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Revista Dr Plinio 239

Fevereiro de 2018

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Publicação Mensal Ano XXI - Nº <strong>239</strong> Fevereiro de 2018<br />

Triunfo marial


Sérgio N.<br />

O insubstituível apostolado<br />

do sofrimento<br />

fatima.pt<br />

Nossa Senhora quis que Jacinta<br />

e Francisco morressem em circunstâncias<br />

tão difíceis e sofrendo<br />

tanto, por serem necessárias vítimas<br />

que associassem suas dores e o sacrifício de<br />

suas vidas ao mistério de Fátima, bem como<br />

à fecundidade desejada pela Santíssima<br />

Virgem, na ordem sobrenatural, para os fatos<br />

anunciados na Cova da Iria.<br />

Apesar de ter havido ali uma intervenção<br />

direta da Mãe de Deus, atestada por milagres<br />

estupendos como, por exemplo, a movimentação<br />

do Sol, Ela quis que duas almas<br />

oferecessem as suas vidas e se imolassem<br />

para que aquele plano da Providência<br />

tivesse a fecundidade necessária.<br />

Isso nos faz compreender bem como o<br />

apostolado do sofrimento é insubstituível e<br />

abre os caminhos para a Igreja.<br />

Peçamos a Jacinta e Francisco que nos<br />

obtenham o senso do sofrimento, indispensável<br />

para qualquer católico ser verdadeiramente<br />

generoso e dedicado.<br />

fatima.pt<br />

(Extraído de conferência de 19/2/1965)<br />

fatima.pt<br />

Multidão observa o milagre do<br />

Sol durante uma das aparições<br />

de Nossa Senhora em Fátima


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XXI - Nº <strong>239</strong> Fevereiro de 2018<br />

Ano XXI - Nº <strong>239</strong> Fevereiro de 2018<br />

Triunfo marial<br />

Na capa, Santuário de<br />

Lourdes, França.<br />

Foto: Gabriel K.<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Antônio Pereira de Sousa, 194 - Sala 27<br />

02404-060 S. Paulo - SP<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />

Rua Enéias Luís Carlos Barbanti, 423<br />

02911-000 - São Paulo - SP<br />

Tel: (11) 3932-1955<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 130,00<br />

Colaborador........... R$ 180,00<br />

Propulsor.............. R$ 415,00<br />

Grande Propulsor....... R$ 655,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Editorial<br />

4 O grande triunfo marial<br />

Piedade pliniana<br />

5 Prece preparatória para<br />

a Comunhão<br />

Dona Lucilia<br />

6 O xale lilás<br />

O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

08 Instintos e senso do ser<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

14 A perfeita felicidade<br />

Calendário dos Santos<br />

21 Santos de Fevereiro<br />

Perspectiva pliniana da História<br />

22 Ponto culminante na luta<br />

entre o bem e o mal<br />

Hagiografia<br />

27 Deus é admirável nos seus santos<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

30 Ó Igreja Católica!<br />

Última página<br />

36 O segredo da calma<br />

3


Editorial<br />

O grande triunfo marial<br />

Em 1854, pela Bula Ineffabilis Deus, o grande Papa Pio IX definia como dogma a Imaculada<br />

Conceição de Nossa Senhora. Em 1858, de 11 de fevereiro a 16 de julho, Nossa Senhora<br />

aparecia dezoito vezes, em Lourdes, a uma filha do povo, Bernadette Soubirous, declarando<br />

ser a Imaculada Conceição. A partir dessa ocasião, tiveram início os milagres. E a grande maravilha<br />

de Lourdes começou a brilhar aos olhos de todo o mundo, até nossos dias. O milagre confirmando<br />

o dogma, eis em resumo a relação entre o acontecimento de 1854 e o de 1858.<br />

De há muito, vinham sendo os meios católicos da Europa e da América trabalhados por uma verdadeira<br />

lepra, que era o jansenismo. Este movia uma campanha insistente contra a devoção a Nossa<br />

Senhora, que acusava de desviar de Jesus Cristo, em lugar de conduzir a Ele.<br />

A definição do dogma da Imaculada Conceição foi o primeiro dos grandes reveses sofridos pelo<br />

inimigo interno. Para provar que tudo nos vem por Maria, quis a Providência que fosse marial o primeiro<br />

grande triunfo.<br />

Mas, para glorificar ainda melhor sua Mãe, Nosso Senhor fez mais. Em Lourdes, como estrondosa<br />

confirmação do dogma, fez o que nunca antes se vira: instalou no mundo o milagre, por assim dizer,<br />

em série e a título permanente. Até então, o milagre aparecera na Igreja esporadicamente. Mas em<br />

Lourdes, as curas mais cientificamente comprovadas e de origem mais autenticamente sobrenatural<br />

se dão, a bem dizer, a jato contínuo, à face de um século confuso e desnorteado.<br />

Foi por certo um grande momento, na vida do filho pródigo, aquele em que seu espírito embotado<br />

pelo vício adquiriu nova lucidez, e sua vontade novo vigor na meditação da situação miserável em<br />

que caíra e da torpeza de todos os erros que o haviam conduzido para fora da casa paterna. Tocado<br />

pela graça, encontrou-se, com mais clareza do que nunca, diante da grande alternativa: arrepender-<br />

-se e voltar, ou perseverar no erro e aceitar, até o mais trágico final, as suas consequências. Deu-se o<br />

embate interno. Ele escolheu o bem.<br />

O futuro, só Deus o conhece. A nós, homens, é lícito, entretanto, conjecturá-lo segundo as regras<br />

da verossimilhança.<br />

Estamos vivendo uma terrível hora de castigos. Mas esta também pode ser uma admirável hora<br />

de misericórdia. A condição para isto é que olhemos para Maria, a Estrela do Mar, que nos guia em<br />

meio às tempestades.<br />

Movida de compaixão para com a humanidade pecadora, Nossa Senhora tem alcançado para nós<br />

os mais estupendos milagres. Esta piedade se terá extinguido? Têm fim as misericórdias de uma<br />

Mãe, e da melhor das mães? Quem ousaria afirmá-lo? Se alguém duvidasse, Lourdes lhe serviria de<br />

admirável lição de confiança. Nossa Senhora há de nos socorrer.*<br />

* Excertos do artigo “Primeiro marco do ressurgimento contra-revolucionário”. Em Catolicismo, n. 86, fevereiro<br />

de 1958.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Prece<br />

preparatória<br />

para a<br />

Flávio Lourenço<br />

Comunhão<br />

Jesus Eucarístico<br />

Igreja de São Francisco,<br />

Lucena, Espanha<br />

Minha Mãe e Senhora do Santíssimo<br />

Sacramento, Vós<br />

sois a síntese perfeita de todas<br />

as pessoas boas em todos os tempos.<br />

No meio de vossas excelsitudes há<br />

em Vós um filão que é a suprema perfeição<br />

de mim mesmo. Adorai a Nosso<br />

Senhor por mim e comigo. Sede Vós o<br />

meu “alto-falante” celeste e falai a Ele.<br />

Vinde minha Mãe e cobri minhas<br />

manchas, porque na presença d’Ele sou<br />

indigno e carregado de defeitos. Vinde<br />

resolver essa minha dificuldade. Obtende<br />

que Nosso Senhor Jesus Cristo não<br />

entre em análise comigo, e vá me perdoando<br />

antes mesmo de entrar em mim.<br />

Vinde com vosso sorriso, vossa voz e<br />

vossas palavras atraentíssimas a vosso<br />

Divino Filho. Amém.<br />

Flávio Lourenço<br />

Anunciação - Museu da Catedral de<br />

São Domingos - La Rioja, Espanha<br />

5


Dona Lucilia<br />

O xale lilás<br />

O xale tem algo de supérfluo que bem manuseado pode dar<br />

ares de nobreza, de dignidade. Para uma senhora que tem a<br />

idade do Sol quando se põe, convém um xale discreto, distinto,<br />

mas que orne os ocasos. E uma das cores adequadas para Dona<br />

Lucilia era o lilás, que possui alguma coisa do refletido, do<br />

tristonho, do organizado, daquilo que já caminha para o fim.<br />

Embora um espírito não tenha<br />

cor, pois não é de natureza<br />

material, pode-se relacionar<br />

estados de alma a determinadas<br />

cores, procurando ver nelas o espírito<br />

que se reflete. Assim, poderíamos nos<br />

perguntar se existe um espírito cor de<br />

amaretto, nacarado ou dourado. A cor<br />

é apenas um símbolo material de um<br />

estado de alma espiritual, imaterial.<br />

Cor, aroma, som, sabor e<br />

traçado de uma linha<br />

Numa primeira abordagem, a resposta<br />

à pergunta resulta em uma banalidade,<br />

porque é claro que a estados<br />

de espírito correspondem cores. Por<br />

exemplo, ao negro corresponde o luto.<br />

E não é por uma analogia, por uma relação<br />

convencional, mas por uma correspondência<br />

natural. O homem que<br />

está morto não vê, não sente. Ele está<br />

para com a vida como um cego para<br />

a feeria das luzes, quer dizer, não vê.<br />

Encontra-se numa noite, num escuro<br />

“eterno”, em que ele não vê nada.<br />

Por outro lado, há cores festivas<br />

que indicam estados de alma jubilosos,<br />

triunfais, como existem cores e<br />

tonalidades que denotam o repouso.<br />

A experiência mostra que os artistas<br />

utilizam em suas obras esta ou<br />

aquela cor para exprimir um determinado<br />

estado de espírito. Logo, essa<br />

reversibilidade existe.<br />

Entretanto, poderíamos ir mais<br />

longe e perguntar se nos seria possível,<br />

tratando com pessoas, perceber<br />

que cor corresponde a este ou àquele<br />

indivíduo como mentalidade e se,<br />

portanto, as pessoas têm cores, nesse<br />

sentido. Evidentemente não entra<br />

em consideração aqui a etnia.<br />

Se estabelecermos com uma pessoa<br />

um contato no qual ela não se sinta<br />

forçada a representar um papel,<br />

não tenha o empenho de se falsificar<br />

para se tornar agradável; portanto,<br />

tomada a pessoa na sua autenticidade,<br />

e suposto um convívio em que,<br />

pela continuidade, os vários aspectos<br />

dela vão aparecendo e se completando<br />

– o que não implica em um convívio<br />

necessariamente muito longo,<br />

basta que seja proporcionado ao discernimento<br />

do observador –, poderíamos<br />

dizer que cada pessoa causa uma<br />

impressão dominante. A meu ver, essa<br />

impressão dominante seria redutível,<br />

simbolizável numa cor.<br />

Até acho mais: se, como vimos, a cada<br />

pessoa poderia corresponder uma<br />

cor ou uma tonalidade dentro de uma<br />

cor, donde decorreria matizações mais<br />

ou menos indefinidas, também a cada<br />

família poderia corresponder uma cor,<br />

como um aroma, um som, um sabor.<br />

Isso ocorre também com as formas,<br />

pois o modo habitual de caminhar na<br />

vida, a conduta da pessoa ou da família<br />

seria passível se reduzir ao traçado<br />

de uma linha. Assim, há pessoas cuja<br />

conduta é simbolizada por uma linha<br />

cambaleante, outras por uma linha reta,<br />

e outras ainda pela espiral.<br />

O prático e o estético<br />

A única pessoa que eu reduzi a uma<br />

cor, muitos anos depois de ter cessado<br />

minha convivência com ela, foi mamãe.<br />

Realmente o brilho de ametista<br />

era bem o lumen dela. Pude notar que<br />

o meu gosto pela ametista, já quando<br />

Dona Lucilia era viva, correspondia a<br />

um modo de querê-la bem.<br />

Enquanto ela estava viva, eu<br />

nunca fiz esta reversão. A posteriori,<br />

quando cheguei a realizá-la, dei-<br />

-me conta de quanto tudo que cercava<br />

mamãe estava imerso naquela<br />

luminosidade da ametista, de cor<br />

um pouco dada a escura. Não é, portanto,<br />

dessas ametistas um pouco esbranquiçadas.<br />

É ametista de valor,<br />

de cor nutrida, quase de quaresma.<br />

O xale que ela usava continuamente<br />

estava em consonância com isso.<br />

6


Em geral, quando se trata do assunto<br />

traje, nas épocas mais ou menos<br />

bem constituídas como ainda era o<br />

tempo em que ela viveu, ao menos<br />

por alguns aspectos, vê-se que há<br />

uma espécie de composição entre<br />

o lado prático e o estético. As<br />

pessoas se fazem uma certa ideia<br />

do lado prático e depois com isso<br />

vêm algumas ideias do lado estético.<br />

E fazem disso um total que<br />

não se sabe o que prepondera<br />

mais: o prático ou o estético.<br />

O xale é característico a esse<br />

respeito. A ideia é a seguinte. Naquela<br />

época havia muito medo dos<br />

resfriados. E se compreende bem,<br />

porque não existiam antibióticos como<br />

hoje. E para curar um resfriado<br />

era preciso muito cuidado, porque senão<br />

degenerava com certa facilidade<br />

em gripe. E gripe podia degenerar<br />

em pneumonia, e esta em tuberculose.<br />

E a tuberculose, que é uma moléstia<br />

infecciosa, matava um número muito<br />

grande de gente no tempo em que<br />

Dona Lucilia era moça. Basta dizer<br />

que nas peças de teatro, a maior parte<br />

dos heróis e heroínas que são apresentados<br />

morrendo, falecem de tuberculose.<br />

De tal maneira essa doença se<br />

tornou frequente naquele tempo.<br />

E o resfriado era o começo de uma<br />

estrada descendente que chegava até<br />

a tuberculose. Então as pessoas tomavam<br />

um cuidado enorme contra o resfriado,<br />

que hoje não se justifica mais<br />

com a facilidade que se tem em combater<br />

as doenças infecciosas. A ideia prática<br />

para evitar os resfriados, e sobretudo<br />

as doenças de pulmão, era as senhoras<br />

protegerem os pulmões por meio<br />

do xale. Então vê-se que o xale envolve<br />

e protege essa parte mais sensível do<br />

corpo contra o perigo das pneumonias.<br />

Ornato para exprimir<br />

a mentalidade<br />

Dessa ideia prática apoderou-se a<br />

arte. E o xale usado pelas senhoras do<br />

tempo foi adotado como uma espécie<br />

de ornato, para a expressão da mentalidade<br />

delas. Então, o xale – como<br />

aquilo que fica por cima do corpo, e<br />

que tem mais relação com o vestido,<br />

forma o busto da pessoa – era muito<br />

indicativo da mentalidade da senhora.<br />

E numa senhora com xale aparece<br />

sobretudo o busto, que é formado<br />

pelo rosto, pescoço e a área do xale;<br />

e depois a saia. As saias eram longas<br />

e chegavam em geral até os pés. Portanto,<br />

tinham outra importância indumentária,<br />

em comparação com esses<br />

saiotes vagabundos de hoje.<br />

O xale, por outro lado, tinha algo<br />

de particularmente nobre, porque<br />

o verdadeiro e bonito do xale é ter<br />

qualquer coisa de supérfluo. Eram<br />

panos longos que a pessoa não colocava<br />

só para fechar exatamente como<br />

um pulôver; dobrava-se o xale para<br />

um lado, depois para o outro. E o<br />

supérfluo bem manuseado pode dar<br />

ares de nobreza, de dignidade. De<br />

maneira que o xale facilmente nobilitava<br />

a senhora que soubesse usá-lo.<br />

Os modos de pôr, dobrar e arranjar<br />

o xale eram quase atitudes rituais.<br />

E a senhora mostrava a educação,<br />

a linha e a inteligência que possuía,<br />

a propósito do xale.<br />

O xale de Dona Lucilia era semelhante<br />

aos que tinham incontáveis senhoras<br />

daquele tempo. Ela o usava<br />

daquela forma e se velava com o xale<br />

muito compostamente, suavemente.<br />

Os xales dela tinham um<br />

misto de distinção e suavidade no<br />

modo de se apresentarem, que<br />

realmente me encantava.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Uma senhora que<br />

tem a idade do Sol<br />

quando se põe<br />

A cor e os desenhos do xale<br />

eram relativos à situação e à idade<br />

da senhora que o usava. De maneira<br />

que a uma senhora idosa não ficava<br />

bem, por exemplo, um xale vermelho<br />

ou faiscante de lantejoulas douradas<br />

ou prateadas; seria uma coisa<br />

medonha.<br />

Para uma senhora que tem a idade<br />

do Sol quando se põe, convém um xale<br />

discreto, distinto, que orne os ocasos.<br />

E nessas condições, uma das cores<br />

adequadas para mamãe era o lilás,<br />

que tem ao mesmo tempo algo do<br />

azul, não tem dúvida, mas alguma coisa<br />

do refletido, do tristonho, do organizado,<br />

daquilo que já caminha para o<br />

fim. O lilás ficava muito bem para ela.<br />

Aquele xale foi trazido por minha<br />

irmã de uma viagem à Europa. Tenho<br />

quase certeza de que ela o comprou<br />

em Paris. Minha irmã tem muito espírito<br />

prático e ao mesmo tempo sabe<br />

vestir-se muito bem. E era um xale<br />

que tinha três finalidades: aquece<br />

muito, pesa pouco – é importante<br />

que pese pouco sobre os ombros de<br />

uma senhora idosa – e orna bem.<br />

Embora seja normal que uma<br />

pessoa, vestindo esse xale, o use sobretudo<br />

nas ocasiões em que está<br />

diante de pessoas estranhas, porque<br />

é um bonito ornato, ela de tal<br />

maneira gostou dele que começou a<br />

usá-lo todos os dias. v<br />

(Extraído de conferências de<br />

6/7/1980 e 25/8/1983)<br />

7


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Instintos e senso do ser<br />

Samuel Holanda<br />

O Batismo dá ao senso do ser a luz<br />

que ele procura, proporcionando um<br />

equilíbrio de todos os instintos, sem<br />

o qual o homem cai nos desatinos<br />

característicos do mundo de hoje. O<br />

desvario dos instintos é um fator muito<br />

importante do progresso da Revolução.<br />

O grande instinto fundamental é o senso<br />

do ser, que o indivíduo conhece por<br />

conaturalidade e por evidência absoluta.<br />

As leis de funcionamento dos<br />

instintos constituem princípios<br />

muito claros que ajudam<br />

enormemente a compreender<br />

a história da Revolução tendencial.<br />

Porque os instintos humanos não jogam<br />

apenas em função de coisas materiais,<br />

mas, colocados diante de quadros<br />

de caráter intelectivo, são também<br />

capazes de reação. Sobretudo<br />

quando se trata de quadros que, por<br />

meios sensíveis, fazem-lhes perceber<br />

coisas intelectivas. Por exemplo, uma<br />

cerimônia eclesiástica faz entender<br />

ao homem realidades doutrinárias –<br />

como normas, princípios, verdades –<br />

através de meios sensíveis.<br />

Equilíbrio instintivo<br />

e santidade<br />

Essa correlação é evidente e tem<br />

por efeito que o instinto, com as suas<br />

mutabilidades, possui capacidade de<br />

saciar-se de verdades, como de erros,<br />

e querer modificações,<br />

porque é próprio do instinto<br />

mover-se assim.<br />

Essa mobilidade dos<br />

instintos, essa espécie<br />

de desconjuntamento<br />

do instinto com a razão<br />

constitui uma causa profunda<br />

do perpétuo sofrimento<br />

do homem concebido<br />

no pecado original.<br />

O homem sem o pecado<br />

original não tinha<br />

isso.<br />

É muito bonito ver<br />

como a graça atua na<br />

alma humana, porque<br />

ela dá ao homem, por<br />

uma espécie de experiência<br />

mística, um<br />

prenúncio do Céu e<br />

da vida de Deus, o sabor<br />

de uma eternidade<br />

longínqua da qual<br />

se tem uma antecipa-<br />

São Domingos de Gusmão (por Fra Angelico)<br />

Convento de São Marcos, Florença, Itália<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

8


ção aqui na Terra, e que é uma certa<br />

degustação – dentro de um caos<br />

que é preciso aceitar na batalha,<br />

no ardor, na consolação, no sacrifício<br />

– sempre acompanhada de algum<br />

elemento que tem seu papel no jogo<br />

dos instintos, enquanto ordenativo e<br />

que eleva. É a graça de Deus, única<br />

e incomparável, atuando até o fundo<br />

e dando um equilíbrio que o homem,<br />

pelos seus instintos, não seria capaz<br />

de conceber, mas que pacifica seus<br />

instintos e lhe confere santidade.<br />

A meu ver, um exemplo magnífico<br />

disso são as obras de muitos pintores<br />

do século XV, mas de Fra Angelico<br />

de modo muito saliente e excelente.<br />

Por exemplo, aquele quadro que<br />

representa São Domingos meditando<br />

provavelmente o Evangelho. O<br />

que há de equilíbrio instintivo ali, na<br />

linha do que estou dizendo, é um tesouro<br />

tal que, olhando para aquela<br />

pintura, não se sabe o que dizer.<br />

Faria bem ter esse quadro na sala de<br />

trabalho, com o intuito de embeber<br />

os próprios instintos daquele equilíbrio<br />

e daquela paz conferidos pela<br />

Escritura e pela graça.<br />

Em grande parte, por sermos católicos,<br />

sentimos em nós o sumo<br />

equilíbrio e a santidade que esse fator<br />

coloca, pois o Batismo dá ao senso<br />

do ser, na sua inocência primeira,<br />

a luz que ele procura, proporcionando,<br />

in radice, um equilíbrio de todos<br />

os instintos. A pessoa que não<br />

tenha esse equilíbrio cai em convulsões,<br />

exageros, espasmos, torvelinhos,<br />

doidices, característicos desse<br />

mundo que estamos vendo.<br />

O gótico flamboyant<br />

Com efeito, é preciso olhar para<br />

o desvario dos instintos como um<br />

fator muito importante, embora não<br />

seja o único, do progresso da Revolução.<br />

Exemplifico com o fim do gótico.<br />

Quando chegou o gótico flamboyant,<br />

sentia-se que o gótico tinha<br />

dado de si tudo quanto devia. Entretanto,<br />

o gótico é tão excelente que<br />

se diria ser um estilo perfeito e, uma<br />

vez abandonado, qualquer outra coisa<br />

que viesse depois corresponderia<br />

a uma prevaricação.<br />

Ora, há qualquer coisa por onde,<br />

se a virtude tivesse continuado, ter-<br />

-se-ia a percepção artística de qual<br />

era o caminho por onde, continuando<br />

o gótico, ir-se-ia, entretanto, além<br />

dele. Mas como entrou a degenerescência<br />

da Idade Média, os homens<br />

não foram capazes de prolongar o<br />

gótico. Veio a Revolução que apresentou<br />

a Renascença. Por quê? Porque<br />

os instintos estavam exaustos do<br />

Catedral de Burgos, Espanha<br />

gótico também. A perpétua ogiva, o<br />

perpétuo vitral...<br />

De fato, o perpétuo equilíbrio também<br />

precisa encontrar as suas variedades<br />

harmônicas ousadas, porque,<br />

do contrário, neste vale de lágrimas,<br />

até o equilíbrio perfeito cansa. Então,<br />

o próprio equilíbrio deve saber gerar,<br />

não os desequilíbrios, mas as unilateralidades<br />

harmônicas que tocam para<br />

um lado e depois para outro, fazendo<br />

disso um equilíbrio original.<br />

Quer dizer, ir para a frente na linha<br />

da tradição, inovar no sentido<br />

da continuidade, tudo isso está relacionado<br />

com as leis de como os ins-<br />

Jose Luis Filpo Cabana (CC3.0)


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Takeshi T. N.<br />

Claustro do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, Brasil<br />

tintos podem ser alterados. Há certos<br />

momentos em que é preciso fazer<br />

a variedade, e outros nos quais as<br />

civilizações mudam e caem porque<br />

não houve a originalidade para tocar<br />

adiante.<br />

Os instintos podem progredir.<br />

Quando eles se movem ordenadamente,<br />

vão exigindo continuidades e<br />

mudanças pelas quais eles se afinam<br />

e progridem.<br />

Era preciso que, ao longo da História,<br />

a Igreja fosse mostrando a sua<br />

santidade, mas sempre variando harmonicamente,<br />

de tal maneira que<br />

a santidade da Igreja não fatigasse<br />

nunca. Ela só cansa os homens que<br />

não têm a alma reta. Aos homens de<br />

alma reta, ela não fatiga nunca. Porém,<br />

vai gerando santos e mais santos<br />

diferentes. É um progresso, portanto,<br />

com uma variedade enorme<br />

dentro da unidade. Suponho que os<br />

santos dos últimos tempos vão ser<br />

uma síntese de tudo isso.<br />

Mongezinhos do<br />

Convento de São Bento,<br />

no Rio de Janeiro<br />

Então, eu imagino ser esse o modelo<br />

de todas as variedades que os<br />

instintos humanos fariam, se os homens<br />

fossem fiéis à sua vocação e à<br />

graça. E que nós teríamos modalidades<br />

assombrosas de beleza da alma<br />

humana e das civilizações, se isso<br />

fosse feito assim.<br />

Isso contraria a ideia errada pela<br />

qual se pode ser ranzinza, aborrecido,<br />

agressivo, medroso, dar largas<br />

aos instintos como quiser, não tem<br />

importância, desde que não se caia<br />

em pecado. Ora, isso não é verdade<br />

porque traz consigo raízes de pecado.<br />

E se essas raízes passam por convulsões<br />

loucas, as plantas delas nascidas<br />

o que podem ser?<br />

Pelo contrário, os instintos educados<br />

desde quando a pessoa é pequena<br />

– com amor, bondade, continuidade<br />

e força – têm uma ordenação que<br />

mostra o quanto a vida não se reduz a<br />

raciocínios, mas consiste na educação<br />

que produz essa ordenação.<br />

Eu não posso me esquecer da primeira<br />

vez em que fui ao Convento de<br />

São Bento, no Rio, e vi passar diante<br />

de mim, de repente, menininhos de<br />

doze ou treze anos vestidos de fradinhos,<br />

conversando no claustro, de dois<br />

em dois, com ares de mongezinhos.<br />

Perguntei a um frade que estava lá:<br />

– Que crianças são essas?<br />

– Esse é o pré-seminário beneditino.<br />

Era preciso ver aquele hieratismo<br />

beneditino, o passo que eles davam,<br />

o modo pelo qual o escapulário preto<br />

caía para trás, aquele jeito todo como<br />

já ia se formando; uma maravilha.<br />

Quando mais tarde conheci a palavra<br />

espanhola monaguillo, achei<br />

um encanto, e creio que originariamente<br />

designava esse “fradezinho”<br />

que estuda, ainda criança, no se-<br />

10


minário. Suponho que o coroinha,<br />

por analogia, é chamado monaguillo,<br />

porque esses meninos com certeza<br />

ajudavam a Missas no convento.<br />

Eram os coroinhas do convento.<br />

O grande instinto<br />

fundamental humano<br />

A tendência ao mutável faz com que<br />

certas apetências do instinto caduquem<br />

legitimamente. É uma caducidade saudável,<br />

correspondente à tendência do<br />

ser humano para a mudança, que é um<br />

elemento propulsor do homem.<br />

Na parábola do filho pródigo,<br />

Nosso Senhor deixa entender que a<br />

casa daquele pai era irrepreensível,<br />

por ser o pai irrepreensível, e que<br />

o filho deixou a residência paterna<br />

sem razão nenhuma. Teria mesmo<br />

deixado a casa paterna sem motivo<br />

algum? É evidente que houve<br />

uma saturação má dos defeitos, em<br />

relação à ordem dentro da residência.<br />

Esta saturação representou uma<br />

mudança das paixões desordenadas<br />

sobre os instintos. Os instintos passaram<br />

a pedir coisas más, em nexo<br />

com as paixões desordenadas. E isso<br />

o levou a sair de casa. Depois ele<br />

apanhou, passou a amar a ordem, e<br />

a graça o fez mudar. É muito bonito.<br />

Eu julgaria ousado dizer que haja<br />

um instinto fundamental, o qual seja<br />

matriz de todos os outros instintos. Mas<br />

que exista instintos básicos dos quais os<br />

outros são variantes, nesse sentido matriz,<br />

se poderia afirmar. Tenho a impressão<br />

de que, nesse sentido, o grande<br />

instinto fundamental é o senso do ser,<br />

que o indivíduo conhece por conaturalidade<br />

e por evidência absoluta.<br />

O senso do ser, com toda a sua riqueza<br />

prodigiosa, é correlato com o<br />

conceito de ser, mas não se deve confundir<br />

um com o outro. Tudo quanto<br />

o indivíduo pense em função do conceito<br />

de ser, tudo que se mova nele<br />

na linha instintiva é uma derivação<br />

do senso do ser. Por exemplo, o horror<br />

da morte, da podridão, de certas<br />

coisas hediondas, que são como que<br />

a expressão do aniquilamento, é instintivo<br />

e correlato com o senso do ser.<br />

Nesse sentido, a meu ver, ele é um<br />

grande instinto fundamental humano.<br />

E esse instinto do ser, assim considerado,<br />

o animal não tem. Embora<br />

seja dotado de instintos, o animal<br />

não sabe o que ele é. E o senso do<br />

ser ao qual me refiro é intelectivo.<br />

É, sem dúvida, um sentido, mas é o<br />

homem inteligente que sente, embora<br />

não seja propriamente um ato de<br />

abstração. É o fundamento de todo<br />

o outro jogo dos instintos.<br />

O senso e o conceito de ser existem<br />

para viverem juntos, completam-se.<br />

Como eu não sou um Anjo,<br />

o meu senso do ser tem que ser corroborado<br />

por um conceito. Tão logo<br />

minha inteligência comece a funcionar,<br />

o meu senso do ser passa a se desenvolver<br />

e a se aperfeiçoar, porque<br />

já existe a noção do ser, embora muito<br />

embrionária, própria de uma criança.<br />

Mas a criança já tem um conhecimento<br />

do ser, em si, primeiro, evidente,<br />

como que instintivo, ou seja, que<br />

Helen Keller em 1907<br />

toca nos instintos; o senso e o conceito<br />

de ser vêm juntos. Se o ser humano<br />

não tivesse, com a inteligência, também<br />

o instinto do ser, não seria capaz<br />

de ter o conhecimento do ser. São<br />

elementos que se completam.<br />

Senso de nossa contingência<br />

A única ideia inata existente no homem<br />

é a do ser. Compreende-se, porque<br />

toda ideia o homem adquire em<br />

função de outra ideia. Assim, é preciso<br />

haver uma primeira ideia que não nasceu<br />

do nada, do contrário o ser humano<br />

não é capaz de ter nenhuma.<br />

São Tomás, para provar que existem<br />

evidências, argumenta que todo<br />

raciocínio é deduzido de premissas.<br />

Se não existissem premissas evidentes<br />

que independem de um silogismo,<br />

nunca haveria um primeiro raciocínio<br />

certo.<br />

Assim, uma pessoa como Helen<br />

Keller 1 , por exemplo, que só conheceu<br />

o mundo externo pelo tato, ao receber<br />

o primeiro contato, concluiria instintivamente<br />

o seguinte: algo que não sou<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

11


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

eu tocou em mim. Donde se vê que esta<br />

ideia “eu e algo” – que são noções<br />

de ser – estava dormente nela.<br />

É essa espécie de monarquia do senso<br />

e da ideia do ser que preside toda esta<br />

matéria de que estamos tratando.<br />

Quando um indivíduo toma droga<br />

para entrar no reino do irreal, ele<br />

tem o seu instinto do ser viciado, deformado.<br />

O desejo de ingerir droga<br />

para evadir-se da realidade, uma vez<br />

consentido, é um pecado contra o<br />

instinto do ser, porque a pessoa deve<br />

ter apetência da realidade, mesmo<br />

quando dolorida, inclusive porque,<br />

sendo concebidos no pecado original,<br />

nós temos e devemos ter uma<br />

certa apetência de sofrer, como algo<br />

que põe em ordem nossa alma.<br />

O senso de nossa contingência é, a<br />

meu ver, uma das modalidades do instinto<br />

do ser. Certamente, se não sentíssemos<br />

nossa contingência, não tenderíamos<br />

para Deus. Por outro lado<br />

– e isso é muito bonito – se sentimos<br />

nossa contingência é porque dorme<br />

em nós um certo senso do absoluto.<br />

Exatamente, um dos pecados que<br />

a Revolução Industrial mais alimenta<br />

em nós é dispensar esta necessidade<br />

que a alma tem do absoluto, da lógica<br />

última, da regra certa, e substituir pelo<br />

superficial, episódico, efêmero que<br />

produz um contentamento de periferia<br />

no homem, por onde as profundidades<br />

da alma ficam abandonadas e se<br />

transformam em antros tenebrosos.<br />

Revolução Industrial:<br />

perpétua evasão do absoluto<br />

A Revolução Industrial leva a<br />

uma perpétua evasão do absoluto<br />

para dentro de uma miragem, que é<br />

o efêmero, o circunstancial, dando-<br />

-nos a ilusão de que isso pode preencher<br />

a falta que nos faz o absoluto.<br />

Então, pondo uma impressão em cima<br />

da outra e levando essas impressões<br />

ao paroxismo. O sofisma do demônio<br />

está nisto: “Queres o absoluto?<br />

Está bem. Eu te dou o paroxismo<br />

que te faz tocar com os dedos o<br />

absoluto.” Ora, isso é mentira. O paroxismo<br />

não faz tocar o absoluto. O<br />

absoluto leva determinadas coisas a<br />

seu legítimo paroxismo, mas o mero<br />

paroxismo não conduz ao absoluto.<br />

Então, a pessoa sai correndo de um<br />

trem, entra num avião, desce do avião<br />

e toma um ônibus que a espera na pista<br />

e a conduz até o local para onde um<br />

outro mecanismo já levou as malas; ela<br />

fica esperando junto à esteira que vem<br />

trazendo a bagagem. Depois, toma um<br />

táxi e ruma para o hotel onde, à maneira<br />

de uma colmeia, entra num alvéolo…<br />

São impressões, arranjos, etc.<br />

Quando um indivíduo, cansado<br />

de valores relativos, chegou a esses<br />

paroxismos tem uma ilusão de que<br />

se deu a ele o absoluto. Ora, o absoluto<br />

não é isso. Pelo contrário, a continuidade<br />

patriarcal, esta sim, faz tocar<br />

no absoluto, e é muito mais conforme<br />

às exigências do senso do ser.<br />

Em francês faz-se a distinção entre<br />

gourmet e gourmand. O gourmet<br />

é a pessoa que aprecia alimentos de<br />

excelente sabor, enquanto o gourmand<br />

ingere quantidades. Mas por<br />

ser concebido no pecado original, o<br />

homem procura, por uma via ou por<br />

outra, de algum modo satisfazer apetências<br />

de seu corpo que dão ao seu<br />

instinto do ser a ilusão de que ele está<br />

satisfeito. Porém, o que comanda<br />

tanto o gourmet quanto o gourmand<br />

é uma necessidade do senso do ser.<br />

Senso da família<br />

Algo disso se passa em relação ao<br />

instinto de sociabilidade. Por mais<br />

que a pessoa tenha horror à multidão,<br />

à massa, se ela é obrigada a<br />

passar longo tempo de cama devido<br />

a alguma enfermidade, ao sair pela<br />

primeira vez tem uma sensação de<br />

que ver muita gente completa uma<br />

exigência do instinto do ser.<br />

O homem pode fazer, isto sim, um<br />

sacrifício saudável, que já não vem de<br />

uma apetência instintiva, mas é a vontade<br />

de sacrificar-se. Contudo, mesmo<br />

nisso creio estar presente algo<br />

de instintivo, porque o pecado deixa<br />

uma marca que “frita” o instinto. Enquanto<br />

não vem a absolvição, o homem<br />

ferve. Recebida a absolvição,<br />

ele tem vontade de limpar-se daquilo<br />

que já não está nele, mas que lhe<br />

deixou uma certa sujeira. Então ele<br />

faz penitência. Daí o Purgatório, aliás.<br />

As almas do Purgatório têm que<br />

restituir um certo gozo ilegítimo que<br />

tiveram. Elas estão contentes de estarem<br />

no Purgatório para se libertarem<br />

disso. Sofrem sim, mas por uma<br />

necessidade onde o senso do ser participa<br />

e, em certo sentido, comanda.<br />

Há, ao lado do senso do ser, o que<br />

se poderia chamar o senso da família,<br />

que não é senão um desdobramento<br />

do senso do ser. Quer dizer, é um aspecto<br />

das operações do senso do ser<br />

por onde o indivíduo sente que, pelo<br />

fato de pertencer a uma mesma estirpe,<br />

o ser dele participa mais do de seu<br />

pai e sua mãe e seus irmãos do que dos<br />

parentes mais distantes. Mas que ele<br />

e os parentes participam mais um dos<br />

outros, como ser, do que os estranhos<br />

à família. Isso forma exatamente uma<br />

ordenação que vai se diluindo quase<br />

até não existir, como hoje em dia. Precisamente<br />

porque o senso do ser está<br />

obliterado, perseguido de todos os<br />

modos possíveis em nossos dias.<br />

Temperamento<br />

Com base em minhas observações<br />

– não fiz um estudo aprofundado sobre<br />

o assunto –, eu seria levado a dizer<br />

que o temperamento se refere ao<br />

modo pelo qual vibram nos nervos do<br />

indivíduo as impressões e emoções.<br />

Pode ser que a inteligência crie condições<br />

muito difíceis para o bom funcionamento<br />

dos nervos, das glândulas<br />

e tudo o mais, quando o indivíduo<br />

adota uma ideia ou um sistema filosófico<br />

falso; como pode ser também<br />

que o conjunto das disposições nervosas,<br />

glandulares e outras criem con-<br />

12


dições muito difíceis para o indivíduo<br />

ver a verdade. Mas fica sempre como<br />

fiel da balança a inteligência e a vontade<br />

capazes de discernir e responsáveis<br />

por não seguir a verdade.<br />

Isso tem relação evidente com<br />

os instintos, no seguinte sentido:<br />

o senso do ser, que concebemos<br />

como sendo espiritual,<br />

não é um elemento do puro<br />

espírito; tem um certo nexo<br />

com o próprio ser do corpo<br />

e com algo que determina<br />

a unidade do corpo e de todos<br />

os seus movimentos, e que comanda<br />

o corpo como o senso<br />

do ser comanda todo o resto.<br />

Por assim dizer, seria a “torre<br />

de comando” do homem:<br />

a alma com a inteligência e a<br />

vontade, suas deliberações espirituais<br />

e livres; em seguida,<br />

essa parte dos sensos e, depois,<br />

a dos temperamentos, a vida<br />

biológica, influindo uns sobre<br />

os outros continuamente. Porém,<br />

com o comando da inteligência<br />

e da vontade. Comando<br />

não fácil, mas certo; às vezes,<br />

na bruma, mas diáfano. O homem,<br />

se for reto, sente que ele<br />

pode, por sua inteligência, saber<br />

o que deve saber e decidir<br />

o que deve decidir. A questão é<br />

saber navegar na bruma.<br />

“Eu sou aquele que é”<br />

Seria muito bonito se pudéssemos<br />

constituir uma análise<br />

de toda a vida espiritual a partir<br />

do exame de como é nosso<br />

senso do ser, se ele está em ordem;<br />

como é a ordem do senso<br />

do ser e como nós estamos<br />

construídos em função disso.<br />

Seria uma meditação que eu<br />

colocaria como desdobramento<br />

do primeiro Mandamento,<br />

porque amar a Deus sobre todas<br />

as coisas é conexo com isso.<br />

Aliás, na busca do efêmero<br />

oferecido pela Revolução Industrial,<br />

descrita acima, há um ateísmo virtual,<br />

é uma civilização ateia. O coletivismo,<br />

enquanto nega a individualidade<br />

e quer absorver tudo numa pansociedade,<br />

nega o senso do ser.<br />

O Divino Mestre - Igreja do Sagrado<br />

Coração de Jesus, Montreal, Canadá<br />

Em Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo<br />

contrário, nós encontramos a afirmação<br />

desse Ser numa plenitude, numa<br />

força, numa bondade, numa irradiação<br />

solar especial, sublime, equilibrada,<br />

harmônica. E de modo muito<br />

eloquente na devoção ao Sagrado<br />

Coração de Jesus. Evidentemente,<br />

este é o cerne.<br />

Na concepção da Revolução,<br />

o Deus transcendente é uma<br />

mentira que o homem, iludido<br />

pela ideia de que Ele é um indivíduo,<br />

fabrica. Mas verdadeiro é<br />

o pandeus, que tem como imagem<br />

na realidade o pan-individualismo,<br />

o pampsiquismo.<br />

Nessa clave, nosso grande<br />

brado deve ser no sentido de<br />

despertar nos indivíduos a experiência,<br />

por assim dizer, moribunda<br />

do próprio “eu”. Então,<br />

diante da morte do próprio<br />

“eu” alguns não se deixam<br />

tragar pela morte, e aceitam<br />

a ideia do seu próprio ser,<br />

da transcendência recíproca<br />

dos seres e da ordenação hierárquica<br />

das coisas. No fundo,<br />

veem que algo transcende. E<br />

se algo transcende, todas as alteridades<br />

são verdadeiras.<br />

Essa é a ordem do bem. A<br />

conversão leva à aceitação da<br />

Religião Católica nas suas expressões<br />

mais genuínas, puras e<br />

nobres. Ao dizer “Eu sou aquele<br />

que é” (Ex 3, 14), Deus Nosso<br />

Senhor afirmou: “Eu sou<br />

o Ser absoluto, em função do<br />

qual todos os seres relativos e<br />

contingentes se explicam.” v<br />

Gabriel K.<br />

(Extraído de conferência de<br />

29/12/1985)<br />

1) Escritora e conferencista norte-americana.<br />

Foi a primeira pessoa<br />

surda e cega de nascimento<br />

a conquistar um bacharelado<br />

(*1880 - †1968).<br />

13


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

IABI (CC3.0)<br />

A perfeita<br />

felicidade<br />

Godofredo de Bouillon<br />

entrando em Jerusalém<br />

durante a Primeira Cruzada<br />

Por vezes, a primeira etapa da vida<br />

de uma pessoa parece ser a mais feliz<br />

de sua existência. Será que a vida<br />

consiste na procura inútil de uma<br />

felicidade que ficou para trás? Ora,<br />

Deus não poderia permitir que assim<br />

fosse, e nos faz ser visitados por uma<br />

felicidade provinda da alegria do<br />

esforço vitorioso, prenúncio da eterna<br />

bem-aventurança, que baixa sobre<br />

nós como uma estrela saída das<br />

maternais mãos de Maria.<br />

H<br />

á um período inicial da<br />

vida do homem, ao menos<br />

para a grande maioria<br />

dos homens, que vai pouco mais<br />

ou menos do momento em que ele<br />

começa a conhecer o mundo externo<br />

até as primeiras desilusões com<br />

os seus amigos, quando estas não se<br />

dão dentro de sua própria casa.<br />

Inesquecível felicidade da<br />

primeira etapa da vida<br />

Nessa primeira etapa a vida há<br />

uma sequência contínua de felici-<br />

dades, e as pessoas têm uma alegria<br />

da qual não se esquecem até o<br />

fim de sua existência. Quando chegam<br />

à extrema velhice, depois de terem<br />

passado pelas situações de alma<br />

as mais diferentes e, portanto, tendo<br />

alcançado às vezes os maiores triunfos,<br />

como também escorregado até<br />

o mais baixo das derrotas mais aflitivas,<br />

elas gostam de se lembrar daquela<br />

felicidade primeira, como se<br />

tivesse sido algo que, uma vez perdido,<br />

não se recupera mais. E isso era,<br />

para elas, o verdadeiro sentido da felicidade.<br />

Por vezes, ainda na juventude, depois<br />

de o indivíduo percorrer os primeiros<br />

quatro ou cinco passos da vida,<br />

olha para trás e percebe que naquele<br />

período ele realmente era feliz, mas<br />

não sabia que o era. Parecia-lhe tão<br />

natural tudo correr bem, ele acomodava-se<br />

facilmente ao muito ou ao pouco<br />

que sua família possuía; oh, felicidade!<br />

O sujeito avança um pouco na vida<br />

e percebe, de repente, que está<br />

cercado de preocupações, decepções,<br />

tem interrogações confusas,<br />

obscuras em relação ao futuro,<br />

sente carências, perplexidades e, ao<br />

14


mesmo tempo, uma vontade louca<br />

de viver. Mas, no meio de tudo isso,<br />

aquela felicidade sem mancha e sem<br />

nuvens do passado ficou para trás.<br />

Para gozar bem a vida na Terra,<br />

a pergunta verdadeira seria: Como<br />

voltar àquela felicidade?<br />

Por vezes, os maiores poetas, os<br />

homens que passaram por situações<br />

as mais emocionantes e agradáveis,<br />

quando falam do tempo de sua primeira<br />

infância se comovem.<br />

Considerem a tragédia do homem<br />

que, pouco depois de ter dado uns<br />

passos iniciais numa grande estrada<br />

em busca de algo, percebe ter ficado<br />

para trás o que ele procurava, mas<br />

ele não pode voltar.<br />

Napoleão não<br />

encontrou a felicidade<br />

na carreira gloriosa...<br />

A Córsega é uma ilha que no século<br />

XVIII tinha sido incorporada à<br />

França. Havia lá a família Bonaparte<br />

a qual, perseguida por razões políticas,<br />

por ter participado de guerrilhas<br />

naquelas montanhas íngremes, teve<br />

que se mudar para a França, em condição<br />

pobre. Lá, o mais velho da família,<br />

Napoleão, por condescendência<br />

do rei, foi recebido como cadete<br />

na escola de oficiais.<br />

Ele, então, começou sua carreira<br />

que comportou tudo, teve uma<br />

ascensão contínua, passou por vitórias<br />

militares inebriantes, foi coroado<br />

imperador dos franceses, casou-<br />

-se com uma arquiduquesa da casa<br />

imperial mais ilustre do mundo,<br />

a de Habsburg, presidiu congressos<br />

de imperadores, reis, príncipes, duques;<br />

aos seus pés as plateias eram<br />

de cabeças coroadas. Contava-se este<br />

caso: Em determinado palácio onde<br />

Napoleão se encontrava, foi dado<br />

um toque característico da entrada<br />

de um hóspede ilustre. Então um<br />

soldado perguntou para o outro:<br />

– Mas quem está chegando?<br />

– Ah! não é senão um rei…<br />

Tantos eram os imperadores que<br />

iam lá, que não sendo um imperador,<br />

era zero.<br />

Podemos imaginar quantas impressões<br />

alegres Napoleão teve na<br />

vida, com as quais ele nunca contara.<br />

Basta pensar, simplesmente, na data<br />

de sua coroação. Como aquilo havia<br />

de torná-lo radiante!<br />

...nem na glória<br />

reconquistada, após<br />

terríveis reveses<br />

Também as desgraças mais fulminantes<br />

o acometeram. Em 1814 ele<br />

caiu. Os russos, austríacos e prussianos<br />

invadiram a França, e ele foi deposto.<br />

Tão odiado a ponto de ter que<br />

caminhar para o Sul da França e ali<br />

tomar um pequeno navio que o conduziria<br />

a seu exílio, uma ilha pequena<br />

no Mediterrâneo, onde ele tinha<br />

o título ridículo de “Rei da Ilha de<br />

Elba”. E ele, para quem era bondade<br />

receber um rei, começou a anunciar<br />

que Sua Majestade, o Rei da Ilha de<br />

Elba, Napoleão Bonaparte receberia<br />

todas as pessoas de passagem pela<br />

ilha que quisessem conhecê-lo. E se<br />

transformou, assim, numa espécie de<br />

atração turística, para ter gente com<br />

quem conversar.<br />

Em certo momento, as situações<br />

políticas lhe são favoráveis, há<br />

mil circunstâncias, e ele volta para<br />

a França. Em pouco tempo está em<br />

Paris, o Rei da Casa de Bourbon foge,<br />

e Napoleão retorna ao palácio,<br />

carregado por todos os seus fiéis, e<br />

ele é de novo o imperador dos franceses.<br />

Imaginem a ebriedade de dormir<br />

na cama que ele tinha deixado,<br />

servido novamente pelos cortesões<br />

no palácio que ele perdera.<br />

Pois bem, ao cabo de cem dias,<br />

exatamente, ele sofre uma derrota<br />

em Waterloo e tem que fugir, desta<br />

vez para o Norte, onde ele toma<br />

um navio inglês, e escreve ao Rei da<br />

Inglaterra uma carta na qual ele diz:<br />

“Eu vim me refugiar junto ao mais<br />

generoso e maior dos meus adversários.<br />

Espero de vossa parte uma<br />

magnânima acolhida.”<br />

Ao que o monarca inglês responde:<br />

“Pois não, você está preso!”<br />

Ele vai para Santa Helena, uma ilha<br />

vulcânica no meio do Oceano Atlântico,<br />

num abandono, uma coisa tremenda!<br />

Abandonado pelos maiores amigos,<br />

ele sobe numa embarcação e se<br />

dirige ao exílio acompanhado de uma<br />

cortezinha de gente que ficara fiel a<br />

ele, que o segue para se pendurar nas<br />

abas do paletó do homem ilustre.<br />

Retirada de Napoleão após sua derrota em Moscou<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

15


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Trinta dias de viagem, durante a<br />

qual ele passa longas horas silencioso,<br />

vendo o mar passar. Às vezes, desce<br />

para a sala de jantar onde, nas horas<br />

das refeições, tem longas conversas<br />

com pessoas de terceira ordem,<br />

que tomam nota do que ele diz para,<br />

quando ele morrer, publicarem suas<br />

confidências para ganhar dinheiro.<br />

Desembarcam em Santa Helena<br />

e, daí a pouco, dá uma espécie de<br />

câncer no estômago dele. No fim de<br />

sua vida, ele estava tão fraco que não<br />

tinha força para levantar as pálpebras,<br />

e assim morreu.<br />

Em determinada altura de sua vida,<br />

ainda no auge de seu triunfo,<br />

perguntaram para ele:<br />

– Qual foi o dia mais feliz de sua<br />

vida?<br />

A resposta dele é famosa:<br />

– O dia de minha Primeira Comunhão.<br />

Portanto, era a felicidade que ficara<br />

para trás.<br />

Napoleão na Ilha de Santa Helena<br />

Um prelúdio da<br />

felicidade futura<br />

Mas, então, se é para caminhar<br />

cada vez mais se distanciando daquilo<br />

que nós procuramos com ebriedade,<br />

o que é a vida?<br />

Uma vez que não posso evitar os<br />

dissabores, inquietações, desilusões,<br />

e encontro a fórmula da felicidade<br />

nas saudades dos primeiros passos<br />

de minha existência, devo compreender<br />

o seguinte: nesta vida, a felicidade<br />

é relativa.<br />

Entretanto, Deus não seria Deus<br />

se fizesse dessa primeira felicidade<br />

originária apenas um sarcasmo: “Vive,<br />

Eu te dou uma lambiscada na taça<br />

inefável da felicidade e te solto no<br />

mar das dores. Anda.”<br />

Não, Deus não faz isso. Ele dá ao<br />

homem uma promessa magnífica:<br />

“Aquela felicidade que tiveste no<br />

início, meu filho, foi uma amostra da<br />

bem-aventurança eterna que terás<br />

no fim. Não é real<br />

que vais te afundando<br />

de infelicidade<br />

em infelicidade.<br />

Pelo contrário,<br />

a verdade é que, no<br />

fim do caminho, encontrarás<br />

a felicidade.<br />

Terás que passar<br />

pelos umbrais<br />

da morte, mas para<br />

além desta encontra-se<br />

a felicidade<br />

radiosa da qual Jesus<br />

Cristo goza no<br />

Céu. Tudo quanto<br />

foi felicidade em<br />

tua infância está para<br />

a que terás no futuro<br />

como a luz de<br />

um vaga-lume está<br />

para a de dez mil<br />

sóis reunidos. Não<br />

se pode ter ideia do<br />

que seja essa felicidade<br />

que te espera.<br />

Terás de caminhar e<br />

sofrer. Sofre com retidão e receberás<br />

esse prêmio. Caminha, afunda-te na<br />

dor, na dificuldade, com resignação<br />

e coragem, transpõe esse mar de tormentas<br />

e cai na sepultura; do outro<br />

lado será a aurora eterna! Não olha<br />

para teu passado como para a felicidade<br />

perdida. Olha para ele como a<br />

promessa da felicidade a ser adquirida.”<br />

Gemendo sob o peso da cruz<br />

Ao que alguém poderia responder:<br />

“Senhor, como tudo isso é grandioso,<br />

como é magnífico! Permiti-me<br />

dizer: como é misericordioso, como<br />

é terrível! Uma tão longa caminhada<br />

durante a qual não encontro<br />

um oásis, uma gota de água cristalina,<br />

uma sombra, um pouco de grama<br />

verde, um coqueiro, e tenho que<br />

caminhar, caminhar, caminhar, partir<br />

do Mar Vermelho para chegar ao<br />

outro lado do oceano... Senhor, sei<br />

que é um oceano de delícias, pois<br />

Vós o afirmais. E dizeis mais: a delícia<br />

para mim sereis Vós, e eu creio,<br />

meu Deus. Mas, Senhor, tende pena<br />

de mim! Quero muito chegar lá,<br />

mas não tenho forças para atravessar<br />

esse deserto. Tanto mais que não<br />

se trata apenas de transpô-lo. Muito<br />

mais do que isso, é mister atravessá-<br />

-lo direito. É a lei da minha cruz, ó<br />

meu Deus: carregar a vossa.<br />

“Carregar a cruz de não pecar, de<br />

ser virtuoso, de cumprir os vossos<br />

santos e magníficos Mandamentos.<br />

Mas estes são como a felicidade: encantam-me,<br />

começo a cumpri-los e<br />

eles me pesam. E o peso é tão grande<br />

que às vezes, por minha culpa,<br />

caio e tenho a desgraça de Vos ofender...<br />

Em minha jovem idade, quando<br />

vejo <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> com setenta e sete<br />

anos, imagino quanto tempo vou ter<br />

que andar nesse deserto!”<br />

Um outro dirá a esse coitado:<br />

– Então peça a Deus para morrer.<br />

– Também não, – responderia o<br />

jovem – tenho medo de morrer. Meu<br />

16


Deus, tenho medo da vida, tenho<br />

medo da morte! Oh, tempo dourado,<br />

que ficou para trás, quando eu<br />

não pensava nisso! <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o senhor<br />

não percebe que eu não tinha<br />

vontade de olhar de frente<br />

o que o senhor está me mostrando?<br />

E o senhor abre, à<br />

machadinha, minha cabeça<br />

e me conta o que eu tinha<br />

medo de ouvir! Agora o fato<br />

está consumado, vi que é<br />

isso mesmo, e o senhor não<br />

leva em conta o quanto eu<br />

procurava envolver-me em<br />

nuvens para não olhar de<br />

frente. O senhor sopra em cima<br />

da minha nuvem e estou<br />

eu diante desse quadro. Oh!<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, por que o senhor fez<br />

isso?<br />

O reencontro da<br />

felicidade primeira<br />

Deus é Pai cheio de misericórdia<br />

e nos dá um meio de sentirmos, de<br />

vez em quando, ao longo do caminho,<br />

a felicidade que deixamos. Ela<br />

nos visita multiplicada por si mesma,<br />

como uma estrela que baixasse do<br />

céu para nos iluminar a via, e com a<br />

qual pudéssemos brincar.<br />

É uma coisa que depende de<br />

nós. De tal maneira depende tanto<br />

de nós que se diria depender só de<br />

nós e não d’Ele. Mas depende tanto<br />

d’Ele que se diria depender só d’Ele<br />

e não nós.<br />

Quando o homem, nesta vida,<br />

tem a consciência reta, cumpre os<br />

Mandamentos pela graça que recebe<br />

do Céu e sabe estar caminhando<br />

para o Céu no meio de mil dores, há<br />

momentos em que a estrela cai do<br />

céu e visita-o. É o momento em que<br />

a pessoa se sente pura, tem alegria<br />

de consciência por estar levando a<br />

vida que devia, e correspondendo<br />

às felicidades enunciadas por Nosso<br />

Senhor no Sermão das Bem-aventuranças.<br />

E, por um lado de sua alma,<br />

aquela felicidade inicial continua até<br />

a pessoa chegar aos bordos iluminados<br />

de toda felicidade, e então morre<br />

tranquila.<br />

Não há quem, sendo católico praticante,<br />

pela graça de Deus e rogos<br />

de Maria, não tenha sentido a alegria<br />

de confessar-se e sair deste sacramento<br />

com a impressão de que<br />

sua alma ficou limpa, a absolvição<br />

pousou sobre ele e o reconciliou com<br />

Deus, e ele deixou o confessionário<br />

satisfeito, com o corpo e a alma mais<br />

leves. Às vezes dura pouco, embora<br />

a pessoa mantenha-se por muito<br />

tempo em estado de graça. Mas que<br />

sensação, que felicidade! Não é verdade<br />

que reencontramos aquela felicidade<br />

primeira?<br />

Um grau a mais da<br />

felicidade: a do heroísmo!<br />

Daí a pouco chega a tentação<br />

e começa a luta. Com a luta, tem-<br />

-se a impressão de que a felicidade<br />

se afastou. E, realmente, muitas vezes<br />

a luta é terrível. Mas quando a<br />

luta passa, compreendemos que até<br />

durante a luta éramos felizes, porque<br />

tínhamos consciência de estar<br />

vencendo, sendo fiéis a Nossa<br />

Senhora, a Nosso Senhor e<br />

calcando o demônio aos pés.<br />

Às felicidades da infância<br />

se junta uma nova que a infância<br />

não conhece: a felicidade<br />

da vitória, de ter feito<br />

o esforço e ter conseguido.<br />

A primeira infância não<br />

conhece isso. Tudo lhe cai na<br />

mão, sem esforço. A pessoa<br />

tinha a ilusão de ser aquilo felicidade<br />

precisamente porque<br />

não exigia esforço. Mas quando<br />

conhece a alegria do esforço vitorioso,<br />

compreende: “Eu subi um<br />

grau na felicidade. Tornei-me herói,<br />

venci pela primeira vez e respirei o<br />

ar puro dos píncaros. Ah, quero mais<br />

píncaros, porque quero vencer!”<br />

Vencer antes e acima de tudo o<br />

pecado. É essencialmente o inimigo<br />

que devemos derrotar. Que tranquilidade<br />

e gáudio quando um homem<br />

pode dizer: “Atravessei tal provação,<br />

porém cumpri meu dever. Tentado<br />

por toda forma de impureza, de cólera,<br />

de abatimento, de covardia, por<br />

tudo, resisti e venci!”<br />

Alguém poderia objetar: “Pobre<br />

miserável, você não venceu nada.<br />

Você não fez carreira. O que você<br />

venceu?”<br />

A resposta é simples, e agora falo<br />

do meu caso concreto. Eu venci<br />

o meu pior inimigo: <strong>Plinio</strong> Corrêa<br />

de Oliveira. Porque cada um de nós<br />

tem dentro de si o seu pior inimigo,<br />

de quem se trata de desconfiar, pegá-lo<br />

pelo pescoço e derrotá-lo. E se<br />

Nossa Senhora me conceder a graça<br />

de vencer até o fim esse inimigo,<br />

afinal de contas, olhando para meu<br />

passado eu diria: Foi um caminho de<br />

dor; é uma esteira de luz!<br />

Então, o que vem a ser a felicidade<br />

nesta perspectiva? É a lembrança<br />

J.P. Beltran<br />

17


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

fiel, de um gosto do Céu<br />

que eu, batizado, filho da<br />

Igreja, membro do Corpo<br />

Místico de Cristo, tive<br />

na origem de minha vida.<br />

E, no fundo, é essa a felicidade<br />

que eu procurei a<br />

vida inteira e me foi dada<br />

às gotas, de vez em quando,<br />

enquanto eu ia caminhando.<br />

Eram os oásis.<br />

No fim, vem o Céu.<br />

Todo homem que sinceramente<br />

possa dizer<br />

isso de si mesmo e para<br />

quem foi mesmo assim,<br />

dele se poderá escrever<br />

na sua sepultura: “Aqui<br />

jaz anônimo. Foi feliz<br />

porque foi para o Céu.”<br />

O mundo nos<br />

oferece conchas<br />

cheias de aflição<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Considerem um ricaço<br />

que reformou sua casa<br />

dez vezes ao longo da vida<br />

e comparem com uma<br />

pessoa que possui uma casinha média<br />

e passou a vida inteira contente<br />

naquela casa. Quem é mais feliz: o<br />

que reformou a casa uma porção de<br />

vezes ou quem soube encontrar deleite<br />

numa casa que não precisou de<br />

reformas?<br />

O mundo apresenta padrões de<br />

felicidade que são conchas cheias de<br />

aflição. Para ver, são lindas. Experimenta-se,<br />

é aquela amargura. Que<br />

desilusão, que coisa tremenda! Uma<br />

vida sem sentido, sem significado,<br />

que leva as pessoas a se perguntarem<br />

para o que estão vivendo e, por vezes,<br />

a praticarem o suicídio.<br />

Nossa civilização tão rica, à qual<br />

se insiste em apresentar como sendo<br />

o mundo da felicidade, é a que conheceu<br />

em alto grau uma das manifestações<br />

mais impressionantes de<br />

infelicidade, algo privativo de nossa<br />

época: o suicídio de crianças.<br />

Os quatro líderes da Primeira Cruzada<br />

Alegria que desce do<br />

Céu sobre aquele que<br />

cumpre o dever<br />

Qual é, então, o mundo da felicidade?<br />

Pensem nos cruzados partindo para<br />

a Terra Santa. Sobre uma relva<br />

bonita os corcéis começam a desfilar,<br />

como tudo é bonito! Mas, sobretudo,<br />

é bonito notar uma certa alegria<br />

daqueles cruzados que vão para<br />

onde? Para o perigo. Eles sabem<br />

que, com as embarcações frágeis daquele<br />

tempo, podem ir parar no fundo<br />

do Mediterrâneo, e o mar se torna<br />

para eles uma sepultura.<br />

Quando o atravessam, do lado de<br />

lá encontram o calor tórrido do deserto,<br />

com o qual não estão habituados,<br />

uma natureza seca, árida, onde<br />

o perigo maometano os aguarda.<br />

Com isso, quantas e<br />

quantas vezes a morte<br />

sem médico, sem cirurgia,<br />

tremenda, no campo<br />

de batalha; horas de sede<br />

abrasadora, porque o<br />

sangue está escorrendo<br />

e o cruzado tem vontade<br />

de beber uma gota de<br />

água, mas não tem quem<br />

a dê, porque está sem socorro.<br />

Metido naquela<br />

armadura que ele vestiu<br />

por amor a Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, sobre a qual<br />

bate o Sol, desde a manhã<br />

até a tardinha, e ele<br />

está metido num forno.<br />

Sabendo de tudo isso,<br />

como podem estar tão<br />

alegres na hora de partir?<br />

Há, entretanto, algo da<br />

felicidade da infância. É<br />

a alegria descida do Céu<br />

sobre o homem que está<br />

cumprindo o seu dever.<br />

Uma alegria de Anjo<br />

que não o abandona,<br />

nem sequer quando ele<br />

estiver, como num forno, dentro de<br />

sua própria couraça, exangue, morto<br />

de sede, mas lembrando-se de que<br />

Nosso Senhor, antes de expiar disse:<br />

“Tenho sede!” E na consideração de<br />

estar sofrendo o que Cristo sofreu,<br />

o cruzado tem o ósculo da graça na<br />

sua alma e morre em paz. Ah, isso é<br />

felicidade!<br />

A perfeita alegria<br />

Conta-se que estando São Francisco<br />

de Assis em viagem, em pleno<br />

inverno, junto com outro frade de<br />

sua Ordem, este lhe perguntou, atormentado<br />

pelo intenso frio.<br />

– Pai, peço-te, da parte de Deus,<br />

que me digas: onde está a perfeita<br />

alegria?<br />

Ao que o Santo respondeu:<br />

– Quando chegarmos ao Convento,<br />

inteiramente molhados pela chu-<br />

18


va e transidos de frio, cheios de lama<br />

e aflitos de fome, e batermos à porta,<br />

e o porteiro chegar irritado e disser:<br />

“Quem são vocês?” E nós dissermos:<br />

“Somos dois dos vossos irmãos”, e<br />

ele replicar: “Estão mentindo; são<br />

dois vagabundos. Fora daqui!” E nos<br />

deixar sob a neve e a chuva, com frio<br />

e fome até à noite; se então suportarmos<br />

tal injúria e crueldade sem<br />

nos perturbarmos nem murmurarmos<br />

contra ele, nisso está a perfeita<br />

alegria.<br />

E acrescentava São Francisco:<br />

– E se ainda, constrangidos pela<br />

fome e pelo frio, voltarmos a bater<br />

à porta durante a noite e pedirmos,<br />

pelo amor de Deus e com muitas lágrimas,<br />

que nos abra e nos deixe entrar,<br />

e ele mais escandalizado disser:<br />

“Vagabundos importunos, pagar-<br />

-lhes-ei como merecem.” E sair com<br />

um bastão, nos agarrar pelo capuz,<br />

nos atirar ao chão, nos arrastar pela<br />

neve e nos bater; e suportarmos todas<br />

essas coisas pacientemente, pensando<br />

nos sofrimentos de Cristo; ó<br />

irmão Leão, nisso está a perfeita alegria!<br />

A meu ver São Francisco fez uma<br />

grande descoberta. Quer dizer, na<br />

hora em que renunciamos a tudo por<br />

Nossa Senhora e vamos para a frente,<br />

em certo momento baixa sobre<br />

nós a perfeita felicidade.<br />

Como uma estrela vinda<br />

das maternais mãos<br />

de Nossa Senhora<br />

no, os primeiros bondes, os primeiros<br />

automóveis começavam a circular,<br />

eu estava esperando um bonde<br />

que me levaria à Avenida Paulista,<br />

numa esquina de onde eu podia<br />

ver a imagem de Nossa Senhora no<br />

alto da cúpula da Igreja da Imaculada<br />

Conceição.<br />

De repente, começo a notar uma<br />

coisa assim: “Que luz particularmente<br />

bonita hoje! Como isso aqui<br />

está cheio de passarinhos que cantam!<br />

Essa aurora quer dizer alguma<br />

coisa... Está mais bonita até do que<br />

o costume, não pensei que auroras<br />

fossem bonitas assim. Que bem-estar<br />

sinto em mim, não posso compreender<br />

o que é isso. Tenho até a impressão<br />

de que o meu infortúnio está<br />

passando. Estou começando a sentir<br />

uma alegria como nunca senti na minha<br />

vida, ela me enche a alma, mas<br />

não sei explicá-la.”<br />

Isso durou algumas<br />

horas, mas logo após<br />

o infortúnio se reapresentou<br />

com garra de<br />

ferro.<br />

Dali a alguns dias,<br />

em meio à batalha,<br />

abro um livro de leitura<br />

espiritual e começo<br />

a ler. Aquilo me inundou<br />

de felicidade novamente,<br />

mas muito<br />

mais definida do<br />

que aquela que experimentara<br />

dias antes.<br />

A partir de certo momento<br />

iniciou-se para<br />

mim um período<br />

de uns seis meses durante<br />

os quais sentia<br />

uma felicidade indizível<br />

e contínua. Eu vivia,<br />

então, no meio da<br />

alegria, da satisfação,<br />

e me sentia, por assim<br />

dizer, no Céu. Assim,<br />

depois de ter dito<br />

a mim mesmo: “Não<br />

pensei ser possível<br />

Se do alto píncaro franciscano é<br />

lícito descer para a vida corrente de<br />

nossos dias, conto um pequeno episódio<br />

para concluir estas reflexões.<br />

Eu tinha mais ou menos vinte<br />

anos quando passei por uma série de<br />

provações espirituais tremendas, como<br />

eu nunca pensei que sofreria em<br />

minha vida.<br />

Passados seis meses de tormento,<br />

certa manhã, na São Paulinho de então,<br />

com o movimento ainda pequetanto<br />

sofrimento”, passei a pensar o<br />

seguinte: “Não pensei que se pudesse<br />

ser tão feliz nesta Terra.”<br />

Atravessemos, pois, todos os infortúnios,<br />

e vamos para a frente, e<br />

encontraremos a verdadeira felicidade<br />

dos primeiros passos da vida reapresentando-se,<br />

de vez em quando,<br />

como uma estrela que Nossa Senhora<br />

deixa cair de suas maternais mãos<br />

para as nossas, para nos dar um certo<br />

gáudio que Ela, melhor do que<br />

ninguém, gradua para cada um, pois<br />

sendo nossa Mãe, sabe o que nos é<br />

necessário. A cada felicidade dessas<br />

nós devemos oscular e dizer, como<br />

a Santíssima Virgem: “Magnificat<br />

anima mea Dominum”; e pensar: “Ó<br />

Céu, eu caminho em direção a ti!”v<br />

(Extraído de conferência de<br />

26/7/1986)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante seu serviço militar<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

19


Iqmann (CC3.0)<br />

C<br />

alendário<br />

1. Santa Veridiana, virgem (†1242).<br />

Nascida na Toscana, consagrou desde<br />

muito jovem sua virgindade a Deus.<br />

Peregrinou a Santiago de Compostela<br />

e a Roma, retornando depois à terra<br />

natal, onde voluntariamente viveu<br />

numa cela, durante 34 anos, em meio<br />

a rigorosas penitências e recebendo<br />

graças místicas extraordinárias.<br />

2. Apresentação do Senhor.<br />

3. Santo Oscar, bispo (†865). Nasceu<br />

na França no princípio do século IX e foi<br />

educado no mosteiro de Córbia (Alemanha).<br />

Em 826 partiu para a Dinamarca<br />

a fim de pregar a Fé cristã, não obtendo,<br />

porém, muito resultado; no entanto,<br />

teve melhor êxito na Suécia. Foi elei-<br />

dos Santos – ––––––<br />

Flávio Lourenço<br />

São José de<br />

Leonissa<br />

to Bispo de Hamburgo. O Papa Gregório<br />

IV, depois de confirmar sua eleição,<br />

nomeou-o legado pontifício para a Dinamarca<br />

e a Suécia. Encontrou<br />

muitas dificuldades no seu<br />

ministério de evangelização,<br />

mas superou-as com<br />

grande fortaleza de ânimo.<br />

4. V Domingo do Tempo Comum.<br />

São José de Leonissa, presbítero<br />

(†1612). Tendo ingressado na Ordem<br />

dos Capuchinhos, foi ordenado<br />

sacerdote e enviado como missionário<br />

a Constantinopla. Ali, aprisionado<br />

pelos turcos por haver tentado pregar<br />

ao próprio Sultão, sofreu terríveis suplícios.<br />

De volta à Itália distinguiu-se<br />

por seu zelo para com os pobres.<br />

5. Santa Águeda, virgem e mártir<br />

(† 251).<br />

São Felipe de Jesus, mártir (†1597).<br />

Mexicano, aos 18 anos embarcou para<br />

as Filipinas onde se fez frade franciscano.<br />

Em 1596, quando retornava ao México<br />

para ser ordenado sacerdote, as<br />

tormentas arremessaram seu barco para<br />

as costas do Japão. Levado prisioneiro<br />

com um grupo de cristãos japoneses<br />

para Nagasaki, foi torturado e morto.<br />

6. Santos Paulo Miki e companheiros,<br />

mártires (†1597). São Paulo Miki<br />

era jesuíta e se dedicava ao ensino<br />

do catecismo com muito zelo, obtendo<br />

nesse apostolado grandes e numerosas<br />

conversões. Foi crucificado em Nagazaki,<br />

por ordem do imperador pagão,<br />

juntamente com outros dois jesuítas,<br />

seis franciscanos e dezessete leigos.<br />

A elevação sobre a qual os 26 heróis de<br />

Jesus Cristo receberam o martírio ficou<br />

conhecida como Monte dos Mártires.<br />

7. Bem-aventurada Eugênia Maria<br />

Josefina Smet (Maria da Providência),<br />

virgem (†1871). Desde jovem caracterizou-se<br />

por sua inteira confiança<br />

na Divina Providência e pelo zelo<br />

para com as almas do Purgatório.<br />

Aconselhada pelo Santo Cura d’Ars e<br />

pelo Beato Pio IX fundou a congregação<br />

das Madres Auxiliadoras das Almas<br />

do Purgatório.<br />

8. São Jerônimo Emiliani, presbítero<br />

(†1537). Nasceu em 1486, numa família<br />

nobre de Veneza, fez rápida carreira<br />

como militar e como político.<br />

Aprisionado pelos franceses, durante o<br />

cativeiro resolveu renunciar ao mundo<br />

e consagrar-se por inteiro a Deus. Foi<br />

libertado prodigiosamente por Nossa<br />

Senhora e retornou a sua cidade natal,<br />

onde foi ordenado sacerdote e se dedicou<br />

ao cuidado dos órfãos pobres. Fundou<br />

a Ordem dos Clérigos Regulares<br />

de Somasca, Itália, destinada a socorrer<br />

as crianças órfãs e os pobres.<br />

9. São Miguel Febres Cordero, religioso<br />

(†1910). Nascido em Cuenca,<br />

enfrentou grande oposição da família<br />

para cumprir sua vocação de Irmão<br />

das Escolas Cristãs. Destacou-se como<br />

educador da juventude, escritor,<br />

gramático e filólogo.<br />

10. Santa Escolástica, virgem (†547).<br />

11. VI Domingo do Tempo Comum.<br />

Nossa Senhora de Lourdes.<br />

São Felipe de Jesus


––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />

Gabriel K.<br />

12. Santa Eulália, virgem e mártir<br />

(† 304). Foi supliciada por meio de tochas<br />

incandescentes durante a perseguição<br />

promovida por Maximiano.<br />

13. Santo Estêvão, bispo (†515).<br />

14. Quarta-feira de Cinzas.<br />

15. São Cláudio de la Colombière,<br />

presbítero (†1682). Sacerdote jesuíta<br />

e Superior do Colégio de Paray-le-<br />

-Monial, grande apóstolo da devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus.<br />

rem com valentia os sofrimentos. Depois<br />

de receber cem acoites, foi estrangulado.<br />

18. I Domingo da Quaresma.<br />

19. São Mansueto, bispo (†c. 680).<br />

Lutou firmemente contra a heresia<br />

monotelista. Neste sentido interveio<br />

no Concílio de Roma, realizado em<br />

março de 680.<br />

20. Santos Francisco (†1919) e Jacinta<br />

Marto (†1920). Ver página 2.<br />

Santo Euquério, bispo (†137). Nascido<br />

em Orléans, destacou-se desde<br />

jovem pela sabedoria, santidade e devoção<br />

a Maria Santíssima.<br />

21. São Germano, abade (†667).<br />

Foi assassinado por ladrões, ao tentar<br />

defender, com palavras pacíficas,<br />

os habitantes vizinhos do mosteiro de<br />

Grandfelt, Suíça.<br />

22. Cátedra de São Pedro.<br />

23. São Policarpo, bispo e mártir<br />

(†s. II). Discípulo de São João Evangelista,<br />

foi nomeado, ainda no tempo<br />

dos Apóstolos, Bispo de Esmirna, na<br />

atual Turquia. Foi martirizado aos 86<br />

anos de idade.<br />

24. Beato Tomás Maria Fusco, presbítero<br />

(†1891). Tomado de grande<br />

amor pelos pobres e doentes, fundou<br />

em Nocera, Itália, o Instituto das Filhas<br />

da Caridade do Preciosíssimo Sangue.<br />

25. II Domingo da Quaresma.<br />

Bem-aventurado Sebastião de Aparício,<br />

religioso (†1600). Ver página ??.<br />

26. Santa Paula de São José de Calasanz,<br />

virgem (†1889). Dotada de<br />

extraordinário carisma de educadora,<br />

tinha como lema: Piedade e letras.<br />

Fundou a Congregação das Filhas de<br />

Maria das Escolas Pias.<br />

27. São Gabriel da Virgem Dolorosa,<br />

religioso (†1862).<br />

28. Santo Hilário, Papa (†468).<br />

Eleito Sumo Pontífice em 462, confirmou<br />

os concílios de Nicéia, Éfeso<br />

e Calcedônia, defendendo a primazia<br />

da Sede Romana.<br />

Papa Santo<br />

Hilário é salvo<br />

por São João -<br />

Basílica de São<br />

João de Latrão,<br />

Roma, Itália<br />

Gabriel K.<br />

São Jerônimo Emiliani<br />

16. Beato José Allamano, presbítero<br />

(†1926). Aluno de São João Bosco<br />

e sobrinho de São José Cafasso, Beato<br />

José fundou a Congregação de<br />

Missionários da Consolata.<br />

17. São Pedro Yu Chǒng-nyul, mártir<br />

(†1839). Jovem leigo, martirizado na<br />

Coreia aos 13 anos de idade. Exortava<br />

seus companheiros de prisão a suporta-<br />

21


Perspectiva pliniana da História<br />

Daniel A.<br />

Ponto<br />

culminante na<br />

luta entre o<br />

bem e o mal<br />

Depois da morte de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, o mal nunca teve tanta audácia em<br />

se mostrar como na Revolução Francesa.<br />

Na luta entre o bem e o mal, a verdade e o<br />

erro, o belo e o feio, essa Revolução é uma<br />

espécie de ponto culminante. Ela pode ser<br />

considerada, sob esse aspecto, como um<br />

grande e horrível livro no qual se aprendem<br />

verdades terríveis e admiráveis.<br />

Wandernder Weltreisender (CC3.0)<br />

Versailles, Paris, França<br />

22


Suponhamos a existência de um<br />

palácio tão admirável que, se<br />

não tivéssemos conhecido pelo<br />

menos em fotografia, nossa mente<br />

não seria capaz de imaginá-lo.<br />

Encanto por um belo palácio<br />

Entretanto, obtida uma boa fotografia,<br />

a mostrássemos a um colega<br />

que nos dissesse:<br />

– Mas que palácio lindo, que fotografia<br />

maravilhosa! Você não poderia<br />

me emprestar isto durante alguns<br />

dias para eu levar para casa?<br />

– Por que olhar isto, qual é a vantagem?<br />

– perguntaríamos para experimentá-lo.<br />

– Não sei, isso eleva a minha alma.<br />

Vendo esse palácio, esses mármores,<br />

essas tapeçarias, esses móveis, o prédio<br />

na sua beleza, na sua distinção,<br />

em sua imponência, a minha alma como<br />

que sobe. E sinto necessidade disto,<br />

porque tudo no mundo contemporâneo<br />

abaixa, deprime, avilta, corrói,<br />

destrói, decepciona. Encontrei algo<br />

que produz o efeito contrário na minha<br />

alma; isto é o remédio. Se você<br />

pudesse me dar uma cópia dessa fotografia,<br />

seria a maior obra de caridade<br />

que me faria, porque fico encantado<br />

com esse palácio.<br />

Notaríamos imediatamente a nobreza<br />

de alma de nosso interlocutor e<br />

pensaríamos em nosso íntimo: “Certamente<br />

vou fazer o sacrifício de dar-<br />

-lhe essa fotografia, porque ela realiza<br />

o papel de um par de asas para a<br />

alma dele subir mais alto, até Nossa<br />

Senhora, a fim de aumentar os horizontes<br />

intelectuais dele e, com isso,<br />

seus horizontes religiosos, espirituais.<br />

Se esse palácio é uma imagem do<br />

Céu na Terra, este pobre coitado, que<br />

não tem ideia alguma do Paraíso, ao<br />

contemplar esse palácio poderá sentir-se<br />

mais elevado rumo ao Céu, para<br />

onde eu quero tanto que ele vá.”<br />

Ódio a tudo que é<br />

distinto, nobre, elevado<br />

Imaginemos agora o contrário:<br />

Um de nós está folheando um álbum<br />

com fotografias do Palácio de<br />

Versailles. Alguém se aproxima e<br />

pergunta:<br />

– O que tem Versailles de extraordinário?<br />

– Ora, Versailles é uma<br />

obra de Deus.<br />

– De Deus não, foi o Rei<br />

Luís XIV que mandou o<br />

arquiteto Mansart fazer os<br />

planos e construir o palácio.<br />

Deus não entrou em<br />

nada nisso.<br />

– Versailles é filho dos<br />

homens, é verdade, mas<br />

os homens são filhos de Deus; logo,<br />

Versailles é um neto de Deus, como<br />

diz Dante Alighieri. Tudo o que existe,<br />

direta ou indiretamente, foi feito<br />

por Deus. Portanto, admire esse<br />

palácio porque é um meio de chegar<br />

até o Criador. Pois para amar a<br />

Deus que não vemos é preciso amarmos<br />

as criaturas terrenas que vemos.<br />

Versailles é uma criatura de Deus;<br />

amemo-la para amarmos inteiramente<br />

a Deus. Você não o acha bonito?<br />

– Sim, e precisamente por isso eu<br />

o odeio, porque detesto tudo quanto<br />

é nobre, distinto e eleva o espírito.<br />

Aqui estariam delineadas duas<br />

visões opostas da vida: uma é a<br />

dos filhos da luz, de Nossa Senhora,<br />

Ela mesma de uma perfeição, bele-<br />

Siren-Com (CC3.0)<br />

Jules Hardouin-Mansart<br />

Paris, França<br />

23


Perspectiva pliniana da História<br />

Samuel Holanda<br />

za e santidade maiores do que tudo<br />

quanto possamos imaginar. A outra<br />

é a dos filhos das trevas.<br />

Santa Bernadette era de<br />

educação muito primitiva...<br />

No século XIX, na gruta de Massabielle,<br />

na cidadezinha de Lourdes,<br />

Nossa Senhora apareceu a uma<br />

camponesa chamada Bernadette<br />

Soubirous, filha de um casal extremamente<br />

pobre. Era gente do povo,<br />

reta, de costumes muito bons, mas<br />

de educação bastante primitiva, porque<br />

eram trabalhadores manuais da<br />

terra e não tinham contato com nada<br />

de superior, de mais elevado.<br />

Santa<br />

Bernadette<br />

Soubirous<br />

Santuário<br />

de Lourdes,<br />

França<br />

Um dia em que estava perto dessa<br />

gruta, Bernadette escutou uma voz<br />

e, olhando para o seu interior, viu<br />

uma Senhora de uma beleza admirável.<br />

Era Maria Santíssima em pessoa<br />

que começou a dirigir-lhe a palavra.<br />

A jovem camponesa, com toda a<br />

simplicidade, principiou a falar com<br />

Nossa Senhora, mantendo as mãos<br />

postas na atitude de quem reza.<br />

A Santíssima Virgem deu-lhe uma<br />

série de explicações e depois acabou<br />

recomendando-lhe que arranhasse a<br />

terra ali onde ela estava, pois começaria<br />

a aparecer água. A água se tornaria<br />

mais abundante e, de um simples<br />

filão, passaria a ser uma corrente<br />

de água forte, grande; usando essa<br />

água muitas pessoas se curariam e ali<br />

se tornaria um lugar onde Nossa Senhora<br />

seria muito glorificada.<br />

Bernadette imediatamente começou<br />

a arranhar o chão, que era uma<br />

terra comum. E, para seu espanto,<br />

ela viu que de repente começou<br />

a minar água, apareceu um regato e<br />

formou-se o tal curso de água.<br />

Houve várias visões e Santa Bernadette,<br />

em sua ingenuidade, contava<br />

para o povo. Então, cada vez<br />

que estava marcada uma aparição<br />

de Nossa Senhora, um número crescente<br />

de pessoas vinha para presenciar<br />

o fato.<br />

A Santíssima Virgem só aparecia<br />

para Santa Bernadette, a qual falava<br />

de tal maneira que se percebia estar<br />

vendo alguém, embora os circunstantes<br />

não ouvissem as respostas<br />

de Maria Santíssima.<br />

...mas se nobilitava<br />

quando<br />

conversava com<br />

Nossa Senhora<br />

Certa ocasião li<br />

este bonito depoimento<br />

de um padre<br />

que presenciou<br />

as aparições:<br />

ele, que frequentara ambientes da alta<br />

sociedade, tratara com gente de muita<br />

categoria e vira, portanto, senhoras<br />

de muita distinção, declarava nunca<br />

ter notado um sorriso tão bondoso,<br />

uma atitude tão fina, distinta e amável<br />

num rosto feminino, do que em Santa<br />

Bernadette quando conversava com a<br />

Santíssima Virgem. Portanto, segundo<br />

ele, não havia marquesa nem duquesa<br />

francesa que se comparasse com a elevação<br />

de Santa Bernadette que, nesses<br />

momentos, se nobilitava inteira e<br />

ficava com uma distinção extraordinária.<br />

Terminada a conversa, ela voltava<br />

imediatamente a apresentar a fisionomia<br />

tosca de uma simples camponesa.<br />

Esse pormenor das aparições de<br />

Lourdes mostra bem o quanto Deus<br />

ama tudo aquilo que é distinto, nobre,<br />

que se parece com a Mãe Santíssima<br />

d’Ele, a mais perfeita das criaturas.<br />

Há uma canção na qual Nossa Senhora<br />

é invocada como summi Regis<br />

palatium – palácio onde habita o sumo<br />

Rei. Ela é comparada a um palácio<br />

porque o Verbo de Deus, ao encarnar-Se,<br />

habitou dentro d’Ela. Durante<br />

todo o tempo em que o Corpo<br />

sagrado de Nosso Senhor esteve sen-<br />

São Miguel Arcanjo em luta<br />

contra o dragão - Museu<br />

Nacional de Arte da Catalunha,<br />

Barcelona, Espanha<br />

24


do gerado e desenvolvido pela Santíssima<br />

Virgem, até o momento do nascimento,<br />

Ela foi o palácio de Cristo<br />

na Terra, mais excelente e magnífico<br />

do que todos os palácios reais e de tudo<br />

quanto se possa imaginar, porque<br />

feito para abrigar Aquele que é o próprio<br />

Deus feito Homem.<br />

Explosão de ódio contra<br />

tudo quanto é grandioso,<br />

nobre, legítimo, bom<br />

Isso posto, compreende-se que se<br />

daquelas duas mentalidades opostas<br />

acima descritas – uma favorável e outra<br />

contrária à existência de palácios<br />

– se constituíssem dois grupos de homens,<br />

eles entrariam em luta um contra<br />

o outro, porque um amaria e outro<br />

odiaria tudo quanto é verdadeiro,<br />

bom e belo. Teríamos uma luta tremenda<br />

parecida com a batalha entre<br />

São Miguel Arcanjo e os Anjos bons,<br />

de um lado, e os demônios capitaneados<br />

por Lúcifer, de outro lado.<br />

Ao se revoltar contra Deus, Lúcifer,<br />

até então o anjo que conduzia<br />

a luz, tornou-se trevas e a mais<br />

hedionda das criaturas, pois odiou<br />

Aquele que é a Verdade, o Bem e a<br />

Beleza.<br />

Essas considerações resumem o<br />

sentido da Revolução Francesa. Todos<br />

os elementos de verdade, bondade<br />

e beleza existentes na Terra antes<br />

dessa Revolução foram construídos,<br />

organizados por pessoas dotadas de<br />

um espírito voltado para Deus, que<br />

eram segundo o Criador e amavam o<br />

verdadeiro, o bem e o belo.<br />

Em sentido oposto, a Revolução<br />

Francesa foi a explosão do ódio daqueles<br />

que detestavam tudo quanto<br />

é grandioso, nobre, legítimo, bom, e<br />

queriam estabelecer um mundo chulo,<br />

desordenado, imoral, sem fé.<br />

Tal Revolução foi uma revolta dos<br />

homens que se deixaram dominar pelo<br />

Inferno, para acabar com tudo quanto<br />

era elevado, belo e bom na Terra.<br />

Por essa razão, como não queriam<br />

que houvesse reis, rainhas, nobres, palácios,<br />

grandeza nem beleza, estragaram<br />

aqueles parques, quebraram ou<br />

roubaram os objetos do palácio, espandongaram<br />

os lustres, despedaçaram<br />

os espelhos. Aprisionaram a família<br />

real, culminando, após meses de<br />

tormento e de abominação, na con-<br />

Flávio Lourenço<br />

Nossa Senhora de Lourdes<br />

Gruta de Massabielle, França<br />

denação à morte do Rei Luís XVI, da<br />

Rainha Maria Antonieta e de uma irmã<br />

do Rei, Madame Elizabeth, dando<br />

início ao período histórico chamado<br />

do Terror, em que bastava alguém ser<br />

nobre para estar condenado à morte.<br />

A mais distinta, elevada<br />

e sofredora de todas as<br />

damas do século XVIII<br />

Gabriel K.<br />

Para encerrar, conto um fato que<br />

ilustra bem o espírito que animava a<br />

Revolução Francesa.<br />

Morto o Rei Luís XVI, a Rainha ficou<br />

viúva. Chegou o dia de ser apresentada<br />

ao tribunal para ser julgada, e<br />

ela queria muito salvar a própria vida<br />

para defender seus filhos, ainda crianças,<br />

pois não queria que estas fossem<br />

educadas pelos revolucionários.<br />

Então Maria Antonieta preparou<br />

um discurso no qual ela mesma realizava<br />

a sua defesa, enquanto os re-<br />

25


Perspectiva pliniana da História<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Maria Antonieta deixa<br />

a Conciergerie - Museu<br />

Carnavalet, Paris, França<br />

volucionários iriam apresentar testemunhas<br />

que fariam acusações falsas<br />

contra ela.<br />

Certa noite, os revolucionários<br />

invadiram o recinto onde seu filho<br />

dormia. A mãe, embora fosse uma<br />

dama frágil, lutou contra eles fisicamente<br />

para defender o menino, mas<br />

afinal não pôde resistir, e os revolucionários<br />

o raptaram, tendo ele passado<br />

meses sem ver a mãe.<br />

Estabelecido o tribunal revolucionário,<br />

o menino entra como testemunha<br />

para depor contra a própria<br />

mãe. Ele calçava tamancos ordinários<br />

muito grandes, dentro dos quais<br />

puseram palha para não caírem dos<br />

pés; estava bêbado e ao ver a mãe<br />

não teve o menor sentimento de afeto,<br />

permanecendo parado com uma<br />

cara abestalhada.<br />

O presidente do tribunal disse a ele:<br />

– Menino, conta aqui a todas as<br />

pessoas presentes os crimes que a<br />

tua mãe cometeu contigo.<br />

Haviam ensinado para ele, como<br />

a um autômato, a mais infame das<br />

coisas. O menino disse que sua mãe<br />

o tinha iniciado na imoralidade.<br />

Maria Antonieta ouviu aquilo e,<br />

diante dessa acusação torpe que todo<br />

mundo via ser uma calúnia, notando<br />

que a galeria estava cheia de<br />

mulheres do povo, disse: “Eu apelo<br />

a todas as mães da França para que<br />

digam se acreditam nessa acusação.”<br />

As mulheres bateram palmas à<br />

Rainha a mais não poder.<br />

Contudo, era o período da Revolução<br />

Francesa em que se dizia ser a<br />

época da liberdade, mas na realidade<br />

imperava a tirania. O presidente<br />

do tribunal, que deveria declarar inválido<br />

o testemunho de uma criança<br />

bêbada, sobretudo quando ela diz<br />

algo que ninguém podia acreditar e<br />

apenas provava a infâmia dos acusadores,<br />

entretanto deu ordem para retirarem<br />

da sala todas as mulheres, a<br />

fim de evitar que aplaudissem novamente<br />

Maria Antonieta. E, por fim,<br />

condenou-a à morte. Assim morreu a<br />

mais distinta, elevada e sofredora de<br />

todas as damas daquele século.<br />

Podemos afirmar que o mal nunca<br />

teve, depois da morte de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, tanta desfaçatez,<br />

tanta audácia em se mostrar, como na<br />

Revolução Francesa. De maneira que<br />

na luta entre o bem e o mal, a verdade<br />

e o erro, o belo e o feio, essa Revolução<br />

é um episódio central e uma espécie<br />

de ponto culminante. Não compreende<br />

os fatos que vieram antes<br />

nem depois quem não analisa a Revolução<br />

Francesa assim. Ela pode ser<br />

considerada, sob esse ponto de vista,<br />

como um grande e horrível livro no<br />

qual, entretanto, se aprendem verdades<br />

terríveis e admiráveis. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

3/4/1993)<br />

Execução de<br />

Maria Antonieta<br />

Museu Carnavalet,<br />

Paris, França<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

26


Hagiografia<br />

Claude Bernou (CC3.0)<br />

Deus é admirável<br />

nos seus santos<br />

A vida do Beato Sebastião de Aparício foi cheia de<br />

zigue-zagues, mas sua alma sempre se manteve<br />

no sendeiro da virtude. O universo da santidade<br />

é muito mais ordenado, elevado e bonito do que<br />

todas as estrelas do céu, as belezas da natureza, as<br />

magnificências da arte. Sem santidade o mundo<br />

não teria sentido nem graça.<br />

No dia 25 de fevereiro comemora-se<br />

a memória do<br />

Beato Sebastião de Aparício.<br />

Sobre ele diz Rohrbacher 1 :<br />

Apostolado do exemplo<br />

Nasceu na Galícia, em 1502, de família<br />

humilde de simples camponeses.<br />

Viveu até rapaz como pobre empregado,<br />

entregando suas economias aos pais<br />

e santificando essa vida árdua com uma<br />

enorme piedade. Embarcou em 1532 para<br />

o México, onde enriqueceu utilizando<br />

seus conhecimentos de agricultura. Teve<br />

êxito também no comércio, mas abandonou<br />

a profissão por achá-la perigosa para<br />

a salvação eterna, e voltou à lavoura.<br />

Casou-se duas vezes e nos dois casamentos,<br />

com o consentimento das<br />

esposas, observou a continência. Dele<br />

disse o decreto de beatificação: A Providência<br />

não o enviou à América para<br />

lá cultivar ciências, nem tampouco literatura,<br />

a ele absolutamente estranhas,<br />

mas para instigar os novos cristãos,<br />

mediante o exemplo, à prática de uma<br />

profunda humildade e da perfeição.<br />

Com a avançada idade de setenta<br />

anos, renunciou às abundâncias e riquezas<br />

de que dispunha, distribuiu-as<br />

Todos os estilos e<br />

tipos de vida humana<br />

honesta e honrada<br />

acabam sendo<br />

santificados por um<br />

bem-aventurado<br />

que daquela forma<br />

chegou aos altares.<br />

pelos fiéis e assim despojado de qualquer<br />

bem terreno entrou num convento<br />

de franciscanos da estrita observância.<br />

Lá, esquecendo do que deixara no<br />

mundo, fez profissão como irmão leigo.<br />

A partir de então, persistiu na prática<br />

de maravilhosa penitência, de<br />

simplicidade de coração, de prece e de<br />

fé, de obras de misericórdia espiritual<br />

e física, até a idade de noventa e oito<br />

anos. Colheu então o fruto de cooperação<br />

com a graça e do fiel e laborioso<br />

cumprimento dos deveres religiosos.<br />

Embora entrado na vinha na última<br />

hora do dia, recebeu o prêmio inteiro<br />

que o pai de família prometeu aos que<br />

entram nas primeiras horas.<br />

Variedade, unidade, ordem<br />

Costuma-se dizer, a respeito da<br />

vida dos santos, que elas são admiráveis<br />

por aquilo que têm de parecido<br />

e pelo que possuem de diferente.<br />

Pelo que têm de parecido porque<br />

indicam a unidade da santidade<br />

e a união da obra de Deus. Por aquilo<br />

que possuem de diverso, porque<br />

a variedade é um elemento complementar<br />

da unidade e é fonte, junto<br />

com esta, de toda beleza.<br />

27


Hagiografia<br />

Nem sempre se nota que a ordem<br />

está apenas na conjugação dos<br />

fatores unidade-variedade, mas encontra-se<br />

também na conjugação<br />

do modo pelo qual as diferenças se<br />

completam harmonicamente, por<br />

sua vez reproduzindo a unidade. E<br />

podemos então não só nos edificar<br />

na consideração da beleza da unidade<br />

que há na vida dos santos, quanto<br />

na verificação da surpreendente diversidade<br />

e da ordem que essas diferenças<br />

mantêm entre si.<br />

Todos os estilos e tipos de vida humana<br />

honesta e honrada acabam<br />

sendo santificados<br />

por um bem-aventurado<br />

que daquela<br />

forma chegou<br />

aos altares; e mostrando<br />

que Deus tem<br />

seus desígnios muito<br />

variados a respeito<br />

de todos. Quando o<br />

Criador quer e a alma corresponde,<br />

de fato daí nasce a<br />

santidade.<br />

Diversas mudanças<br />

em sua longa vida<br />

Vejam como a vida desse Beato<br />

é singular. Nasceu pobre, filho de<br />

camponeses. Entretanto, vivia com<br />

muita piedade, entregava suas economias<br />

aos pais, respeitava o domingo.<br />

Isso em 1502. Mas em 1532 houve<br />

uma mudança brusca em sua vida.<br />

Depois de uma existência muito<br />

simples e pobre, de um camponês<br />

arraigado na tradição de sua terra,<br />

embarca, de repente, para o México<br />

que naquele tempo era um lugar de<br />

aventura, de riqueza.<br />

Ele sai de uma vida muito ordenada<br />

e singela para o pleno tumulto de um<br />

quadro de existência completamente<br />

novo. Lá ele se enriquece como agricultor.<br />

Nova mudança: entra no comércio,<br />

exercendo profissão profundamente<br />

diversa da agricultura, e também<br />

obtém um êxito extraordinário.<br />

Bem-aventurado<br />

Sebastião de Aparício<br />

Dantadd (CC3.0)<br />

Paolo Forlani (CC3.0)<br />

Depois de ter<br />

dado zigue-zagues<br />

de toda ordem,<br />

caiu na grande<br />

estabilidade de uma<br />

ordem religiosa, na<br />

qual levou a vida<br />

de um religioso.<br />

Mais outra mudança: deixa o comércio<br />

e volta à lavoura. Por quê?<br />

Pela dificuldade de enriquecer honestamente.<br />

Todos sabem como é<br />

fácil roubar no comércio. Deixou o<br />

estado de solteiro e casou-se duas<br />

vezes; e, circunstância imprevista,<br />

guardando continência as duas vezes.<br />

Quer dizer, castidade perfeita<br />

dentro do casamento. Uma vida toda<br />

de aspectos singulares.<br />

O decreto de beatificação acentua<br />

o último momento de sua vida:<br />

já tinha setenta anos quando entrou<br />

para um convento de franciscanos.<br />

Alguém dirá: só uma pontinha<br />

de sua existência... Não, são vinte<br />

e oito anos de vida religiosa. Depois<br />

de ter dado zigue-zagues de toda<br />

ordem, caiu na grande estabilidade<br />

de uma ordem religiosa, na qual<br />

levou a vida de um religioso. Então,<br />

o antigo agricultor, o antigo comerciante,<br />

o antigo homem de aventuras,<br />

o antigo esposo passa a ser um<br />

capuchinho de barba branca tranquilo,<br />

gentil, ressumando vida espiritual<br />

e morre numa espécie de apoteose.<br />

Perfumou o convento, o<br />

México e a América com<br />

a beleza de sua vida<br />

Analisando esses zigue-zagues, vê-<br />

-se que não foram sinuosidades de<br />

uma pessoa que andou quebrando a<br />

cabeça de todos os lados, nem a correria<br />

do gato louco, mas que tudo isto<br />

teve uma certa continuidade. Por<br />

exemplo, quando se tornou comerciante<br />

ele já era tão direito que preferiu<br />

deixar o comércio a roubar. Tendo<br />

resolvido se casar, teve razões tão elevadas<br />

que guardou a castidade perfeita<br />

no casamento, e por duas vezes.<br />

A vida dele rolando de todos os<br />

lados, mas sua alma, no sendeiro da<br />

virtude, afinal chega ao fim. E aos<br />

28


Flávio Lourenço<br />

setenta anos entra para o convento,<br />

onde permanece por mais vinte e oito<br />

anos, o que ninguém esperava. É<br />

uma conjunção de vidas dentro das<br />

quais ele toma toda a personalidade<br />

de um papel e depois passa para outra<br />

função; no fim se sublima no papel<br />

dos papéis: um simples irmão leigo<br />

franciscano, perfumando todo o<br />

convento e todo o México e, de algum<br />

modo, toda a América com a<br />

beleza de sua vida.<br />

Então, compreende-se bem que<br />

Deus é admirável nos seus santos.<br />

Ele é o autor, a fonte, o modelo da<br />

santidade; e o meio para ganhá-la é<br />

Maria Santíssima, nossa Medianeira.<br />

Ele é admirável porque todos os<br />

santos têm algo de parecido e algo<br />

de diferente, e porque essas diversidades<br />

se ordenam de um modo lindíssimo.<br />

Qualquer alma é um<br />

tesouro inapreciável<br />

Comparemos este Beato, por<br />

exemplo, com São Simeão Estilita<br />

rezando continuamente no alto de<br />

sua coluna, anos e anos, empolgando<br />

toda uma cidade; com o Venerável<br />

Pio Bruno Lanteri lutando contra<br />

a polícia de Napoleão, ou com Santa<br />

Teresinha do Menino Jesus mor-<br />

rendo vítima do<br />

amor misericordioso,<br />

em Lisieux.<br />

Essas variedades<br />

têm<br />

umas harmonias<br />

profundas, que<br />

são uma espécie<br />

de post-visão da<br />

unidade.<br />

O universo<br />

da santidade é<br />

muito mais ordenado,<br />

elevado<br />

e bonito do<br />

que todas as estrelas<br />

do céu, as<br />

belezas da natureza,<br />

as mag-<br />

Maria Auxiliadora - Igreja de São<br />

Clemente, Toronto, Canadá<br />

nificências da<br />

arte. É a santidade<br />

o centro<br />

do mundo.<br />

Sem santidade<br />

o mundo<br />

não teria sentido<br />

nem graça,<br />

mesmo no<br />

que ele possui<br />

de mais belo.<br />

Peçamos a<br />

Nossa Senhora, por intermédio desse<br />

Beato, que nos dê uma consideração,<br />

uma compreensão, um amor cada<br />

vez maior pela santidade. De outro<br />

lado, nos conceda a vontade de<br />

nós mesmos sermos santos e contribuirmos<br />

com nossa alma para a beleza<br />

desse firmamento para o qual<br />

fomos criados. Qualquer alma, a última<br />

das almas do último homem,<br />

é um tesouro inapreciável porque é<br />

uma estrela que a Providência quer<br />

que brilhe por toda a eternidade<br />

nesse firmamento de santidade que<br />

deve substituir no Céu os anjos caídos.<br />

v<br />

Gabriel K.<br />

(Extraído de conferência de<br />

24/2/1966)<br />

Beato Sebastião de Aparício - Igreja de São<br />

Francisco, Guadalajara, México<br />

1) Cf. ROHRBACHER, René-François.<br />

Vida dos santos. São Paulo: Editora<br />

das Américas, 1959. v. III, p. 411-412.<br />

29


Luzes da Civilização Cristã<br />

Hajotthu (CC3.0)<br />

Ó Igreja Católica!<br />

Diante da Catedral de São Marcos somos objeto de uma<br />

determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso,<br />

de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que,<br />

em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das<br />

mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se<br />

manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa<br />

pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”<br />

Quando se faz uma viagem muito cheia de impressões,<br />

densa de coisas que se viu e sobre as quais<br />

se pensou – ao menos no meu espírito é assim –,<br />

nem tudo aflora imediatamente. A pessoa deixa repousar<br />

as impressões de viagem e depois elas vão se evolando de<br />

tempos em tempos, mais ou menos como as flores que demoram<br />

para exalar todo o seu perfume. Passa-se por uma<br />

flor, ela se abriu e esparge seu perfume novo. No dia seguinte<br />

ela não está recendendo a nada, mas no terceiro<br />

dia, quando se pensa que já deixou de exalar sua fragrância,<br />

há uma segunda onda de perfume que se exala da flor,<br />

e assim por diante. Deste modo são também as recordações<br />

de viagem: há várias exalações consecutivas, de vários<br />

significados e bons aromas que se vão apresentando,<br />

formulando-se à medida que o tempo passa.<br />

Obras impregnadas pelo sobrenatural<br />

Recentemente consegui explicitar melhor alguma coisa<br />

que me vinha à mente em minha última visita à Europa,<br />

30


pela comparação entre a impressão que o Velho Continente<br />

me causou nas anteriores viagens e a que tive nesta.<br />

Para ficar bem clara a questão, parece-me melhor<br />

exemplificar em concreto com a Catedral de São<br />

Marcos. Antes, porém, dou uma pequena introdução<br />

e depois faço a aplicação.<br />

Suponhamos que um escritor como São Bernardo redige<br />

um sermão sobre Nossa Senhora, ou um rei como<br />

São Luís IX publica suas Capitulares, isto é, uma legislação<br />

sobre um determinado corpo de assuntos. Mas tudo<br />

é feito com espírito católico e com a intenção de servir<br />

à Santa Igreja e à Civilização Cristã. Por causa da intenção<br />

que presidiu a isso, a graça pousa, por assim dizer,<br />

naquela obra. E quem a lê tem duas impressões.<br />

Uma natural e humana que a leitura daquele texto pode<br />

causar. Por exemplo, São Bernardo é um escritor exímio,<br />

de grandes voos literários, um notável burilador da<br />

língua francesa, sob o impulso de quem esse<br />

idioma explicitou de sua genialidade original<br />

tais aspectos novos. São impressões naturais<br />

que nos vêm ao espírito, causadas pela<br />

leitura do trabalho de São Bernardo.<br />

Mas como aquela obra foi feita por<br />

amor de Deus, com a intenção de despertar<br />

pensamentos sobrenaturais<br />

inspirados pela Fé e tendentes à glória do<br />

Criador, entra também uma graça, porque<br />

ninguém é capaz de pensar uma obra com base<br />

na Doutrina Católica, nem de querer uma<br />

coisa para o bem da Santa Igreja ou para a<br />

Gabriel K.<br />

Flávio Lourenço<br />

São Bernardo<br />

São Luís Rei<br />

glória de Deus, que não seja pela graça.<br />

Sem auxílio dela ninguém pode fazer essas<br />

operações intelectuais e da vontade, pois o homem<br />

é inteiramente inerte e incapaz de as realizar<br />

se não tiver o auxílio da graça.<br />

Assim, São Francisco de Sales – para tomar outro<br />

autor – escreveu a “Filoteia”, a “Introdução à Vida Devota”,<br />

e quem a lê tem a impressão de estar essa obra<br />

embebida pela graça, e é absorvido pela graça que baixa<br />

de Deus, mas ajustada, correlata ao texto lido.<br />

Então, ao operar natural da inteligência, da vontade<br />

e da sensibilidade, soma-se uma operação de<br />

origem sobrenatural pela qual na leitura a pessoa<br />

percebe belezas novas de caráter absolutamente superior,<br />

extraordinário. Às vezes elas reluzem aos<br />

olhos do espírito do leitor através de um fenômeno<br />

da mística. São de uma pulcritude maior do que<br />

todas as belezas naturais, pois o sobrenatural vale<br />

mais do que o natural.<br />

Flávio Lourenço<br />

Amor de Deus, corolário das<br />

construções medievais<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Isto que se diz a respeito de escritos pode-se<br />

igualmente aplicar a monumentos, catedrais, imagens,<br />

obras de arte. Por exemplo, as estalas superiormente<br />

bem esculpidas de um convento, uma armadura<br />

medieval, um vitral, obras estas realizadas<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />

Veneza, em 1988<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

Gabriel K.<br />

Sebastião C.<br />

posição das famosas “contradas”, aqueles<br />

jogos entre as corporações e associações religiosas,<br />

que despertam esse ou aquele estado<br />

de espírito. Então aqui está uma ordem<br />

de ideias.<br />

Há locais impregnados<br />

pelo sagrado...<br />

Igreja de San Giorgio<br />

Maggiore, Veneza, Itália<br />

Órgão da Catedral de Notre-Dame<br />

de Paris, França<br />

com espírito sobrenatural para o serviço de Deus, mas<br />

também com uma finalidade natural. Quem as vê é visitado<br />

por uma graça que lhe faz compreender as analogias<br />

que elas têm com realidades sobrenaturais.<br />

De onde um muito grande apreço do homem por aquilo<br />

que ele vê. Por exemplo, a Catedral de São Marcos e a de<br />

Notre-Dame de Paris. Mas não apenas catedrais, às vezes<br />

são edifícios destinados a uma finalidade civil, como uma<br />

fortaleza, um castelo, que é a residência de uma família<br />

feudal e, ao mesmo tempo, a defesa desta família e da população,<br />

do burgo vizinho, contra possíveis agressões de<br />

maometanos, de bárbaros. Portanto, uma finalidade natural.<br />

Mas o castelo com aquelas torres, aquele jogo de<br />

ameias e barbacãs, dá uma impressão sobrenatural, proporcionada<br />

pela graça, e que vem do fato de que o castelo<br />

simboliza extraordinariamente bem para nós a virtude da<br />

fortaleza, enquanto praticada por amor de Deus.<br />

Assim, chegamos à conclusão de que muitos dos monumentos<br />

existentes na Europa foram construídos na plena<br />

era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média.<br />

Outros em épocas posteriores ou anteriores. Nas anteriores,<br />

enquanto o gótico começava apenas a ser vislumbrado<br />

pelos seus primeiros artistas, o românico era o estilo usado.<br />

Tinha ele, entretanto, charmes, encantos em que algo do<br />

sorriso todo cheio de afabilidade, de majestade e de uma<br />

discreta melancolia do gótico ia se formando, aparecendo,<br />

o que pode ser notado num edifício, numa praça, etc.<br />

Ademais, é possível que a graça dê à pessoa um especial<br />

discernimento do espírito com que, em concreto,<br />

aquilo foi construído. Então, diante da Praça do Paço<br />

Municipal de Siena, a pessoa pode ter um discernimento<br />

especial de qual era o espírito dos sienenses daquele<br />

tempo, de como entrava ali a graça, e fazer uma recom-<br />

Passo a considerar agora outra ordem de<br />

ideias. Não é mais o estilo, a aparência material,<br />

nem mesmo a mentalidade dos que planejaram,<br />

executaram ou viveram em determinado<br />

lugar, mas é a natureza dos atos que<br />

ali se passaram.<br />

Há um princípio admitido pela piedade católica<br />

segundo o qual, quando em um ambiente<br />

se passou algo de muito sagrado, aquele lugar<br />

fica de algum modo sagrado também. Vou<br />

dar um exemplo de tal maneira supremo que, por assim<br />

dizer, estoura o assunto, mas enfim de um estourar sagrado,<br />

magnífico: o Horto das Oliveiras, onde se deu o primeiro<br />

mistério doloroso do Rosário, a Agonia de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo. “Agonia”, em grego, quer dizer “luta”.<br />

Então a luta de Nosso Senhor contra o legítimo arrepio<br />

de seus sentidos diante da perspectiva da morte que<br />

deveria vir, com tudo quanto a antecedeu. Ali, onde Ele<br />

disse: “Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice,<br />

mas faça-se a vossa vontade e não a minha” (Lc 22,42).<br />

Veio então um Anjo – o qual podemos imaginar cercado,<br />

nimbado de uma luz ao mesmo tempo alvíssima e<br />

triste por causa da tarefa que ele devia executar – levando<br />

para Nosso Senhor um cálice de uma bebida<br />

que haveria de Lhe dar força sobrenatural para<br />

tudo aquilo que Ele suportou na Paixão.<br />

Então, onde Ele esteve, sofreu e derramou o<br />

primeiro Sangue da Paixão, tudo isso torna sagrado<br />

o lugar em que essas cenas se passaram.<br />

Por essa razão, quando se está naquele lugar<br />

recebem-se graças, não raramente sensíveis,<br />

pelas quais a alma é levada ao amor de Deus,<br />

à contrição, ao arrependimento, à compunção,<br />

à piedade, à compaixão para com o Cordeiro<br />

de Deus que ali sofreu para nossa salvação.<br />

Aquele lugar tem bênçãos especiais.<br />

...outros, habitados por uma graça<br />

Mutatis mutandis, os locais onde se passaram grandes<br />

fatos históricos, eminentes atos de coragem, de virtude, de<br />

renúncia, na História da Cristandade, tornam-se lugares<br />

particularmente dignos de reverência. Às vezes até fatos<br />

32<br />

Armadura medieval - Museu<br />

Metropolitano de Arte, Nova Iorque, EUA


sem uma relação direta com a Religião, mas nos<br />

quais reluz algo do espírito católico.<br />

Vem à minha memória a execução do<br />

Duque d’Enghien, ordenada por Napoleão.<br />

Esse duque, último da linhagem<br />

dos Príncipes de Condé, reunia em si o<br />

aspecto heroico, a estampa afidalgada,<br />

a coragem, a ousadia, quase a temeridade<br />

de seus antepassados. Possuía<br />

qualquer coisa do espírito repentino e<br />

irresistível do Grande Condé.<br />

Napoleão tinha intuitos de acabar<br />

com esse último descendente da Casa dos<br />

Condé, e para isso aproveitou-se do fato<br />

de que esse duque estava noivo de uma princesa<br />

francesa residente não longe da fronteira<br />

alemã, mas do lado alemão, onde a tropas de Napoleão<br />

não podiam penetrar. O Duque d’Enghien foi visitar<br />

a noiva e quando o Sol já havia se posto, Napoleão<br />

mandou um destacamento transpor o Reno, entrar nesse<br />

lugarzinho, agarrar o Condé e levá-lo preso para a França.<br />

Depois de um simulacro de julgamento, que ninguém toma<br />

a sério, mandou matá-lo.<br />

A calma do Duque d’Enghien nesse momento extremo,<br />

sua dignidade, presença de espírito – segurou calmamente<br />

a lanterna para que os tiros acertassem nele –, suas últimas<br />

cartas, tudo isso tem um aroma de Cavalaria. É bonito<br />

ver esse cintilar de luzes da Cavalaria, brilhando na<br />

época miserável em que o mundo estava conspurcado<br />

pela Revolução Francesa.<br />

Estando em Vincennes, e sabendo onde o<br />

Duque foi executado, eu quereria ir visitar o<br />

local em espírito de peregrinação. Não tenho<br />

nenhum documento comprovatório<br />

de que esse homem fosse especialmente<br />

piedoso. Dói-me a hipótese de que não<br />

o tenha sido. Apesar disso, não há dúvida<br />

nenhuma de que se ele não descendesse<br />

de ancestrais católicos,<br />

não seria essa flor do heroísmo<br />

católico a desabrochar dentro<br />

da poluição imunda da Revolução<br />

Francesa. Portanto,<br />

nessas condições, eu iria<br />

em espírito de peregrinação<br />

ao lugar onde ele foi imolado<br />

com tanto garbo, tanta<br />

galhardia, e rezaria por sua<br />

alma.<br />

Isso nos dá a impressão – notem<br />

bem, não é a realidade – de<br />

que as cenas ocorridas em determi-<br />

Havang (CC3.0)<br />

Duque<br />

d’Enghien<br />

nados lugares, como que ainda estão se passando<br />

ali. É fora de dúvida que aquele passado<br />

todo revive, e para quem está ali ele<br />

tem um prolongamento, uma continuidade<br />

misteriosa que emociona especialmente<br />

o visitante. Onde existem coisas<br />

assim, houve graças extraordinárias.<br />

E do mesmo modo como a graça desce<br />

à alma de quem lê, com trezentos anos<br />

de diferença, um livro de São Francisco<br />

de Sales, ela também age na alma<br />

de quem, duzentos anos depois, visita o<br />

lugar onde o Duque d’Enghien foi fuzilado.<br />

Essa impressão de lugar habitado pela<br />

graça, no qual se tem a impressão de que os<br />

fatos revivem e entramos numa misteriosa intimidade<br />

com eles, é altamente benfazeja para o espírito<br />

e enriquece o sentir, o degustar do homem que se encontra<br />

nesse local.<br />

Desejo do maravilhoso inspirado pela Fé<br />

Tomemos, por exemplo, a Catedral de São Marcos.<br />

Vista durante a noite, quando não há turistas e os<br />

pombos estão dormindo, a catedral apresenta-se na sua<br />

Catedral de Notre-Dame de Paris, França<br />

Catedral de São Marcos, Veneza, Itália<br />

Gabriel K.<br />

Samuel Holanda<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

majestosa solidão, esplendidamente iluminada, deixando<br />

perceber o branco reluzente do mármore de que foi<br />

construída, bem como seus pormenores magníficos, e<br />

torna-se especialmente evidente sua linha geral.<br />

Faço notar as três profundidades para a vista humana<br />

diante dessa catedral. Em primeiro lugar, as arcadas que<br />

têm como centro um arco maior com um magnífico mosaico<br />

e, acima, um terraço. Constituem o primeiro corpo do edifício.<br />

Depois, uma espécie de ogiva central muito grande, onde<br />

se percebem os famosos cavalos, dois torreões, e de cada<br />

lado duas ogivas muito abertas, encimadas cada qual com<br />

uma figura. Por fim, constituindo a terceira dimensão, encontram-se<br />

as cúpulas ladeadas de umas torrezinhas.<br />

Diante dessa catedral somos objeto de uma determinada<br />

impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de<br />

grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor<br />

de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações<br />

deslumbrantes do espírito católico que se manifesta<br />

ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa<br />

pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”<br />

Entretanto, dentro dessa catedral passaram-se fatos<br />

históricos da maior importância que determinaram rotações<br />

inteiras na História da Cristandade, das nações banhadas<br />

pelo Mar Adriático, que se manifestaram na História<br />

de Veneza e da Itália, episódios ora de violência, ora de<br />

refinamento político e esperteza levada a um grau inimaginável.<br />

Veneza era uma escola de<br />

diplomatas extraordinários.<br />

Nos arquivos dessa cidade<br />

se conservam relatórios<br />

que os embaixadores<br />

venezianos<br />

mandavam periodicamente, contando o que se passava nos<br />

países onde viviam. As narrações são tão bem feitas, tão seguras<br />

– de tal maneira eles sabem evitar boatos –, as análises<br />

tão finas e tão sutis, que essas cartas servem de fonte<br />

ótima para a História de qualquer país da Europa.<br />

Imponderável de São Pio X em Veneza<br />

Assim, pelo auxílio da graça, temos não apenas uma<br />

percepção do espírito de Fé que levantou tudo isso, mas<br />

também uma ideia dos mil fatos que ali se passaram.<br />

Um desses fatos se deu no começo do século XX. São Pio<br />

X, antes de ser eleito Papa, era o Patriarca de Veneza,<br />

portanto, Cardeal e Arcebispo daquela cidade. Quando<br />

morreu Leão XIII, convocaram o Conclave. São Pio<br />

X – então Cardeal Giuseppe Sarto – comprou passagem<br />

de ida e volta, pois ao que parece ele não contava com a<br />

possibilidade de ser eleito e, ademais, não tinha vontade<br />

nenhuma. Ainda nas vésperas de sua eleição, o Cardeal<br />

Sarto julgava que não seria escolhido, mas como, de repente,<br />

as coisas viraram e sua escolha tornou-se iminente,<br />

ele chorou, porque tinha pânico de ser Papa, pelo peso<br />

da responsabilidade do Papado.<br />

Podemos imaginar a última visita desse Santo Cardeal,<br />

pouco antes de tomar a gôndola para se dirigir ao<br />

Conclave; sua longa figura esguia, com os trajes cardinalícios,<br />

cabelos já muito brancos, ele mesmo alvíssimo,<br />

acompanhado de seus secretários, monsenhores, prelados,<br />

entrando na Basílica de São Marcos para rezar. Depois,<br />

com o coração pesado de presságios que via apenas<br />

obliquamente, ele tomar a embarcação e partir para o<br />

lugar de onde o trem o conduziria até Roma.<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Nevsepic (CC3.0)<br />

Dom Giuseppe M. Sarto (futuro<br />

São Pio X), por ocasião de sua<br />

ordenação como Bispo<br />

de Veneza<br />

O Grande Canal de Veneza (por Canaletto) - Galeria Nacional de Londres, Inglaterra<br />

34


Seria a cena de Veneza despedindo-<br />

-se do mais recente dos Papas canonizados,<br />

que previu e combateu a crise do<br />

modernismo. Quem passeia por debaixo<br />

dessas colunas do átrio ou transpõe<br />

a porta, pensando em tudo isso, tem a<br />

impressão de que São Pio X encontra-se<br />

um pouco aí revivendo tudo isso. De fato,<br />

ele não se encontra, mas está presente<br />

uma graça relacionada ao que se passou<br />

e que torna especialmente sagrado<br />

esse lugar.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Passeando de gôndola<br />

pelos canais de Veneza<br />

Em minha última viagem à Europa,<br />

tive diante de muitos monumentos a impressão<br />

triste, de cortar o coração, de<br />

que essas graças tinham se retirado, e<br />

as cenas históricas ali desenroladas haviam<br />

perdido o nexo sobrenatural com<br />

aqueles monumentos. Ou que esses restos<br />

de continuidade da graça estavam<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma palestra em janeiro de 1989<br />

nos seus últimos lampejos e já iam desaparecendo,<br />

o que a multidão de turistas não censurava,<br />

e nem sequer sabia ser possível sentir isso, e visitava<br />

a Catedral de São Marcos, por exemplo, mais ou menos<br />

como se visita um museu.<br />

No entanto, essa densa presença de sobrenatural e<br />

de história, que em Veneza é incomparável, ainda senti<br />

quando tomei uma gôndola para passear pelos canais<br />

da cidade. Navegando no escuro entre aqueles palácios,<br />

tem-se a impressão de estar participando da vida psicológica,<br />

temperamental, social, daqueles personagens<br />

de trajes medievais ou do tempo das monarquias absolutas,<br />

com máscaras como se usava em Veneza, o bater<br />

dos remos na água, o brado dos gondoleiros para evitar<br />

trombadas; de repente, vê-se um homem que, ao passar<br />

diante de uma casa onde não quer ser reconhecido, pega<br />

o seu manto e cobre o corpo inteiro, só se desvendando<br />

mais adiante... Esses mistérios todos de Veneza temos<br />

a impressão de que ainda vivem, e nos metemos no meio<br />

deles ao passear de gôndola à noite pela cidade.<br />

O uso da lancha nos canais já estraga isso, porque o<br />

mistério vai embora. A lancha tem o determinismo estúpido<br />

das coisas mecânicas. O bonito é o silêncio, o mistério<br />

e o deslizar lento da gôndola, na qual os passageiros<br />

vão sentados meditando no que fizeram ou farão. Esse<br />

mistério tem seu charme.<br />

v<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

(Extraído de conferência de 11/1/1989)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> diante da Catedral de São Marcos, em 1988<br />

35


O segredo<br />

Francisco Barros<br />

da calma<br />

Pelo dom de profecia, Maria Santíssima<br />

conheceu individualmente todos os homens<br />

que existiriam até o fim do mundo,<br />

com suas qualidades e defeitos, e tem para<br />

com cada um a misericórdia incalculável da<br />

melhor das mães.<br />

Devemos, pois, ter a certeza de que pedindo-Lhe<br />

qualquer coisa, obteremos. Pode ser<br />

que alguém peça algo que não seja para o seu<br />

próprio bem. Neste caso, Nossa Senhora não<br />

dará. Porém, até nisso entra a misericórdia<br />

d’Ela porque, conhecendo melhor do que nós<br />

o que nos convém, a Mãe de Deus nos concede<br />

outra graça mais valiosa do que aquela pedida<br />

por nós.<br />

Mesmo que estejamos em estado de pecado,<br />

a Santíssima Virgem tem pena de nós e<br />

nos obtém graças preciosas para nos emendarmos<br />

e brilharmos diante d’Ela por toda a<br />

eternidade.<br />

Sendo assim, não há razão para ficarmos<br />

nervosos e agitados, pois ainda que não compreendamos<br />

por que está acontecendo algo de<br />

muito triste conosco, devemos estar tranquilos,<br />

pois a nossa Mãe vela por nós.<br />

A perfeição consiste, portanto, em manter-<br />

-se sereno e tranquilo, compreendendo que tudo<br />

se faz pela vontade de Nossa Senhora. Aí<br />

está o segredo da calma.<br />

(Extraído de conferência de 12/10/1990)<br />

A Virgem e o Menino - Igreja de São<br />

Pedro Apóstolo, Montreal, Canadá

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