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Revista Dr. Plinio 230

Maio de 2017

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Publicação Mensal Ano XX - Nº <strong>230</strong> Maio de 2017<br />

Nolite<br />

obdurare<br />

corda vestra


O Carlos Magno da<br />

Yann (CC3.0)<br />

Igreja Católica<br />

São Gregório VII travou<br />

uma batalha decisiva e<br />

desfechou um golpe certeiro<br />

no maior potentado da Terra,<br />

vibrando contra ele a punição<br />

mais alta, profunda e intransigente<br />

que se poderia imaginar.<br />

A lição desse grande Pontífice<br />

foi, em última análise, a de levar<br />

a verdade, o bem, a beleza, a fidelidade<br />

à Igreja até as suas últimas<br />

consequências.<br />

Ele foi o Carlos Magno da Igreja<br />

Católica! A glória carolíngia,<br />

de proporções mais angélicas do<br />

que humanas, foi vivida magnificamente<br />

pela Santa Igreja Católica<br />

nos dias de São Gregório VII.<br />

Devemos desejar, com toda a<br />

nossa alma, que o adversário da<br />

verdadeira Igreja Católica Apostólica<br />

Romana em nossos dias,<br />

a maldita Revolução gnóstica e<br />

igualitária, seja punida ainda<br />

mais do que o Imperador Henrique<br />

IV, pois ela tentou coisa pior<br />

do que ele. A Revolução desbastou<br />

a Terra inteira, e é preciso<br />

que a punição seja proporcional.<br />

(Extraído de conferência de<br />

25/5/1985)<br />

2


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XX - Nº <strong>230</strong> Maio de 2017<br />

Ano XX - Nº <strong>230</strong> Maio de 2017<br />

Nolite<br />

obdurare<br />

corda vestra<br />

Na capa, imagem peregrina de<br />

Nossa Senhora de Fátima.<br />

Foto: Teodoro Reis<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Gilberto de Oliveira<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Antônio Pereira de Sousa, 194 - Sala 27<br />

02404-060 S. Paulo - SP<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

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Tel: (11) 2238-4200<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 130,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 415,00<br />

Grande Propulsor . . . . . . R$ 655,00<br />

Exemplar avulso . . . . . . . R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

EDITORIAL<br />

4 Nolite obdurare corda vestra<br />

PIEDADE PLINIANA<br />

5 Nossa Senhora de Fátima,<br />

o extremo sacrossanto<br />

DONA LUCILIA<br />

6 Voz flexível e ondulada<br />

DE MARIA NUNQUAM SATIS<br />

8 As maiores perspectivas históricas<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

12 Uma fortaleza cercada<br />

por todos os lados<br />

HAGIOGRAFIA<br />

16 Exemplo de força de alma<br />

CALENDÁRIO DOS SANTOS<br />

20 Santos de Maio<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

22 Uma dupla Revolução<br />

REFLEXÕES TEOLÓGICAS<br />

29 Anjos proféticos<br />

APÓSTOLO DO PULCHRUM<br />

32 Grandeza e bondade de Deus<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

36 Auxílio dos pequeninos<br />

3


Editorial<br />

Nolite obdurare<br />

corda vestra<br />

AMensagem de Fátima irrompe em nossos dias com renovada atualidade. O que um leitor<br />

médio, que a ela consagre uma atenção suficientemente séria, extrai dessa Mensagem?<br />

Um leitor em tais condições retém da Mensagem o fato supremamente grave de que<br />

Nossa Senhora increpa o mundo de certas culpas e o ameaça de determinados castigos caso os pedidos<br />

d’Ela não sejam atendidos. O caráter condicional das promessas de Fátima fica assim perfeitamente<br />

configurado. Isto é, Nossa Senhora deixa uma via aberta para que a humanidade possa escapar<br />

do castigo iminente mediante a emenda da vida.<br />

Neste sentido, ressalta também o caráter expiatório dos pedidos feitos por Nossa Senhora: a Comunhão<br />

Reparadora dos primeiros sábados de cinco meses seguidos e a consagração da Rússia ao<br />

Imaculado Coração de Maria. Se tais pedidos fossem atendidos, o mundo voltaria a gozar da paz: a<br />

paz de Cristo no Reino de Maria.<br />

Pergunta: as culpas, os pecados cessaram? A expiação foi feita?<br />

Resposta: para ir, antes de tudo, ao mais evidente, a crise moral no Ocidente, de 1917 para cá, não<br />

fez senão acentuar-se rapidamente. Assim, entre tantas reformas de que todo o mundo fala como necessárias<br />

– quer no Ocidente, quer no Oriente – ninguém pleiteia a solução do que mais ofendeu a<br />

Nossa Senhora, isto é, a reforma da moralidade, tanto particular como pública, pela restauração do<br />

instituto da família, com o revigoramento da indissolubilidade e sacralidade do casamento, da autoridade<br />

dos pais sobre os filhos, a subtração destes à intromissão abusiva do Estado que oficialmente é<br />

pelo menos leigo, se não diretamente ateu.<br />

Portanto, qualquer afirmação no sentido de que as promessas de Fátima estão se cumprindo, exigiria<br />

a maior circunspecção, posto que, da parte dos homens, não houve correspondência aos pedidos<br />

de Nossa Senhora em um ponto fundamental destes, que é a emenda de vida.<br />

Importa, pois, em alto grau, interpretar a Mensagem de Fátima de forma autêntica, para que os<br />

espíritos se mantenham lúcidos, vigilantes e corajosos diante de acontecimentos extraordinários que<br />

possam advir, lançando a humanidade na perplexidade e na aflição.<br />

Para os que têm fé, ressoarão sempre aos seus ouvidos as palavras de Nossa Senhora em Fátima:<br />

“Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará” 1 .<br />

“Hodie si vocem ejus audieritis nolite obdurare corda vestra – se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais<br />

os vossos corações” (Sl 94, 8) –, diz a Escritura. Inscrevendo a Festa de Nossa Senhora de Fátima<br />

no rol das celebrações litúrgicas, a Santa Igreja proclama a perenidade da Mensagem de Nossa<br />

Senhora dada ao mundo através dos pequenos pastores. No dia de sua Festa, mais uma vez a voz<br />

de Fátima chegou a nós. Não endureçamos nossos corações, porque só assim teremos achado o caminho<br />

da paz verdadeira 2 .<br />

1) Excertos do artigo “Atualidade da Mensagem de Fátima, 75 anos depois”, publicado no diário Las Americas,<br />

em 14/5/1992.<br />

2) Extraído do artigo “Fátima”, publicado em O Legionário de 14/5/1944.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


PIEDADE PLINIANA<br />

Nossa Senhora<br />

de Fátima,<br />

o extremo<br />

sacrossanto<br />

Teodoro Reis<br />

ÓVirgem Mãe, Senhora de Fátima, que anunciastes<br />

ao mundo tão extremas aflições e tão excelsas<br />

alegrias, revelando os terríveis castigos e os gran-<br />

des triunfos pelos quais passará a Cristandade! A Vós,<br />

que denunciastes com tanta clareza os extremos de abominação<br />

moral a que chegamos e, ao mesmo tempo, fizestes<br />

ver a plenitude de vossa insondável santidade,<br />

eu Vos suplico: mudai o meu espírito!<br />

Não permitais que eu continue sendo uma dessas<br />

incontáveis pessoas de horizontes curtos e de interesses<br />

circunscritos à pequena esfera de sua própria<br />

individualidade. Fazei, pelo contrário, que<br />

pela despretensão e abnegação eu seja uma alma<br />

aberta e ardente, capaz de medir em toda<br />

a sua extensão os extremos que em Fátima se<br />

divisam e de tomar uma posição intransigente<br />

e completa a favor do extremo sacrossanto<br />

que sois Vós, oh! minha Mãe: extremo de<br />

amor de Deus, de pureza, de humildade,<br />

de despretensão, de inquebrantável combatividade!<br />

Fazei com que eu, assim, seja um<br />

contrarrevolucionário modelar, um<br />

perfeito apóstolo dos últimos tempos.<br />

Amém.<br />

(Oração composta em 8/5/1971)<br />

5


DONA LUCILIA<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Voz flexível<br />

e<br />

ondulada<br />

A voz de Dona Lucilia era muito flexível, ondulada, com<br />

uma capacidade extraordinária de fazer transparecer<br />

a significação moral e psicológica que ela quisesse<br />

comunicar-lhe. Isso tornava sua conversa muito agradável.<br />

Dona Lucilia nunca foi cantora.<br />

Quando moça, tocava<br />

um instrumento bojudo<br />

e todo enfeitado com las, chamado bandolim.<br />

Como o clima em São Paulo sempre<br />

foi muito irregular, certa vez ela<br />

apanhou um resfriado bastante agudo,<br />

perdendo boa parte da audição<br />

por causa disso. Assim, ficou incapaz<br />

de tocar música, porque para isso<br />

é necessário ter um ouvido madrepéromuito<br />

afinado. Entretanto, ela conservou<br />

o bandolim até o fim da vida, guardando<br />

certa nostalgia dele, mas não<br />

o tocava mais.<br />

Voz comunicativa,<br />

principalmente em<br />

assuntos elevados<br />

Contudo, mamãe tinha a voz<br />

muito flexível, ondulada. Não era<br />

nem um pouco cantante, mas uma<br />

voz com uma capacidade extraordinária<br />

de receber a significação<br />

moral e psicológica que ela quisesse<br />

comunicar-lhe. Assim, qualquer<br />

coisa dita por Dona Lucilia, conforme<br />

o caso, podia tomar uma inflexão<br />

muito comunicativa e persuasiva,<br />

o que tornava sua conversa<br />

muito agradável. Sobretudo quando<br />

se tratava de um assunto sério<br />

– não só no sentido de repreensão,<br />

mas também uma aprovação, um<br />

6


carinho sério, um tema elevado –,<br />

a voz dela ficava muito comunicativa.<br />

Isso fazia com que ela, quando<br />

queria comunicar a confiança, tivesse<br />

inflexões de voz que transmitiam<br />

uma espécie de persuasão, a qual, à<br />

primeira vista, poderia parecer gratuita,<br />

mas analisando bem, via-se<br />

não ser assim.<br />

A mim mesmo, como filho dela,<br />

em circunstâncias da vida de menino<br />

– porque o homem precisa ter confiança<br />

desde quando é pequeno –,<br />

como depois em situações da vida de<br />

moço e de adulto, várias vezes ela recomendou<br />

essa virtude, comunicando-a<br />

de modo a persuadir-me de que<br />

realmente era o caso de confiar e de<br />

manter-me tranquilo.<br />

O menino <strong>Plinio</strong> é<br />

atingido pela caxumba<br />

Lembro-me, por exemplo, de uma<br />

coisinha que é uma bagatela: o modo<br />

de ela tratar-me de uma caxumba.<br />

Essa doença, se bem cuidada –<br />

evitando-se que a criança saia correndo<br />

pelo jardim, etc. –, não tem<br />

gravidade, mas é um pouquinho prolongada,<br />

e constitui para a criança<br />

uma eternidade ficar na cama. Não<br />

há criança que não tenha horror de<br />

permanecer na cama.<br />

Ora, eu não sabia que a caxumba<br />

podia passar de um lado para outro<br />

do pescoço. Tive de um lado, e depois<br />

foi diminuindo. Mamãe – que<br />

conhecia esse predicado da enfermidade,<br />

mas não me dizia para eu não<br />

ficar apreensivo – me tranquilizava:<br />

“Olha, já está melhorando a sua caxumba!”<br />

Eu ia apalpando, sentindo que diminuía,<br />

e já fazendo planos de sair<br />

correndo para o jardim, e de mil outras<br />

coisas de criança que não aguenta<br />

mais a cama.<br />

Um belo dia eu disse a ela:<br />

– Mamãe, uma coisa engraçada,<br />

estou com algo aqui.<br />

– Meu filho, é que a caxumba passou<br />

para o outro lado.<br />

Comecei a chorar, porque para<br />

um menino de seis anos isso pode<br />

significar uma catástrofe cósmica,<br />

universal...<br />

– Não, mas você tenha paciência,<br />

isso passa como já passou desse outro<br />

lado – consolava-me ela.<br />

Se uma outra pessoa dissesse isso<br />

eu urraria: “Isso não passa, isso não<br />

está acabando, não vês? Troca esse<br />

médico!” Eu não entendia bem o<br />

que ocorria. Como era possível aparecer<br />

a mesma doença do outro lado?<br />

Esse médico é um incompetente,<br />

não serve para nada!<br />

Mas ela dizendo “isso passa” dava-me<br />

a persuasão de que passava<br />

mesmo, o tempo não seria tão longo,<br />

era suportável e, afinal de contas,<br />

durante a doença eu teria carinhos<br />

excepcionais dela, que compensariam<br />

a provação de ficar na cama.<br />

“Tenha confiança!”<br />

Podem imaginar o desfecho do<br />

caso: quando a caxumba estava quase<br />

curada, amanheci com uma indisposição<br />

de estômago violentíssima.<br />

Meu quarto ficava ao lado do dela.<br />

Chamei:<br />

– Mamãe, faz favor.<br />

Ela veio e eu lhe disse:<br />

– Amanheci com isso.<br />

– Filhão, a caxumba passou para o<br />

estômago...<br />

– Mas isso se transmite para o estômago?!<br />

Passa para onde mais, para<br />

os olhos, para a língua...?!<br />

– Esteja calmo, porque só dá<br />

nos dois lados do pescoço e no estômago;<br />

não em outro lugar. Agora<br />

é mesmo a última vez. Você esteja<br />

consolado. Veja bem, vou lhe<br />

arranjar um brinquedo. Tenha confiança!<br />

Esse “tenha confiança” era dito<br />

de tal modo que eu começava a confiar<br />

e sossegava. Era o efeito comunicativo<br />

do timbre de voz dela, próprio<br />

ao de uma mãe, mas ao mesmo<br />

tempo com algo que eu seria levado<br />

a julgar como sendo sobrenatural,<br />

e que atuava profundamente sobre<br />

mim.<br />

Embora eu tenha sido, em toda a<br />

minha vida, muito categórico, sossegava,<br />

deitava, recostava minha cabeça<br />

no meu travesseiro e começava a<br />

minha triste manhã de doente. Mas,<br />

com ela ao lado, não tinha problema,<br />

estava tudo resolvido: “Mamãe<br />

está lá, eu confio nela, porque ela leva<br />

consigo qualquer coisa de Deus<br />

que faz com que dê tudo certo.”<br />

Intercâmbio de moções<br />

que aumentará nas mais<br />

difíceis circunstâncias<br />

A grande quantidade de flores depositadas<br />

na sepultura de Dona Lucilia<br />

mostra como são tratados como<br />

filhos os que a ela recorrem. Aquilo<br />

tudo corresponde a graças recebidas,<br />

esperanças de novos favores, afeto e<br />

gratidão pelos benefícios obtidos. É<br />

uma coisa muito justa, muito razoável.<br />

Além das flores, aquele tufo de<br />

gente que fica ali indefinidamente,<br />

sem programa de ir embora. Tanto<br />

podem sair de repente se chover, por<br />

exemplo, quanto não se incomodarem<br />

muito e permanecerem embaixo<br />

da chuva mesmo.<br />

Por quê? Por estarem sentindo<br />

algo interior, uma graça que leva a<br />

pessoa, mais ou menos confusamente,<br />

a pensar: “Aqui está bom e daqui<br />

eu não saio.” Vê-se que há uma espécie<br />

de diálogo mudo entre a alma<br />

dela no Céu e as pessoas que estão<br />

rezando ali.<br />

Esse intercâmbio de moções dever-se-á<br />

dar intensissimamente em<br />

circunstâncias difíceis como, por<br />

exemplo, durante os castigos previstos<br />

por Nossa Senhora, em Fátima. ❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

28/2/1993)<br />

7


DE MARIA NUNQUAM SATIS<br />

As maiores<br />

perspectivas<br />

históricas<br />

Teodoro Reis<br />

As revelações de Fátima<br />

não são apenas um aviso<br />

de castigos vindouros,<br />

mas uma graça de Nossa<br />

Senhora com vistas a<br />

criar na Cristandade um<br />

determinado espírito<br />

característico dos<br />

verdadeiros Santos.<br />

8<br />

Desfile dos Fusileiros Navais<br />

americanos em Paris, 1918<br />

Gibbons Floyd Phillips (CC3.0)


Essa nota de tristeza tornou-se<br />

ainda mais aguda nas aparições de<br />

Nossa Senhora. O maior ciclo de<br />

aparições marianas da História foi,<br />

sem dúvida, o das iniciadas no século<br />

XIX com La Salette e que terminaram<br />

no século XX com Fátima; ou,<br />

se preferirem, mais recentemente,<br />

com o milagre de Siracusa 1 . Em todas<br />

essas manifestações, Maria Santíssima<br />

aparece chorando, lamentan-<br />

H<br />

oje se comemora o aniversário<br />

da primeira aparição<br />

da Bem-aventurada<br />

Virgem Maria do Rosário de Fátima.<br />

Aparecendo várias vezes a três pastorinhos<br />

na Cova da Iria, a Virgem<br />

Santíssima, recomendando oração<br />

e penitência, predisse a perseguição<br />

que sofreriam os bons, os erros que<br />

a Rússia espalharia pelo mundo e o<br />

triunfo de seu Imaculado Coração.<br />

Nos ambientes católicos,<br />

tristeza por causa dos<br />

progressos da Revolução<br />

O pensamento mariano que está<br />

escolhido para o dia de hoje é:<br />

“Quão felizes aqueles que têm dentro<br />

do coração o amor de Maria e<br />

A servem fielmente!” É uma frase<br />

de São Boaventura. O Doutor Seráfico<br />

ressalta assim, mais uma vez, a<br />

importância da devoção a Nossa Senhora.<br />

A respeito da festa de Nossa Senhora<br />

de Fátima haveria um comentário<br />

especial a fazer e que diz respeito<br />

ao seguinte:<br />

Se considerarmos o ambiente<br />

eclesiástico próprio às igrejas constituídas<br />

segundo a Tradição, notamos,<br />

sobretudo se são de épocas posteriores<br />

ao início da Revolução, estarem<br />

elas impregnadas de uma certa tristeza.<br />

Por exemplo, a Igreja do Coração<br />

de Jesus, em São Paulo é muito recolhida,<br />

elevada, serena, mas há nela<br />

certa nota de tristeza resignada. Assim<br />

também outras igrejas construídas<br />

no século XIX.<br />

As músicas religiosas desse período,<br />

mesmo quando não se trata<br />

de música sacra propriamente dita<br />

– o cantochão ou o polifônico –, são<br />

sempre melodias impregnadas dessa<br />

nota de uma tristeza muito temperante,<br />

digna, elevada, eu diria mesmo<br />

uma tristeza sobrenatural.<br />

Essa tristeza decorre exatamente<br />

do ambiente de desolação e me-<br />

Jacinta, Lúcia e Francisco, videntes de Fátima,<br />

após lhes ter sido revelado o Inferno<br />

lancolia introduzido nos meios católicos<br />

pelos progressos da Revolução.<br />

A nota dominante do ambiente católico<br />

de então era de pesar, por causa<br />

do rumo que o mundo ia tomando,<br />

da maré montante dos pecados.<br />

A devoção ao Sagrado Coração<br />

de Jesus e o maravilhoso corolário<br />

dela que é a devoção ao Ima-<br />

culado Coração de Maria contribuíram<br />

muito para acentuar esta nota<br />

de tristeza. Porque em todas as suas<br />

revelações a Santa Margarida Ma-<br />

ria Alacoque – depois tão repetidas<br />

e comentadas por todo o orbe católico,<br />

tão difundidas por essa imensa<br />

organização que foi o Apostolado da<br />

Oração –, o Sagrado Coração de Jesus<br />

Se apresentava triste, conturbado,<br />

lamentando as ofensas feitas pelos<br />

homens e pedindo que se rezasse<br />

a fim de evitar para o mundo grandes<br />

catástrofes.<br />

Otimismo que fecha os olhos<br />

para a paixão da Igreja<br />

do, deplorando a maré montante das<br />

ofensas feitas pelos homens a Deus,<br />

e advertindo: convertam-se, façam<br />

penitência, mudem de vida, castigos<br />

enormes estão para vir.<br />

Isso tudo repercutia numa tristeza,<br />

numa prostração nos ambientes de<br />

piedade que, muito digna e adequadamente<br />

associando-se à tristeza da<br />

Igreja, fazia como as santas mulheres<br />

que se uniam ao sofrimento de Nosso<br />

Senhor no alto da Cruz. Por essa<br />

razão, volto a dizer, uma atmosfera<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Conrad Fernandes<br />

Pranto de Nossa Senhora em La Salette<br />

Basílica de la Salette, França<br />

9


DE MARIA NUNQUAM SATIS<br />

de tristeza impregnava essas<br />

igrejas antigas. Notei isso no<br />

Brasil, em igrejas da Europa,<br />

da Argentina, todas elas<br />

com uma nota de gravidade<br />

melancólica.<br />

O contrário disso é a atmosfera<br />

resultante de certas<br />

mudanças que introduziram<br />

nas cerimônias litúrgicas<br />

cançonetas representando<br />

uma alegria inexpressiva,<br />

a qual insinuava estar<br />

tudo indo muito bem: “Veja<br />

o progresso, o mundo, a<br />

evolução, como aquele bon<br />

sauvage 2 agora está se convertendo!”<br />

Quer dizer, um<br />

otimismo idiota que fecha<br />

os olhos para a paixão<br />

da Igreja, procura afirmar<br />

que ela não está sendo<br />

perseguida e que o mundo<br />

moderno não é construído<br />

contra a Esposa de Cristo<br />

e, portanto, não existe uma<br />

incompatibilidade entre<br />

ambos. Por causa disso, visa<br />

criar nos homens um horror à cruz,<br />

ao sofrimento, e uma verdadeira indiferença<br />

para com o pecado. Tudo<br />

é alegre e bem instalado no mundo.<br />

Encontramos aqui uma das rejeições<br />

– não é a única – que o mundo<br />

moderno fez das revelações de Fátima.<br />

Seriedade, objetividade,<br />

combatividade<br />

Do ponto de vista temperamental,<br />

há um número enorme de pessoas<br />

com birra das revelações de Fátima<br />

porque elas abrem os olhos para<br />

uma realidade séria, mostram essa<br />

realidade como trágica até, preveem<br />

castigos e orientam os espíritos<br />

para a ideia do Coração de Jesus ultrajado,<br />

ofendido, do Imaculado Coração<br />

de Maria alanceado de dor pelos<br />

fatos que agora se presenciam, se<br />

patenteiam.<br />

Imagem da Santíssima Virgem vertendo lágrimas<br />

em 1 de Setembro de 1953 - Siracusa, Itália<br />

Divulgação<br />

Por causa disso, convidando os<br />

fiéis à penitência, à reparação, à<br />

emenda da vida. Mantendo, portanto,<br />

aquele clima de seriedade e de<br />

tristeza grave e nobre, decorrente<br />

da época das revelações do Sagrado<br />

Coração de Jesus, e que era a atitude<br />

normal perante a Revolução, e contrária<br />

aos espíritos formados em ambientes<br />

relaxados nos quais a piada é<br />

cultivada como a única forma de espírito<br />

e de popularidade, onde se leva<br />

tudo dentro da brincadeira, trivialidade,<br />

superficialidade, sem prestar<br />

atenção em nada de sério, não querendo<br />

ver de frente nenhum problema,<br />

com um recuo constante diante<br />

da realidade objetiva para se poder<br />

levar uma vida divertida.<br />

Evidentemente, as revelações de<br />

Fátima, opostas a esse espírito, encontram<br />

uma predisposição temperamental<br />

para serem recusadas e<br />

se aplaudir toda sabotagem que delas<br />

se faça. Porque o homem<br />

estulto, sem seriedade,<br />

sem elevação de<br />

espírito, que gosta de<br />

estar rindo sempre, tem<br />

que detestar as profecias<br />

e tudo quanto é sublime,<br />

nobre, elevado;<br />

precisa, portanto, ser favorável<br />

a que se fechem<br />

os olhos e os ouvidos a<br />

tudo quanto está escrito<br />

e dito a respeito das revelações<br />

de Fátima.<br />

Vistas debaixo dessa<br />

luz, as revelações de<br />

Fátima não são apenas<br />

um aviso de castigos,<br />

mas uma tentativa, uma<br />

graça de Nossa Senhora<br />

que pretende criar na<br />

Cristandade um espírito<br />

de seriedade, de objetividade,<br />

de combatividade,<br />

como um meio para<br />

a regeneração do mundo,<br />

como quem considera<br />

que a humanidade<br />

não se regenera fora desse espírito,<br />

e que na perpétua piada, na contínua<br />

brincadeira, na despreocupação,<br />

na superficialidade crônica não pode<br />

haver salvação para o mundo.<br />

Espírito<br />

contrarrevolucionário<br />

nobre, augusto e majestoso<br />

É por isso que as mais altas perspectivas<br />

históricas se resumem nas<br />

revelações de Fátima e tocam francamente<br />

no sublime. Por que razão,<br />

por exemplo, Nossa Senhora apareceu<br />

ora com a indumentária própria<br />

a essa nova devoção, ora como sendo<br />

o Imaculado Coração de Maria, ora<br />

como Nossa Senhora do Carmo? Ela<br />

mostrou-Se como o Imaculado Coração,<br />

dando a entender bem o que<br />

era o reino do amor que Ela profetiza<br />

e vai realizar sobre a Terra. Portanto,<br />

uma profecia para os próximos<br />

10


acontecimentos, para o Reino d’Ela.<br />

Ela apareceu sob a invocação de Nossa<br />

Senhora do Carmo como uma evidente<br />

alusão ao Profeta Elias, fundador<br />

da Ordem do Carmo e primeiro<br />

grande servo e filho d’Ela, e que virá<br />

no fim do mundo para lutar ainda<br />

contra o Anticristo. Quer dizer,<br />

são as maiores perspectivas históricas<br />

que com isso se desvendam.<br />

Então, precisamos tirar disso um<br />

fruto para nós. Não devemos ver<br />

nessas aparições apenas o aviso de<br />

um fato que se dará, mas a recomendação<br />

de um espírito, de uma posição<br />

psicológica, de uma atitude temperamental<br />

em conexão com esse<br />

aviso. A devoção à Virgem de Fátima<br />

é um convite para vivermos meditando,<br />

dia e noite, nas perspectivas<br />

enormes diante das quais atuamos<br />

em nosso apostolado, embora a trivialidade<br />

do mundo contemporâneo<br />

não tome isso em consideração; para<br />

não darmos importância a nada do<br />

que é terreno, meramente humano<br />

e nos preocuparmos exclusivamente<br />

com nossa vocação. Este é o convite<br />

que a festa de Nossa Senhora de Fátima<br />

significa para nós.<br />

Alguém poderia pensar: “Eu estou<br />

em dia com Nossa Senhora de<br />

Fátima, porque acredito em tudo<br />

quanto Ela profetizou.”<br />

A esse, eu teria vontade de dizer:<br />

“Meu caro, você poderá estar em dia<br />

enquanto acreditando, mas não está<br />

se não cultiva em sua alma a seriedade,<br />

a gravidade, a ruptura com este<br />

século corrupto de hoje, o espírito<br />

contrarrevolucionário, nobre, augusto,<br />

majestoso próprio àqueles que<br />

querem servir a Nossa Senhora na<br />

Contra-Revolução.”<br />

Eis o que devemos pedir a Maria<br />

Santíssima neste dia: esta grande<br />

seriedade, grande elevação de alma<br />

que caracteriza todos os Santos e é a<br />

condição para que realmente nós estejamos<br />

à altura de nossa grande vocação.<br />

❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

13/5/1966)<br />

1) Em 1953, na cidade de Siracusa, Itália,<br />

uma imagem de Maria Santíssima<br />

verteu lágrimas milagrosamente durante<br />

75 horas. As análises bioquímicas<br />

comprovaram serem lágrimas de<br />

origem humana. Os bispos da Sicília<br />

reconheceram o milagre e autorizaram<br />

o culto à “Virgem das Lágrimas”.<br />

2) Do francês: bom selvagem. Referência<br />

feita ao mito de Rousseau, segundo<br />

o qual o homem é bom em sua natureza,<br />

mas a civilização o corrompe.<br />

Profeta Elias - Paróquia de<br />

São José, Madri, Espanha<br />

Samuel Holanda<br />

11


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Augusto P.<br />

Uma fortaleza cercada<br />

por todos os lados<br />

Castelo de<br />

Hohenschwangau,<br />

Alemanha<br />

O homem pode ser comparado a um castelo, cercado por inimigos<br />

que desejam dominá-lo. Ou travamos uma batalha inclemente<br />

contra as poternas abertas de nossa própria alma, adquirindo<br />

bons hábitos, ou então, num ponto onde conseguimos a virtude,<br />

entra o pecado venial e depois o mortal.<br />

12


C<br />

erta ocasião, após uma conferência<br />

minha no Teatro Municipal<br />

de São Paulo, uma pessoa<br />

deu-me este conselho:<br />

– Você deveria fazer discursos<br />

mais complicados do que realiza.<br />

Olhei-o espantado e perguntei-lhe:<br />

– Por quê?!<br />

Disse-me ele:<br />

– Porque você costuma dirigir-<br />

-se a pessoas que não estão habituadas<br />

a entender as coisas, são muito<br />

simples. Então você reduz os assuntos<br />

às simplicidades delas. Resultado:<br />

elas pensam que o tema é muito<br />

fácil e não dão valor ao que você<br />

está dizendo.<br />

Falta de agilidade<br />

Não discuti com ele, mas o meu<br />

comentário interior foi o seguinte:<br />

não falo a fim de que se dê valor, e<br />

sim para que se entenda, entendendo<br />

se queira, querendo faça-se o que<br />

se deve fazer. É este meu objetivo<br />

ao falar. O juízo que as pessoas possam<br />

fazer de mim, no final das contas,<br />

pouco me importa. Quero chegar<br />

ao resultado concreto, em favor<br />

da Causa de Nossa Senhora.<br />

Tomei, portanto, o hábito de, em<br />

todas as minhas exposições, começar<br />

a abordar o assunto pelo seu aspecto<br />

mais simples para, depois, ver como<br />

ele se ramifica em considerações de<br />

uma ordem superior.<br />

Quando criança, quantas vezes<br />

me aconteceu isto: Eu via em torno<br />

de mim meninos com uma vida<br />

muito mais livre e agradável do que<br />

a minha. Porque não tenho uma primeira<br />

compreensão das coisas muito<br />

rápida. Uma vez que entendi, depois<br />

ando com uma relativa rapidez.<br />

Como resultado, meus estudos primários<br />

foram mais difíceis do que<br />

os secundários, e estes mais penosos<br />

do que os universitários. Tive, assim,<br />

de travar uma batalha para adquirir<br />

os conhecimentos primários,<br />

que me deixava envergonhado, porque<br />

eu tinha uma porção de colegas<br />

que aprendiam num relance. Embora<br />

eu seja totalmente brasileiro, não<br />

sei por que manifestava esse feitio<br />

de espírito pouco característico desta<br />

minha nação.<br />

Eu percebia bem que meus<br />

colegas, com a agilidade de<br />

espírito que possuíam, se notassem<br />

essa minha lentidão,<br />

ririam de mim, chamando-<br />

-me de burro. Então, eu queria<br />

esconder essa falta de agilidade,<br />

o que me tornava a vida<br />

difícil. De outro lado, era<br />

obrigado a estudar de fato.<br />

Dificuldade no<br />

estudo de Geografia<br />

Não imaginam o que representou<br />

para mim, por<br />

exemplo, o estudo de Geografia!<br />

Naquela época, exigia-se do aluno<br />

que soubesse de memória todos os<br />

limites dos 21 Estados brasileiros.<br />

Ora, cada Estado tem pelo menos<br />

três ou quatro limites. Para saber<br />

instalar o minúsculo Estado do<br />

Espírito Santo entre a Bahia, Rio de<br />

Janeiro e Minas Gerais é um problema,<br />

porque há limite de todo lado!<br />

Ainda bem que o Oceano Atlântico<br />

simplificava... Eu não tinha boa memória.<br />

Até instalar isso “a formão”<br />

na minha memória, que trabalho!<br />

Lembro-me ainda de que sempre<br />

fui muito dado a analisar ambientes<br />

e costumes. Recordo-me de<br />

mim, no quarto de estudo das crianças<br />

em minha casa, sentado junto a<br />

uma mesa, aprendendo isso e aqui-<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discursa no Teatro<br />

Municipal de São Paulo em 1965<br />

13


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Steve Listengart (CC3.0)<br />

lo, e olhando através de uma arcada<br />

do terraço para o jardim, vendo<br />

o Sol, a beleza da natureza, o espaço<br />

livre diante de mim, os tico-ticos...<br />

Eu gostava muito de olhar para<br />

os tico-ticos – e eles eram abundantes<br />

na São Paulo daquele tempo<br />

–, que saltavam de cá e de lá. E fi-<br />

cava, como toda criança, com vontade<br />

de empurrar de lado o estudo<br />

sobre os limites dos Estados do Brasil,<br />

mesmo porque eu tinha uma objeção<br />

indignada: Se isto está dentro<br />

do livro, por que tenho de decorar?<br />

Outra objeção, ainda mais furiosa:<br />

O que se conclui disto? Entre o<br />

Espírito Santo e Minas – vou inventar,<br />

porque não tenho a<br />

menor ideia de quais sejam os<br />

limites – há, digamos, a Serra<br />

do Biapó e depois a do Catindé.<br />

O que vou fazer com<br />

a Serra do Biapó? O que se<br />

deduz disto? Nada. Se se concluísse<br />

algo, compreendo esse esforço para<br />

incrustar na minha memória estes<br />

dados. Se me dissessem que esse<br />

é o limite entre o Pará e o Amazonas<br />

dava na mesma. Por que tenho que<br />

aprender esta joça?!<br />

E me responderiam:<br />

– Precisa aprender, porque, do<br />

contrário, não passa no exame! Você<br />

tem que se formar e, para ser aprovado<br />

no curso superior, deve concluir<br />

o secundário, no qual há Geografia<br />

do Brasil. Portanto, precisa saber,<br />

não tem conversa.<br />

Luta contra a moleza<br />

Lembro-me de mim, certa ocasião,<br />

sentado junto à mesa, sozinho<br />

– minha irmã e minha prima, que<br />

estudavam habitualmente comigo,<br />

não estavam no momento –, bem em<br />

frente ao jardim, natureza bonita, luminosa,<br />

e eu sabendo que as consequências<br />

seriam muito desagradáveis<br />

se me fizesse ver no jardim: a<br />

governanta denunciaria, Dona Lucilia<br />

ficaria aborrecida e me passaria<br />

uma repreensão...<br />

Eu pensava: “Está bem, não vou.<br />

Mas quem me proíbe de fechar este<br />

livro e ficar olhando para fora?”<br />

O ambiente, o conjunto que aquilo<br />

formava não era mais bonito do<br />

que qualquer jardim visto por algum<br />

menino. Contudo, um jardim pode,<br />

em certas horas, deslumbrar uma<br />

criança. Vinha-me então a atração:<br />

Ah, o jardim! O dolce far niente, não<br />

fazer nada, que coisa agradável! Livro<br />

fechado, corpo largado, passeando<br />

com a alma pelo jardim. O tempo<br />

corre, corre, corre...<br />

Cheguei a fazer isso e, em certo<br />

momento, notei que estava delicioso,<br />

mas percebi haver alguma coisa<br />

em mim como uma água a qual um<br />

ralo misterioso levava embora e me<br />

esvaziava, deixando-me mais mole.<br />

Em consequência, ficava menos<br />

propenso ao cumprimento do dever.<br />

14


Qualquer obrigação se tornava para<br />

mim mais difícil.<br />

Vinha-me, então, este pensamento<br />

posto pela retidão que havia em mim:<br />

“Esta moleira não lhe mete nojo? Você<br />

não vê que, se tomar este hábito,<br />

acaba mole? Você quer ser assim?<br />

Não percebe aonde isto o levará? Oh,<br />

horror! Por outro lado, ser enérgico e<br />

vencer isto, oh, maravilha!”<br />

Começava, então, a luta interior:<br />

– Que gostoso, hein? Que delícia,<br />

só mais um pouco…<br />

Daí a pouco, a consciência acusava:<br />

– Vamos parar!<br />

– Não, porque agora está mais difícil<br />

do que antes.<br />

– Mas se já está difícil, vai ficar cada<br />

vez mais. O que você quer é tornar<br />

o bom caminho cada vez mais<br />

penoso para você? Então, pelo menos<br />

diga para si mesmo que você escolheu<br />

o mau caminho. É isto que<br />

você está fazendo?<br />

– Não, isto também não!<br />

– Então seja franco. Corte já ou daqui<br />

a pouco vai ser mais difícil ainda.<br />

Grande gemido: “Que dificuldades<br />

nesta vida! Mas no total, é melhor<br />

cortar agora. Vou abrir o livro<br />

da Serra do Catindé…”<br />

Em certa hora do dia, esse combate<br />

interno é lembrado e tem-se<br />

uma alegria, uma satisfação porque<br />

se venceu. O dia está mais leve, ganhou-se<br />

uma batalha.<br />

Entretanto, vem um medo: esta batalha<br />

eu venci, mas foi duro. Ganharei<br />

as outras? Ou levo uma vida insuportável,<br />

tendo uma batalha assim todos<br />

os dias – na qual, cada vez que eu estiver<br />

prestes a querer fugir do estudo,<br />

começo a estudar mais ainda, agredindo<br />

a minha tentação –, ou sucumbo.<br />

Eis, em ponto minúsculo, num episódio<br />

de infância, uma pequena batalha<br />

de muitas outras que tive de vencer<br />

contra a minha preguiça natural.<br />

Sem sombra de dúvida, por mais<br />

que os abismos tenham se sucedido<br />

entre as gerações, todos sentem coisas<br />

desse gênero. É humano!<br />

Bem entendido, essa luta não se<br />

dá apenas entre a preguiça e a fortaleza;<br />

conforme cada alma, cada via,<br />

cada situação, ocorre mais ou menos<br />

com todas as virtudes do homem.<br />

Porque em matéria de tudo o ser humano<br />

é tentado.<br />

A vida espiritual vai emergindo<br />

assim, como uma fortaleza cercada<br />

por todos os lados.<br />

A poterna aberta de<br />

Château-Gaillard<br />

Ruínas do Château-Gaillard, França<br />

Quando mocinho – não posso definir<br />

bem em que época de minha vida,<br />

mas era bem moço ou talvez menino<br />

ainda –, lendo a respeito da batalha<br />

de Bouvines, vencida por Felipe Augusto,<br />

vi um dado sobre o castelo que<br />

se chamava Château-Gaillard. Tratava-se<br />

de uma fortaleza bem guarnecida.<br />

Porém, o inimigo que dirigia o<br />

cerco encontrou aberta uma poterna,<br />

utilizada para o serviço de limpeza do<br />

castelo, a qual ficava num desvio da<br />

muralha, ao alcance do adversário.<br />

Esta portinhola, normalmente protegida<br />

por uma forte grade, fora deixada<br />

aberta por descuido de algum dos<br />

ocupantes da fortaleza. Quando os<br />

defensores da cidadela menos esperavam,<br />

viram o inimigo dentro. A batalha<br />

estava perdida.<br />

Lembro-me de ter feito esta reflexão:<br />

“Se você não prestar atenção, este<br />

castelo é você! Ou você trava uma<br />

batalha mais inclemente do que nunca<br />

contra as poternas abertas de sua própria<br />

alma, e faz a defesa aqui, lá e acolá,<br />

adquirindo bons hábitos, ou então,<br />

num ponto onde você alcançou a virtude,<br />

entra o pecado venial e depois<br />

o mortal, em disparada dentro de sua<br />

própria alma, e você está perdido! ”<br />

Isso é a prudência, que consiste<br />

em ter o castelo bem construído, pôr<br />

grades nas poternas e mantê-las fechadas.<br />

A prudência consiste em estabelecer<br />

um ordo de vida.<br />

Em face da clarinada de um inimigo<br />

que se aproxima, cada um é responsável<br />

por sua própria vida e a dos<br />

outros. Se uma poterna tiver qualquer<br />

falha na sua segurança, todos serão<br />

mortos. Prestem atenção! ❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

1/8/1981)<br />

Eric Barbet (CC3.0)<br />

15


HAGIOGRAFIA<br />

Exemplo<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

de força<br />

de alma<br />

Mais importante do que fazer uma imponente obra é edificar<br />

pelo exemplo. Eis a lição tirada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> da conturbada<br />

vida da Madre Thérèse-Camille de l’Enfant-Jésus.<br />

Gabriel K.<br />

A24 de julho de 1784, recebia<br />

o véu no Carmelo Mademoiselle<br />

Camille de Soyécourt 1 ,<br />

filha da mais alta nobreza da França.<br />

Jovem, entretanto, tão franzina e acometida,<br />

segundo os médicos, de uma<br />

moléstia incurável do coração, que todos<br />

julgavam não poder permanecer<br />

mais de seis meses no convento. Contudo,<br />

ela não somente sobreviveu muitos<br />

anos como, sem dúvida, sua personalidade<br />

teve destaque notável, embora<br />

desconhecido, na preservação do<br />

Carmelo de Paris durante a Revolução<br />

Francesa.<br />

Familiares guilhotinados<br />

Em 1792, seu convento foi invadido<br />

e as religiosas dispersas. Irmã Ca-<br />

mille, liderando o grupo delas, instalou-se<br />

numa casa, firmemente decidida<br />

a manter vivo o espírito carmelitano.<br />

Denunciada, a pequena comunidade<br />

foi presa. Quando obteve a liberdade,<br />

Mademoiselle de Soyécourt refugiou-se<br />

em casa de sua família, mas<br />

por pouco tempo, pois seus pais e duas<br />

irmãs foram encarcerados.<br />

Após numerosas peripécias, empregou-se<br />

numa fazenda. Durante todo<br />

esse tempo não deixou de cumprir<br />

o mais rigorosamente que pôde os preceitos<br />

do Carmelo: jejuava, recitava o<br />

Ofício nas horas devidas e confessava-<br />

-se, com grande dificuldade, semanalmente,<br />

com um padre refratário.<br />

Um dia teve a notícia da condenação<br />

de seus familiares, todos guilhotinados.<br />

Soube então que sua irmã deixara<br />

um filho, pequeno ainda. Apesar<br />

de sua dolorosa situação, Irmã Camille<br />

foi tutora do sobrinho até a morte.<br />

Expulsa da fazenda onde trabalhava,<br />

pois a morte de seus pais traiu sua<br />

pessoa, a religiosa mendigou algum<br />

tempo. Tendo encontrado uma Irmã<br />

de seu convento, decidiu restabelecer<br />

sua Ordem. Com o dinheiro das esmolas<br />

e com auxílio de padres refratários<br />

obteve a capela de um seminário,<br />

recomeçando os ofícios religiosos.<br />

Copiava e distribuía a Bula<br />

de excomunhão de Napoleão<br />

Terminado o Terror, Mademoiselle<br />

de Soyécourt, então uma figura alta,<br />

pálida, grave e suave, decidiu reobter<br />

para seu sobrinho e para seu con-<br />

16


nf.fr (CC3.0)<br />

vento a fortuna de seus pais. Causava<br />

espanto aos notários e homens da lei<br />

a presença dessa mulher paupérrima,<br />

falando de milhões, de venda de terras<br />

e de compra de imóveis.<br />

Mas conseguindo integralmente o<br />

que desejava, a religiosa chamou para<br />

junto de si as suas Irmãs dispersas.<br />

E o convento carmelita de Paris<br />

reinstalou sua comunidade. Aí ela viveu<br />

mais de 45 anos, não sem problemas.<br />

Por exemplo, em janeiro de 1811,<br />

Fouché foi informado de que uma senhora<br />

carmelita, superiora do Carmelo,<br />

ocupava-se ativamente em copiar<br />

e distribuir a Bula de excomunhão do<br />

próprio Imperador. Foi por isso presa<br />

num lugar bem distante do convento,<br />

o que não a impedia de atender sua<br />

comunidade, fazendo-lhe visitas inteiramente<br />

disfarçadas, e passando, desse<br />

modo, diante dos guardas, com toda<br />

a segurança.<br />

A Restauração tirou-a desse exílio.<br />

Quando suas dificuldades morais pareceram<br />

diminuir, começaram as físicas.<br />

Seu corpo tornara-se quase diáfano,<br />

por causa dos jejuns e penitências.<br />

Aos 85 anos, ainda dormia sobre uma<br />

tábua, apesar da gota dolorosíssima e<br />

de dores de estômago que não lhe permitiam<br />

repousar. Manteve, entretanto,<br />

como sempre em sua vida, inalterável<br />

bom humor e sua proverbial intrepidez.<br />

Repleta de dores, veio a falecer,<br />

em 1849, aos 92 anos de idade.<br />

Vida cheia de<br />

inusitados contrastes<br />

Gostaria que nos colocássemos<br />

diante dessa biografia 2 , não no ponto<br />

de vista de quem simplesmente a<br />

lê, mas de quem a viveu. Então, vermos<br />

tudo quanto foi acontecendo<br />

para ela como próprio a uma vocação,<br />

a um objetivo muito definido,<br />

nos quais ela se adentrou com todo o<br />

empenho de sua alma.<br />

Ela entra no Carmelo, forma-<br />

-se, e poderia esperar ter, por exemplo,<br />

uma vida como a de Santa Teresa<br />

de Jesus ou de Santa Teresinha<br />

do Menino Jesus, ou seja, transcorrida<br />

inteira no Carmelo, com essas ou<br />

aquelas dificuldades, mas dentro da<br />

vida carmelitana. Com certeza, ela<br />

tivera mil apetências sugeridas pela<br />

graça para isso.<br />

Entretanto, o que aconteceu? Ao<br />

invés de levar essa vida, eclode a Revolução<br />

Francesa e a Irmã Camille<br />

vai para o cárcere. Suponhamos<br />

que ela tenha pensado na hipótese<br />

do martírio: “Vou dar a minha vida,<br />

ficarei uma santa. Está bem, aceito<br />

com todo o gosto.” Conformidade...<br />

Ora, ela foi posta em liberdade.<br />

Ela, que esperava viver ao menos<br />

sozinha para Deus, transforma-se<br />

em chefe de família, apesar de solteira,<br />

e fica tutora de um sobrinho.<br />

Tendo sido uma moça rica, perde<br />

a fortuna. Os pais vão para a guilhotina<br />

e ela se torna criada numa<br />

fazenda, isto é, trabalhadora manual.<br />

Ela, que dera sua vida à Igreja,<br />

de nobre passa a religiosa e depois<br />

a trabalhadora manual em fazenda.<br />

A biografia não entra nesses pormenores,<br />

mas nada exclui a hipótese de<br />

que ela tenha tido que limpar estábulos<br />

e realizar outras tarefas prosaicas<br />

desse gênero.<br />

Depois, é posta fora desse emprego<br />

e vira mendiga, tendo que cuidar<br />

ainda do menino. Começa a mendigar<br />

de um lugar para outro e, de repente,<br />

passada a Revolução Francesa,<br />

ela se transforma em mulher de<br />

negócios. Começa, então, a bater os<br />

cartórios para recompor a fortuna à<br />

qual tinha direito.<br />

17


HAGIOGRAFIA<br />

Tudo isso era completamentrio<br />

ao que ela que-<br />

contrámeça<br />

a vida normal<br />

de carmelita, mas vem<br />

a prisão que a interrompe<br />

novamente. Afinal, ela volta<br />

para o Carmelo. Dir-se-ia que ela<br />

ria. Porém, ela<br />

sempre com o<br />

mesmo objetivo:<br />

ser carmelita. A<br />

tal ponto que reconstitui<br />

o Carmelo.<br />

Então, co-<br />

vai levar uma vida tranquila. Então<br />

se inicia outro gênero de provação.<br />

Gabriel K.<br />

O que é ser pessoa realizada?<br />

Poder-se-ia pensar: “Bem, coitada,<br />

é a fase final. Agora ela vai morrer<br />

e repousar em Deus.”<br />

Nada de repousar em Deus! Vai<br />

ainda lutar na Terra até o último<br />

alento. Vive até os 92 anos, sempre<br />

praticando penitência, sendo modelo<br />

de religiosa, aguentando doenças<br />

e, afinal, morre numa idade que,<br />

com certeza, nunca podia imaginar<br />

atingir.<br />

Aos olhos do espírito moderno,<br />

como considerar isso? Foi uma vida<br />

frustrada ou realizada?<br />

Para os homens de hoje a vida realizada<br />

seria se ela tivesse entrado<br />

no convento e ficado religiosa direitinho<br />

até o fim. Como houve fatos<br />

que atrapalharam sua vida e a obrigaram<br />

a ser uma porção de coisas<br />

que não queira, ela cem vezes durante<br />

sua existência deveria ter se sentido<br />

frustrada, abandonado a vocação.<br />

E quando chega a doença, ela<br />

devia ter dito: “Não tem mais solução.<br />

Deus me entregou. Porque agora<br />

que eu poderia levar a vida normal<br />

de uma carmelita, começo a ter<br />

uma existência de doente.<br />

Nós, entretanto, dizemos que foi<br />

uma grande vida realizada. E é impossível<br />

ouvirmos essa narração sem<br />

sentirmos a maior admiração por<br />

ela.<br />

Mas então nos perguntamos: o<br />

que vem a ser a realização? Aqui entra<br />

o choque do homem moderno<br />

contra o espírito católico.<br />

Segundo o espírito<br />

do mundo, ela não<br />

foi uma pessoa alizada porque<br />

rete<br />

daquele ponto<br />

para onde tendiam<br />

os seus esforços.<br />

Ela, portanto, não realizou<br />

a obra que empreendeu.<br />

Em última análise, a noção de indi-<br />

não levou a vida<br />

que desejava.<br />

Teve uma<br />

existência inteiramente<br />

diferenvíduo<br />

realizado que nós vemos por<br />

aí é, ou quem levou a vida que quis,<br />

ou o que ganhou muito dinheiro, suposto<br />

sempre que todo mundo quer<br />

adquirir dinheiro. Ora, ela não ganhou<br />

muito dinheiro e não levou a<br />

vida que quis. Logo não foi uma pessoa<br />

realizada.<br />

Mas é impossível ouvirmos a leitura<br />

dessa ficha sem vermos que ela<br />

foi realizada. Então, no sentido verdadeiro<br />

da palavra, o que é a realização?<br />

Não é o que o espírito moderno<br />

pensa. A realização é, no sentido<br />

mais imediato – não no supremo –,<br />

a realização de si próprio. Quer dizer,<br />

vê-se que ela efetivou uma grande<br />

personalidade. Foi uma pessoa<br />

de grande virtude que, no esplendor<br />

de sua virtude, manifestou um grande<br />

número de qualidades até naturais<br />

de que a Providência a tinha do-<br />

bnf.fr (CC3.0)<br />

18


GFreihalter (CC3.0)<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Vista parcial do Carmelo (hoje, Instituto Católico de Paris), França<br />

A Madre Thérèse-Camille de<br />

Soyécourt, ao fim de sua vida<br />

tado. Levou até a perfeição mil coisas<br />

que nela estavam potencialmente.<br />

É como uma semente que deu inteiramente<br />

uma esplêndida árvore.<br />

Então, realizar-se, nesse sentido<br />

mais imediato da palavra, é o atingir<br />

a sua própria perfeição. Se fez<br />

ou não o que quis, não tem importância.<br />

O importante é ter chegado à<br />

sua própria perfeição.<br />

Nunca se sentiu quebrada<br />

e sempre caminhou<br />

para a frente<br />

Ademais, ela realizou essa perfeição,<br />

não através de uma série de fracassos<br />

consumados, mas vê-se que<br />

sua vida teve uma continuidade. Embora<br />

não fosse tudo como ela queria,<br />

eram os planos que Deus traçara<br />

a respeito dela. Ela, portanto, fez<br />

a vontade da Providência.<br />

Quando acabamos de ler essa síntese<br />

de sua vida, percebemos a grande<br />

obra da Irmã Camille para a glória<br />

de Deus entre os homens. Não<br />

foi tanto de acabar fundando um<br />

convento – o que é uma obra lente –, mas uma coisa muito maior:<br />

exceter<br />

deixado um grande exemplo de<br />

perseverança, resolução, força de alma,<br />

confiança na Providência divina,<br />

obediência aos desígnios de Deus<br />

nas circunstâncias mais adversas da<br />

vida.<br />

De maneira que, enquanto sua<br />

memória for conhecida pelos homens,<br />

haverá pessoas fracas, em condições<br />

difíceis, que terão um alento<br />

maior para enfrentar as dificuldades<br />

da vida, por causa do exemplo dela.<br />

E Irmã Camille vai ser a força dos<br />

fracos, a luz daqueles que estiveram<br />

na incerteza, na penumbra. Por quê?<br />

Porque foi o grande exemplo que ela<br />

deixou; isso é algo muito maior do<br />

que fazer uma grande obra.<br />

Um grande convento é uma coisa<br />

esplêndida, mas se não fosse, ele<br />

mesmo, um grande exemplo, não<br />

adiantaria de nada. Abaixo do culto<br />

a Deus, a melhor coisa que podemos<br />

fazer é edificar pelo exemplo.<br />

As nossas palavras e ações vêm abaixo<br />

do exemplo. As palavras movem,<br />

o exemplo arrasta.<br />

Irmã Camille deixou um exemplo<br />

de força de alma, e se percebe que,<br />

através de todas as incertezas da<br />

sua vida, ela foi sempre forte. Nun-<br />

ca se sentiu quebrada, sempre nhou para a frente fazendo o dever<br />

cami-<br />

de acordo com o que queria a Providência,<br />

sem perder a unidade do que<br />

ela estava realizando.<br />

Mas entendendo que, fazendo o<br />

dever do momento, ela cumpria a<br />

vontade de Deus. No Céu ela está<br />

vendo essa unidade que Deus quis. E<br />

ela talvez não tivesse calculado que o<br />

seu exemplo irradiaria tanto, pudesse<br />

ser tão conhecido.<br />

Trata-se de uma personalidade<br />

extraordinária, uma pessoa que<br />

talvez ainda venha a ser canonizada.<br />

Essa é a vida de alguém que cegamente<br />

vai seguindo diante das dificuldades,<br />

agindo e não se incomodando.<br />

No fim vem a glória de ter<br />

dado um bom exemplo, obedecendo<br />

a Deus. A meu ver, eis a grande lição<br />

que esta nota biográfica nos ensina.<br />

❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

17/2/1970)<br />

1) Serva de Deus, cujo processo de beatificação,<br />

aberto em 1938, ainda está<br />

em curso.<br />

2) Não dispomos das referências bibliográficas.<br />

19


Gabriel K.<br />

CALENDÁRIO DOS SANTOS ––––––<br />

São Bernardino de Sena<br />

1. São José Operário.<br />

São Segismundo de Borgonha, rei<br />

(†524). Rei da Borgonha que, convertido<br />

da heresia ariana, erigiu a<br />

abadia territorial de Saint-Maurice<br />

d’Agaune, na Suíça, e expiou com penitências,<br />

lágrimas e jejuns um grave<br />

delito cometido.<br />

2. Santo Atanásio, bispo e Doutor<br />

da Igreja (†373).<br />

Santo Antonino, bispo (†1459).<br />

Como religioso dominicano, aplicou-<br />

-se à reforma da ordem; como Arcebispo<br />

de Florença, resplandeceu por<br />

sua santidade, rigor e doutrina.<br />

3. São Filipe e São Tiago Menor,<br />

Apóstolos.<br />

São Teodósio, abade (†1074). Fundou<br />

em Kiev, Ucrânia, o Mosteiro das<br />

Grutas, dando início à vida cenobítica<br />

nessa região.<br />

4. São Floriano, mártir (†304). Oficial<br />

do exército romano morto durante<br />

a perseguição de Diocleciano, por<br />

ter-se declarado cristão.<br />

5. São Bretão, bispo (†386). Bispo<br />

de Tréveris, Alemanha, defendeu<br />

sua grei dos erros de Prisciliano, mas,<br />

junto com Santo Ambrósio de Milão<br />

e São Martinho de Tours, opôs-se à<br />

execução deste e dos seus seguidores.<br />

6. Beata Ana Rosa Gattorno, religiosa<br />

(†1900). Após ficar viúva, fundou<br />

em Piacenza, Itália, a Congregação<br />

das Filhas de Sant’Ana, Mãe de<br />

Maria Imaculada.<br />

7. IV Domingo da Páscoa.<br />

Beato Francisco Paleari, presbítero<br />

(†1939). Sacerdote do Instituto<br />

Cottolengo, dedicou sua vida ao ensino<br />

e ao cuidado dos pobres e enfermos<br />

da Pequena Casa da Divina Providência,<br />

em Turim, Itália.<br />

8. Santo Acácio, mártir (†séc. IV).<br />

Centurião do exército imperial flagelado,<br />

torturado e decapitado em<br />

Constantinopla por ser cristão.<br />

9. Santo Isaías, profeta.<br />

Beato Benincasa de Montepulciano,<br />

religioso (†1426). Religioso da<br />

Ordem dos Servos de Maria, retirou-<br />

-se numa gruta do Monte Amiata,<br />

Itália, onde levou uma vida penitente.<br />

10. São Guilherme, presbítero<br />

(†1195). De origem inglesa, foi pároco<br />

em Pontoise, França, onde refulgiu<br />

por sua piedade e zelo pela salvação<br />

das almas.<br />

11. São Francisco de Jerônimo,<br />

presbítero (†1716). Famoso<br />

pregador jesuíta falecido em Nápoles,<br />

Itália, dedicou-se especialmente<br />

às missões populares e ao<br />

apostolado com os pobres e abandonados.<br />

12. São Nereu e Santo Aquiles,<br />

mártires (†séc. III).<br />

São Pancrácio, mártir (†séc. IV).<br />

13. Nossa Senhora de Fátima.<br />

Beata Madalena Albrici, abadessa<br />

(†1834). Abadessa do mosteiro agostiniano<br />

de Brunate, Itália, incentivou<br />

em suas irmãs o desejo de perfeição.<br />

14. V Domingo da Páscoa.<br />

São Matias, Apóstolo.<br />

São Miguel Garicoïts, presbítero<br />

(†1863). Superior do seminário maior<br />

de Bétharram, França, e fundador da<br />

Sociedade dos Padres Missionários<br />

do Sagrado Coração de Jesus.<br />

15. São Roberto de Bingen (†séc.<br />

VIII). Construiu muitas igrejas no<br />

Gabriel K.<br />

20<br />

São Fernando III


––––––––––––––––––– * MAIO * ––––<br />

seu ducado de Bingen; aos vinte e um<br />

anos de idade, adormeceu no Senhor.<br />

16. Beato Miguel Wozniak, presbítero<br />

e mártir (†1942). Deportado da<br />

Polônia para o campo de concentração<br />

de Dachau, Alemanha, onde sofreu<br />

cruéis torturas antes de morrer.<br />

17. Santa Restituta, virgem e mártir<br />

(†c. 304). Morta em Cartago durante<br />

as perseguições de Diocleciano.<br />

18. São João I, Papa e mártir (†526).<br />

Santo Erico IX, rei (†1161). Rei<br />

da Suécia que enviou o Bispo Santo<br />

Henrique à Finlândia, para propagar<br />

o Evangelho. Foi apunhalado por<br />

seus inimigos, enquanto participava<br />

da Santa Missa.<br />

19. Santo Ivo, presbítero (†1303).<br />

Dedicou toda a sua vida à prática da<br />

virtude da justiça, como advogado e<br />

depois como sacerdote e juiz eclesiástico.<br />

Faleceu aos cinquenta anos num<br />

castelo próximo a Tréguier, na Bretanha<br />

francesa.<br />

20. São Bernardino de Sena, presbítero<br />

(†1444).<br />

São Protásio Chong Kuk-bo, mártir<br />

(†1839). Renegou a Cristo durante<br />

a perseguição na Coreia, mas proclamou<br />

arrependido sua Fé perante o<br />

juiz e morreu no cárcere, após sofrer<br />

cruéis torturas.<br />

21. VI Domingo da Páscoa.<br />

São Cristóvão Magallanes, presbítero,<br />

e companheiros, mártires (†1927).<br />

Santo Hospício, eremita (†séc. VI).<br />

Viveu numa velha torre nos arredores<br />

de Nice, França, praticando jejuns e<br />

penitências. Recebeu o dom dos milagres<br />

e o de profecia, prenunciando,<br />

inclusive, a invasão dos lombardos.<br />

22. Santa Rita de Cássia, religiosa<br />

(†c. 1457).<br />

Beato Matias de Arima, mártir<br />

(†1620). Catequista de Omura, Japão,<br />

torturado até a morte por recusar-se<br />

a delatar os missionários.<br />

23. Santo Eutíquio, abade (†c.<br />

487). Praticou vida solitária juntamente<br />

com São Florêncio nos arredores<br />

de Nórcia, Itália, e depois governou<br />

santamente o mosteiro próximo.<br />

24. Nossa Senhora Auxiliadora dos<br />

Cristãos.<br />

São Simeão Estilita, o Jovem, presbítero<br />

e eremita (†592). Viveu longos<br />

anos sobre uma coluna no Monte Admirável,<br />

na Síria. Escreveu diversos<br />

tratados sobre vida ascética.<br />

25. São Gregório VII, Papa<br />

(†1085). Ver 2.<br />

São Beda, o Venerável, presbítero e<br />

Doutor da Igreja (†735).<br />

Santa Maria Madalena de Pazzi,<br />

virgem (†1607).<br />

26. São Filipe Néri, presbítero<br />

(†1595).<br />

Beato André Franchi, bispo<br />

(†1401). Frade dominicano eleito Bispo<br />

de Pistoia, Itália, favoreceu a paz e<br />

empenhou-se em restaurar a vida religiosa<br />

nos conventos da ordem, depois<br />

da epidemia da peste negra.<br />

27. Santo Agostinho de Cantuária,<br />

bispo (†604/605).<br />

São Gonzaga Gonza, mártir<br />

(†1886). Servo do rei da Uganda,<br />

traspassado pela lança de um verdugo<br />

quando era conduzido acorrentado<br />

para a fogueira.<br />

28. Solenidade da Ascensão do<br />

Senhor.<br />

Santa Ubaldina, virgem<br />

(†1206). Filha de pais pobres, entrou<br />

para a Ordem Hospitalar de<br />

São João de Jerusalém, na qual,<br />

durante cinquenta e cinco<br />

anos, dedicou-se infatigavelmente às<br />

obras de misericórdia.<br />

29. Santa Úrsula Ledochowska,<br />

virgem (†1939). Membro de uma das<br />

principais famílias da nobreza polonesa,<br />

fundou o Instituto das Irmãs<br />

Ursulinas do Coração de Jesus Agonizante<br />

e percorreu infatigavelmente<br />

em missão a Polônia, Rússia e Escandinávia.<br />

30. São Fernando III, rei de Castela<br />

e Leão (†1252). Grande devoto da<br />

Virgem Maria, foi prudente na administração<br />

do reino, cultivador das artes<br />

e das ciências e zeloso na propagação<br />

da Fé.<br />

31. Visitação de Nossa Senhora.<br />

São Félix de Nicósia, religioso<br />

(†1787). Irmão leigo do convento capuchinho<br />

de Nicósia, Itália, admitido<br />

na ordem após dez anos de insistência.<br />

Gabriel K.<br />

Santo Isaías<br />

21


DR. PLINIO COMENTA...<br />

NYPL (CC3.0)<br />

Uma dupla Revolução<br />

A Revolução Industrial tem como causa a máquina, a partir<br />

da qual há um trabalho de guerra psicológica revolucionária,<br />

impostando o espírito do homem para o deslumbramento pela<br />

mecânica. A indústria se transforma numa espécie de padrão de<br />

exemplo metafísico, em função do qual as pessoas se movem.<br />

Então há, por exemplo, um desejo<br />

de proporcionalidade entre as clasa<br />

questão tratada anteriormente<br />

1 , a respeito do pa-<br />

pel da proporcionalidade,<br />

aponto o seguinte: esse desejo de pro-<br />

porcionalidade é intenso no homem e<br />

se espalha, se difunde por toda a sua<br />

vida. A natureza humana, no que ela<br />

tem de reto, impõe esse anseio.<br />

Uma espécie de néctar<br />

da Idade Média<br />

ses sociais. Aquele sistema oriental de<br />

um marajá podre de rico e, depois, perambulando<br />

em torno dele a miséria, –<br />

embora esta até seja bem recebida pela<br />

indolência popular –, dá à natureza<br />

humana uma impressão desagradável.<br />

Porque seria necessária uma proporcionalidade<br />

que preparasse os graus<br />

intermediários, sem os quais nada está<br />

bem arranjado, de maneira a evitar<br />

que o último grau ficasse sem proporção<br />

possível com o primeiro.<br />

Creio ser essa preocupação da<br />

proporcionalidade o que dava o bem-<br />

-estar na Idade Média. Apesar das<br />

mentiras que dizem a respeito, a Idade<br />

Média guardava muita proporcionalidade<br />

e, sobretudo, tendia a uma<br />

proporcionalidade cada vez maior. Se<br />

não fosse a Revolução, era para onde<br />

ela caminharia. E uma proporcionalidade<br />

com honra, distribuída por<br />

todo o corpo social. Isso, para mim, é<br />

uma espécie de néctar da Idade Média,<br />

uma coisa especial.<br />

Na Revolução Industrial há algo<br />

curioso: a indústria, em si mesma,<br />

tem qualquer coisa onde a necessida-<br />

22


de técnica pede que se viole a proporcionalidade<br />

no aspecto físico da máquina,<br />

no local onde ela deve funcionar,<br />

nos ruídos produzidos por ela,<br />

gases, odores que ela desprende, etc.<br />

Tudo isso tem uma nota qualquer de<br />

desproporcionalidade, que é uma ostentação<br />

triunfal do monstruoso.<br />

A mera funcionalidade é a regra<br />

e, na indústria, ela produz tanta feiura.<br />

Ora, o homem não pode viver do<br />

meramente funcional, abstraindo da<br />

proporcionalidade e da beleza, porque<br />

o simplesmente funcional, pelo<br />

menos em certos domínios da atividade<br />

do homem, é anti-humano. É preciso<br />

fazer o belo, por amor de Deus, e<br />

o funcional no tamanho da globalidade<br />

das necessidades do homem.<br />

Tomemos, por exemplo, uma fábrica<br />

de sabonetes. O sabonete é<br />

necessário ao homem, e a máquina<br />

será tanto mais útil à humanidade<br />

quanto mais sabonetes ela produzir.<br />

Mas se o aspecto dessa máquina<br />

bestializa os que ali trabalham, esses<br />

não têm direito a não trabalhar naquilo?<br />

É um direito natural que se<br />

deve considerar.<br />

Mecanização do<br />

trabalho humano<br />

Por outro lado, o mundo comercial<br />

e burocrático procura organizar-<br />

-se à maneira de uma máquina, da<br />

qual o homem seria uma peça. Por<br />

causa disso, exige dele certas movimentações<br />

ou imobilidades excessivas<br />

que não só fazem mal ao ser humano,<br />

mas àquilo que ele vê.<br />

Por exemplo, o banco. Vamos imaginar<br />

um guichê de banco, onde haja<br />

uma armação qualquer pela qual se<br />

ouça perfeitamente a voz de um lado<br />

e de outro. Mas de fato, a única coisa<br />

aberta é um pequeno semicírculo em<br />

baixo, por onde as mãos entregam ou<br />

recebem o dinheiro.<br />

Isso poderia ter uma porção de justificativas.<br />

Por exemplo, evitaria que o<br />

funcionário se distraísse, um namori-<br />

co começasse, um assalto ocorresse –<br />

porque ficaria muito difícil dar um tiro<br />

no funcionário, o qual poderia facilmente<br />

esquivar-se, etc. Mas há uma<br />

necessidade humana de, no trato completo,<br />

ver a outra parte que não é funcional.<br />

Quer dizer, a função não exige<br />

isso. É razoável educar o homem, de<br />

maneira que ele se habitue a essa outra<br />

coisa e com toda a facilidade trave<br />

esse contato? Ou, pelo contrário, a<br />

natureza humana é incompatível com<br />

isso e não se pode impô-lo? E se no<br />

todo é preciso quase um estudo para<br />

habituar o homem a isto, não se deve<br />

concluir que é uma dessas necessidades<br />

de atender que faz bem a terceiros,<br />

mas não ao funcionário?<br />

Não é uma espécie de mecanização<br />

do trabalho humano? Há uma<br />

série de coisas assim.<br />

Uma organização<br />

completamente inumana<br />

Lembro-me disso no tempo em<br />

que fui funcionário da Secretaria de<br />

Viação e Obras Públicas. Havia uma<br />

sala de trabalho modesta, de expediente,<br />

que era dirigida por um engenheiro,<br />

um homem bem inteligente;<br />

fora meu professor universitário,<br />

mas ele ganhava mais sendo diretor<br />

daquela repartição.<br />

Ele tinha uma escrivaninha grande,<br />

talvez sobre um estradozinho. Os<br />

datilógrafos permaneciam alinhados<br />

e de frente para ele. E de um lado<br />

havia três ou quatro escriturários<br />

mais velhos, cujas mesas eram maiores,<br />

um pouco mais confortáveis e<br />

perpendiculares à escrivaninha do<br />

diretor; eram os que precisavam escrever<br />

coisas à mão, por exemplo, livros<br />

ou registros, etc.<br />

Faltava serviço, porque toda Secretaria<br />

de Estado que se preza tem<br />

mais funcionários do que trabalho.<br />

De maneira que ficavam horas vagas<br />

nas quais um certo pudor coletivo<br />

impedia de ostentarem que não tinham<br />

serviço. E havia um certo medo<br />

de que, ficando patenteado que<br />

não tinha trabalho, alguns fossem<br />

transferidos para outros lugares com<br />

mais serviços. Então, eles tinham interesse<br />

em não mudar de lá.<br />

As datilógrafas, em geral moçoilas<br />

– lembro-me de uma delas, Da. Iolanda<br />

–, permaneciam sentadas em<br />

fila, e às vezes brincando um pouquinho<br />

com o teclado, mas sem acalcar.<br />

Agence Rol (CC3.0)<br />

23


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Em certos momentos, eu desconfio,<br />

anotavam uma coisa qualquer, uma<br />

besteira. Não conversavam consigo<br />

mesmas, nem liam nada, porque era<br />

contra os cânones ler, pois indicava<br />

que não estavam trabalhando; ficavam<br />

duas ou três horas assim.<br />

Afinal de contas, o diretor cavava<br />

algum serviço para elas baterem à<br />

máquina. Então, chamava: “Da. Fulana!”<br />

Lá ia ela devagarzinho, meio<br />

contente de ter sido preferida. Ele<br />

falava com Da. Fulana baixinho, dava-lhe<br />

um serviço para fazer; ela sentava-se<br />

junto a sua escrivaninha e em<br />

poucos minutos o texto estava datilografado.<br />

Ela o levava para o diretor,<br />

juntamente com o envelope<br />

pronto; ele o relia, assinava, e Da.<br />

Fulana voltava para seu lugar.<br />

Os homens das mesas laterais, ao<br />

pé da letra, faziam ponta de lápis, fumando,<br />

às vezes pedindo um auxílio<br />

a outro: “Tem fósforo?”, no silêncio<br />

daquela sala. Uma coisa de uma artificialidade...<br />

Não sei se percebem que existe<br />

nisso uma imitação da máquina.<br />

Quando se quer, aperta-se um teclado<br />

e ela funciona. Quando não se<br />

deseja, ela fica parada. E eles estavam<br />

organizados à maneira de máquina<br />

ali dentro. Não davam uma organização<br />

completamente inumana<br />

àquele negócio, dentro da vadiagem<br />

e do não fazer? A meu ver, davam.<br />

Um meio de quebrar<br />

o mito da máquina<br />

Assim, diversos aspectos daquele<br />

tempo eram organizados na imitação<br />

subconsciente da máquina, considerada<br />

o supremo modelo do bem-fazer.<br />

Portanto, o sumo modelo dos vivos<br />

era a inércia da máquina. Qual a<br />

razão? Porque a máquina representava<br />

o resultado da ciência, do planejamento,<br />

e era uma coisa que produzia<br />

uma quantidade muito maior do que<br />

fabricava um homem. Logo, um ser<br />

meio angélico, de natureza superior à<br />

do homem, e segundo o qual este tinha<br />

que se modelar.<br />

Se um sujeito saía do ritmo da<br />

máquina, causava uma indignação.<br />

Por exemplo, eu era impontual por<br />

natureza. Toda a minha família materna<br />

é impontual e puxei isto deles.<br />

Mas achei que a impontualidade era<br />

um meio de quebrar o mito da máquina,<br />

e afirmar a prevalência de determinados<br />

valores sobre o valor meramente<br />

mecânico da pontualidade.<br />

Até houve, no século XIX, uma<br />

reação dos românticos expirantes<br />

contra a pontualidade e o sistema<br />

da máquina triunfante. Eu tinha um<br />

tio ao qual era próprio ficar corroendo<br />

continuamente as pontualidades.<br />

Mas por prestígio pessoal, fazendo<br />

com que todas as regras que impunham<br />

a pontualidade vergassem<br />

diante dele. Ele realizava isto como<br />

a minha geração não sabia mais fazer.<br />

Entretanto ele fazia tão prestigiosamente,<br />

que quebrava um certo<br />

igualitarismo existente nisto.<br />

Por exemplo, sala de teatro. Depois<br />

de começada a representação,<br />

não se pode entrar. É uma coisa<br />

que se compreende, porque se todo<br />

mundo vai entrar, a atenção na<br />

cena se dispersa. Mas ele tomava<br />

uma frisa e se apresentava no lugar<br />

atrasado, com alguns de sua família.<br />

A porteira ou o porteiro não queria<br />

deixar entrar, mas ele exigia com<br />

tanta superioridade, deixando insinuado<br />

que apelaria para não sei que<br />

superpoderes terrestres os quais pairavam<br />

em torno dele, e ai de quem<br />

resistisse! Abriam e ele entrava devagarzinho,<br />

mas com um ar de quem<br />

estava dominando a cena. As pessoas<br />

olhavam com o rabo dos olhos e<br />

percebiam: “É o <strong>Dr</strong>. Fulano que está<br />

entrando.” O jeito de ele entrar tornava<br />

natural que para ele se abrisse<br />

aquela exceção.<br />

Ele tomava cuidado de não fazer<br />

barulho, etc., para as objeções<br />

contra isto não poderem se realizar;<br />

sentava-se e a cena teatral corria.<br />

E sem contar cem outras coisas<br />

que ele fazia.<br />

Isto, que a minha geração não sabia<br />

fazer, meu tio realizava tão primorosamente<br />

que era um triunfo para ele.<br />

Mas a admiração interna pela máquina<br />

fez com que pouco tempo depois<br />

não se compreendessem homens assim.<br />

Mais ainda, não nascessem homens<br />

capazes disto, porque o homem<br />

começou a ser educado a ficar de quatro<br />

patas diante da máquina.<br />

E a máquina não admite exceções.<br />

De fato, quebra de algum modo<br />

a “majestade” da máquina se estabelecer<br />

exceções. Então, a era da<br />

máquina era simplificante e planejadora.<br />

E quanto a um salão de teatro,<br />

a educação passava a consistir nisto:<br />

é falta de educação entrar depois<br />

de começada a sessão. Para os casos<br />

não excepcionais, é verdade. Mas é<br />

preciso saber fazer a exceção.<br />

Esse horror à exceção era, a meu<br />

ver, causado um pouco por preconceitos<br />

igualitários, por aquela ideia<br />

de que, se não funcionou à maneira<br />

da máquina, não vale nada.<br />

Refeição calma e<br />

animada pela conversa<br />

Outra coisa também é a seguinte:<br />

a refeição no século XIX era calma e<br />

animada pela conversa. Alguma coisa<br />

que não vou analisar aqui fez decair<br />

em todos os sentidos o gosto pela<br />

refeição do século XIX. Fez baixar<br />

o gosto pela abundância, pela<br />

conversa, pela tranquilidade. A refeição<br />

no século XIX era sempre um<br />

encanto solene. O prazer pela solenidade<br />

passou; entrar em um restaurante<br />

e comer em pé alguma coisa<br />

que já se tem pronta para servir<br />

e ir embora logo, tornou-se divertido.<br />

Como quem se libertava do constrangimento<br />

e do aperto daquela refeição<br />

do século anterior.<br />

Eu alcancei muitas casas de<br />

chá organizadas assim: uma entrada,<br />

dois balcões sobre os quais ha-<br />

24


Divulgação (CC3.0)<br />

via estufas com empadas, sanduíches<br />

e uma série de outras coisas.<br />

Os melhores bares faziam sanduíches<br />

na hora. Mas nos outros bares<br />

já estavam prontos e guardados em<br />

uma campânula; quem quisesse suspendia<br />

a campânula e comia quantos<br />

sanduíches desejasse. O feito<br />

na hora era para a pessoa poder dizer:<br />

“Ponha mais presunto, mais língua,<br />

passe mostarda”, ou seja, individualizasse.<br />

Porém levava um pouco<br />

de tempo. Tirava a rotação mecânica<br />

com que o empregado fazia. Isto<br />

podia parecer insolência à boa cadência<br />

das coisas. E o bem comum –<br />

pensava-se – era servido pela produção<br />

rápida e ágil feita pelo homem.<br />

No fundo da sala, havia mesas onde<br />

serviam chá com leite e torradas.<br />

As senhoras levavam as crianças, a<br />

música tocava, elas se cumprimentavam;<br />

tratava-se de um encontro social,<br />

necessariamente vagaroso. Aquilo<br />

era a família da geração anterior.<br />

Os filhos delas ficavam na entrada.<br />

As moças, como não podiam estar na<br />

parte da frente e não gostavam de ficar<br />

no fundo, não iam nunca. Por fim,<br />

o bar tomou conta de tudo.<br />

Então, poderíamos tirar dois princípios:<br />

além do efeito próprio da indústria,<br />

existe um deslumbramento<br />

do homem pela máquina, que transforma<br />

a indústria numa espécie de<br />

padrão de exemplo metafísico, em<br />

função do qual a pessoa se move. E<br />

o que para nós é a transesfera, para<br />

eles é a subesfera; para nós o mundo<br />

da transesfera orienta, guia e encaminha<br />

para Deus; para eles o mundo<br />

da subesfera é que guia, orienta e<br />

encaminha para o que está embaixo.<br />

Creio não existir, hoje em dia,<br />

um só domínio da vida humana no<br />

qual, por alguns aspectos, não encontremos<br />

elementos modificados<br />

em relação à situação anterior, em<br />

atenção ao desejo de agir à maneira<br />

da máquina.<br />

A partir desse ponto já não se visa<br />

mais a funcionalidade e muito menos<br />

a personalidade, mas é a contrafuncionalidade<br />

que toma a máquina<br />

como uma espécie de valor metafísico<br />

a ser seguido.<br />

A não funcionalidade<br />

da máquina<br />

Onde está a não funcionalidade<br />

disso?<br />

Uma vez que o homem quer não<br />

só a quantidade, mas a qualidade e<br />

nos seus desenvolvimentos tende<br />

mais para a qualidade do que para<br />

a quantidade, ele aplica seu gênio,<br />

sua inteligência, sua capacidade para<br />

promover melhoras de qualidade.<br />

Quando o indivíduo chega a uma<br />

tal humilhação diante da máquina, e<br />

perde o melhor que ele tem – o desejo<br />

da qualidade – para preferir a<br />

quantidade e viver no ambiente da<br />

máquina, querendo só aquilo que é<br />

25


DR. PLINIO COMENTA...<br />

mecânico, de fato ele mostra a não<br />

funcionalidade da máquina, porque<br />

a funcionalidade deveria adaptar-<br />

-se às exceções, aos gostos pessoais,<br />

à qualidade, porque essas são coisas<br />

necessárias à natureza humana. Portanto,<br />

é uma negação do princípio<br />

da funcionalidade que o homem se<br />

adapte à máquina, como seria uma<br />

aberração que o patrão se adaptasse<br />

e obedecesse ao criado.<br />

Então, o que nós chamamos de<br />

Revolução Industrial é uma dupla revolução.<br />

Ela tem como causa a máquina,<br />

mas a partir desta há um trabalho<br />

de guerra psicológica revolucionária,<br />

impostando o espírito do homem<br />

numa situação especial, diante<br />

do funcionamento da máquina. E isto<br />

é uma coisa, até certo ponto, não<br />

inteiramente autônoma da máquina.<br />

E até eu me pergunto se os que<br />

fazem coisas destas não são levados<br />

mais ainda para produzir no homem<br />

essa mudança de estado de espírito,<br />

do que para todos os outros efeitos<br />

da máquina.<br />

A livre iniciativa e a propriedade<br />

individual de fato começam nesse direito<br />

a exigir qualidade; aí floresce<br />

realmente a faculdade do homem de<br />

criar alguma coisa. Porque quando<br />

uma pessoa, por exemplo, ao ter que<br />

adquirir luvas, pode passar por um<br />

luveiro que as confeccione como ela<br />

idealizou, a pessoa se põe a imaginar<br />

umas luvas. E consegue as que exprimem<br />

o seu temperamento, seu desejo,<br />

e correspondem à forma de suas<br />

mãos também; e lhe dão uma forma<br />

de bem-estar e de conforto que<br />

a fabricação em série não proporciona.<br />

Ali o indivíduo afirma a sua livre<br />

iniciativa muito mais do que na operação<br />

econômica, em que ele toma<br />

a iniciativa de fazer uma coisa. A livre<br />

iniciativa econômica é uma coisa<br />

muito boa, mas é um capítulo da livre<br />

iniciativa pessoal.<br />

E o direito de ser eu mesmo e,<br />

portanto, de ser servido por coisas<br />

que façam para mim as coisas que<br />

quero, é propriamente aquilo que dá<br />

élan a uma sociedade.<br />

Compressão das<br />

individualidades<br />

Estou vendo dizerem o seguinte:<br />

“Mas isso é só para os ricos.”<br />

Não é verdade. O rico faz isso para<br />

si mesmo; o pobre, para o seu<br />

grupo social. Por exemplo, existe<br />

um estabelecimento que não vende<br />

matérias fabricadas, mas os condimentos<br />

com que uma cozinheira<br />

doméstica, quer dizer, dona de sua<br />

própria casa, cozinha para os seus.<br />

Uma boa cozinheira pode fazer os<br />

pratos que ela, o marido e as crianças<br />

gostam; então ela vai ao estabelecimento,<br />

compra isso, aquilo,<br />

aquilo outro. E gosta de desenvolver<br />

originalidades com os pratos da<br />

casa, tem a livre iniciativa para si,<br />

que é um direito natural.<br />

Não sei se faço notar o caráter comunista<br />

e totalitário da compressão<br />

disso, que está na origem de uma série<br />

de outras formas comunistas de<br />

viver e preparam para o advento do<br />

comunismo.<br />

Aumuller (CC3.0)<br />

26


Mais ainda, o vendedor tem que<br />

ser psicólogo. Ele precisa compreender<br />

como é a mentalidade de seu<br />

cliente, senão não fixa a freguesia.<br />

Mais do que fazer anúncios, o vendedor<br />

necessita de clientela que faça<br />

a propaganda dele. Portanto, a excelência<br />

da mercadoria é a condição da<br />

sua prosperidade.<br />

Isso tudo define muito mais uma<br />

sociedade livre, com iniciativa, do<br />

que a liberdade de fazer um discurso<br />

anarquista, ou a de um terrorista<br />

para meter uma bomba no aeroporto;<br />

enfim são abominações em comparação<br />

com esta liberdade da pessoa<br />

ser inteiramente ela mesma.<br />

A meu ver, a verdadeira escola do<br />

talento do povo existe quando ele se<br />

habitua a servir de modo individualizado<br />

pessoas de uma categoria superior.<br />

Nisso ele se requinta e, requintando-se,<br />

vai depois produzir para<br />

si, de modo a participar, em algo,<br />

da classe mais elevada. É uma roldana<br />

que transmite qualidade de alto a<br />

baixo na escala social, e faz uma continuidade<br />

harmônica que amamos<br />

tanto.<br />

Mas acho que o lado miserável<br />

nisso é que aí entra também uma<br />

pressão qualquer ambiental, a qual a<br />

partir da admiração da máquina, da<br />

rapidez, do divertido – coma depressa,<br />

saia logo, não tenha cerimônias,<br />

nem pompas, etc. – produz uma civilização<br />

inferior que leva o indivíduo<br />

a querer comprimir as suas individualidades<br />

para se encaixar, voluptuosamente,<br />

dentro de um ritmo geral,<br />

totalitário.<br />

Presenciei isto: homens bem mais<br />

velhos do que eu entrando num bar<br />

e dizendo, com uma musicalidade de<br />

voz que a minha geração já não tinha:<br />

– Fulano, me prepare aquele sanduíche<br />

que você sabe!<br />

Em geral, o homem que dirigia<br />

esses bares era um alemão ou um<br />

italiano bonachão. Ele dava uma<br />

gargalhada e preparava o sanduíche<br />

como o freguês queria. Este comia e<br />

batia no ombro dele, dizendo:<br />

– Fulano, não há como o seu sanduíche!<br />

Isso era dito em voz alta, constituindo<br />

propaganda junto a toda a<br />

clientela. Depois o freguês saía satisfeito,<br />

dando uma boa gorjeta. O<br />

dono do estabelecimento fazia uma<br />

grande reverência, e o copeiro ia<br />

passar um paninho na mesa, porque<br />

esses pratos eram tais que o sujeito<br />

deitava migalhas de todo lado.<br />

Essas peculiaridades dentro de<br />

uma sadia liberdade são o ponto de<br />

partida da sociedade orgânica, e não<br />

adianta tratarmos indefinidamente<br />

sobre a sociedade orgânica sem<br />

compreender que sem este tipo de liberdade<br />

ela não se forma.<br />

A industrialização produzirá<br />

a contraqualidade<br />

Em contrapartida, parece-me que<br />

esse industrialismo que estamos descrevendo<br />

é mais de ontem e do entardecer<br />

do que de hoje e do dia de<br />

amanhã.<br />

O industrialismo cibernético, interdisciplinar,<br />

nascido da conjugação<br />

de várias ciências, produzirá o<br />

extremo oposto do que eu disse: máquinas<br />

enormes que deslocam, sem<br />

barulho e sem esforço, quantidades<br />

colossais de matéria, de um modo<br />

que não choca, limpo, procurando<br />

produzir qualidade, em certo sentido<br />

da palavra. Qual é esse sentido?<br />

Tudo isso é feito para o gosto do<br />

homem que perdeu sua individualidade<br />

e virou um anônimo. Essa industrialização<br />

produzirá a contraqualidade<br />

levada ao auge e encaminha<br />

para o que há de pior. Este sistema<br />

pode nos dar o padrão de uma civilização<br />

onde o panteísmo, o pampsiquismo<br />

tende a fazer degustar a<br />

coisa cada vez mais ordinária, feita<br />

em série, pelo gosto das pessoas<br />

se libertarem do cárcere de sua individualidade<br />

e vibrarem em uníssono.<br />

E isso se transforma num vício<br />

para o homem, que deve ser indivíduo,<br />

poder afirmar-se, querer ser<br />

diferente dos outros – porque essa é<br />

a ordem boa do homem –, e intoxica<br />

com a narcose de ser um qualquer e<br />

se afundar na multidão.<br />

A indústria nova, forçosamente,<br />

explora esse estado de espírito e<br />

prepara para acentuá-lo. A coisa nova,<br />

sensacional e meio extravagante<br />

tem que contrariar a ordem em alguma<br />

coisa. A surpresa faz as vezes de<br />

qualidade.<br />

Aos poucos, o que fará as vezes<br />

da qualidade é a continuidade monótona,<br />

apagada e que liberta o homem<br />

para sonhos. Nunca ouvi dizer<br />

de um drogado que fosse gastrônomo.<br />

A droga elimina completamente<br />

os outros gostos. Este gosto de ser<br />

um perdido na multidão é algo à maneira<br />

da droga.<br />

A sociedade orgânica é<br />

repleta de arquetipias<br />

que orientam<br />

Surge um problema interessante:<br />

Quando se trata de uma instituição<br />

de cunho religioso, no que ficam as<br />

individualidades?<br />

Na sociedade orgânica – pelos movimentos<br />

próprios da natureza e não<br />

os da máquina – forma-se uma espécie<br />

de guias, por onde alguns têm melhor<br />

faro do progresso qualitativo por<br />

onde vai. Porque não é qualquer um<br />

que vê tão bem o progresso qualitativo.<br />

Se há uma coisa por onde os homens<br />

são desigualmente dotados é<br />

no faro do progresso qualitativo, visto<br />

no seguinte sentido: um indivíduo<br />

tem uma noção de para onde as coisas<br />

tendem e de como estas, realizando<br />

suas tendências retamente, chegam<br />

ao melhor. Esse indivíduo, porque<br />

modela pelo seu exemplo as outras<br />

coisas, leva todos os outros num<br />

movimento que os representa de fato.<br />

Não é um homem que inventa um figurino<br />

e impõe ao outro, mas ele sen-<br />

27


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

te o consenso de todos e anda naquela<br />

direção. Os outros o tomam como<br />

um guia, de boa vontade, com satisfação.<br />

Nisso não há uma tirania, mas<br />

uma verdadeira liberdade, e nesta os<br />

arquétipos são os próprios arautos<br />

da aspiração geral.<br />

As instituições que visam um fim<br />

muito especial e elevado precisam<br />

ter muito mais acentuado esse fluxo<br />

do arquétipo, e de todo aperfeiçoamento<br />

que gravita em torno disso.<br />

De maneira que cada indivíduo deve<br />

ser protegido contra a fraqueza humana,<br />

contra as soluções que o levariam<br />

para um objetivo diferente do<br />

fim social, e para alguma coisa dissonante<br />

da arquetipia autêntica evolada<br />

daquilo.<br />

Uma sociedade, como estou descrevendo,<br />

ou é toda cheia de arquetipias<br />

que orientam, ou dá numa liberdade<br />

descabelada. E aí nós chegamos<br />

à Revolução Francesa de novo.<br />

O Fundador é a garantia<br />

da liberdade de seus súditos<br />

O Fundador é esse arquétipo até<br />

depois da morte, e a regra tem por<br />

fim proteger o religioso contra os extravasamentos,<br />

as dissipações, e colocar<br />

sempre diante dos olhos aquela<br />

espécie de profetismo do Fundador,<br />

que leva a alcançar um determinado<br />

ápice.<br />

De maneira que, para esse tipo de<br />

organização, a proteção da liberdade<br />

individual consiste em proteger<br />

o indivíduo contra o seu próprio arbítrio,<br />

levando-o, facilitando-o a adquirir<br />

o espírito do arquétipo. Mas é<br />

uma proteção e não uma diminuição<br />

da liberdade. O Fundador é a garantia<br />

da liberdade de seus súditos.<br />

Se a figura do Fundador não é vista<br />

assim, há um equívoco fundamental<br />

entre o religioso e sua condição<br />

de religioso. É preciso parar e tratar<br />

de dar a explicação, porque isso deve<br />

ser entendido assim, pois, do contrário,<br />

não se entendeu nada e saiu-se<br />

da ótica da questão.<br />

Quando isso se realiza bem, há<br />

uma comunicação do espírito do<br />

Fundador com o que se deixa proteger,<br />

que completa o espírito do discípulo,<br />

sem o cortar em nada, exceto<br />

nos defeitos. É mais ou menos como<br />

o jardineiro que poda, mas não mutila<br />

a planta, pelo contrário, dá-lhe<br />

mais força.<br />

❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

12/9/1986)<br />

1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 229, p. 18.<br />

28


REFLEXÕES TEOLÓGICAS<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Anjos proféticos<br />

Há certamente um Anjo<br />

da Guarda específico para<br />

cada vocação. Assim como<br />

houve espíritos angélicos<br />

agindo na criação do canto<br />

gregoriano, devem existir<br />

Anjos que estimulam dotes<br />

naturais em quem possui<br />

uma vocação profética.<br />

M<br />

uitas vezes a linguagem<br />

da Escritura, da Igreja,<br />

da Liturgia se dirige<br />

a Deus pedindo a Ele alguma coisa<br />

diretamente. Outras vezes nós rogamos<br />

a Deus, mas considerado Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, quer dizer, a<br />

Segunda Pessoa da Santíssima Trindade<br />

encarnada. Às vezes nós pedimos<br />

por meio dos Santos, dos Anjos<br />

e principalmente de Nossa Senhora.<br />

Cadeia de intermediações<br />

até Deus<br />

Anunciação do Anjo a<br />

Maria - Museu de São<br />

Marcos, Florença, Itália<br />

Esses pedidos são feitos tomando<br />

em consideração que Deus age, em<br />

um imenso número de casos – se não<br />

sempre – por intermediários.<br />

Quando analisamos mais detidamente,<br />

vemos que esses intercessores<br />

estão colocados, eles mesmos,<br />

29


REFLEXÕES TEOLÓGICAS<br />

Ter a maior liberdade<br />

possível dentro da linha<br />

dos Mandamentos<br />

Assim, quando um religioso roga<br />

algo por meio de seu Superior, ou do<br />

Anjo da Guarda, ou de Nossa Senhora,<br />

sou propenso a acreditar que se<br />

move toda uma engrenagem sobrenatural,<br />

se é que se pode usar uma palavra<br />

tão vulgar como “engrenagem”,<br />

para designar uma realidade tão magnífica<br />

como é a interligação de todos<br />

os servidores de Deus, até chegar aos<br />

pés do trono d’Ele.<br />

Eu compreenderia uma oração<br />

assim: “Ó vós que eu não conheço,<br />

no Céu, mas por meio de quem Deus<br />

quer ser especialmente servido nesta<br />

ocasião, eu vos peço que…” Seja<br />

Anjo, seja Santo canonizado, seja<br />

uma alma santa que está no Paraíso.<br />

Ou então, se Deus quiser a especial<br />

intercessão de uma pessoa que eu<br />

não conheço, posso pedir ao meu Anjo<br />

da Guarda que, por meio do Anjo<br />

da Guarda dela, leve-a a rezar por<br />

mim. Com toda a abertura, com todo<br />

o espírito filial devo caminhar assim.<br />

Sou muito propenso, em matéria<br />

de vida espiritual, a que se tenha a<br />

maior liberdade possível dentro da<br />

linha dos Mandamentos, naturalmente.<br />

Quer dizer, naquilo que não<br />

contrarie a Deus, muita abertura.<br />

Santa Teresinha do Menino Jesus<br />

usava esta expressão: “Dis au juste<br />

que tout est bien!” – “Diga ao justo<br />

que tudo está bem!” Ou seja, se está<br />

seguindo a boa regra, viva sossegado,<br />

não se atrapalhe nem se incomode.<br />

Eu seria propenso a achar que<br />

Deus habitualmente – e talvez sempre<br />

– não age diretamente. E quando<br />

rezamos diretamente ao Criador,<br />

a nossa oração deve passar pelos<br />

caminhos das intermediações para<br />

chegar até Ele. Então pedimos a<br />

Deus porque sabemos ser o Doador<br />

de todos os bens, mas o correto seria<br />

nós supormos que todas as graças<br />

passam por um número incontánuma<br />

linha de intermediação. De<br />

maneira que, por exemplo, nós rezamos<br />

para os Anjos da Guarda, mas<br />

estes, de fato, atuam sob a direção<br />

de outros Anjos mais altos.<br />

A cadeia de intermediações até<br />

Deus é tão intensa que não podemos<br />

escolher de modo totalmente lógico<br />

este ou aquele intercessor, porque<br />

o número é grande demais para<br />

termos tudo isso em vista. Então<br />

nós agimos de acordo com certas<br />

apetências internas da alma que<br />

eu creio serem, na maior parte dos<br />

casos, moções da graça. Assim, por<br />

exemplo, dirigimo-nos ao nosso padroeiro,<br />

ou a um Santo que praticou<br />

especialmente uma virtude que nos<br />

é penoso exercer, ou, pelo contrário,<br />

um Santo que teve particular facilidade<br />

em praticar certa virtude; nós<br />

admiramos isso e pedimos a ele, ou<br />

recorremos ao nosso Anjo da Guarda,<br />

ou ainda a alguma pessoa falecida<br />

de nossa família, em cuja virtude<br />

confiamos.<br />

É um tal quadro que, apenas por<br />

essas moções interiores, a pessoa pode<br />

de fato escolher um procedimento<br />

próximo daquilo que Deus quer.<br />

Não se trata aqui de não fazer a<br />

vontade do Criador. Porque se Ele<br />

quer que nós tateemos na penumbra;<br />

procedendo assim estaremos<br />

fazendo sua divina vontade. Portanto,<br />

o problema de quem tateia<br />

na penumbra não é saber como tatear,<br />

de cada vez, como Deus deseja,<br />

mas é, sobretudo, este: “Uma vez<br />

que a Providência quer que eu tateie,<br />

resigno-me em tatear. Embora<br />

eu possa não tatear direito, estarei<br />

fazendo o que Deus quer até quando<br />

eu erre, porque Ele me pôs na<br />

penumbra.”<br />

Por isso, devemos agir com o espírito<br />

livre e confiante, segundo a propulsão<br />

que tenhamos internamente,<br />

pedindo ora uma coisa, ora outra,<br />

desde que tudo esteja na direção de<br />

fazer a vontade d’Ele, que é condição<br />

de todo bem.<br />

vel de intermediários, que nem sabemos<br />

bem como e quem são.<br />

Cada vocação tem seu<br />

Anjo da Guarda, e às<br />

vezes é um Serafim<br />

Para termos uma ideia, consideremos<br />

o seguinte: cada um de nós, para<br />

chegar até Adão, quantos antepassados<br />

tem? São incontáveis!<br />

Porém, se não conhecemos a lista<br />

dos nossos antepassados até Adão,<br />

os nossos ancestrais que estejam no<br />

Céu, muito provavelmente, têm conhecimento<br />

de todos os seus descendentes.<br />

Quantos dos nossos antepassados<br />

estarão no Céu? Quantos se<br />

encontrarão no Purgatório? Quantos<br />

não estarão nem no Céu nem no Purgatório...?<br />

Não podemos saber. Entretanto,<br />

os que se salvaram não rezam<br />

de modo especial por todos os<br />

seus descendentes? Eu acho que sim.<br />

Ora, na linha dessa descendência,<br />

alguns têm mais realce e outros menos<br />

nos planos divinos. Naturalmente,<br />

os ancestrais amarão mais aqueles<br />

com maior importância nos desígnios<br />

de Deus e, portanto, rezarão<br />

especialmente por esses.<br />

Não seria uma coisa muito razoável<br />

fazer uma oração especial para<br />

pedir aos nossos antepassados que<br />

rezem por nós? A mim me parece<br />

muitíssimo razoável, assim como rezar<br />

para que saiam do Purgatório os<br />

que lá estiverem, à maneira de um<br />

dever anexo à obrigação de honrar<br />

pai e mãe.<br />

E o que dizer do recurso aos Anjos?<br />

Todos nós temos nossos Anjos da<br />

Guarda. Há certamente um Anjo da<br />

Guarda específico para cada vocação.<br />

Não me espanta que sejam espíritos<br />

da categoria de um Arcanjo<br />

e até de um Serafim, conforme as<br />

condições especiais de cada vocação.<br />

Pois bem, não seria razoável rezarmos<br />

ao Serafim que, aos pés de Nossa<br />

Senhora, está mais especialmen-<br />

30


te rogando por nós, e pedir que ele<br />

e toda a coorte dos espíritos angélicos<br />

dependentes dele rezem continuamente<br />

por nós para realizarmos<br />

a nossa vocação? A meu ver, nesse<br />

abandono em que nos encontramos,<br />

se não recorrermos aos espíritos celestes,<br />

privamos a nossa luta de elementos<br />

de defesa incomparáveis.<br />

O cantochão e o polifônico<br />

Que relação isso tem com o profetismo?<br />

No espírito dos que possuem<br />

uma missão profética, até que ponto<br />

os Anjos inspiram aquilo que eles devem<br />

pensar? Qual é o papel do Anjo<br />

e qual o do Profeta na execução de<br />

uma determinada missão terrena?<br />

Tomem o cantochão. Não houve<br />

um “Cristóvão Colombo” do cantochão,<br />

que tenha descoberto essa<br />

“América” do mundo sonoro… Existiram,<br />

sem dúvida, grandes compositores,<br />

muitos deles anônimos. Embora<br />

provavelmente em sua grande<br />

maioria eles não tenham sido canonizados,<br />

o surto do cantochão corresponde<br />

a um movimento de santidade<br />

dentro da Igreja.<br />

Apesar de não se confundir com a<br />

santidade, esse movimento constitui<br />

uma certa forma de virtude, que pode<br />

estar no conjunto das virtudes de<br />

O ministério dos Anjos, por Gustave Doré<br />

Gutenberg.org<br />

um santo e fazer um bem enorme. O<br />

bem que o cantochão tem feito, não<br />

há palavras para exprimi-lo! Mas,<br />

por um desígnio qualquer da Providência,<br />

talvez os maiores homens<br />

desse estilo de música tenham ficado<br />

no anonimato.<br />

Então, alguém dirá: “Tal Santo<br />

não sabia cantochão, enquanto tal<br />

outro era ‘o rei do cantochão’. Algum<br />

dos dois não foi santo?”<br />

Não. São formas de virtudes especiais.<br />

Como, por exemplo, um é grande<br />

filósofo, outro um excelente artista,<br />

etc. São dons naturais que Deus<br />

fez iluminar pela graça. Nesses casos,<br />

a santidade consistia também em fazer<br />

valer aquele dom, natural e sobrenatural,<br />

recebido de Deus. Se não fizessem<br />

valer isso, não seriam santos.<br />

Mas não quer dizer que todos os santos<br />

deveriam ter tido esse dom.<br />

Parece que no surto que levou ao<br />

canto gregoriano entrou uma ação<br />

angélica. Porque há nisso uma forma<br />

qualquer de beleza superior à cogitação<br />

humana.<br />

Essa ação angélica se fez sentir enquanto<br />

Anjos atuando sobre homens<br />

provavelmente com talentos afins. E<br />

da conjugação do talento afim com<br />

a ação do Anjo saiu uma beleza que<br />

o talento, só por si, nunca daria. De<br />

maneira que ao ouvirmos certas músicas<br />

do cantochão – a meu ver, também<br />

do polifônico – dizemos: “Não<br />

é possível; isto um homem não compôs!”<br />

Entrou ação angélica.<br />

Então, assim como podemos imaginar<br />

Anjos das melodias celestes e<br />

terrenas, não poderíamos conjeturar<br />

Anjos que agem estimulando dotes<br />

naturais, reflexões em quem tem<br />

uma vocação profética? Anjos, eles<br />

mesmos, tendo por natureza e por<br />

graça muita coisa de profético, e que<br />

seriam Anjos proféticos, patronos<br />

daqueles que devem exercer uma<br />

missão profética? Compraz-me muito<br />

essa hipótese.<br />

❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

4/10/1986)<br />

31


APÓSTOLO DO PULCHRUM<br />

Grandeza e bondade<br />

de Deus<br />

Há belezas da natureza cuja formação desenrolou-se<br />

tão somente na presença de Deus, mas que eram<br />

destinadas por Ele para dar ao homem uma ideia<br />

do Céu, onde os legítimos anseios de grandeza,<br />

isolamento e convívio são plenamente atendidos.<br />

Fulvio Spada (CC3.0)<br />

E<br />

ssa é uma lindíssima fotografia dos Alpes, tirada<br />

a partir de um avião. Talvez fosse interessante<br />

mostrar o contraste desse panorama com outros<br />

aos quais estamos habituados.<br />

Grandeza e isolamento num píncaro nevado<br />

Neva em pouquíssimos lugares do território brasileiro.<br />

Alguma coisa em Santa Catarina. Em Campos de Jordão<br />

não me consta que caia neve, mas de vez em quando forma-se<br />

uma espécie de geada muito grossa, a qual dá um<br />

pouco a impressão de neve.<br />

Nessa fotografia temos caracterizada a paisagem coberta<br />

de neve, com toda a poesia e até magnificência que<br />

ela traz consigo.<br />

Entretanto, confesso que o mais bonito do panorama,<br />

a meu ver, não é a neve, mas a configuração desse monte,<br />

com essa crista que chega bem no alto e, depois, levanta-se<br />

mais outra crista. O bloco onde está esse monte<br />

me sugere a ideia de uma fortaleza medieval. Nota-se<br />

Fulvio Spada (CC3.0)<br />

32


szerenka (CC3.0)<br />

ser ele cercado de uma muralha natural. Sua forma vagamente<br />

circular imita a de muitas fortalezas medievais.<br />

No centro da área fortificada se encontraria o castelo, e<br />

ali, como se fosse uma torre prodigiosa, esse outro píncaro<br />

mais alto.<br />

O homem não pode olhar para uma paisagem como<br />

essa sem se imaginar a si próprio nesses píncaros, e que<br />

sensação ele teria se estivesse lá no alto. Se ele tivesse,<br />

por exemplo, meios financeiros e técnicos para construir<br />

uma fortificação naquele mais alto píncaro, o que sentiria?<br />

Tal pergunta não é a de um sonhador imbecil, mas é<br />

um modo de degustar melhor um panorama.<br />

Esse homem teria a sensação de estar colocado no<br />

alto de uma grandeza colossal. Se possuísse um castelo<br />

cobrindo aquele píncaro, sentir-se-ia o castelão<br />

dos castelões, alguém que está numa altura fantástica<br />

a partir da qual ele domina, pelo olhar e pelo pensamento,<br />

tudo quanto de contemporâneo se desenvolve<br />

aos seus pés.<br />

Mas ele sentiria, em compensação, um isolamento tremendo,<br />

porque a neve não é o seu hábitat natural. O homem<br />

não foi feito para viver na neve, e sim para morar<br />

em lugares onde de vez em quando neva. É verdade que<br />

os esquimós e outras populações conseguem viver num<br />

panorama nevado assim, mas em condições de vida inteiramente<br />

primitivas e com um desenvolvimento cultural<br />

dos mais elementares.<br />

Trace (CC3.0)<br />

Céu: píncaro onde se unem as alegrias<br />

do isolamento e do convívio<br />

Inez Stafford (CC3.0)<br />

A neve vista assim dá a impressão de um panorama no<br />

qual o homem está tão isolado como se estivesse na Lua,<br />

separado de seus contemporâneos, de todo mundo, incompreensível<br />

para todos, dominando tudo do alto, mas<br />

sofrendo daquilo que Deus diz no Gênesis, antes de criar<br />

Eva: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18).<br />

O isolamento, sobretudo quando é tornado mais imponente<br />

e esmagador pela grandeza, é uma coisa que pesa<br />

enormemente.<br />

Um castelão morando nesse castelo imaginário, acompanhado<br />

apenas de dois ou três serviçais, vendo os dias<br />

33


APÓSTOLO DO PULCHRUM<br />

Fulvio Spada (CC3.0)<br />

Berrucomons (CC3.0)<br />

M M (CC3.0)<br />

se sucederem às noites e as noites aos dias, as tempestades<br />

de neve ou as nuvens que cercam de todos os lados,<br />

dando a impressão de o castelo estar voando, sentirá em<br />

determinadas horas um tal isolamento que poderá tornar-se<br />

angustiante.<br />

Por outro lado, para quem não vive na neve, mas na<br />

trivialidade do dia a dia, há uma vontade de sair da banalidade,<br />

um desejo de voar para dentro dos horizontes<br />

da grandeza.<br />

O ser humano é de maneira tal que, se tem elevação<br />

de alma e se encontra, por exemplo, na Praça do Patriarca<br />

no centro de São Paulo, vendo esse panorama, poderia<br />

pensar: “Mas como seria bom eu estar lá no alto!”<br />

Entretanto, quem estivesse no cume da montanha, se lhe<br />

mostrassem a Praça do Patriarca e lhe oferecessem descer,<br />

seria capaz de ter a fraqueza de dizer: “Então, vamos,<br />

porque lá é bem quentinho e gostosinho.”<br />

Contudo, há um pouco de verdade em ambas as atitudes.<br />

Considerando isso compreendemos melhor o Céu.<br />

Porque o Paraíso é de uma elevação, de uma altitude –<br />

não física, mas moral – incomparável. Mas, de outro lado,<br />

ali não se está só. O homem se encontra na presença<br />

d’Aquele que é sua finalidade, ele sente a companhia<br />

absoluta para a qual foi criado. Em presença de Deus ele<br />

está como que embriagado da alegria de ter contato e de<br />

conversar com Ele, Deus: infinitamente mais alto do que<br />

esse monte, mas ao mesmo tempo infinitamente mais<br />

condescendente, afável e amoroso do que as ideias que<br />

essa montanha sugere.<br />

Ademais, no Céu a pessoa está inserida em toda a corte<br />

celeste, passa a ser príncipe dela. É a corte dos bem-<br />

-aventurados, dos Santos e dos Anjos. Eles têm ali a fe-<br />

34


Xonqnopp (CC3.0)<br />

licidade completa que reúne as alegrias aparentemente<br />

contraditórias de fazer parte de uma multidão e de estar<br />

num píncaro sozinho. Ali se está no mais alto dos píncaros,<br />

cercado e num convívio idealmente afetuoso, respeitoso,<br />

amável, com a mais perfeita das multidões, que é a<br />

multidão imensa daqueles que se salvam.<br />

Belezas que se desenrolaram<br />

aos olhos de Deus<br />

Nessa outra fotografia vemos o céu azul, o dia límpido<br />

e podemos apreciar melhor a beleza, a magnificência<br />

dessa localização. Dir-se-ia que algo de semelhante aos<br />

contornos de uma fortaleza medieval ainda se torna mais<br />

claro do que na fotografia anterior, mas parecendo mais<br />

uma cratera de vulcão da qual saiu, em determinado momento,<br />

das entranhas mais quentes da terra uma matéria<br />

qualquer incandescente, levada por um jato enorme e<br />

que, quando chegou em cima, petrificou-se no frio e formou<br />

isso que vemos.<br />

Não havia homens na Terra quando fatos geológicos<br />

assim deram origem aos panoramas que hoje existem.<br />

Mas que coisas lindas nessa ocasião se desenrolaram aos<br />

olhos de Deus! Através de paisagens como essa Ele nos<br />

faz suspeitar um pouco quais as belezas por Ele criadas<br />

antes de nós existirmos. Nesse sentido, quando milhares<br />

e milhares de anos antes dessas montanhas terem sido<br />

conhecidas pelo homem, Deus as modelou com a intenção<br />

principal de dar aos homens a oportunidade de fazer<br />

estas ou melhores reflexões a respeito da grandeza e da<br />

bondade d’Ele.<br />

❖<br />

Christian Mehlführer (CC3.0)<br />

Tinelot Wittermans (CC3.0)<br />

(Extraído de conferência de 21/12/1988)<br />

Kogo (CC3.0)<br />

35


Teodoro Reis<br />

Auxílio dos<br />

pequeninos<br />

N<br />

ossa Senhora Auxiliadora Se<br />

apresenta a nós com o Menino<br />

Jesus no braço para indi-<br />

car a relação materna que Ela tem<br />

com o Divino Infante. Relação de intimidade<br />

absoluta, com a disposição<br />

de atender as últimas e menores dificuldades<br />

de uma criança, com aquele<br />

afeto, aquela bondade que se tem para<br />

com o pequenino e o fraco.<br />

Maria Santíssima é também a Mãe do<br />

Corpo Místico de Cristo e, portanto, de<br />

todos os cristãos. Em relação a cada um<br />

de nós, a posição d’Ela é de querer que sejamos<br />

como o filho carregado no colo a quem<br />

Ela dá muito mais do que pede, e até mesmo o<br />

que ele não sabe pedir.<br />

Mas a condição para receber é pedir com essa<br />

intimidade e a certeza de ser atendido, como<br />

uma criança de colo. A esse título, Ela nos auxilia<br />

com aquela multidão de auxílios dados<br />

aos pequenos.<br />

O maior dos auxílios que Nossa Senhora<br />

pode nos conceder é nos comunicar seu espírito<br />

de santidade, sua autenticidade de virtudes,<br />

sua força e a vitória contra o demônio.<br />

(Extraído de conferência de 23/5/1966)

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