que<br />
a Senhora pense que se não lhe escrevi<br />
mais é por não ter tempo pois que continuamente<br />
me divirto? É bom, meu<br />
amor, que a Senhora tome em consideração<br />
o fato de eu só ter estudado e nada<br />
mais, e que a meus estudos que de per<br />
si já eram muito apertados (fazem-me<br />
levantar às 6 até nos domingos para estudar<br />
e obter boas notas que tanto a alegram)<br />
veio a se acrescentar o de filosofia<br />
muito mais intensificado por causa do<br />
Supremo Tribunal Federal (...) e a vasta<br />
Literatura internacional. Dito isto que<br />
parece-me mais que suficiente não só<br />
para neutralizar sua opinião a meu respeito<br />
como para a fazer voltar a idéias<br />
contrárias, quero informar-me de sua saúde<br />
e de seu “figadório”, pois que já tratamos<br />
de seu coração injustamente magoado.<br />
Como vai vovó? A casa sem as Senhoras<br />
é triste como um túmulo e quem salva<br />
a situação é Rosée. Quando é que as<br />
senhoras voltam? (...)<br />
É escusado dizer que esta carta é para<br />
vovó e para a Senhora pois que as duas<br />
em meu coração estão no mesmo pé.<br />
Abraço e beijo-as com carinho efusivo<br />
e peço-lhes a bênção.<br />
<strong>Plinio</strong><br />
Como é fácil notar, durante as longas<br />
ausências de Dª Lucilia, <strong>Plinio</strong> procurava<br />
minorar-lhe as saudades, escrevendo-lhe<br />
a respeito do seu dia-a-dia,<br />
cada vez mais tomado não só pelos estudos,<br />
mas também por seu apostolado<br />
nas Congregações Marianas.<br />
Crescente benquerença<br />
A partir de 1928, <strong>Plinio</strong> se entregou<br />
por completo às atividades do Movimento<br />
Católico. Em 1929 fundou a<br />
Ação Universitária Católica, AUC, que<br />
reunia estudantes católicos de diversas<br />
escolas superiores.<br />
Dª Lucilia aceitou, nessa ocasião, o<br />
sacrifício de algo extremamente precioso:<br />
boa parte do inefável convívio com<br />
seu filho. Nos anos seguintes, com o desenvolvimento<br />
da atuação dele, esse<br />
afastamento não faria senão aumentar.<br />
Sem embargo disso, por uma interessante<br />
troca de cartas entre mãe e<br />
filho, em julho de 1930, pode-se entrever<br />
o quanto o inevitável rareamento<br />
dos encontros entre ambos só contribuiu<br />
para o crescimento da mútua benquerença.<br />
Nesse mês, <strong>Plinio</strong> viajou com Mons.<br />
Pedrosa, de automóvel, ao Rio de Janeiro,<br />
a fim de travar contato com líderes<br />
católicos da capital federal. De lá<br />
escreveu duas afetuosas cartas a Dª Lucilia.<br />
Na primeira, datada do dia 15,<br />
narra todas as peripécias do percurso.<br />
No Rio, teve <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a ocasião de visitar o<br />
Mosteiro de São Bento, “a coisa mais<br />
deslumbrante que jamais tenha visto”<br />
(conforme escreveu a Da. Lucilia). Na foto ao<br />
lado, ele é o primeiro à direita, na frente do<br />
portão de entrada do edifício beneditino<br />
27
DONA LUCILIA<br />
De passagem pelo Santuário de<br />
Aparecida, rezou por sua mãe, acendeu<br />
uma vela por Dª Gabriela —<br />
cuja saúde exigia especiais cuidados<br />
devido à sua avançada idade<br />
— e outra pelos familiares restantes.<br />
Além de contar todas as visitas<br />
que fez a parentes e conhecidos, elogia<br />
o esplêndido tratamento dispensado<br />
a ele por Mons. Pedrosa. Uma<br />
única coisa lamenta: a ausência de<br />
sua “queridíssima mãezinha”, pois —<br />
diz ele — “a todos os numerosos<br />
prazeres que Deus me tem dispensado<br />
nesta viagem, está constantemente<br />
anexo o desgosto de não ter sua<br />
companhia para melhor os apreciar”.<br />
E mais adiante reafirma: “Como já<br />
lhe disse, a única coisa que empana<br />
minha alegria é a saudade de minha Mãezinha.<br />
Quanto ao mais, minha alegria é<br />
completa. Isto é uma delícia”.<br />
Antes de terminar, relata nestes termos<br />
os passeios que fez na “Cidade Maravilhosa”:<br />
Visitei, hoje, as Igrejas de Candelária<br />
(portas maravilhosas, o resto rico e bonito),<br />
a belíssima Catedral (estilo barroco<br />
de incomparável majestade) e a Igreja<br />
de São Bento, a coisa mais deslumbrante<br />
que jamais tenha visto. É tão bonita<br />
que seria inútil e ridículo descrevê-la.<br />
Fui, depois, aos jesuítas, meus caros<br />
jesuítas tão amigos de Tio Adolpho. Encontrei<br />
lá, entre outros, o Pe. du <strong>Dr</strong>éneuf,<br />
que, com os demais, muito me festejou.<br />
Jantei com Monsenhor e o José Pedrosa,<br />
otimamente, no Sul América, isto<br />
é, Rotisserie. Estou chegando da Cinelândia.<br />
Procurarei amanhã pela parentela.<br />
Até logo, meu queridíssimo benzinho.<br />
Aceite milhares de beijos do filho que<br />
muitíssimo a respeita e quer, e lhe pede<br />
a bênção<br />
Pigeon<br />
N.B. Descobri aqui uma rua Corrêa<br />
de Oliveira, importante travessa da R.<br />
do Catete. Subiu-me pigarro à garganta...<br />
Apesar do<br />
inevitável<br />
rareamento dos<br />
encontros entre mãe<br />
e filho, as separações<br />
só contribuíram<br />
para o crescimento<br />
da mútua<br />
benquerença<br />
Dª Lucilia deve ter ficado preocupada<br />
enquanto não teve notícias de seu<br />
filho, pois, segundo a concepção dos antigos,<br />
uma viagem era sempre perigosa,<br />
cheia de surpresas. Apenas recebida<br />
a esperada carta, respondeu a ela. Desde<br />
as primeiras linhas vêm à tona os sentimentos<br />
de gratidão que sempre caracterizam<br />
as almas nobres.<br />
São Paulo, 17-7-1930<br />
Filho querido de meu coração!<br />
Com que prazer, com que satisfação, li<br />
e reli tua carta tão ansiosamente esperada!<br />
Cheia de reconhecimento, em uma<br />
oração já agradeci a Deus pelas boas notícias<br />
de que é portadora. Realmente, não<br />
sei como agradecer ao nosso bom Monsenhor<br />
todo o carinho e desvelo que te<br />
tem dispensado, e espero em Deus, meu<br />
filho, que saberemos provar-lhe que lhe<br />
somos gratos por tudo que por nós tem<br />
feito. Vê se lhe podes ser de alguma utilidade,<br />
e não percas as ocasiões de te mostrares<br />
grato, e afetuoso para com ele.<br />
Agradeço-te imenso as orações feitas<br />
por minha intenção no Santuário de Nossa<br />
Senhora da Aparecida, e espero que<br />
tenhas alcançado por Seu intermédio,<br />
muitas graças e bênçãos. Tenho achado<br />
uma falta enorme em ti, querido, mas<br />
mesmo assim, me alegro de que tenhas<br />
podido fazer este passeio, e estejas apreciando<br />
devidamente este belo Rio, e sinto<br />
mesmo, que não possas te demorar<br />
mais uns dois dias.<br />
Temos tido muita chuva, e um frio<br />
intenso, e sei que aí também a temperatura<br />
caiu, e tem chovido, e sinto que não<br />
guardes uma impressão do Rio “verde e<br />
azul” como ele se mostra quando o tempo<br />
está firme.<br />
Tenho, como sempre, rezado muito por<br />
ti, mas mesmo assim, te recomendo mais<br />
uma vez, muito juízo, meu “pinbinsh”.<br />
Recomenda-me muito a Monsenhor<br />
Pedrosa e ao Sr. seu irmão. Lembranças<br />
de todos de casa.<br />
Com minhas bênçãos, envio-te<br />
saudosa, muitos beijos e abraços. De<br />
tua mamãe extremosa,<br />
Lucilia.<br />
No mesmo dia 17, <strong>Plinio</strong> postava<br />
uma segunda carta para sua mãe,<br />
contando-lhe outras impressões do<br />
Rio de Janeiro:<br />
Queridíssima Mãezinha<br />
[Passei] um dia cheio das mais<br />
agradáveis impressões.<br />
Fui de manhã à Biblioteca Nacional,<br />
onde pude ver uma organização admirável,<br />
e um conjunto de livros antigos,<br />
verdadeiramente imponentes. Admirei,<br />
entre outras preciosidades bibliográficas,<br />
a primeira edição dos Luzíadas e uma<br />
Bíblia de 1480 ou 90 + ou -. Depois de<br />
um almoço ótimo no Heyme, fui à Gruta<br />
da Imprensa, de auto. É a mais bela<br />
coisa que tenha visto, em matéria de panorama.<br />
Fui, depois, a uma longa, longuíssima,<br />
mas agradabilíssima reunião<br />
de católicos ilustres. Jantei otimamente,<br />
e fui visitar o Primo Pe. Luiz. Encontreio<br />
muito bem, mas avelhantado. Muito<br />
me agradou, etc.<br />
Dei, depois, um giro na Av. Central e<br />
estou de volta agora, 12 h + ou -, depois<br />
de um sorvete de damasco em uma confeitaria<br />
com cadeiras na rua.<br />
Como vai minha mãezinha, de quem<br />
estou tão saudoso?<br />
Lembranças a todos e 10000000000<br />
de beijos do filho que, com o mais carinhoso<br />
respeito lhe pede a bênção.<br />
Pigeon<br />
Quando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fez essa viagem,<br />
o Brasil vivia os últimos meses da “República<br />
Velha”. Um golpe de Estado,<br />
que estava sendo preparado, instauraria<br />
uma nova ordem de coisas no País.<br />
(Transcrito, com adaptações,<br />
da obra “Dª Lucilia”,<br />
de João S. Clá Dias)<br />
28
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Anota dominante no ambiente em que vivia o<br />
mundo antes da guerra européia era, incontestavelmente,<br />
o otimismo. Diversos fatores concorriam<br />
para isto. O primeiro e maior deles era a prosperidade<br />
geral que dava à civilização burguesa então florescente uma<br />
aparência de esplendor capaz de iludir e de inspirar confiança<br />
até nos mais precavidos. Em segundo lugar, a influência<br />
do evolucionismo, então muito generalizada, incutia em todos<br />
os espíritos a persuasão de que a humanidade caminharia<br />
inevitável e resolutamente pela senda do progresso, até<br />
atingir uma idade de ouro, na qual o homem pudesse realizar,<br />
com o único auxílio da ciência, a sua perfeição intelectual<br />
e física. Em terceiro lugar, o imediatismo e as preocupações<br />
muito mais apaixonadas pelos trabalhos de imediato<br />
interesse econômico do que pelas longas indagações de caráter<br />
filosófico e social, cegavam muitos observadores que<br />
dispunham de todas as qualidades necessárias para fazer<br />
um juízo seguro e imparcial a respeito da situação do<br />
mundo. A conjunção de todos estes fatores derramava<br />
sobre a superfície do mundo uma tranqüilidade<br />
e uma aparência de estabilidade que parecia<br />
desafiar as mais formidáveis tormentas.<br />
Se tal se dava na Europa [...], nosso Brasil, que já por<br />
sua índole é pacato e caseiro, pouco afeito a aventuras arriscadas<br />
e muito amigo de conciliações, dormia o sono tranqüilo<br />
e imperturbável dos que não têm inimigos a temer nem<br />
perigos a recear. [...] Foi neste ambiente otimista e míope<br />
que o Episcopado Nacional lançou, nos primeiros dias do<br />
novo século, uma estupenda Pastoral Coletiva, pouco conhecida<br />
entre nós atualmente, mas que repercutiu naquela época<br />
como uma trovoada formidável em céu sereno.<br />
Disse uma vez Tristão de Athayde, com sobrada razão, que<br />
a Igreja está sempre com um progresso de algumas décadas,<br />
em relação à generalidade dos homens de Estado<br />
no apreciar e antever o curso dos fenômenos<br />
políticos, sociais e econômicos. A Pastoral de 1900<br />
é uma prova insofismável desta verdade. Denunciando<br />
a crescente corrupção dos caracteres,<br />
o olvido sempre mais geral de nossas<br />
tradições, a indiferença religiosa<br />
das classes cultas que mal disfarçavam<br />
uma positiva animosidade contra<br />
a Santa Igreja de Deus, e a divulgação<br />
cada vez mais intensa, de<br />
O problema<br />
fundamental<br />
do Brasil
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
doutrinas que, remota e indiretamente, tendiam a destruir toda<br />
a ordem, não apenas religiosa mas civil, o Episcopado<br />
Brasileiro procurou sacudir nossa Pátria, acordando-a do<br />
torpor em que jazia, para lhe dar consciência da perigosa situação<br />
em que se encontrava. E, em frases de uma eloqüência<br />
verdadeiramente apocalíptica, os Bispos do Brasil denunciaram<br />
que, a continuarem as coisas no caminho que seguiam,<br />
dia viria, e não muito distante, em que as mais sérias catástrofes<br />
ameaçariam nossa Pátria.<br />
Inútil é dizer que a voz profética de nossos Pastores não foi<br />
ouvida pelos que então eram responsáveis pelos destinos<br />
do País. Por um momento, os espíritos se concentraram sobre<br />
as cores sombrias do panorama nacional, que o Episcopado<br />
reproduzia tão fielmente na sua Pastoral. Mas essa atitude<br />
foi de duração passageira. [...]<br />
*<br />
Se, em 1900, os Bispos brasileiros souberam ser médicos<br />
bastante perspicazes para fazer o diagnóstico de um mal secreto<br />
que ninguém percebia, deram com isto provas suficientes<br />
de sua clarividência, para que se aceitasse o principal remédio<br />
que prescreveram. Esse remédio não foi outro senão<br />
a instrução religiosa, insistentemente recomendada por nossos<br />
Pastores. [...]<br />
Sob o ponto de vista jornalístico, seria sem dúvida mais<br />
interessante que oferecêssemos hoje a nossos leitores considerações<br />
palpitantes sobre os acontecimentos que passam.<br />
Mas nosso dever é outro. É preciso chamar mais uma<br />
vez a atenção de todos os católicos para o grande problema<br />
central do Brasil, central por ser o ponto de irradiação de todos<br />
os outros problemas. Se o Brasil for consciente, intensa,<br />
entusiasticamente católico, poderá atingir a grandeza a que<br />
está chamado por sua vocação histórica e providencial. Mas<br />
se sua Fé continuar tíbia, se continuarem mornas as convicções,<br />
se Cristo não for realmente o Rei dos corações dos brasileiros,<br />
nossa Pátria estará irremediavelmente afastada do<br />
único caminho em que pode realizar sua missão. Porque Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo é o Caminho, a Verdade, a Vida, e<br />
o Brasil, se não estiver com Ele, sairá do Caminho, apostatará<br />
da Verdade, e perderá a Vida.<br />
Ninguém pense, no entanto, que, para integrar o Brasil no<br />
espírito católico, seja necessário converter nosso País. O Brasil<br />
é uma das maiores nações católicas do mundo, e o que lhe<br />
falta, graças a Deus, não é a Fé, mas a instrução religiosa.<br />
É magnífica a ofensiva que os católicos de São Paulo desferem<br />
em todos os campos da atividade social, para restaurar<br />
o reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo no Brasil. Incontestavelmente,<br />
é esta a mais indispensável das obras que devamos<br />
empreender. Porém, na prolixidade dos diversos fins<br />
associativos, na multiplicidade dos numerosos problemas,<br />
é preciso não esquecer essa verdade fundamental: o Brasil,<br />
do que precisa mais do que tudo, é Catecismo.<br />
Porque como será possível recatolicizar uma Nação, quando<br />
a maior parte dos católicos nem sequer saberia dizer de cor<br />
os dez mandamentos da Lei de Deus, ou os cinco mandamentos<br />
da Igreja, ou os Sacramentos? Se falta a base, do que vale<br />
todo o resto?<br />
(Excertos do artigo com o título de “A questão<br />
fundamental”, publicado no “Legionário”, 28/11/1937.)
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Grandiosa<br />
solidão,<br />
convívio celestial<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Vista parcial do maciço do Mont Blanc, na cordilheira<br />
dos Alpes; na página anterior, o “Dente do Gigante”<br />
32
Quando, em sua divina onipotência, dispôs o Padre<br />
Eterno que a terra se povoasse de cordilheiras e<br />
montanhas, ainda não havia no mundo homens para<br />
contemplá-las. Naquela ocasião, os maravilhosos panoramas<br />
constituídos por tantas e tantas elevações desenrolaram-se<br />
apenas aos olhos de Deus, e assim permaneceram<br />
para proporcionar às criaturas humanas<br />
uma leve idéia das belezas arquitetadas por Ele antes de nós<br />
existirmos. Podemos, pois, conjecturar que, ao modelar todos<br />
esses cenários montanhosos, Deus teve como principal intenção<br />
a de nos fornecer a oportunidade de meditar e refletir a<br />
respeito de sua grandeza e de sua majestade infinitas.<br />
Uma das paisagens mais propícias para esse gênero de considerações<br />
é, a meu ver, a que descortinamos nas regiões circundadas<br />
pelos Alpes, ombreadas por aqueles montes e montanhas<br />
cobertos de neve, com toda a poesia e a magnificência<br />
que esta traz consigo.<br />
Às vezes, contudo, o que há de mais belo nesses panoramas<br />
não são as camadas de alvura eterna, e sim a configuração<br />
deste ou daquele pico — como o famoso Mont Blanc —, com<br />
cristas que se sobrepõem e se elevam umas às outras, dando<br />
formas extraordinárias às cordilheiras. Alguns se assemelham<br />
a crateras de vulcões que entraram em irrupção, jorrando das<br />
entranhas mais quentes da terra um jato imenso de lava que<br />
logo se congelou, petrificado para sempre naquela posição.<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Outros parecem cercados de uma como que muralha natural,<br />
imitando a estrutura de muitas fortalezas medievais.<br />
No centro do recinto fortificado se encontraria o castelo,<br />
formado por rochas mais acentuadas; e no meio desse castelo<br />
imaginário, à maneira de uma torre prodigiosa, elevase<br />
o píncaro mais proeminente.<br />
Em geral, o céu em que esses montes se recortam é de um<br />
azul belíssimo, ora claro e límpido, ora profundo e malhado<br />
de nuvens que procuram envolver os castelos de ficção.<br />
Tudo isso contribui para o esplendor e a riqueza do panorama,<br />
que ainda aquire maior expressividade ao ser introduzida<br />
nele a presença humana.<br />
Com efeito, o homem não pode contemplar os Alpes sem<br />
se imaginar a si próprio nesses píncaros, e sem medir a sensação<br />
que ele teria se, por exemplo, lhe fossem oferecidos<br />
os meios financeiros e técnicos para construir uma fortificação<br />
de verdade naquelas alturas. Quem pudesse habitar<br />
esse castelo se sentiria colocado no cume de uma grandeza<br />
colossal. Ele se teria pelo castelão dos castelões, o homem<br />
que se encontra numa elevação fantástica e que domina<br />
a partir deste ápice, pelo olhar e pelo pensamento,<br />
tudo quanto de contemporâneo se desenvolve aos seus pés.<br />
Em compensação, ele experimentaria também um imenso<br />
isolamento. Antes de tudo, porque a neve não é o seu habitat<br />
natural. O homem não foi feito para viver constantemente<br />
na neve, mas em lugares onde ela cai durante certo<br />
período do ano. Embora existam povos (como os esquimós)<br />
que conseguem viver em panoramas nevados, fazem-no entretanto<br />
em condições de vida bastante primitivas e com<br />
um desenvolvimento cultural dos mais elementares.<br />
Nessa perspectiva, a neve acaba dando a impressão de<br />
uma paisagem lunar, em que o homem estaria tão isolado<br />
quanto se achasse na lua, separado de seus semelhantes,<br />
longe de todos, incompreensível para todos, a todos dominando<br />
lá de suas alturas. E sofrendo daquilo a que se referem<br />
as Escrituras, a propósito da criação de Eva: “Não é<br />
bom para o homem que ele esteja só”. Na verdade, o isolamento,<br />
sobretudo quando se torna mais imponente e mais<br />
esmagador pela grandeza, é algo que pesa sobre os nossos<br />
ombros.<br />
E podemos imaginar que não seria diferente para o<br />
castelão na sua fortaleza, vivendo ali com apenas dois ou<br />
três serviçais, vendo os dias se sucederem às noites e as<br />
noites aos dias, com neves e nuvens cercando todas as<br />
34
suas janelas, e seu castelo de tal maneira isolado do próprio<br />
monte sobre o qual se ergue que o homem se pergunta<br />
se não está voando...<br />
De outro lado, porém, para os que não vivem na neve,<br />
para os que têm de suportar a existência no dia-a-dia rotineiro<br />
e trivial, mas conservando suficiente elevação de espírito,<br />
para estes haverá sempre uma vontade de sair da<br />
banalidade, um desejo de voar com a alma para dentro dos<br />
horizontes grandiosos. De maneira tal que, postos diante<br />
de panoramas como os dos Alpes, não seria estranho que<br />
pensassem: “Como seria bom estar lá no alto!”<br />
Essa grandiosidade amiga das alturas, essa magnífica<br />
solidão que procura companhia, em ambas há um pouco de<br />
verdade que nos fazem compreender melhor o Céu.<br />
De fato, o Paraíso Celeste é de uma elevação, de uma altitude<br />
— não física mas moral — incomparável. Por outro<br />
lado, nele não se está só. O homem se encontra na presença<br />
d’Aquele que é sua finalidade, e sente a companhia absoluta<br />
para a qual foi criado. Junto a Deus, o justo está como<br />
que embriagado da alegria de ter contato com seu Criador,<br />
de adorá-Lo face a face, de conversar com Ele, infinitamente<br />
mais alto do que todas as montanhas dos Alpes, mas, ao<br />
mesmo tempo, infinitamente mais condescendente, afável e<br />
amoroso do que as idéias que essas montanhas sugerem.<br />
Além disso, o homem se vê inserido em toda a Corte Celeste,<br />
na qual ele passa a ser príncipe, ao lado dos Anjos e<br />
Santos que povoam a bem-aventurança eterna. E cada um<br />
sente ali a felicidade completa, que reúne as alegrias antitéticas,<br />
aparentemente contraditórias, de fazer parte de uma<br />
multidão e de estar isolado num píncaro próprio. Ele se<br />
acha no mais alto dos cumes, cercado de um convívio idealmente<br />
afetuoso, respeitoso, amável, com a mais perfeita<br />
das multidões, que é o imenso povo formado por aqueles<br />
que se salvam.<br />
v<br />
Nas paisagens<br />
alpinas,<br />
envoltas na neve,<br />
circundadas de<br />
grandiosas<br />
solidões, é dada<br />
ao homem uma<br />
das mais belas<br />
oportunidades de<br />
meditar na<br />
magnificência<br />
infinita<br />
do Criador<br />
35
Plenitude de Inocência<br />
Nossa Senhora é a criatura dourada por excelência. Antes de seu nascimento, não houve em toda<br />
a história da Antiguidade quem tivesse um espírito tão inocente quanto o d’Ela. A inocência<br />
que, à maneira de vestígio, ficara difusa pela antiga humanidade, revigorou-se em Nossa<br />
Senhora. Imaculada, toda pura e sem mancha alguma de pecado, Ela praticou na ordem da inocência<br />
um ato de virtude tão imenso, que se revestiu de uma plenitude paradisíaca por nós inconcebível.<br />
E dessa plenitude deriva nossa própria inocência.<br />
“Maria mons, Maria pons, Maria fons”: Ela é a montanha de Deus, a ponte que a Ele nos conduz,<br />
o oceano de graças de que todos nos beneficiamos.