Revista Dr Plinio 239
Fevereiro de 2018
Fevereiro de 2018
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Publicação Mensal Ano XXI - Nº <strong>239</strong> Fevereiro de 2018<br />
Triunfo marial
Sérgio N.<br />
O insubstituível apostolado<br />
do sofrimento<br />
fatima.pt<br />
Nossa Senhora quis que Jacinta<br />
e Francisco morressem em circunstâncias<br />
tão difíceis e sofrendo<br />
tanto, por serem necessárias vítimas<br />
que associassem suas dores e o sacrifício de<br />
suas vidas ao mistério de Fátima, bem como<br />
à fecundidade desejada pela Santíssima<br />
Virgem, na ordem sobrenatural, para os fatos<br />
anunciados na Cova da Iria.<br />
Apesar de ter havido ali uma intervenção<br />
direta da Mãe de Deus, atestada por milagres<br />
estupendos como, por exemplo, a movimentação<br />
do Sol, Ela quis que duas almas<br />
oferecessem as suas vidas e se imolassem<br />
para que aquele plano da Providência<br />
tivesse a fecundidade necessária.<br />
Isso nos faz compreender bem como o<br />
apostolado do sofrimento é insubstituível e<br />
abre os caminhos para a Igreja.<br />
Peçamos a Jacinta e Francisco que nos<br />
obtenham o senso do sofrimento, indispensável<br />
para qualquer católico ser verdadeiramente<br />
generoso e dedicado.<br />
fatima.pt<br />
(Extraído de conferência de 19/2/1965)<br />
fatima.pt<br />
Multidão observa o milagre do<br />
Sol durante uma das aparições<br />
de Nossa Senhora em Fátima
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XXI - Nº <strong>239</strong> Fevereiro de 2018<br />
Ano XXI - Nº <strong>239</strong> Fevereiro de 2018<br />
Triunfo marial<br />
Na capa, Santuário de<br />
Lourdes, França.<br />
Foto: Gabriel K.<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Editorial<br />
4 O grande triunfo marial<br />
Piedade pliniana<br />
5 Prece preparatória para<br />
a Comunhão<br />
Dona Lucilia<br />
6 O xale lilás<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
08 Instintos e senso do ser<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
14 A perfeita felicidade<br />
Calendário dos Santos<br />
21 Santos de Fevereiro<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
22 Ponto culminante na luta<br />
entre o bem e o mal<br />
Hagiografia<br />
27 Deus é admirável nos seus santos<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
30 Ó Igreja Católica!<br />
Última página<br />
36 O segredo da calma<br />
3
Editorial<br />
O grande triunfo marial<br />
Em 1854, pela Bula Ineffabilis Deus, o grande Papa Pio IX definia como dogma a Imaculada<br />
Conceição de Nossa Senhora. Em 1858, de 11 de fevereiro a 16 de julho, Nossa Senhora<br />
aparecia dezoito vezes, em Lourdes, a uma filha do povo, Bernadette Soubirous, declarando<br />
ser a Imaculada Conceição. A partir dessa ocasião, tiveram início os milagres. E a grande maravilha<br />
de Lourdes começou a brilhar aos olhos de todo o mundo, até nossos dias. O milagre confirmando<br />
o dogma, eis em resumo a relação entre o acontecimento de 1854 e o de 1858.<br />
De há muito, vinham sendo os meios católicos da Europa e da América trabalhados por uma verdadeira<br />
lepra, que era o jansenismo. Este movia uma campanha insistente contra a devoção a Nossa<br />
Senhora, que acusava de desviar de Jesus Cristo, em lugar de conduzir a Ele.<br />
A definição do dogma da Imaculada Conceição foi o primeiro dos grandes reveses sofridos pelo<br />
inimigo interno. Para provar que tudo nos vem por Maria, quis a Providência que fosse marial o primeiro<br />
grande triunfo.<br />
Mas, para glorificar ainda melhor sua Mãe, Nosso Senhor fez mais. Em Lourdes, como estrondosa<br />
confirmação do dogma, fez o que nunca antes se vira: instalou no mundo o milagre, por assim dizer,<br />
em série e a título permanente. Até então, o milagre aparecera na Igreja esporadicamente. Mas em<br />
Lourdes, as curas mais cientificamente comprovadas e de origem mais autenticamente sobrenatural<br />
se dão, a bem dizer, a jato contínuo, à face de um século confuso e desnorteado.<br />
Foi por certo um grande momento, na vida do filho pródigo, aquele em que seu espírito embotado<br />
pelo vício adquiriu nova lucidez, e sua vontade novo vigor na meditação da situação miserável em<br />
que caíra e da torpeza de todos os erros que o haviam conduzido para fora da casa paterna. Tocado<br />
pela graça, encontrou-se, com mais clareza do que nunca, diante da grande alternativa: arrepender-<br />
-se e voltar, ou perseverar no erro e aceitar, até o mais trágico final, as suas consequências. Deu-se o<br />
embate interno. Ele escolheu o bem.<br />
O futuro, só Deus o conhece. A nós, homens, é lícito, entretanto, conjecturá-lo segundo as regras<br />
da verossimilhança.<br />
Estamos vivendo uma terrível hora de castigos. Mas esta também pode ser uma admirável hora<br />
de misericórdia. A condição para isto é que olhemos para Maria, a Estrela do Mar, que nos guia em<br />
meio às tempestades.<br />
Movida de compaixão para com a humanidade pecadora, Nossa Senhora tem alcançado para nós<br />
os mais estupendos milagres. Esta piedade se terá extinguido? Têm fim as misericórdias de uma<br />
Mãe, e da melhor das mães? Quem ousaria afirmá-lo? Se alguém duvidasse, Lourdes lhe serviria de<br />
admirável lição de confiança. Nossa Senhora há de nos socorrer.*<br />
* Excertos do artigo “Primeiro marco do ressurgimento contra-revolucionário”. Em Catolicismo, n. 86, fevereiro<br />
de 1958.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Prece<br />
preparatória<br />
para a<br />
Flávio Lourenço<br />
Comunhão<br />
Jesus Eucarístico<br />
Igreja de São Francisco,<br />
Lucena, Espanha<br />
Minha Mãe e Senhora do Santíssimo<br />
Sacramento, Vós<br />
sois a síntese perfeita de todas<br />
as pessoas boas em todos os tempos.<br />
No meio de vossas excelsitudes há<br />
em Vós um filão que é a suprema perfeição<br />
de mim mesmo. Adorai a Nosso<br />
Senhor por mim e comigo. Sede Vós o<br />
meu “alto-falante” celeste e falai a Ele.<br />
Vinde minha Mãe e cobri minhas<br />
manchas, porque na presença d’Ele sou<br />
indigno e carregado de defeitos. Vinde<br />
resolver essa minha dificuldade. Obtende<br />
que Nosso Senhor Jesus Cristo não<br />
entre em análise comigo, e vá me perdoando<br />
antes mesmo de entrar em mim.<br />
Vinde com vosso sorriso, vossa voz e<br />
vossas palavras atraentíssimas a vosso<br />
Divino Filho. Amém.<br />
Flávio Lourenço<br />
Anunciação - Museu da Catedral de<br />
São Domingos - La Rioja, Espanha<br />
5
Dona Lucilia<br />
O xale lilás<br />
O xale tem algo de supérfluo que bem manuseado pode dar<br />
ares de nobreza, de dignidade. Para uma senhora que tem a<br />
idade do Sol quando se põe, convém um xale discreto, distinto,<br />
mas que orne os ocasos. E uma das cores adequadas para Dona<br />
Lucilia era o lilás, que possui alguma coisa do refletido, do<br />
tristonho, do organizado, daquilo que já caminha para o fim.<br />
Embora um espírito não tenha<br />
cor, pois não é de natureza<br />
material, pode-se relacionar<br />
estados de alma a determinadas<br />
cores, procurando ver nelas o espírito<br />
que se reflete. Assim, poderíamos nos<br />
perguntar se existe um espírito cor de<br />
amaretto, nacarado ou dourado. A cor<br />
é apenas um símbolo material de um<br />
estado de alma espiritual, imaterial.<br />
Cor, aroma, som, sabor e<br />
traçado de uma linha<br />
Numa primeira abordagem, a resposta<br />
à pergunta resulta em uma banalidade,<br />
porque é claro que a estados<br />
de espírito correspondem cores. Por<br />
exemplo, ao negro corresponde o luto.<br />
E não é por uma analogia, por uma relação<br />
convencional, mas por uma correspondência<br />
natural. O homem que<br />
está morto não vê, não sente. Ele está<br />
para com a vida como um cego para<br />
a feeria das luzes, quer dizer, não vê.<br />
Encontra-se numa noite, num escuro<br />
“eterno”, em que ele não vê nada.<br />
Por outro lado, há cores festivas<br />
que indicam estados de alma jubilosos,<br />
triunfais, como existem cores e<br />
tonalidades que denotam o repouso.<br />
A experiência mostra que os artistas<br />
utilizam em suas obras esta ou<br />
aquela cor para exprimir um determinado<br />
estado de espírito. Logo, essa<br />
reversibilidade existe.<br />
Entretanto, poderíamos ir mais<br />
longe e perguntar se nos seria possível,<br />
tratando com pessoas, perceber<br />
que cor corresponde a este ou àquele<br />
indivíduo como mentalidade e se,<br />
portanto, as pessoas têm cores, nesse<br />
sentido. Evidentemente não entra<br />
em consideração aqui a etnia.<br />
Se estabelecermos com uma pessoa<br />
um contato no qual ela não se sinta<br />
forçada a representar um papel,<br />
não tenha o empenho de se falsificar<br />
para se tornar agradável; portanto,<br />
tomada a pessoa na sua autenticidade,<br />
e suposto um convívio em que,<br />
pela continuidade, os vários aspectos<br />
dela vão aparecendo e se completando<br />
– o que não implica em um convívio<br />
necessariamente muito longo,<br />
basta que seja proporcionado ao discernimento<br />
do observador –, poderíamos<br />
dizer que cada pessoa causa uma<br />
impressão dominante. A meu ver, essa<br />
impressão dominante seria redutível,<br />
simbolizável numa cor.<br />
Até acho mais: se, como vimos, a cada<br />
pessoa poderia corresponder uma<br />
cor ou uma tonalidade dentro de uma<br />
cor, donde decorreria matizações mais<br />
ou menos indefinidas, também a cada<br />
família poderia corresponder uma cor,<br />
como um aroma, um som, um sabor.<br />
Isso ocorre também com as formas,<br />
pois o modo habitual de caminhar na<br />
vida, a conduta da pessoa ou da família<br />
seria passível se reduzir ao traçado<br />
de uma linha. Assim, há pessoas cuja<br />
conduta é simbolizada por uma linha<br />
cambaleante, outras por uma linha reta,<br />
e outras ainda pela espiral.<br />
O prático e o estético<br />
A única pessoa que eu reduzi a uma<br />
cor, muitos anos depois de ter cessado<br />
minha convivência com ela, foi mamãe.<br />
Realmente o brilho de ametista<br />
era bem o lumen dela. Pude notar que<br />
o meu gosto pela ametista, já quando<br />
Dona Lucilia era viva, correspondia a<br />
um modo de querê-la bem.<br />
Enquanto ela estava viva, eu<br />
nunca fiz esta reversão. A posteriori,<br />
quando cheguei a realizá-la, dei-<br />
-me conta de quanto tudo que cercava<br />
mamãe estava imerso naquela<br />
luminosidade da ametista, de cor<br />
um pouco dada a escura. Não é, portanto,<br />
dessas ametistas um pouco esbranquiçadas.<br />
É ametista de valor,<br />
de cor nutrida, quase de quaresma.<br />
O xale que ela usava continuamente<br />
estava em consonância com isso.<br />
6
Em geral, quando se trata do assunto<br />
traje, nas épocas mais ou menos<br />
bem constituídas como ainda era o<br />
tempo em que ela viveu, ao menos<br />
por alguns aspectos, vê-se que há<br />
uma espécie de composição entre<br />
o lado prático e o estético. As<br />
pessoas se fazem uma certa ideia<br />
do lado prático e depois com isso<br />
vêm algumas ideias do lado estético.<br />
E fazem disso um total que<br />
não se sabe o que prepondera<br />
mais: o prático ou o estético.<br />
O xale é característico a esse<br />
respeito. A ideia é a seguinte. Naquela<br />
época havia muito medo dos<br />
resfriados. E se compreende bem,<br />
porque não existiam antibióticos como<br />
hoje. E para curar um resfriado<br />
era preciso muito cuidado, porque senão<br />
degenerava com certa facilidade<br />
em gripe. E gripe podia degenerar<br />
em pneumonia, e esta em tuberculose.<br />
E a tuberculose, que é uma moléstia<br />
infecciosa, matava um número muito<br />
grande de gente no tempo em que<br />
Dona Lucilia era moça. Basta dizer<br />
que nas peças de teatro, a maior parte<br />
dos heróis e heroínas que são apresentados<br />
morrendo, falecem de tuberculose.<br />
De tal maneira essa doença se<br />
tornou frequente naquele tempo.<br />
E o resfriado era o começo de uma<br />
estrada descendente que chegava até<br />
a tuberculose. Então as pessoas tomavam<br />
um cuidado enorme contra o resfriado,<br />
que hoje não se justifica mais<br />
com a facilidade que se tem em combater<br />
as doenças infecciosas. A ideia prática<br />
para evitar os resfriados, e sobretudo<br />
as doenças de pulmão, era as senhoras<br />
protegerem os pulmões por meio<br />
do xale. Então vê-se que o xale envolve<br />
e protege essa parte mais sensível do<br />
corpo contra o perigo das pneumonias.<br />
Ornato para exprimir<br />
a mentalidade<br />
Dessa ideia prática apoderou-se a<br />
arte. E o xale usado pelas senhoras do<br />
tempo foi adotado como uma espécie<br />
de ornato, para a expressão da mentalidade<br />
delas. Então, o xale – como<br />
aquilo que fica por cima do corpo, e<br />
que tem mais relação com o vestido,<br />
forma o busto da pessoa – era muito<br />
indicativo da mentalidade da senhora.<br />
E numa senhora com xale aparece<br />
sobretudo o busto, que é formado<br />
pelo rosto, pescoço e a área do xale;<br />
e depois a saia. As saias eram longas<br />
e chegavam em geral até os pés. Portanto,<br />
tinham outra importância indumentária,<br />
em comparação com esses<br />
saiotes vagabundos de hoje.<br />
O xale, por outro lado, tinha algo<br />
de particularmente nobre, porque<br />
o verdadeiro e bonito do xale é ter<br />
qualquer coisa de supérfluo. Eram<br />
panos longos que a pessoa não colocava<br />
só para fechar exatamente como<br />
um pulôver; dobrava-se o xale para<br />
um lado, depois para o outro. E o<br />
supérfluo bem manuseado pode dar<br />
ares de nobreza, de dignidade. De<br />
maneira que o xale facilmente nobilitava<br />
a senhora que soubesse usá-lo.<br />
Os modos de pôr, dobrar e arranjar<br />
o xale eram quase atitudes rituais.<br />
E a senhora mostrava a educação,<br />
a linha e a inteligência que possuía,<br />
a propósito do xale.<br />
O xale de Dona Lucilia era semelhante<br />
aos que tinham incontáveis senhoras<br />
daquele tempo. Ela o usava<br />
daquela forma e se velava com o xale<br />
muito compostamente, suavemente.<br />
Os xales dela tinham um<br />
misto de distinção e suavidade no<br />
modo de se apresentarem, que<br />
realmente me encantava.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Uma senhora que<br />
tem a idade do Sol<br />
quando se põe<br />
A cor e os desenhos do xale<br />
eram relativos à situação e à idade<br />
da senhora que o usava. De maneira<br />
que a uma senhora idosa não ficava<br />
bem, por exemplo, um xale vermelho<br />
ou faiscante de lantejoulas douradas<br />
ou prateadas; seria uma coisa<br />
medonha.<br />
Para uma senhora que tem a idade<br />
do Sol quando se põe, convém um xale<br />
discreto, distinto, que orne os ocasos.<br />
E nessas condições, uma das cores<br />
adequadas para mamãe era o lilás,<br />
que tem ao mesmo tempo algo do<br />
azul, não tem dúvida, mas alguma coisa<br />
do refletido, do tristonho, do organizado,<br />
daquilo que já caminha para o<br />
fim. O lilás ficava muito bem para ela.<br />
Aquele xale foi trazido por minha<br />
irmã de uma viagem à Europa. Tenho<br />
quase certeza de que ela o comprou<br />
em Paris. Minha irmã tem muito espírito<br />
prático e ao mesmo tempo sabe<br />
vestir-se muito bem. E era um xale<br />
que tinha três finalidades: aquece<br />
muito, pesa pouco – é importante<br />
que pese pouco sobre os ombros de<br />
uma senhora idosa – e orna bem.<br />
Embora seja normal que uma<br />
pessoa, vestindo esse xale, o use sobretudo<br />
nas ocasiões em que está<br />
diante de pessoas estranhas, porque<br />
é um bonito ornato, ela de tal<br />
maneira gostou dele que começou a<br />
usá-lo todos os dias. v<br />
(Extraído de conferências de<br />
6/7/1980 e 25/8/1983)<br />
7
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Instintos e senso do ser<br />
Samuel Holanda<br />
O Batismo dá ao senso do ser a luz<br />
que ele procura, proporcionando um<br />
equilíbrio de todos os instintos, sem<br />
o qual o homem cai nos desatinos<br />
característicos do mundo de hoje. O<br />
desvario dos instintos é um fator muito<br />
importante do progresso da Revolução.<br />
O grande instinto fundamental é o senso<br />
do ser, que o indivíduo conhece por<br />
conaturalidade e por evidência absoluta.<br />
As leis de funcionamento dos<br />
instintos constituem princípios<br />
muito claros que ajudam<br />
enormemente a compreender<br />
a história da Revolução tendencial.<br />
Porque os instintos humanos não jogam<br />
apenas em função de coisas materiais,<br />
mas, colocados diante de quadros<br />
de caráter intelectivo, são também<br />
capazes de reação. Sobretudo<br />
quando se trata de quadros que, por<br />
meios sensíveis, fazem-lhes perceber<br />
coisas intelectivas. Por exemplo, uma<br />
cerimônia eclesiástica faz entender<br />
ao homem realidades doutrinárias –<br />
como normas, princípios, verdades –<br />
através de meios sensíveis.<br />
Equilíbrio instintivo<br />
e santidade<br />
Essa correlação é evidente e tem<br />
por efeito que o instinto, com as suas<br />
mutabilidades, possui capacidade de<br />
saciar-se de verdades, como de erros,<br />
e querer modificações,<br />
porque é próprio do instinto<br />
mover-se assim.<br />
Essa mobilidade dos<br />
instintos, essa espécie<br />
de desconjuntamento<br />
do instinto com a razão<br />
constitui uma causa profunda<br />
do perpétuo sofrimento<br />
do homem concebido<br />
no pecado original.<br />
O homem sem o pecado<br />
original não tinha<br />
isso.<br />
É muito bonito ver<br />
como a graça atua na<br />
alma humana, porque<br />
ela dá ao homem, por<br />
uma espécie de experiência<br />
mística, um<br />
prenúncio do Céu e<br />
da vida de Deus, o sabor<br />
de uma eternidade<br />
longínqua da qual<br />
se tem uma antecipa-<br />
São Domingos de Gusmão (por Fra Angelico)<br />
Convento de São Marcos, Florença, Itália<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
8
ção aqui na Terra, e que é uma certa<br />
degustação – dentro de um caos<br />
que é preciso aceitar na batalha,<br />
no ardor, na consolação, no sacrifício<br />
– sempre acompanhada de algum<br />
elemento que tem seu papel no jogo<br />
dos instintos, enquanto ordenativo e<br />
que eleva. É a graça de Deus, única<br />
e incomparável, atuando até o fundo<br />
e dando um equilíbrio que o homem,<br />
pelos seus instintos, não seria capaz<br />
de conceber, mas que pacifica seus<br />
instintos e lhe confere santidade.<br />
A meu ver, um exemplo magnífico<br />
disso são as obras de muitos pintores<br />
do século XV, mas de Fra Angelico<br />
de modo muito saliente e excelente.<br />
Por exemplo, aquele quadro que<br />
representa São Domingos meditando<br />
provavelmente o Evangelho. O<br />
que há de equilíbrio instintivo ali, na<br />
linha do que estou dizendo, é um tesouro<br />
tal que, olhando para aquela<br />
pintura, não se sabe o que dizer.<br />
Faria bem ter esse quadro na sala de<br />
trabalho, com o intuito de embeber<br />
os próprios instintos daquele equilíbrio<br />
e daquela paz conferidos pela<br />
Escritura e pela graça.<br />
Em grande parte, por sermos católicos,<br />
sentimos em nós o sumo<br />
equilíbrio e a santidade que esse fator<br />
coloca, pois o Batismo dá ao senso<br />
do ser, na sua inocência primeira,<br />
a luz que ele procura, proporcionando,<br />
in radice, um equilíbrio de todos<br />
os instintos. A pessoa que não<br />
tenha esse equilíbrio cai em convulsões,<br />
exageros, espasmos, torvelinhos,<br />
doidices, característicos desse<br />
mundo que estamos vendo.<br />
O gótico flamboyant<br />
Com efeito, é preciso olhar para<br />
o desvario dos instintos como um<br />
fator muito importante, embora não<br />
seja o único, do progresso da Revolução.<br />
Exemplifico com o fim do gótico.<br />
Quando chegou o gótico flamboyant,<br />
sentia-se que o gótico tinha<br />
dado de si tudo quanto devia. Entretanto,<br />
o gótico é tão excelente que<br />
se diria ser um estilo perfeito e, uma<br />
vez abandonado, qualquer outra coisa<br />
que viesse depois corresponderia<br />
a uma prevaricação.<br />
Ora, há qualquer coisa por onde,<br />
se a virtude tivesse continuado, ter-<br />
-se-ia a percepção artística de qual<br />
era o caminho por onde, continuando<br />
o gótico, ir-se-ia, entretanto, além<br />
dele. Mas como entrou a degenerescência<br />
da Idade Média, os homens<br />
não foram capazes de prolongar o<br />
gótico. Veio a Revolução que apresentou<br />
a Renascença. Por quê? Porque<br />
os instintos estavam exaustos do<br />
Catedral de Burgos, Espanha<br />
gótico também. A perpétua ogiva, o<br />
perpétuo vitral...<br />
De fato, o perpétuo equilíbrio também<br />
precisa encontrar as suas variedades<br />
harmônicas ousadas, porque,<br />
do contrário, neste vale de lágrimas,<br />
até o equilíbrio perfeito cansa. Então,<br />
o próprio equilíbrio deve saber gerar,<br />
não os desequilíbrios, mas as unilateralidades<br />
harmônicas que tocam para<br />
um lado e depois para outro, fazendo<br />
disso um equilíbrio original.<br />
Quer dizer, ir para a frente na linha<br />
da tradição, inovar no sentido<br />
da continuidade, tudo isso está relacionado<br />
com as leis de como os ins-<br />
Jose Luis Filpo Cabana (CC3.0)
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Takeshi T. N.<br />
Claustro do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, Brasil<br />
tintos podem ser alterados. Há certos<br />
momentos em que é preciso fazer<br />
a variedade, e outros nos quais as<br />
civilizações mudam e caem porque<br />
não houve a originalidade para tocar<br />
adiante.<br />
Os instintos podem progredir.<br />
Quando eles se movem ordenadamente,<br />
vão exigindo continuidades e<br />
mudanças pelas quais eles se afinam<br />
e progridem.<br />
Era preciso que, ao longo da História,<br />
a Igreja fosse mostrando a sua<br />
santidade, mas sempre variando harmonicamente,<br />
de tal maneira que<br />
a santidade da Igreja não fatigasse<br />
nunca. Ela só cansa os homens que<br />
não têm a alma reta. Aos homens de<br />
alma reta, ela não fatiga nunca. Porém,<br />
vai gerando santos e mais santos<br />
diferentes. É um progresso, portanto,<br />
com uma variedade enorme<br />
dentro da unidade. Suponho que os<br />
santos dos últimos tempos vão ser<br />
uma síntese de tudo isso.<br />
Mongezinhos do<br />
Convento de São Bento,<br />
no Rio de Janeiro<br />
Então, eu imagino ser esse o modelo<br />
de todas as variedades que os<br />
instintos humanos fariam, se os homens<br />
fossem fiéis à sua vocação e à<br />
graça. E que nós teríamos modalidades<br />
assombrosas de beleza da alma<br />
humana e das civilizações, se isso<br />
fosse feito assim.<br />
Isso contraria a ideia errada pela<br />
qual se pode ser ranzinza, aborrecido,<br />
agressivo, medroso, dar largas<br />
aos instintos como quiser, não tem<br />
importância, desde que não se caia<br />
em pecado. Ora, isso não é verdade<br />
porque traz consigo raízes de pecado.<br />
E se essas raízes passam por convulsões<br />
loucas, as plantas delas nascidas<br />
o que podem ser?<br />
Pelo contrário, os instintos educados<br />
desde quando a pessoa é pequena<br />
– com amor, bondade, continuidade<br />
e força – têm uma ordenação que<br />
mostra o quanto a vida não se reduz a<br />
raciocínios, mas consiste na educação<br />
que produz essa ordenação.<br />
Eu não posso me esquecer da primeira<br />
vez em que fui ao Convento de<br />
São Bento, no Rio, e vi passar diante<br />
de mim, de repente, menininhos de<br />
doze ou treze anos vestidos de fradinhos,<br />
conversando no claustro, de dois<br />
em dois, com ares de mongezinhos.<br />
Perguntei a um frade que estava lá:<br />
– Que crianças são essas?<br />
– Esse é o pré-seminário beneditino.<br />
Era preciso ver aquele hieratismo<br />
beneditino, o passo que eles davam,<br />
o modo pelo qual o escapulário preto<br />
caía para trás, aquele jeito todo como<br />
já ia se formando; uma maravilha.<br />
Quando mais tarde conheci a palavra<br />
espanhola monaguillo, achei<br />
um encanto, e creio que originariamente<br />
designava esse “fradezinho”<br />
que estuda, ainda criança, no se-<br />
10
minário. Suponho que o coroinha,<br />
por analogia, é chamado monaguillo,<br />
porque esses meninos com certeza<br />
ajudavam a Missas no convento.<br />
Eram os coroinhas do convento.<br />
O grande instinto<br />
fundamental humano<br />
A tendência ao mutável faz com que<br />
certas apetências do instinto caduquem<br />
legitimamente. É uma caducidade saudável,<br />
correspondente à tendência do<br />
ser humano para a mudança, que é um<br />
elemento propulsor do homem.<br />
Na parábola do filho pródigo,<br />
Nosso Senhor deixa entender que a<br />
casa daquele pai era irrepreensível,<br />
por ser o pai irrepreensível, e que<br />
o filho deixou a residência paterna<br />
sem razão nenhuma. Teria mesmo<br />
deixado a casa paterna sem motivo<br />
algum? É evidente que houve<br />
uma saturação má dos defeitos, em<br />
relação à ordem dentro da residência.<br />
Esta saturação representou uma<br />
mudança das paixões desordenadas<br />
sobre os instintos. Os instintos passaram<br />
a pedir coisas más, em nexo<br />
com as paixões desordenadas. E isso<br />
o levou a sair de casa. Depois ele<br />
apanhou, passou a amar a ordem, e<br />
a graça o fez mudar. É muito bonito.<br />
Eu julgaria ousado dizer que haja<br />
um instinto fundamental, o qual seja<br />
matriz de todos os outros instintos. Mas<br />
que exista instintos básicos dos quais os<br />
outros são variantes, nesse sentido matriz,<br />
se poderia afirmar. Tenho a impressão<br />
de que, nesse sentido, o grande<br />
instinto fundamental é o senso do ser,<br />
que o indivíduo conhece por conaturalidade<br />
e por evidência absoluta.<br />
O senso do ser, com toda a sua riqueza<br />
prodigiosa, é correlato com o<br />
conceito de ser, mas não se deve confundir<br />
um com o outro. Tudo quanto<br />
o indivíduo pense em função do conceito<br />
de ser, tudo que se mova nele<br />
na linha instintiva é uma derivação<br />
do senso do ser. Por exemplo, o horror<br />
da morte, da podridão, de certas<br />
coisas hediondas, que são como que<br />
a expressão do aniquilamento, é instintivo<br />
e correlato com o senso do ser.<br />
Nesse sentido, a meu ver, ele é um<br />
grande instinto fundamental humano.<br />
E esse instinto do ser, assim considerado,<br />
o animal não tem. Embora<br />
seja dotado de instintos, o animal<br />
não sabe o que ele é. E o senso do<br />
ser ao qual me refiro é intelectivo.<br />
É, sem dúvida, um sentido, mas é o<br />
homem inteligente que sente, embora<br />
não seja propriamente um ato de<br />
abstração. É o fundamento de todo<br />
o outro jogo dos instintos.<br />
O senso e o conceito de ser existem<br />
para viverem juntos, completam-se.<br />
Como eu não sou um Anjo,<br />
o meu senso do ser tem que ser corroborado<br />
por um conceito. Tão logo<br />
minha inteligência comece a funcionar,<br />
o meu senso do ser passa a se desenvolver<br />
e a se aperfeiçoar, porque<br />
já existe a noção do ser, embora muito<br />
embrionária, própria de uma criança.<br />
Mas a criança já tem um conhecimento<br />
do ser, em si, primeiro, evidente,<br />
como que instintivo, ou seja, que<br />
Helen Keller em 1907<br />
toca nos instintos; o senso e o conceito<br />
de ser vêm juntos. Se o ser humano<br />
não tivesse, com a inteligência, também<br />
o instinto do ser, não seria capaz<br />
de ter o conhecimento do ser. São<br />
elementos que se completam.<br />
Senso de nossa contingência<br />
A única ideia inata existente no homem<br />
é a do ser. Compreende-se, porque<br />
toda ideia o homem adquire em<br />
função de outra ideia. Assim, é preciso<br />
haver uma primeira ideia que não nasceu<br />
do nada, do contrário o ser humano<br />
não é capaz de ter nenhuma.<br />
São Tomás, para provar que existem<br />
evidências, argumenta que todo<br />
raciocínio é deduzido de premissas.<br />
Se não existissem premissas evidentes<br />
que independem de um silogismo,<br />
nunca haveria um primeiro raciocínio<br />
certo.<br />
Assim, uma pessoa como Helen<br />
Keller 1 , por exemplo, que só conheceu<br />
o mundo externo pelo tato, ao receber<br />
o primeiro contato, concluiria instintivamente<br />
o seguinte: algo que não sou<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
11
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
eu tocou em mim. Donde se vê que esta<br />
ideia “eu e algo” – que são noções<br />
de ser – estava dormente nela.<br />
É essa espécie de monarquia do senso<br />
e da ideia do ser que preside toda esta<br />
matéria de que estamos tratando.<br />
Quando um indivíduo toma droga<br />
para entrar no reino do irreal, ele<br />
tem o seu instinto do ser viciado, deformado.<br />
O desejo de ingerir droga<br />
para evadir-se da realidade, uma vez<br />
consentido, é um pecado contra o<br />
instinto do ser, porque a pessoa deve<br />
ter apetência da realidade, mesmo<br />
quando dolorida, inclusive porque,<br />
sendo concebidos no pecado original,<br />
nós temos e devemos ter uma<br />
certa apetência de sofrer, como algo<br />
que põe em ordem nossa alma.<br />
O senso de nossa contingência é, a<br />
meu ver, uma das modalidades do instinto<br />
do ser. Certamente, se não sentíssemos<br />
nossa contingência, não tenderíamos<br />
para Deus. Por outro lado<br />
– e isso é muito bonito – se sentimos<br />
nossa contingência é porque dorme<br />
em nós um certo senso do absoluto.<br />
Exatamente, um dos pecados que<br />
a Revolução Industrial mais alimenta<br />
em nós é dispensar esta necessidade<br />
que a alma tem do absoluto, da lógica<br />
última, da regra certa, e substituir pelo<br />
superficial, episódico, efêmero que<br />
produz um contentamento de periferia<br />
no homem, por onde as profundidades<br />
da alma ficam abandonadas e se<br />
transformam em antros tenebrosos.<br />
Revolução Industrial:<br />
perpétua evasão do absoluto<br />
A Revolução Industrial leva a<br />
uma perpétua evasão do absoluto<br />
para dentro de uma miragem, que é<br />
o efêmero, o circunstancial, dando-<br />
-nos a ilusão de que isso pode preencher<br />
a falta que nos faz o absoluto.<br />
Então, pondo uma impressão em cima<br />
da outra e levando essas impressões<br />
ao paroxismo. O sofisma do demônio<br />
está nisto: “Queres o absoluto?<br />
Está bem. Eu te dou o paroxismo<br />
que te faz tocar com os dedos o<br />
absoluto.” Ora, isso é mentira. O paroxismo<br />
não faz tocar o absoluto. O<br />
absoluto leva determinadas coisas a<br />
seu legítimo paroxismo, mas o mero<br />
paroxismo não conduz ao absoluto.<br />
Então, a pessoa sai correndo de um<br />
trem, entra num avião, desce do avião<br />
e toma um ônibus que a espera na pista<br />
e a conduz até o local para onde um<br />
outro mecanismo já levou as malas; ela<br />
fica esperando junto à esteira que vem<br />
trazendo a bagagem. Depois, toma um<br />
táxi e ruma para o hotel onde, à maneira<br />
de uma colmeia, entra num alvéolo…<br />
São impressões, arranjos, etc.<br />
Quando um indivíduo, cansado<br />
de valores relativos, chegou a esses<br />
paroxismos tem uma ilusão de que<br />
se deu a ele o absoluto. Ora, o absoluto<br />
não é isso. Pelo contrário, a continuidade<br />
patriarcal, esta sim, faz tocar<br />
no absoluto, e é muito mais conforme<br />
às exigências do senso do ser.<br />
Em francês faz-se a distinção entre<br />
gourmet e gourmand. O gourmet<br />
é a pessoa que aprecia alimentos de<br />
excelente sabor, enquanto o gourmand<br />
ingere quantidades. Mas por<br />
ser concebido no pecado original, o<br />
homem procura, por uma via ou por<br />
outra, de algum modo satisfazer apetências<br />
de seu corpo que dão ao seu<br />
instinto do ser a ilusão de que ele está<br />
satisfeito. Porém, o que comanda<br />
tanto o gourmet quanto o gourmand<br />
é uma necessidade do senso do ser.<br />
Senso da família<br />
Algo disso se passa em relação ao<br />
instinto de sociabilidade. Por mais<br />
que a pessoa tenha horror à multidão,<br />
à massa, se ela é obrigada a<br />
passar longo tempo de cama devido<br />
a alguma enfermidade, ao sair pela<br />
primeira vez tem uma sensação de<br />
que ver muita gente completa uma<br />
exigência do instinto do ser.<br />
O homem pode fazer, isto sim, um<br />
sacrifício saudável, que já não vem de<br />
uma apetência instintiva, mas é a vontade<br />
de sacrificar-se. Contudo, mesmo<br />
nisso creio estar presente algo<br />
de instintivo, porque o pecado deixa<br />
uma marca que “frita” o instinto. Enquanto<br />
não vem a absolvição, o homem<br />
ferve. Recebida a absolvição,<br />
ele tem vontade de limpar-se daquilo<br />
que já não está nele, mas que lhe<br />
deixou uma certa sujeira. Então ele<br />
faz penitência. Daí o Purgatório, aliás.<br />
As almas do Purgatório têm que<br />
restituir um certo gozo ilegítimo que<br />
tiveram. Elas estão contentes de estarem<br />
no Purgatório para se libertarem<br />
disso. Sofrem sim, mas por uma<br />
necessidade onde o senso do ser participa<br />
e, em certo sentido, comanda.<br />
Há, ao lado do senso do ser, o que<br />
se poderia chamar o senso da família,<br />
que não é senão um desdobramento<br />
do senso do ser. Quer dizer, é um aspecto<br />
das operações do senso do ser<br />
por onde o indivíduo sente que, pelo<br />
fato de pertencer a uma mesma estirpe,<br />
o ser dele participa mais do de seu<br />
pai e sua mãe e seus irmãos do que dos<br />
parentes mais distantes. Mas que ele<br />
e os parentes participam mais um dos<br />
outros, como ser, do que os estranhos<br />
à família. Isso forma exatamente uma<br />
ordenação que vai se diluindo quase<br />
até não existir, como hoje em dia. Precisamente<br />
porque o senso do ser está<br />
obliterado, perseguido de todos os<br />
modos possíveis em nossos dias.<br />
Temperamento<br />
Com base em minhas observações<br />
– não fiz um estudo aprofundado sobre<br />
o assunto –, eu seria levado a dizer<br />
que o temperamento se refere ao<br />
modo pelo qual vibram nos nervos do<br />
indivíduo as impressões e emoções.<br />
Pode ser que a inteligência crie condições<br />
muito difíceis para o bom funcionamento<br />
dos nervos, das glândulas<br />
e tudo o mais, quando o indivíduo<br />
adota uma ideia ou um sistema filosófico<br />
falso; como pode ser também<br />
que o conjunto das disposições nervosas,<br />
glandulares e outras criem con-<br />
12
dições muito difíceis para o indivíduo<br />
ver a verdade. Mas fica sempre como<br />
fiel da balança a inteligência e a vontade<br />
capazes de discernir e responsáveis<br />
por não seguir a verdade.<br />
Isso tem relação evidente com<br />
os instintos, no seguinte sentido:<br />
o senso do ser, que concebemos<br />
como sendo espiritual,<br />
não é um elemento do puro<br />
espírito; tem um certo nexo<br />
com o próprio ser do corpo<br />
e com algo que determina<br />
a unidade do corpo e de todos<br />
os seus movimentos, e que comanda<br />
o corpo como o senso<br />
do ser comanda todo o resto.<br />
Por assim dizer, seria a “torre<br />
de comando” do homem:<br />
a alma com a inteligência e a<br />
vontade, suas deliberações espirituais<br />
e livres; em seguida,<br />
essa parte dos sensos e, depois,<br />
a dos temperamentos, a vida<br />
biológica, influindo uns sobre<br />
os outros continuamente. Porém,<br />
com o comando da inteligência<br />
e da vontade. Comando<br />
não fácil, mas certo; às vezes,<br />
na bruma, mas diáfano. O homem,<br />
se for reto, sente que ele<br />
pode, por sua inteligência, saber<br />
o que deve saber e decidir<br />
o que deve decidir. A questão é<br />
saber navegar na bruma.<br />
“Eu sou aquele que é”<br />
Seria muito bonito se pudéssemos<br />
constituir uma análise<br />
de toda a vida espiritual a partir<br />
do exame de como é nosso<br />
senso do ser, se ele está em ordem;<br />
como é a ordem do senso<br />
do ser e como nós estamos<br />
construídos em função disso.<br />
Seria uma meditação que eu<br />
colocaria como desdobramento<br />
do primeiro Mandamento,<br />
porque amar a Deus sobre todas<br />
as coisas é conexo com isso.<br />
Aliás, na busca do efêmero<br />
oferecido pela Revolução Industrial,<br />
descrita acima, há um ateísmo virtual,<br />
é uma civilização ateia. O coletivismo,<br />
enquanto nega a individualidade<br />
e quer absorver tudo numa pansociedade,<br />
nega o senso do ser.<br />
O Divino Mestre - Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus, Montreal, Canadá<br />
Em Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo<br />
contrário, nós encontramos a afirmação<br />
desse Ser numa plenitude, numa<br />
força, numa bondade, numa irradiação<br />
solar especial, sublime, equilibrada,<br />
harmônica. E de modo muito<br />
eloquente na devoção ao Sagrado<br />
Coração de Jesus. Evidentemente,<br />
este é o cerne.<br />
Na concepção da Revolução,<br />
o Deus transcendente é uma<br />
mentira que o homem, iludido<br />
pela ideia de que Ele é um indivíduo,<br />
fabrica. Mas verdadeiro é<br />
o pandeus, que tem como imagem<br />
na realidade o pan-individualismo,<br />
o pampsiquismo.<br />
Nessa clave, nosso grande<br />
brado deve ser no sentido de<br />
despertar nos indivíduos a experiência,<br />
por assim dizer, moribunda<br />
do próprio “eu”. Então,<br />
diante da morte do próprio<br />
“eu” alguns não se deixam<br />
tragar pela morte, e aceitam<br />
a ideia do seu próprio ser,<br />
da transcendência recíproca<br />
dos seres e da ordenação hierárquica<br />
das coisas. No fundo,<br />
veem que algo transcende. E<br />
se algo transcende, todas as alteridades<br />
são verdadeiras.<br />
Essa é a ordem do bem. A<br />
conversão leva à aceitação da<br />
Religião Católica nas suas expressões<br />
mais genuínas, puras e<br />
nobres. Ao dizer “Eu sou aquele<br />
que é” (Ex 3, 14), Deus Nosso<br />
Senhor afirmou: “Eu sou<br />
o Ser absoluto, em função do<br />
qual todos os seres relativos e<br />
contingentes se explicam.” v<br />
Gabriel K.<br />
(Extraído de conferência de<br />
29/12/1985)<br />
1) Escritora e conferencista norte-americana.<br />
Foi a primeira pessoa<br />
surda e cega de nascimento<br />
a conquistar um bacharelado<br />
(*1880 - †1968).<br />
13
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
IABI (CC3.0)<br />
A perfeita<br />
felicidade<br />
Godofredo de Bouillon<br />
entrando em Jerusalém<br />
durante a Primeira Cruzada<br />
Por vezes, a primeira etapa da vida<br />
de uma pessoa parece ser a mais feliz<br />
de sua existência. Será que a vida<br />
consiste na procura inútil de uma<br />
felicidade que ficou para trás? Ora,<br />
Deus não poderia permitir que assim<br />
fosse, e nos faz ser visitados por uma<br />
felicidade provinda da alegria do<br />
esforço vitorioso, prenúncio da eterna<br />
bem-aventurança, que baixa sobre<br />
nós como uma estrela saída das<br />
maternais mãos de Maria.<br />
H<br />
á um período inicial da<br />
vida do homem, ao menos<br />
para a grande maioria<br />
dos homens, que vai pouco mais<br />
ou menos do momento em que ele<br />
começa a conhecer o mundo externo<br />
até as primeiras desilusões com<br />
os seus amigos, quando estas não se<br />
dão dentro de sua própria casa.<br />
Inesquecível felicidade da<br />
primeira etapa da vida<br />
Nessa primeira etapa a vida há<br />
uma sequência contínua de felici-<br />
dades, e as pessoas têm uma alegria<br />
da qual não se esquecem até o<br />
fim de sua existência. Quando chegam<br />
à extrema velhice, depois de terem<br />
passado pelas situações de alma<br />
as mais diferentes e, portanto, tendo<br />
alcançado às vezes os maiores triunfos,<br />
como também escorregado até<br />
o mais baixo das derrotas mais aflitivas,<br />
elas gostam de se lembrar daquela<br />
felicidade primeira, como se<br />
tivesse sido algo que, uma vez perdido,<br />
não se recupera mais. E isso era,<br />
para elas, o verdadeiro sentido da felicidade.<br />
Por vezes, ainda na juventude, depois<br />
de o indivíduo percorrer os primeiros<br />
quatro ou cinco passos da vida,<br />
olha para trás e percebe que naquele<br />
período ele realmente era feliz, mas<br />
não sabia que o era. Parecia-lhe tão<br />
natural tudo correr bem, ele acomodava-se<br />
facilmente ao muito ou ao pouco<br />
que sua família possuía; oh, felicidade!<br />
O sujeito avança um pouco na vida<br />
e percebe, de repente, que está<br />
cercado de preocupações, decepções,<br />
tem interrogações confusas,<br />
obscuras em relação ao futuro,<br />
sente carências, perplexidades e, ao<br />
14
mesmo tempo, uma vontade louca<br />
de viver. Mas, no meio de tudo isso,<br />
aquela felicidade sem mancha e sem<br />
nuvens do passado ficou para trás.<br />
Para gozar bem a vida na Terra,<br />
a pergunta verdadeira seria: Como<br />
voltar àquela felicidade?<br />
Por vezes, os maiores poetas, os<br />
homens que passaram por situações<br />
as mais emocionantes e agradáveis,<br />
quando falam do tempo de sua primeira<br />
infância se comovem.<br />
Considerem a tragédia do homem<br />
que, pouco depois de ter dado uns<br />
passos iniciais numa grande estrada<br />
em busca de algo, percebe ter ficado<br />
para trás o que ele procurava, mas<br />
ele não pode voltar.<br />
Napoleão não<br />
encontrou a felicidade<br />
na carreira gloriosa...<br />
A Córsega é uma ilha que no século<br />
XVIII tinha sido incorporada à<br />
França. Havia lá a família Bonaparte<br />
a qual, perseguida por razões políticas,<br />
por ter participado de guerrilhas<br />
naquelas montanhas íngremes, teve<br />
que se mudar para a França, em condição<br />
pobre. Lá, o mais velho da família,<br />
Napoleão, por condescendência<br />
do rei, foi recebido como cadete<br />
na escola de oficiais.<br />
Ele, então, começou sua carreira<br />
que comportou tudo, teve uma<br />
ascensão contínua, passou por vitórias<br />
militares inebriantes, foi coroado<br />
imperador dos franceses, casou-<br />
-se com uma arquiduquesa da casa<br />
imperial mais ilustre do mundo,<br />
a de Habsburg, presidiu congressos<br />
de imperadores, reis, príncipes, duques;<br />
aos seus pés as plateias eram<br />
de cabeças coroadas. Contava-se este<br />
caso: Em determinado palácio onde<br />
Napoleão se encontrava, foi dado<br />
um toque característico da entrada<br />
de um hóspede ilustre. Então um<br />
soldado perguntou para o outro:<br />
– Mas quem está chegando?<br />
– Ah! não é senão um rei…<br />
Tantos eram os imperadores que<br />
iam lá, que não sendo um imperador,<br />
era zero.<br />
Podemos imaginar quantas impressões<br />
alegres Napoleão teve na<br />
vida, com as quais ele nunca contara.<br />
Basta pensar, simplesmente, na data<br />
de sua coroação. Como aquilo havia<br />
de torná-lo radiante!<br />
...nem na glória<br />
reconquistada, após<br />
terríveis reveses<br />
Também as desgraças mais fulminantes<br />
o acometeram. Em 1814 ele<br />
caiu. Os russos, austríacos e prussianos<br />
invadiram a França, e ele foi deposto.<br />
Tão odiado a ponto de ter que<br />
caminhar para o Sul da França e ali<br />
tomar um pequeno navio que o conduziria<br />
a seu exílio, uma ilha pequena<br />
no Mediterrâneo, onde ele tinha<br />
o título ridículo de “Rei da Ilha de<br />
Elba”. E ele, para quem era bondade<br />
receber um rei, começou a anunciar<br />
que Sua Majestade, o Rei da Ilha de<br />
Elba, Napoleão Bonaparte receberia<br />
todas as pessoas de passagem pela<br />
ilha que quisessem conhecê-lo. E se<br />
transformou, assim, numa espécie de<br />
atração turística, para ter gente com<br />
quem conversar.<br />
Em certo momento, as situações<br />
políticas lhe são favoráveis, há<br />
mil circunstâncias, e ele volta para<br />
a França. Em pouco tempo está em<br />
Paris, o Rei da Casa de Bourbon foge,<br />
e Napoleão retorna ao palácio,<br />
carregado por todos os seus fiéis, e<br />
ele é de novo o imperador dos franceses.<br />
Imaginem a ebriedade de dormir<br />
na cama que ele tinha deixado,<br />
servido novamente pelos cortesões<br />
no palácio que ele perdera.<br />
Pois bem, ao cabo de cem dias,<br />
exatamente, ele sofre uma derrota<br />
em Waterloo e tem que fugir, desta<br />
vez para o Norte, onde ele toma<br />
um navio inglês, e escreve ao Rei da<br />
Inglaterra uma carta na qual ele diz:<br />
“Eu vim me refugiar junto ao mais<br />
generoso e maior dos meus adversários.<br />
Espero de vossa parte uma<br />
magnânima acolhida.”<br />
Ao que o monarca inglês responde:<br />
“Pois não, você está preso!”<br />
Ele vai para Santa Helena, uma ilha<br />
vulcânica no meio do Oceano Atlântico,<br />
num abandono, uma coisa tremenda!<br />
Abandonado pelos maiores amigos,<br />
ele sobe numa embarcação e se<br />
dirige ao exílio acompanhado de uma<br />
cortezinha de gente que ficara fiel a<br />
ele, que o segue para se pendurar nas<br />
abas do paletó do homem ilustre.<br />
Retirada de Napoleão após sua derrota em Moscou<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Trinta dias de viagem, durante a<br />
qual ele passa longas horas silencioso,<br />
vendo o mar passar. Às vezes, desce<br />
para a sala de jantar onde, nas horas<br />
das refeições, tem longas conversas<br />
com pessoas de terceira ordem,<br />
que tomam nota do que ele diz para,<br />
quando ele morrer, publicarem suas<br />
confidências para ganhar dinheiro.<br />
Desembarcam em Santa Helena<br />
e, daí a pouco, dá uma espécie de<br />
câncer no estômago dele. No fim de<br />
sua vida, ele estava tão fraco que não<br />
tinha força para levantar as pálpebras,<br />
e assim morreu.<br />
Em determinada altura de sua vida,<br />
ainda no auge de seu triunfo,<br />
perguntaram para ele:<br />
– Qual foi o dia mais feliz de sua<br />
vida?<br />
A resposta dele é famosa:<br />
– O dia de minha Primeira Comunhão.<br />
Portanto, era a felicidade que ficara<br />
para trás.<br />
Napoleão na Ilha de Santa Helena<br />
Um prelúdio da<br />
felicidade futura<br />
Mas, então, se é para caminhar<br />
cada vez mais se distanciando daquilo<br />
que nós procuramos com ebriedade,<br />
o que é a vida?<br />
Uma vez que não posso evitar os<br />
dissabores, inquietações, desilusões,<br />
e encontro a fórmula da felicidade<br />
nas saudades dos primeiros passos<br />
de minha existência, devo compreender<br />
o seguinte: nesta vida, a felicidade<br />
é relativa.<br />
Entretanto, Deus não seria Deus<br />
se fizesse dessa primeira felicidade<br />
originária apenas um sarcasmo: “Vive,<br />
Eu te dou uma lambiscada na taça<br />
inefável da felicidade e te solto no<br />
mar das dores. Anda.”<br />
Não, Deus não faz isso. Ele dá ao<br />
homem uma promessa magnífica:<br />
“Aquela felicidade que tiveste no<br />
início, meu filho, foi uma amostra da<br />
bem-aventurança eterna que terás<br />
no fim. Não é real<br />
que vais te afundando<br />
de infelicidade<br />
em infelicidade.<br />
Pelo contrário,<br />
a verdade é que, no<br />
fim do caminho, encontrarás<br />
a felicidade.<br />
Terás que passar<br />
pelos umbrais<br />
da morte, mas para<br />
além desta encontra-se<br />
a felicidade<br />
radiosa da qual Jesus<br />
Cristo goza no<br />
Céu. Tudo quanto<br />
foi felicidade em<br />
tua infância está para<br />
a que terás no futuro<br />
como a luz de<br />
um vaga-lume está<br />
para a de dez mil<br />
sóis reunidos. Não<br />
se pode ter ideia do<br />
que seja essa felicidade<br />
que te espera.<br />
Terás de caminhar e<br />
sofrer. Sofre com retidão e receberás<br />
esse prêmio. Caminha, afunda-te na<br />
dor, na dificuldade, com resignação<br />
e coragem, transpõe esse mar de tormentas<br />
e cai na sepultura; do outro<br />
lado será a aurora eterna! Não olha<br />
para teu passado como para a felicidade<br />
perdida. Olha para ele como a<br />
promessa da felicidade a ser adquirida.”<br />
Gemendo sob o peso da cruz<br />
Ao que alguém poderia responder:<br />
“Senhor, como tudo isso é grandioso,<br />
como é magnífico! Permiti-me<br />
dizer: como é misericordioso, como<br />
é terrível! Uma tão longa caminhada<br />
durante a qual não encontro<br />
um oásis, uma gota de água cristalina,<br />
uma sombra, um pouco de grama<br />
verde, um coqueiro, e tenho que<br />
caminhar, caminhar, caminhar, partir<br />
do Mar Vermelho para chegar ao<br />
outro lado do oceano... Senhor, sei<br />
que é um oceano de delícias, pois<br />
Vós o afirmais. E dizeis mais: a delícia<br />
para mim sereis Vós, e eu creio,<br />
meu Deus. Mas, Senhor, tende pena<br />
de mim! Quero muito chegar lá,<br />
mas não tenho forças para atravessar<br />
esse deserto. Tanto mais que não<br />
se trata apenas de transpô-lo. Muito<br />
mais do que isso, é mister atravessá-<br />
-lo direito. É a lei da minha cruz, ó<br />
meu Deus: carregar a vossa.<br />
“Carregar a cruz de não pecar, de<br />
ser virtuoso, de cumprir os vossos<br />
santos e magníficos Mandamentos.<br />
Mas estes são como a felicidade: encantam-me,<br />
começo a cumpri-los e<br />
eles me pesam. E o peso é tão grande<br />
que às vezes, por minha culpa,<br />
caio e tenho a desgraça de Vos ofender...<br />
Em minha jovem idade, quando<br />
vejo <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> com setenta e sete<br />
anos, imagino quanto tempo vou ter<br />
que andar nesse deserto!”<br />
Um outro dirá a esse coitado:<br />
– Então peça a Deus para morrer.<br />
– Também não, – responderia o<br />
jovem – tenho medo de morrer. Meu<br />
16
Deus, tenho medo da vida, tenho<br />
medo da morte! Oh, tempo dourado,<br />
que ficou para trás, quando eu<br />
não pensava nisso! <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o senhor<br />
não percebe que eu não tinha<br />
vontade de olhar de frente<br />
o que o senhor está me mostrando?<br />
E o senhor abre, à<br />
machadinha, minha cabeça<br />
e me conta o que eu tinha<br />
medo de ouvir! Agora o fato<br />
está consumado, vi que é<br />
isso mesmo, e o senhor não<br />
leva em conta o quanto eu<br />
procurava envolver-me em<br />
nuvens para não olhar de<br />
frente. O senhor sopra em cima<br />
da minha nuvem e estou<br />
eu diante desse quadro. Oh!<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, por que o senhor fez<br />
isso?<br />
O reencontro da<br />
felicidade primeira<br />
Deus é Pai cheio de misericórdia<br />
e nos dá um meio de sentirmos, de<br />
vez em quando, ao longo do caminho,<br />
a felicidade que deixamos. Ela<br />
nos visita multiplicada por si mesma,<br />
como uma estrela que baixasse do<br />
céu para nos iluminar a via, e com a<br />
qual pudéssemos brincar.<br />
É uma coisa que depende de<br />
nós. De tal maneira depende tanto<br />
de nós que se diria depender só de<br />
nós e não d’Ele. Mas depende tanto<br />
d’Ele que se diria depender só d’Ele<br />
e não nós.<br />
Quando o homem, nesta vida,<br />
tem a consciência reta, cumpre os<br />
Mandamentos pela graça que recebe<br />
do Céu e sabe estar caminhando<br />
para o Céu no meio de mil dores, há<br />
momentos em que a estrela cai do<br />
céu e visita-o. É o momento em que<br />
a pessoa se sente pura, tem alegria<br />
de consciência por estar levando a<br />
vida que devia, e correspondendo<br />
às felicidades enunciadas por Nosso<br />
Senhor no Sermão das Bem-aventuranças.<br />
E, por um lado de sua alma,<br />
aquela felicidade inicial continua até<br />
a pessoa chegar aos bordos iluminados<br />
de toda felicidade, e então morre<br />
tranquila.<br />
Não há quem, sendo católico praticante,<br />
pela graça de Deus e rogos<br />
de Maria, não tenha sentido a alegria<br />
de confessar-se e sair deste sacramento<br />
com a impressão de que<br />
sua alma ficou limpa, a absolvição<br />
pousou sobre ele e o reconciliou com<br />
Deus, e ele deixou o confessionário<br />
satisfeito, com o corpo e a alma mais<br />
leves. Às vezes dura pouco, embora<br />
a pessoa mantenha-se por muito<br />
tempo em estado de graça. Mas que<br />
sensação, que felicidade! Não é verdade<br />
que reencontramos aquela felicidade<br />
primeira?<br />
Um grau a mais da<br />
felicidade: a do heroísmo!<br />
Daí a pouco chega a tentação<br />
e começa a luta. Com a luta, tem-<br />
-se a impressão de que a felicidade<br />
se afastou. E, realmente, muitas vezes<br />
a luta é terrível. Mas quando a<br />
luta passa, compreendemos que até<br />
durante a luta éramos felizes, porque<br />
tínhamos consciência de estar<br />
vencendo, sendo fiéis a Nossa<br />
Senhora, a Nosso Senhor e<br />
calcando o demônio aos pés.<br />
Às felicidades da infância<br />
se junta uma nova que a infância<br />
não conhece: a felicidade<br />
da vitória, de ter feito<br />
o esforço e ter conseguido.<br />
A primeira infância não<br />
conhece isso. Tudo lhe cai na<br />
mão, sem esforço. A pessoa<br />
tinha a ilusão de ser aquilo felicidade<br />
precisamente porque<br />
não exigia esforço. Mas quando<br />
conhece a alegria do esforço vitorioso,<br />
compreende: “Eu subi um<br />
grau na felicidade. Tornei-me herói,<br />
venci pela primeira vez e respirei o<br />
ar puro dos píncaros. Ah, quero mais<br />
píncaros, porque quero vencer!”<br />
Vencer antes e acima de tudo o<br />
pecado. É essencialmente o inimigo<br />
que devemos derrotar. Que tranquilidade<br />
e gáudio quando um homem<br />
pode dizer: “Atravessei tal provação,<br />
porém cumpri meu dever. Tentado<br />
por toda forma de impureza, de cólera,<br />
de abatimento, de covardia, por<br />
tudo, resisti e venci!”<br />
Alguém poderia objetar: “Pobre<br />
miserável, você não venceu nada.<br />
Você não fez carreira. O que você<br />
venceu?”<br />
A resposta é simples, e agora falo<br />
do meu caso concreto. Eu venci<br />
o meu pior inimigo: <strong>Plinio</strong> Corrêa<br />
de Oliveira. Porque cada um de nós<br />
tem dentro de si o seu pior inimigo,<br />
de quem se trata de desconfiar, pegá-lo<br />
pelo pescoço e derrotá-lo. E se<br />
Nossa Senhora me conceder a graça<br />
de vencer até o fim esse inimigo,<br />
afinal de contas, olhando para meu<br />
passado eu diria: Foi um caminho de<br />
dor; é uma esteira de luz!<br />
Então, o que vem a ser a felicidade<br />
nesta perspectiva? É a lembrança<br />
J.P. Beltran<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
fiel, de um gosto do Céu<br />
que eu, batizado, filho da<br />
Igreja, membro do Corpo<br />
Místico de Cristo, tive<br />
na origem de minha vida.<br />
E, no fundo, é essa a felicidade<br />
que eu procurei a<br />
vida inteira e me foi dada<br />
às gotas, de vez em quando,<br />
enquanto eu ia caminhando.<br />
Eram os oásis.<br />
No fim, vem o Céu.<br />
Todo homem que sinceramente<br />
possa dizer<br />
isso de si mesmo e para<br />
quem foi mesmo assim,<br />
dele se poderá escrever<br />
na sua sepultura: “Aqui<br />
jaz anônimo. Foi feliz<br />
porque foi para o Céu.”<br />
O mundo nos<br />
oferece conchas<br />
cheias de aflição<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Considerem um ricaço<br />
que reformou sua casa<br />
dez vezes ao longo da vida<br />
e comparem com uma<br />
pessoa que possui uma casinha média<br />
e passou a vida inteira contente<br />
naquela casa. Quem é mais feliz: o<br />
que reformou a casa uma porção de<br />
vezes ou quem soube encontrar deleite<br />
numa casa que não precisou de<br />
reformas?<br />
O mundo apresenta padrões de<br />
felicidade que são conchas cheias de<br />
aflição. Para ver, são lindas. Experimenta-se,<br />
é aquela amargura. Que<br />
desilusão, que coisa tremenda! Uma<br />
vida sem sentido, sem significado,<br />
que leva as pessoas a se perguntarem<br />
para o que estão vivendo e, por vezes,<br />
a praticarem o suicídio.<br />
Nossa civilização tão rica, à qual<br />
se insiste em apresentar como sendo<br />
o mundo da felicidade, é a que conheceu<br />
em alto grau uma das manifestações<br />
mais impressionantes de<br />
infelicidade, algo privativo de nossa<br />
época: o suicídio de crianças.<br />
Os quatro líderes da Primeira Cruzada<br />
Alegria que desce do<br />
Céu sobre aquele que<br />
cumpre o dever<br />
Qual é, então, o mundo da felicidade?<br />
Pensem nos cruzados partindo para<br />
a Terra Santa. Sobre uma relva<br />
bonita os corcéis começam a desfilar,<br />
como tudo é bonito! Mas, sobretudo,<br />
é bonito notar uma certa alegria<br />
daqueles cruzados que vão para<br />
onde? Para o perigo. Eles sabem<br />
que, com as embarcações frágeis daquele<br />
tempo, podem ir parar no fundo<br />
do Mediterrâneo, e o mar se torna<br />
para eles uma sepultura.<br />
Quando o atravessam, do lado de<br />
lá encontram o calor tórrido do deserto,<br />
com o qual não estão habituados,<br />
uma natureza seca, árida, onde<br />
o perigo maometano os aguarda.<br />
Com isso, quantas e<br />
quantas vezes a morte<br />
sem médico, sem cirurgia,<br />
tremenda, no campo<br />
de batalha; horas de sede<br />
abrasadora, porque o<br />
sangue está escorrendo<br />
e o cruzado tem vontade<br />
de beber uma gota de<br />
água, mas não tem quem<br />
a dê, porque está sem socorro.<br />
Metido naquela<br />
armadura que ele vestiu<br />
por amor a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, sobre a qual<br />
bate o Sol, desde a manhã<br />
até a tardinha, e ele<br />
está metido num forno.<br />
Sabendo de tudo isso,<br />
como podem estar tão<br />
alegres na hora de partir?<br />
Há, entretanto, algo da<br />
felicidade da infância. É<br />
a alegria descida do Céu<br />
sobre o homem que está<br />
cumprindo o seu dever.<br />
Uma alegria de Anjo<br />
que não o abandona,<br />
nem sequer quando ele<br />
estiver, como num forno, dentro de<br />
sua própria couraça, exangue, morto<br />
de sede, mas lembrando-se de que<br />
Nosso Senhor, antes de expiar disse:<br />
“Tenho sede!” E na consideração de<br />
estar sofrendo o que Cristo sofreu,<br />
o cruzado tem o ósculo da graça na<br />
sua alma e morre em paz. Ah, isso é<br />
felicidade!<br />
A perfeita alegria<br />
Conta-se que estando São Francisco<br />
de Assis em viagem, em pleno<br />
inverno, junto com outro frade de<br />
sua Ordem, este lhe perguntou, atormentado<br />
pelo intenso frio.<br />
– Pai, peço-te, da parte de Deus,<br />
que me digas: onde está a perfeita<br />
alegria?<br />
Ao que o Santo respondeu:<br />
– Quando chegarmos ao Convento,<br />
inteiramente molhados pela chu-<br />
18
va e transidos de frio, cheios de lama<br />
e aflitos de fome, e batermos à porta,<br />
e o porteiro chegar irritado e disser:<br />
“Quem são vocês?” E nós dissermos:<br />
“Somos dois dos vossos irmãos”, e<br />
ele replicar: “Estão mentindo; são<br />
dois vagabundos. Fora daqui!” E nos<br />
deixar sob a neve e a chuva, com frio<br />
e fome até à noite; se então suportarmos<br />
tal injúria e crueldade sem<br />
nos perturbarmos nem murmurarmos<br />
contra ele, nisso está a perfeita<br />
alegria.<br />
E acrescentava São Francisco:<br />
– E se ainda, constrangidos pela<br />
fome e pelo frio, voltarmos a bater<br />
à porta durante a noite e pedirmos,<br />
pelo amor de Deus e com muitas lágrimas,<br />
que nos abra e nos deixe entrar,<br />
e ele mais escandalizado disser:<br />
“Vagabundos importunos, pagar-<br />
-lhes-ei como merecem.” E sair com<br />
um bastão, nos agarrar pelo capuz,<br />
nos atirar ao chão, nos arrastar pela<br />
neve e nos bater; e suportarmos todas<br />
essas coisas pacientemente, pensando<br />
nos sofrimentos de Cristo; ó<br />
irmão Leão, nisso está a perfeita alegria!<br />
A meu ver São Francisco fez uma<br />
grande descoberta. Quer dizer, na<br />
hora em que renunciamos a tudo por<br />
Nossa Senhora e vamos para a frente,<br />
em certo momento baixa sobre<br />
nós a perfeita felicidade.<br />
Como uma estrela vinda<br />
das maternais mãos<br />
de Nossa Senhora<br />
no, os primeiros bondes, os primeiros<br />
automóveis começavam a circular,<br />
eu estava esperando um bonde<br />
que me levaria à Avenida Paulista,<br />
numa esquina de onde eu podia<br />
ver a imagem de Nossa Senhora no<br />
alto da cúpula da Igreja da Imaculada<br />
Conceição.<br />
De repente, começo a notar uma<br />
coisa assim: “Que luz particularmente<br />
bonita hoje! Como isso aqui<br />
está cheio de passarinhos que cantam!<br />
Essa aurora quer dizer alguma<br />
coisa... Está mais bonita até do que<br />
o costume, não pensei que auroras<br />
fossem bonitas assim. Que bem-estar<br />
sinto em mim, não posso compreender<br />
o que é isso. Tenho até a impressão<br />
de que o meu infortúnio está<br />
passando. Estou começando a sentir<br />
uma alegria como nunca senti na minha<br />
vida, ela me enche a alma, mas<br />
não sei explicá-la.”<br />
Isso durou algumas<br />
horas, mas logo após<br />
o infortúnio se reapresentou<br />
com garra de<br />
ferro.<br />
Dali a alguns dias,<br />
em meio à batalha,<br />
abro um livro de leitura<br />
espiritual e começo<br />
a ler. Aquilo me inundou<br />
de felicidade novamente,<br />
mas muito<br />
mais definida do<br />
que aquela que experimentara<br />
dias antes.<br />
A partir de certo momento<br />
iniciou-se para<br />
mim um período<br />
de uns seis meses durante<br />
os quais sentia<br />
uma felicidade indizível<br />
e contínua. Eu vivia,<br />
então, no meio da<br />
alegria, da satisfação,<br />
e me sentia, por assim<br />
dizer, no Céu. Assim,<br />
depois de ter dito<br />
a mim mesmo: “Não<br />
pensei ser possível<br />
Se do alto píncaro franciscano é<br />
lícito descer para a vida corrente de<br />
nossos dias, conto um pequeno episódio<br />
para concluir estas reflexões.<br />
Eu tinha mais ou menos vinte<br />
anos quando passei por uma série de<br />
provações espirituais tremendas, como<br />
eu nunca pensei que sofreria em<br />
minha vida.<br />
Passados seis meses de tormento,<br />
certa manhã, na São Paulinho de então,<br />
com o movimento ainda pequetanto<br />
sofrimento”, passei a pensar o<br />
seguinte: “Não pensei que se pudesse<br />
ser tão feliz nesta Terra.”<br />
Atravessemos, pois, todos os infortúnios,<br />
e vamos para a frente, e<br />
encontraremos a verdadeira felicidade<br />
dos primeiros passos da vida reapresentando-se,<br />
de vez em quando,<br />
como uma estrela que Nossa Senhora<br />
deixa cair de suas maternais mãos<br />
para as nossas, para nos dar um certo<br />
gáudio que Ela, melhor do que<br />
ninguém, gradua para cada um, pois<br />
sendo nossa Mãe, sabe o que nos é<br />
necessário. A cada felicidade dessas<br />
nós devemos oscular e dizer, como<br />
a Santíssima Virgem: “Magnificat<br />
anima mea Dominum”; e pensar: “Ó<br />
Céu, eu caminho em direção a ti!”v<br />
(Extraído de conferência de<br />
26/7/1986)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante seu serviço militar<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
19
Iqmann (CC3.0)<br />
C<br />
alendário<br />
1. Santa Veridiana, virgem (†1242).<br />
Nascida na Toscana, consagrou desde<br />
muito jovem sua virgindade a Deus.<br />
Peregrinou a Santiago de Compostela<br />
e a Roma, retornando depois à terra<br />
natal, onde voluntariamente viveu<br />
numa cela, durante 34 anos, em meio<br />
a rigorosas penitências e recebendo<br />
graças místicas extraordinárias.<br />
2. Apresentação do Senhor.<br />
3. Santo Oscar, bispo (†865). Nasceu<br />
na França no princípio do século IX e foi<br />
educado no mosteiro de Córbia (Alemanha).<br />
Em 826 partiu para a Dinamarca<br />
a fim de pregar a Fé cristã, não obtendo,<br />
porém, muito resultado; no entanto,<br />
teve melhor êxito na Suécia. Foi elei-<br />
dos Santos – ––––––<br />
Flávio Lourenço<br />
São José de<br />
Leonissa<br />
to Bispo de Hamburgo. O Papa Gregório<br />
IV, depois de confirmar sua eleição,<br />
nomeou-o legado pontifício para a Dinamarca<br />
e a Suécia. Encontrou<br />
muitas dificuldades no seu<br />
ministério de evangelização,<br />
mas superou-as com<br />
grande fortaleza de ânimo.<br />
4. V Domingo do Tempo Comum.<br />
São José de Leonissa, presbítero<br />
(†1612). Tendo ingressado na Ordem<br />
dos Capuchinhos, foi ordenado<br />
sacerdote e enviado como missionário<br />
a Constantinopla. Ali, aprisionado<br />
pelos turcos por haver tentado pregar<br />
ao próprio Sultão, sofreu terríveis suplícios.<br />
De volta à Itália distinguiu-se<br />
por seu zelo para com os pobres.<br />
5. Santa Águeda, virgem e mártir<br />
(† 251).<br />
São Felipe de Jesus, mártir (†1597).<br />
Mexicano, aos 18 anos embarcou para<br />
as Filipinas onde se fez frade franciscano.<br />
Em 1596, quando retornava ao México<br />
para ser ordenado sacerdote, as<br />
tormentas arremessaram seu barco para<br />
as costas do Japão. Levado prisioneiro<br />
com um grupo de cristãos japoneses<br />
para Nagasaki, foi torturado e morto.<br />
6. Santos Paulo Miki e companheiros,<br />
mártires (†1597). São Paulo Miki<br />
era jesuíta e se dedicava ao ensino<br />
do catecismo com muito zelo, obtendo<br />
nesse apostolado grandes e numerosas<br />
conversões. Foi crucificado em Nagazaki,<br />
por ordem do imperador pagão,<br />
juntamente com outros dois jesuítas,<br />
seis franciscanos e dezessete leigos.<br />
A elevação sobre a qual os 26 heróis de<br />
Jesus Cristo receberam o martírio ficou<br />
conhecida como Monte dos Mártires.<br />
7. Bem-aventurada Eugênia Maria<br />
Josefina Smet (Maria da Providência),<br />
virgem (†1871). Desde jovem caracterizou-se<br />
por sua inteira confiança<br />
na Divina Providência e pelo zelo<br />
para com as almas do Purgatório.<br />
Aconselhada pelo Santo Cura d’Ars e<br />
pelo Beato Pio IX fundou a congregação<br />
das Madres Auxiliadoras das Almas<br />
do Purgatório.<br />
8. São Jerônimo Emiliani, presbítero<br />
(†1537). Nasceu em 1486, numa família<br />
nobre de Veneza, fez rápida carreira<br />
como militar e como político.<br />
Aprisionado pelos franceses, durante o<br />
cativeiro resolveu renunciar ao mundo<br />
e consagrar-se por inteiro a Deus. Foi<br />
libertado prodigiosamente por Nossa<br />
Senhora e retornou a sua cidade natal,<br />
onde foi ordenado sacerdote e se dedicou<br />
ao cuidado dos órfãos pobres. Fundou<br />
a Ordem dos Clérigos Regulares<br />
de Somasca, Itália, destinada a socorrer<br />
as crianças órfãs e os pobres.<br />
9. São Miguel Febres Cordero, religioso<br />
(†1910). Nascido em Cuenca,<br />
enfrentou grande oposição da família<br />
para cumprir sua vocação de Irmão<br />
das Escolas Cristãs. Destacou-se como<br />
educador da juventude, escritor,<br />
gramático e filólogo.<br />
10. Santa Escolástica, virgem (†547).<br />
11. VI Domingo do Tempo Comum.<br />
Nossa Senhora de Lourdes.<br />
São Felipe de Jesus
––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />
Gabriel K.<br />
12. Santa Eulália, virgem e mártir<br />
(† 304). Foi supliciada por meio de tochas<br />
incandescentes durante a perseguição<br />
promovida por Maximiano.<br />
13. Santo Estêvão, bispo (†515).<br />
14. Quarta-feira de Cinzas.<br />
15. São Cláudio de la Colombière,<br />
presbítero (†1682). Sacerdote jesuíta<br />
e Superior do Colégio de Paray-le-<br />
-Monial, grande apóstolo da devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus.<br />
rem com valentia os sofrimentos. Depois<br />
de receber cem acoites, foi estrangulado.<br />
18. I Domingo da Quaresma.<br />
19. São Mansueto, bispo (†c. 680).<br />
Lutou firmemente contra a heresia<br />
monotelista. Neste sentido interveio<br />
no Concílio de Roma, realizado em<br />
março de 680.<br />
20. Santos Francisco (†1919) e Jacinta<br />
Marto (†1920). Ver página 2.<br />
Santo Euquério, bispo (†137). Nascido<br />
em Orléans, destacou-se desde<br />
jovem pela sabedoria, santidade e devoção<br />
a Maria Santíssima.<br />
21. São Germano, abade (†667).<br />
Foi assassinado por ladrões, ao tentar<br />
defender, com palavras pacíficas,<br />
os habitantes vizinhos do mosteiro de<br />
Grandfelt, Suíça.<br />
22. Cátedra de São Pedro.<br />
23. São Policarpo, bispo e mártir<br />
(†s. II). Discípulo de São João Evangelista,<br />
foi nomeado, ainda no tempo<br />
dos Apóstolos, Bispo de Esmirna, na<br />
atual Turquia. Foi martirizado aos 86<br />
anos de idade.<br />
24. Beato Tomás Maria Fusco, presbítero<br />
(†1891). Tomado de grande<br />
amor pelos pobres e doentes, fundou<br />
em Nocera, Itália, o Instituto das Filhas<br />
da Caridade do Preciosíssimo Sangue.<br />
25. II Domingo da Quaresma.<br />
Bem-aventurado Sebastião de Aparício,<br />
religioso (†1600). Ver página ??.<br />
26. Santa Paula de São José de Calasanz,<br />
virgem (†1889). Dotada de<br />
extraordinário carisma de educadora,<br />
tinha como lema: Piedade e letras.<br />
Fundou a Congregação das Filhas de<br />
Maria das Escolas Pias.<br />
27. São Gabriel da Virgem Dolorosa,<br />
religioso (†1862).<br />
28. Santo Hilário, Papa (†468).<br />
Eleito Sumo Pontífice em 462, confirmou<br />
os concílios de Nicéia, Éfeso<br />
e Calcedônia, defendendo a primazia<br />
da Sede Romana.<br />
Papa Santo<br />
Hilário é salvo<br />
por São João -<br />
Basílica de São<br />
João de Latrão,<br />
Roma, Itália<br />
Gabriel K.<br />
São Jerônimo Emiliani<br />
16. Beato José Allamano, presbítero<br />
(†1926). Aluno de São João Bosco<br />
e sobrinho de São José Cafasso, Beato<br />
José fundou a Congregação de<br />
Missionários da Consolata.<br />
17. São Pedro Yu Chǒng-nyul, mártir<br />
(†1839). Jovem leigo, martirizado na<br />
Coreia aos 13 anos de idade. Exortava<br />
seus companheiros de prisão a suporta-<br />
21
Perspectiva pliniana da História<br />
Daniel A.<br />
Ponto<br />
culminante na<br />
luta entre o<br />
bem e o mal<br />
Depois da morte de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, o mal nunca teve tanta audácia em<br />
se mostrar como na Revolução Francesa.<br />
Na luta entre o bem e o mal, a verdade e o<br />
erro, o belo e o feio, essa Revolução é uma<br />
espécie de ponto culminante. Ela pode ser<br />
considerada, sob esse aspecto, como um<br />
grande e horrível livro no qual se aprendem<br />
verdades terríveis e admiráveis.<br />
Wandernder Weltreisender (CC3.0)<br />
Versailles, Paris, França<br />
22
Suponhamos a existência de um<br />
palácio tão admirável que, se<br />
não tivéssemos conhecido pelo<br />
menos em fotografia, nossa mente<br />
não seria capaz de imaginá-lo.<br />
Encanto por um belo palácio<br />
Entretanto, obtida uma boa fotografia,<br />
a mostrássemos a um colega<br />
que nos dissesse:<br />
– Mas que palácio lindo, que fotografia<br />
maravilhosa! Você não poderia<br />
me emprestar isto durante alguns<br />
dias para eu levar para casa?<br />
– Por que olhar isto, qual é a vantagem?<br />
– perguntaríamos para experimentá-lo.<br />
– Não sei, isso eleva a minha alma.<br />
Vendo esse palácio, esses mármores,<br />
essas tapeçarias, esses móveis, o prédio<br />
na sua beleza, na sua distinção,<br />
em sua imponência, a minha alma como<br />
que sobe. E sinto necessidade disto,<br />
porque tudo no mundo contemporâneo<br />
abaixa, deprime, avilta, corrói,<br />
destrói, decepciona. Encontrei algo<br />
que produz o efeito contrário na minha<br />
alma; isto é o remédio. Se você<br />
pudesse me dar uma cópia dessa fotografia,<br />
seria a maior obra de caridade<br />
que me faria, porque fico encantado<br />
com esse palácio.<br />
Notaríamos imediatamente a nobreza<br />
de alma de nosso interlocutor e<br />
pensaríamos em nosso íntimo: “Certamente<br />
vou fazer o sacrifício de dar-<br />
-lhe essa fotografia, porque ela realiza<br />
o papel de um par de asas para a<br />
alma dele subir mais alto, até Nossa<br />
Senhora, a fim de aumentar os horizontes<br />
intelectuais dele e, com isso,<br />
seus horizontes religiosos, espirituais.<br />
Se esse palácio é uma imagem do<br />
Céu na Terra, este pobre coitado, que<br />
não tem ideia alguma do Paraíso, ao<br />
contemplar esse palácio poderá sentir-se<br />
mais elevado rumo ao Céu, para<br />
onde eu quero tanto que ele vá.”<br />
Ódio a tudo que é<br />
distinto, nobre, elevado<br />
Imaginemos agora o contrário:<br />
Um de nós está folheando um álbum<br />
com fotografias do Palácio de<br />
Versailles. Alguém se aproxima e<br />
pergunta:<br />
– O que tem Versailles de extraordinário?<br />
– Ora, Versailles é uma<br />
obra de Deus.<br />
– De Deus não, foi o Rei<br />
Luís XIV que mandou o<br />
arquiteto Mansart fazer os<br />
planos e construir o palácio.<br />
Deus não entrou em<br />
nada nisso.<br />
– Versailles é filho dos<br />
homens, é verdade, mas<br />
os homens são filhos de Deus; logo,<br />
Versailles é um neto de Deus, como<br />
diz Dante Alighieri. Tudo o que existe,<br />
direta ou indiretamente, foi feito<br />
por Deus. Portanto, admire esse<br />
palácio porque é um meio de chegar<br />
até o Criador. Pois para amar a<br />
Deus que não vemos é preciso amarmos<br />
as criaturas terrenas que vemos.<br />
Versailles é uma criatura de Deus;<br />
amemo-la para amarmos inteiramente<br />
a Deus. Você não o acha bonito?<br />
– Sim, e precisamente por isso eu<br />
o odeio, porque detesto tudo quanto<br />
é nobre, distinto e eleva o espírito.<br />
Aqui estariam delineadas duas<br />
visões opostas da vida: uma é a<br />
dos filhos da luz, de Nossa Senhora,<br />
Ela mesma de uma perfeição, bele-<br />
Siren-Com (CC3.0)<br />
Jules Hardouin-Mansart<br />
Paris, França<br />
23
Perspectiva pliniana da História<br />
Samuel Holanda<br />
za e santidade maiores do que tudo<br />
quanto possamos imaginar. A outra<br />
é a dos filhos das trevas.<br />
Santa Bernadette era de<br />
educação muito primitiva...<br />
No século XIX, na gruta de Massabielle,<br />
na cidadezinha de Lourdes,<br />
Nossa Senhora apareceu a uma<br />
camponesa chamada Bernadette<br />
Soubirous, filha de um casal extremamente<br />
pobre. Era gente do povo,<br />
reta, de costumes muito bons, mas<br />
de educação bastante primitiva, porque<br />
eram trabalhadores manuais da<br />
terra e não tinham contato com nada<br />
de superior, de mais elevado.<br />
Santa<br />
Bernadette<br />
Soubirous<br />
Santuário<br />
de Lourdes,<br />
França<br />
Um dia em que estava perto dessa<br />
gruta, Bernadette escutou uma voz<br />
e, olhando para o seu interior, viu<br />
uma Senhora de uma beleza admirável.<br />
Era Maria Santíssima em pessoa<br />
que começou a dirigir-lhe a palavra.<br />
A jovem camponesa, com toda a<br />
simplicidade, principiou a falar com<br />
Nossa Senhora, mantendo as mãos<br />
postas na atitude de quem reza.<br />
A Santíssima Virgem deu-lhe uma<br />
série de explicações e depois acabou<br />
recomendando-lhe que arranhasse a<br />
terra ali onde ela estava, pois começaria<br />
a aparecer água. A água se tornaria<br />
mais abundante e, de um simples<br />
filão, passaria a ser uma corrente<br />
de água forte, grande; usando essa<br />
água muitas pessoas se curariam e ali<br />
se tornaria um lugar onde Nossa Senhora<br />
seria muito glorificada.<br />
Bernadette imediatamente começou<br />
a arranhar o chão, que era uma<br />
terra comum. E, para seu espanto,<br />
ela viu que de repente começou<br />
a minar água, apareceu um regato e<br />
formou-se o tal curso de água.<br />
Houve várias visões e Santa Bernadette,<br />
em sua ingenuidade, contava<br />
para o povo. Então, cada vez<br />
que estava marcada uma aparição<br />
de Nossa Senhora, um número crescente<br />
de pessoas vinha para presenciar<br />
o fato.<br />
A Santíssima Virgem só aparecia<br />
para Santa Bernadette, a qual falava<br />
de tal maneira que se percebia estar<br />
vendo alguém, embora os circunstantes<br />
não ouvissem as respostas<br />
de Maria Santíssima.<br />
...mas se nobilitava<br />
quando<br />
conversava com<br />
Nossa Senhora<br />
Certa ocasião li<br />
este bonito depoimento<br />
de um padre<br />
que presenciou<br />
as aparições:<br />
ele, que frequentara ambientes da alta<br />
sociedade, tratara com gente de muita<br />
categoria e vira, portanto, senhoras<br />
de muita distinção, declarava nunca<br />
ter notado um sorriso tão bondoso,<br />
uma atitude tão fina, distinta e amável<br />
num rosto feminino, do que em Santa<br />
Bernadette quando conversava com a<br />
Santíssima Virgem. Portanto, segundo<br />
ele, não havia marquesa nem duquesa<br />
francesa que se comparasse com a elevação<br />
de Santa Bernadette que, nesses<br />
momentos, se nobilitava inteira e<br />
ficava com uma distinção extraordinária.<br />
Terminada a conversa, ela voltava<br />
imediatamente a apresentar a fisionomia<br />
tosca de uma simples camponesa.<br />
Esse pormenor das aparições de<br />
Lourdes mostra bem o quanto Deus<br />
ama tudo aquilo que é distinto, nobre,<br />
que se parece com a Mãe Santíssima<br />
d’Ele, a mais perfeita das criaturas.<br />
Há uma canção na qual Nossa Senhora<br />
é invocada como summi Regis<br />
palatium – palácio onde habita o sumo<br />
Rei. Ela é comparada a um palácio<br />
porque o Verbo de Deus, ao encarnar-Se,<br />
habitou dentro d’Ela. Durante<br />
todo o tempo em que o Corpo<br />
sagrado de Nosso Senhor esteve sen-<br />
São Miguel Arcanjo em luta<br />
contra o dragão - Museu<br />
Nacional de Arte da Catalunha,<br />
Barcelona, Espanha<br />
24
do gerado e desenvolvido pela Santíssima<br />
Virgem, até o momento do nascimento,<br />
Ela foi o palácio de Cristo<br />
na Terra, mais excelente e magnífico<br />
do que todos os palácios reais e de tudo<br />
quanto se possa imaginar, porque<br />
feito para abrigar Aquele que é o próprio<br />
Deus feito Homem.<br />
Explosão de ódio contra<br />
tudo quanto é grandioso,<br />
nobre, legítimo, bom<br />
Isso posto, compreende-se que se<br />
daquelas duas mentalidades opostas<br />
acima descritas – uma favorável e outra<br />
contrária à existência de palácios<br />
– se constituíssem dois grupos de homens,<br />
eles entrariam em luta um contra<br />
o outro, porque um amaria e outro<br />
odiaria tudo quanto é verdadeiro,<br />
bom e belo. Teríamos uma luta tremenda<br />
parecida com a batalha entre<br />
São Miguel Arcanjo e os Anjos bons,<br />
de um lado, e os demônios capitaneados<br />
por Lúcifer, de outro lado.<br />
Ao se revoltar contra Deus, Lúcifer,<br />
até então o anjo que conduzia<br />
a luz, tornou-se trevas e a mais<br />
hedionda das criaturas, pois odiou<br />
Aquele que é a Verdade, o Bem e a<br />
Beleza.<br />
Essas considerações resumem o<br />
sentido da Revolução Francesa. Todos<br />
os elementos de verdade, bondade<br />
e beleza existentes na Terra antes<br />
dessa Revolução foram construídos,<br />
organizados por pessoas dotadas de<br />
um espírito voltado para Deus, que<br />
eram segundo o Criador e amavam o<br />
verdadeiro, o bem e o belo.<br />
Em sentido oposto, a Revolução<br />
Francesa foi a explosão do ódio daqueles<br />
que detestavam tudo quanto<br />
é grandioso, nobre, legítimo, bom, e<br />
queriam estabelecer um mundo chulo,<br />
desordenado, imoral, sem fé.<br />
Tal Revolução foi uma revolta dos<br />
homens que se deixaram dominar pelo<br />
Inferno, para acabar com tudo quanto<br />
era elevado, belo e bom na Terra.<br />
Por essa razão, como não queriam<br />
que houvesse reis, rainhas, nobres, palácios,<br />
grandeza nem beleza, estragaram<br />
aqueles parques, quebraram ou<br />
roubaram os objetos do palácio, espandongaram<br />
os lustres, despedaçaram<br />
os espelhos. Aprisionaram a família<br />
real, culminando, após meses de<br />
tormento e de abominação, na con-<br />
Flávio Lourenço<br />
Nossa Senhora de Lourdes<br />
Gruta de Massabielle, França<br />
denação à morte do Rei Luís XVI, da<br />
Rainha Maria Antonieta e de uma irmã<br />
do Rei, Madame Elizabeth, dando<br />
início ao período histórico chamado<br />
do Terror, em que bastava alguém ser<br />
nobre para estar condenado à morte.<br />
A mais distinta, elevada<br />
e sofredora de todas as<br />
damas do século XVIII<br />
Gabriel K.<br />
Para encerrar, conto um fato que<br />
ilustra bem o espírito que animava a<br />
Revolução Francesa.<br />
Morto o Rei Luís XVI, a Rainha ficou<br />
viúva. Chegou o dia de ser apresentada<br />
ao tribunal para ser julgada, e<br />
ela queria muito salvar a própria vida<br />
para defender seus filhos, ainda crianças,<br />
pois não queria que estas fossem<br />
educadas pelos revolucionários.<br />
Então Maria Antonieta preparou<br />
um discurso no qual ela mesma realizava<br />
a sua defesa, enquanto os re-<br />
25
Perspectiva pliniana da História<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Maria Antonieta deixa<br />
a Conciergerie - Museu<br />
Carnavalet, Paris, França<br />
volucionários iriam apresentar testemunhas<br />
que fariam acusações falsas<br />
contra ela.<br />
Certa noite, os revolucionários<br />
invadiram o recinto onde seu filho<br />
dormia. A mãe, embora fosse uma<br />
dama frágil, lutou contra eles fisicamente<br />
para defender o menino, mas<br />
afinal não pôde resistir, e os revolucionários<br />
o raptaram, tendo ele passado<br />
meses sem ver a mãe.<br />
Estabelecido o tribunal revolucionário,<br />
o menino entra como testemunha<br />
para depor contra a própria<br />
mãe. Ele calçava tamancos ordinários<br />
muito grandes, dentro dos quais<br />
puseram palha para não caírem dos<br />
pés; estava bêbado e ao ver a mãe<br />
não teve o menor sentimento de afeto,<br />
permanecendo parado com uma<br />
cara abestalhada.<br />
O presidente do tribunal disse a ele:<br />
– Menino, conta aqui a todas as<br />
pessoas presentes os crimes que a<br />
tua mãe cometeu contigo.<br />
Haviam ensinado para ele, como<br />
a um autômato, a mais infame das<br />
coisas. O menino disse que sua mãe<br />
o tinha iniciado na imoralidade.<br />
Maria Antonieta ouviu aquilo e,<br />
diante dessa acusação torpe que todo<br />
mundo via ser uma calúnia, notando<br />
que a galeria estava cheia de<br />
mulheres do povo, disse: “Eu apelo<br />
a todas as mães da França para que<br />
digam se acreditam nessa acusação.”<br />
As mulheres bateram palmas à<br />
Rainha a mais não poder.<br />
Contudo, era o período da Revolução<br />
Francesa em que se dizia ser a<br />
época da liberdade, mas na realidade<br />
imperava a tirania. O presidente<br />
do tribunal, que deveria declarar inválido<br />
o testemunho de uma criança<br />
bêbada, sobretudo quando ela diz<br />
algo que ninguém podia acreditar e<br />
apenas provava a infâmia dos acusadores,<br />
entretanto deu ordem para retirarem<br />
da sala todas as mulheres, a<br />
fim de evitar que aplaudissem novamente<br />
Maria Antonieta. E, por fim,<br />
condenou-a à morte. Assim morreu a<br />
mais distinta, elevada e sofredora de<br />
todas as damas daquele século.<br />
Podemos afirmar que o mal nunca<br />
teve, depois da morte de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, tanta desfaçatez,<br />
tanta audácia em se mostrar, como na<br />
Revolução Francesa. De maneira que<br />
na luta entre o bem e o mal, a verdade<br />
e o erro, o belo e o feio, essa Revolução<br />
é um episódio central e uma espécie<br />
de ponto culminante. Não compreende<br />
os fatos que vieram antes<br />
nem depois quem não analisa a Revolução<br />
Francesa assim. Ela pode ser<br />
considerada, sob esse ponto de vista,<br />
como um grande e horrível livro no<br />
qual, entretanto, se aprendem verdades<br />
terríveis e admiráveis. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
3/4/1993)<br />
Execução de<br />
Maria Antonieta<br />
Museu Carnavalet,<br />
Paris, França<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
26
Hagiografia<br />
Claude Bernou (CC3.0)<br />
Deus é admirável<br />
nos seus santos<br />
A vida do Beato Sebastião de Aparício foi cheia de<br />
zigue-zagues, mas sua alma sempre se manteve<br />
no sendeiro da virtude. O universo da santidade<br />
é muito mais ordenado, elevado e bonito do que<br />
todas as estrelas do céu, as belezas da natureza, as<br />
magnificências da arte. Sem santidade o mundo<br />
não teria sentido nem graça.<br />
No dia 25 de fevereiro comemora-se<br />
a memória do<br />
Beato Sebastião de Aparício.<br />
Sobre ele diz Rohrbacher 1 :<br />
Apostolado do exemplo<br />
Nasceu na Galícia, em 1502, de família<br />
humilde de simples camponeses.<br />
Viveu até rapaz como pobre empregado,<br />
entregando suas economias aos pais<br />
e santificando essa vida árdua com uma<br />
enorme piedade. Embarcou em 1532 para<br />
o México, onde enriqueceu utilizando<br />
seus conhecimentos de agricultura. Teve<br />
êxito também no comércio, mas abandonou<br />
a profissão por achá-la perigosa para<br />
a salvação eterna, e voltou à lavoura.<br />
Casou-se duas vezes e nos dois casamentos,<br />
com o consentimento das<br />
esposas, observou a continência. Dele<br />
disse o decreto de beatificação: A Providência<br />
não o enviou à América para<br />
lá cultivar ciências, nem tampouco literatura,<br />
a ele absolutamente estranhas,<br />
mas para instigar os novos cristãos,<br />
mediante o exemplo, à prática de uma<br />
profunda humildade e da perfeição.<br />
Com a avançada idade de setenta<br />
anos, renunciou às abundâncias e riquezas<br />
de que dispunha, distribuiu-as<br />
Todos os estilos e<br />
tipos de vida humana<br />
honesta e honrada<br />
acabam sendo<br />
santificados por um<br />
bem-aventurado<br />
que daquela forma<br />
chegou aos altares.<br />
pelos fiéis e assim despojado de qualquer<br />
bem terreno entrou num convento<br />
de franciscanos da estrita observância.<br />
Lá, esquecendo do que deixara no<br />
mundo, fez profissão como irmão leigo.<br />
A partir de então, persistiu na prática<br />
de maravilhosa penitência, de<br />
simplicidade de coração, de prece e de<br />
fé, de obras de misericórdia espiritual<br />
e física, até a idade de noventa e oito<br />
anos. Colheu então o fruto de cooperação<br />
com a graça e do fiel e laborioso<br />
cumprimento dos deveres religiosos.<br />
Embora entrado na vinha na última<br />
hora do dia, recebeu o prêmio inteiro<br />
que o pai de família prometeu aos que<br />
entram nas primeiras horas.<br />
Variedade, unidade, ordem<br />
Costuma-se dizer, a respeito da<br />
vida dos santos, que elas são admiráveis<br />
por aquilo que têm de parecido<br />
e pelo que possuem de diferente.<br />
Pelo que têm de parecido porque<br />
indicam a unidade da santidade<br />
e a união da obra de Deus. Por aquilo<br />
que possuem de diverso, porque<br />
a variedade é um elemento complementar<br />
da unidade e é fonte, junto<br />
com esta, de toda beleza.<br />
27
Hagiografia<br />
Nem sempre se nota que a ordem<br />
está apenas na conjugação dos<br />
fatores unidade-variedade, mas encontra-se<br />
também na conjugação<br />
do modo pelo qual as diferenças se<br />
completam harmonicamente, por<br />
sua vez reproduzindo a unidade. E<br />
podemos então não só nos edificar<br />
na consideração da beleza da unidade<br />
que há na vida dos santos, quanto<br />
na verificação da surpreendente diversidade<br />
e da ordem que essas diferenças<br />
mantêm entre si.<br />
Todos os estilos e tipos de vida humana<br />
honesta e honrada acabam<br />
sendo santificados<br />
por um bem-aventurado<br />
que daquela<br />
forma chegou<br />
aos altares; e mostrando<br />
que Deus tem<br />
seus desígnios muito<br />
variados a respeito<br />
de todos. Quando o<br />
Criador quer e a alma corresponde,<br />
de fato daí nasce a<br />
santidade.<br />
Diversas mudanças<br />
em sua longa vida<br />
Vejam como a vida desse Beato<br />
é singular. Nasceu pobre, filho de<br />
camponeses. Entretanto, vivia com<br />
muita piedade, entregava suas economias<br />
aos pais, respeitava o domingo.<br />
Isso em 1502. Mas em 1532 houve<br />
uma mudança brusca em sua vida.<br />
Depois de uma existência muito<br />
simples e pobre, de um camponês<br />
arraigado na tradição de sua terra,<br />
embarca, de repente, para o México<br />
que naquele tempo era um lugar de<br />
aventura, de riqueza.<br />
Ele sai de uma vida muito ordenada<br />
e singela para o pleno tumulto de um<br />
quadro de existência completamente<br />
novo. Lá ele se enriquece como agricultor.<br />
Nova mudança: entra no comércio,<br />
exercendo profissão profundamente<br />
diversa da agricultura, e também<br />
obtém um êxito extraordinário.<br />
Bem-aventurado<br />
Sebastião de Aparício<br />
Dantadd (CC3.0)<br />
Paolo Forlani (CC3.0)<br />
Depois de ter<br />
dado zigue-zagues<br />
de toda ordem,<br />
caiu na grande<br />
estabilidade de uma<br />
ordem religiosa, na<br />
qual levou a vida<br />
de um religioso.<br />
Mais outra mudança: deixa o comércio<br />
e volta à lavoura. Por quê?<br />
Pela dificuldade de enriquecer honestamente.<br />
Todos sabem como é<br />
fácil roubar no comércio. Deixou o<br />
estado de solteiro e casou-se duas<br />
vezes; e, circunstância imprevista,<br />
guardando continência as duas vezes.<br />
Quer dizer, castidade perfeita<br />
dentro do casamento. Uma vida toda<br />
de aspectos singulares.<br />
O decreto de beatificação acentua<br />
o último momento de sua vida:<br />
já tinha setenta anos quando entrou<br />
para um convento de franciscanos.<br />
Alguém dirá: só uma pontinha<br />
de sua existência... Não, são vinte<br />
e oito anos de vida religiosa. Depois<br />
de ter dado zigue-zagues de toda<br />
ordem, caiu na grande estabilidade<br />
de uma ordem religiosa, na qual<br />
levou a vida de um religioso. Então,<br />
o antigo agricultor, o antigo comerciante,<br />
o antigo homem de aventuras,<br />
o antigo esposo passa a ser um<br />
capuchinho de barba branca tranquilo,<br />
gentil, ressumando vida espiritual<br />
e morre numa espécie de apoteose.<br />
Perfumou o convento, o<br />
México e a América com<br />
a beleza de sua vida<br />
Analisando esses zigue-zagues, vê-<br />
-se que não foram sinuosidades de<br />
uma pessoa que andou quebrando a<br />
cabeça de todos os lados, nem a correria<br />
do gato louco, mas que tudo isto<br />
teve uma certa continuidade. Por<br />
exemplo, quando se tornou comerciante<br />
ele já era tão direito que preferiu<br />
deixar o comércio a roubar. Tendo<br />
resolvido se casar, teve razões tão elevadas<br />
que guardou a castidade perfeita<br />
no casamento, e por duas vezes.<br />
A vida dele rolando de todos os<br />
lados, mas sua alma, no sendeiro da<br />
virtude, afinal chega ao fim. E aos<br />
28
Flávio Lourenço<br />
setenta anos entra para o convento,<br />
onde permanece por mais vinte e oito<br />
anos, o que ninguém esperava. É<br />
uma conjunção de vidas dentro das<br />
quais ele toma toda a personalidade<br />
de um papel e depois passa para outra<br />
função; no fim se sublima no papel<br />
dos papéis: um simples irmão leigo<br />
franciscano, perfumando todo o<br />
convento e todo o México e, de algum<br />
modo, toda a América com a<br />
beleza de sua vida.<br />
Então, compreende-se bem que<br />
Deus é admirável nos seus santos.<br />
Ele é o autor, a fonte, o modelo da<br />
santidade; e o meio para ganhá-la é<br />
Maria Santíssima, nossa Medianeira.<br />
Ele é admirável porque todos os<br />
santos têm algo de parecido e algo<br />
de diferente, e porque essas diversidades<br />
se ordenam de um modo lindíssimo.<br />
Qualquer alma é um<br />
tesouro inapreciável<br />
Comparemos este Beato, por<br />
exemplo, com São Simeão Estilita<br />
rezando continuamente no alto de<br />
sua coluna, anos e anos, empolgando<br />
toda uma cidade; com o Venerável<br />
Pio Bruno Lanteri lutando contra<br />
a polícia de Napoleão, ou com Santa<br />
Teresinha do Menino Jesus mor-<br />
rendo vítima do<br />
amor misericordioso,<br />
em Lisieux.<br />
Essas variedades<br />
têm<br />
umas harmonias<br />
profundas, que<br />
são uma espécie<br />
de post-visão da<br />
unidade.<br />
O universo<br />
da santidade é<br />
muito mais ordenado,<br />
elevado<br />
e bonito do<br />
que todas as estrelas<br />
do céu, as<br />
belezas da natureza,<br />
as mag-<br />
Maria Auxiliadora - Igreja de São<br />
Clemente, Toronto, Canadá<br />
nificências da<br />
arte. É a santidade<br />
o centro<br />
do mundo.<br />
Sem santidade<br />
o mundo<br />
não teria sentido<br />
nem graça,<br />
mesmo no<br />
que ele possui<br />
de mais belo.<br />
Peçamos a<br />
Nossa Senhora, por intermédio desse<br />
Beato, que nos dê uma consideração,<br />
uma compreensão, um amor cada<br />
vez maior pela santidade. De outro<br />
lado, nos conceda a vontade de<br />
nós mesmos sermos santos e contribuirmos<br />
com nossa alma para a beleza<br />
desse firmamento para o qual<br />
fomos criados. Qualquer alma, a última<br />
das almas do último homem,<br />
é um tesouro inapreciável porque é<br />
uma estrela que a Providência quer<br />
que brilhe por toda a eternidade<br />
nesse firmamento de santidade que<br />
deve substituir no Céu os anjos caídos.<br />
v<br />
Gabriel K.<br />
(Extraído de conferência de<br />
24/2/1966)<br />
Beato Sebastião de Aparício - Igreja de São<br />
Francisco, Guadalajara, México<br />
1) Cf. ROHRBACHER, René-François.<br />
Vida dos santos. São Paulo: Editora<br />
das Américas, 1959. v. III, p. 411-412.<br />
29
Luzes da Civilização Cristã<br />
Hajotthu (CC3.0)<br />
Ó Igreja Católica!<br />
Diante da Catedral de São Marcos somos objeto de uma<br />
determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso,<br />
de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que,<br />
em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das<br />
mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se<br />
manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa<br />
pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”<br />
Quando se faz uma viagem muito cheia de impressões,<br />
densa de coisas que se viu e sobre as quais<br />
se pensou – ao menos no meu espírito é assim –,<br />
nem tudo aflora imediatamente. A pessoa deixa repousar<br />
as impressões de viagem e depois elas vão se evolando de<br />
tempos em tempos, mais ou menos como as flores que demoram<br />
para exalar todo o seu perfume. Passa-se por uma<br />
flor, ela se abriu e esparge seu perfume novo. No dia seguinte<br />
ela não está recendendo a nada, mas no terceiro<br />
dia, quando se pensa que já deixou de exalar sua fragrância,<br />
há uma segunda onda de perfume que se exala da flor,<br />
e assim por diante. Deste modo são também as recordações<br />
de viagem: há várias exalações consecutivas, de vários<br />
significados e bons aromas que se vão apresentando,<br />
formulando-se à medida que o tempo passa.<br />
Obras impregnadas pelo sobrenatural<br />
Recentemente consegui explicitar melhor alguma coisa<br />
que me vinha à mente em minha última visita à Europa,<br />
30
pela comparação entre a impressão que o Velho Continente<br />
me causou nas anteriores viagens e a que tive nesta.<br />
Para ficar bem clara a questão, parece-me melhor<br />
exemplificar em concreto com a Catedral de São<br />
Marcos. Antes, porém, dou uma pequena introdução<br />
e depois faço a aplicação.<br />
Suponhamos que um escritor como São Bernardo redige<br />
um sermão sobre Nossa Senhora, ou um rei como<br />
São Luís IX publica suas Capitulares, isto é, uma legislação<br />
sobre um determinado corpo de assuntos. Mas tudo<br />
é feito com espírito católico e com a intenção de servir<br />
à Santa Igreja e à Civilização Cristã. Por causa da intenção<br />
que presidiu a isso, a graça pousa, por assim dizer,<br />
naquela obra. E quem a lê tem duas impressões.<br />
Uma natural e humana que a leitura daquele texto pode<br />
causar. Por exemplo, São Bernardo é um escritor exímio,<br />
de grandes voos literários, um notável burilador da<br />
língua francesa, sob o impulso de quem esse<br />
idioma explicitou de sua genialidade original<br />
tais aspectos novos. São impressões naturais<br />
que nos vêm ao espírito, causadas pela<br />
leitura do trabalho de São Bernardo.<br />
Mas como aquela obra foi feita por<br />
amor de Deus, com a intenção de despertar<br />
pensamentos sobrenaturais<br />
inspirados pela Fé e tendentes à glória do<br />
Criador, entra também uma graça, porque<br />
ninguém é capaz de pensar uma obra com base<br />
na Doutrina Católica, nem de querer uma<br />
coisa para o bem da Santa Igreja ou para a<br />
Gabriel K.<br />
Flávio Lourenço<br />
São Bernardo<br />
São Luís Rei<br />
glória de Deus, que não seja pela graça.<br />
Sem auxílio dela ninguém pode fazer essas<br />
operações intelectuais e da vontade, pois o homem<br />
é inteiramente inerte e incapaz de as realizar<br />
se não tiver o auxílio da graça.<br />
Assim, São Francisco de Sales – para tomar outro<br />
autor – escreveu a “Filoteia”, a “Introdução à Vida Devota”,<br />
e quem a lê tem a impressão de estar essa obra<br />
embebida pela graça, e é absorvido pela graça que baixa<br />
de Deus, mas ajustada, correlata ao texto lido.<br />
Então, ao operar natural da inteligência, da vontade<br />
e da sensibilidade, soma-se uma operação de<br />
origem sobrenatural pela qual na leitura a pessoa<br />
percebe belezas novas de caráter absolutamente superior,<br />
extraordinário. Às vezes elas reluzem aos<br />
olhos do espírito do leitor através de um fenômeno<br />
da mística. São de uma pulcritude maior do que<br />
todas as belezas naturais, pois o sobrenatural vale<br />
mais do que o natural.<br />
Flávio Lourenço<br />
Amor de Deus, corolário das<br />
construções medievais<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Isto que se diz a respeito de escritos pode-se<br />
igualmente aplicar a monumentos, catedrais, imagens,<br />
obras de arte. Por exemplo, as estalas superiormente<br />
bem esculpidas de um convento, uma armadura<br />
medieval, um vitral, obras estas realizadas<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />
Veneza, em 1988<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Gabriel K.<br />
Sebastião C.<br />
posição das famosas “contradas”, aqueles<br />
jogos entre as corporações e associações religiosas,<br />
que despertam esse ou aquele estado<br />
de espírito. Então aqui está uma ordem<br />
de ideias.<br />
Há locais impregnados<br />
pelo sagrado...<br />
Igreja de San Giorgio<br />
Maggiore, Veneza, Itália<br />
Órgão da Catedral de Notre-Dame<br />
de Paris, França<br />
com espírito sobrenatural para o serviço de Deus, mas<br />
também com uma finalidade natural. Quem as vê é visitado<br />
por uma graça que lhe faz compreender as analogias<br />
que elas têm com realidades sobrenaturais.<br />
De onde um muito grande apreço do homem por aquilo<br />
que ele vê. Por exemplo, a Catedral de São Marcos e a de<br />
Notre-Dame de Paris. Mas não apenas catedrais, às vezes<br />
são edifícios destinados a uma finalidade civil, como uma<br />
fortaleza, um castelo, que é a residência de uma família<br />
feudal e, ao mesmo tempo, a defesa desta família e da população,<br />
do burgo vizinho, contra possíveis agressões de<br />
maometanos, de bárbaros. Portanto, uma finalidade natural.<br />
Mas o castelo com aquelas torres, aquele jogo de<br />
ameias e barbacãs, dá uma impressão sobrenatural, proporcionada<br />
pela graça, e que vem do fato de que o castelo<br />
simboliza extraordinariamente bem para nós a virtude da<br />
fortaleza, enquanto praticada por amor de Deus.<br />
Assim, chegamos à conclusão de que muitos dos monumentos<br />
existentes na Europa foram construídos na plena<br />
era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média.<br />
Outros em épocas posteriores ou anteriores. Nas anteriores,<br />
enquanto o gótico começava apenas a ser vislumbrado<br />
pelos seus primeiros artistas, o românico era o estilo usado.<br />
Tinha ele, entretanto, charmes, encantos em que algo do<br />
sorriso todo cheio de afabilidade, de majestade e de uma<br />
discreta melancolia do gótico ia se formando, aparecendo,<br />
o que pode ser notado num edifício, numa praça, etc.<br />
Ademais, é possível que a graça dê à pessoa um especial<br />
discernimento do espírito com que, em concreto,<br />
aquilo foi construído. Então, diante da Praça do Paço<br />
Municipal de Siena, a pessoa pode ter um discernimento<br />
especial de qual era o espírito dos sienenses daquele<br />
tempo, de como entrava ali a graça, e fazer uma recom-<br />
Passo a considerar agora outra ordem de<br />
ideias. Não é mais o estilo, a aparência material,<br />
nem mesmo a mentalidade dos que planejaram,<br />
executaram ou viveram em determinado<br />
lugar, mas é a natureza dos atos que<br />
ali se passaram.<br />
Há um princípio admitido pela piedade católica<br />
segundo o qual, quando em um ambiente<br />
se passou algo de muito sagrado, aquele lugar<br />
fica de algum modo sagrado também. Vou<br />
dar um exemplo de tal maneira supremo que, por assim<br />
dizer, estoura o assunto, mas enfim de um estourar sagrado,<br />
magnífico: o Horto das Oliveiras, onde se deu o primeiro<br />
mistério doloroso do Rosário, a Agonia de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo. “Agonia”, em grego, quer dizer “luta”.<br />
Então a luta de Nosso Senhor contra o legítimo arrepio<br />
de seus sentidos diante da perspectiva da morte que<br />
deveria vir, com tudo quanto a antecedeu. Ali, onde Ele<br />
disse: “Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice,<br />
mas faça-se a vossa vontade e não a minha” (Lc 22,42).<br />
Veio então um Anjo – o qual podemos imaginar cercado,<br />
nimbado de uma luz ao mesmo tempo alvíssima e<br />
triste por causa da tarefa que ele devia executar – levando<br />
para Nosso Senhor um cálice de uma bebida<br />
que haveria de Lhe dar força sobrenatural para<br />
tudo aquilo que Ele suportou na Paixão.<br />
Então, onde Ele esteve, sofreu e derramou o<br />
primeiro Sangue da Paixão, tudo isso torna sagrado<br />
o lugar em que essas cenas se passaram.<br />
Por essa razão, quando se está naquele lugar<br />
recebem-se graças, não raramente sensíveis,<br />
pelas quais a alma é levada ao amor de Deus,<br />
à contrição, ao arrependimento, à compunção,<br />
à piedade, à compaixão para com o Cordeiro<br />
de Deus que ali sofreu para nossa salvação.<br />
Aquele lugar tem bênçãos especiais.<br />
...outros, habitados por uma graça<br />
Mutatis mutandis, os locais onde se passaram grandes<br />
fatos históricos, eminentes atos de coragem, de virtude, de<br />
renúncia, na História da Cristandade, tornam-se lugares<br />
particularmente dignos de reverência. Às vezes até fatos<br />
32<br />
Armadura medieval - Museu<br />
Metropolitano de Arte, Nova Iorque, EUA
sem uma relação direta com a Religião, mas nos<br />
quais reluz algo do espírito católico.<br />
Vem à minha memória a execução do<br />
Duque d’Enghien, ordenada por Napoleão.<br />
Esse duque, último da linhagem<br />
dos Príncipes de Condé, reunia em si o<br />
aspecto heroico, a estampa afidalgada,<br />
a coragem, a ousadia, quase a temeridade<br />
de seus antepassados. Possuía<br />
qualquer coisa do espírito repentino e<br />
irresistível do Grande Condé.<br />
Napoleão tinha intuitos de acabar<br />
com esse último descendente da Casa dos<br />
Condé, e para isso aproveitou-se do fato<br />
de que esse duque estava noivo de uma princesa<br />
francesa residente não longe da fronteira<br />
alemã, mas do lado alemão, onde a tropas de Napoleão<br />
não podiam penetrar. O Duque d’Enghien foi visitar<br />
a noiva e quando o Sol já havia se posto, Napoleão<br />
mandou um destacamento transpor o Reno, entrar nesse<br />
lugarzinho, agarrar o Condé e levá-lo preso para a França.<br />
Depois de um simulacro de julgamento, que ninguém toma<br />
a sério, mandou matá-lo.<br />
A calma do Duque d’Enghien nesse momento extremo,<br />
sua dignidade, presença de espírito – segurou calmamente<br />
a lanterna para que os tiros acertassem nele –, suas últimas<br />
cartas, tudo isso tem um aroma de Cavalaria. É bonito<br />
ver esse cintilar de luzes da Cavalaria, brilhando na<br />
época miserável em que o mundo estava conspurcado<br />
pela Revolução Francesa.<br />
Estando em Vincennes, e sabendo onde o<br />
Duque foi executado, eu quereria ir visitar o<br />
local em espírito de peregrinação. Não tenho<br />
nenhum documento comprovatório<br />
de que esse homem fosse especialmente<br />
piedoso. Dói-me a hipótese de que não<br />
o tenha sido. Apesar disso, não há dúvida<br />
nenhuma de que se ele não descendesse<br />
de ancestrais católicos,<br />
não seria essa flor do heroísmo<br />
católico a desabrochar dentro<br />
da poluição imunda da Revolução<br />
Francesa. Portanto,<br />
nessas condições, eu iria<br />
em espírito de peregrinação<br />
ao lugar onde ele foi imolado<br />
com tanto garbo, tanta<br />
galhardia, e rezaria por sua<br />
alma.<br />
Isso nos dá a impressão – notem<br />
bem, não é a realidade – de<br />
que as cenas ocorridas em determi-<br />
Havang (CC3.0)<br />
Duque<br />
d’Enghien<br />
nados lugares, como que ainda estão se passando<br />
ali. É fora de dúvida que aquele passado<br />
todo revive, e para quem está ali ele<br />
tem um prolongamento, uma continuidade<br />
misteriosa que emociona especialmente<br />
o visitante. Onde existem coisas<br />
assim, houve graças extraordinárias.<br />
E do mesmo modo como a graça desce<br />
à alma de quem lê, com trezentos anos<br />
de diferença, um livro de São Francisco<br />
de Sales, ela também age na alma<br />
de quem, duzentos anos depois, visita o<br />
lugar onde o Duque d’Enghien foi fuzilado.<br />
Essa impressão de lugar habitado pela<br />
graça, no qual se tem a impressão de que os<br />
fatos revivem e entramos numa misteriosa intimidade<br />
com eles, é altamente benfazeja para o espírito<br />
e enriquece o sentir, o degustar do homem que se encontra<br />
nesse local.<br />
Desejo do maravilhoso inspirado pela Fé<br />
Tomemos, por exemplo, a Catedral de São Marcos.<br />
Vista durante a noite, quando não há turistas e os<br />
pombos estão dormindo, a catedral apresenta-se na sua<br />
Catedral de Notre-Dame de Paris, França<br />
Catedral de São Marcos, Veneza, Itália<br />
Gabriel K.<br />
Samuel Holanda<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
majestosa solidão, esplendidamente iluminada, deixando<br />
perceber o branco reluzente do mármore de que foi<br />
construída, bem como seus pormenores magníficos, e<br />
torna-se especialmente evidente sua linha geral.<br />
Faço notar as três profundidades para a vista humana<br />
diante dessa catedral. Em primeiro lugar, as arcadas que<br />
têm como centro um arco maior com um magnífico mosaico<br />
e, acima, um terraço. Constituem o primeiro corpo do edifício.<br />
Depois, uma espécie de ogiva central muito grande, onde<br />
se percebem os famosos cavalos, dois torreões, e de cada<br />
lado duas ogivas muito abertas, encimadas cada qual com<br />
uma figura. Por fim, constituindo a terceira dimensão, encontram-se<br />
as cúpulas ladeadas de umas torrezinhas.<br />
Diante dessa catedral somos objeto de uma determinada<br />
impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de<br />
grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor<br />
de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações<br />
deslumbrantes do espírito católico que se manifesta<br />
ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa<br />
pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”<br />
Entretanto, dentro dessa catedral passaram-se fatos<br />
históricos da maior importância que determinaram rotações<br />
inteiras na História da Cristandade, das nações banhadas<br />
pelo Mar Adriático, que se manifestaram na História<br />
de Veneza e da Itália, episódios ora de violência, ora de<br />
refinamento político e esperteza levada a um grau inimaginável.<br />
Veneza era uma escola de<br />
diplomatas extraordinários.<br />
Nos arquivos dessa cidade<br />
se conservam relatórios<br />
que os embaixadores<br />
venezianos<br />
mandavam periodicamente, contando o que se passava nos<br />
países onde viviam. As narrações são tão bem feitas, tão seguras<br />
– de tal maneira eles sabem evitar boatos –, as análises<br />
tão finas e tão sutis, que essas cartas servem de fonte<br />
ótima para a História de qualquer país da Europa.<br />
Imponderável de São Pio X em Veneza<br />
Assim, pelo auxílio da graça, temos não apenas uma<br />
percepção do espírito de Fé que levantou tudo isso, mas<br />
também uma ideia dos mil fatos que ali se passaram.<br />
Um desses fatos se deu no começo do século XX. São Pio<br />
X, antes de ser eleito Papa, era o Patriarca de Veneza,<br />
portanto, Cardeal e Arcebispo daquela cidade. Quando<br />
morreu Leão XIII, convocaram o Conclave. São Pio<br />
X – então Cardeal Giuseppe Sarto – comprou passagem<br />
de ida e volta, pois ao que parece ele não contava com a<br />
possibilidade de ser eleito e, ademais, não tinha vontade<br />
nenhuma. Ainda nas vésperas de sua eleição, o Cardeal<br />
Sarto julgava que não seria escolhido, mas como, de repente,<br />
as coisas viraram e sua escolha tornou-se iminente,<br />
ele chorou, porque tinha pânico de ser Papa, pelo peso<br />
da responsabilidade do Papado.<br />
Podemos imaginar a última visita desse Santo Cardeal,<br />
pouco antes de tomar a gôndola para se dirigir ao<br />
Conclave; sua longa figura esguia, com os trajes cardinalícios,<br />
cabelos já muito brancos, ele mesmo alvíssimo,<br />
acompanhado de seus secretários, monsenhores, prelados,<br />
entrando na Basílica de São Marcos para rezar. Depois,<br />
com o coração pesado de presságios que via apenas<br />
obliquamente, ele tomar a embarcação e partir para o<br />
lugar de onde o trem o conduziria até Roma.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Nevsepic (CC3.0)<br />
Dom Giuseppe M. Sarto (futuro<br />
São Pio X), por ocasião de sua<br />
ordenação como Bispo<br />
de Veneza<br />
O Grande Canal de Veneza (por Canaletto) - Galeria Nacional de Londres, Inglaterra<br />
34
Seria a cena de Veneza despedindo-<br />
-se do mais recente dos Papas canonizados,<br />
que previu e combateu a crise do<br />
modernismo. Quem passeia por debaixo<br />
dessas colunas do átrio ou transpõe<br />
a porta, pensando em tudo isso, tem a<br />
impressão de que São Pio X encontra-se<br />
um pouco aí revivendo tudo isso. De fato,<br />
ele não se encontra, mas está presente<br />
uma graça relacionada ao que se passou<br />
e que torna especialmente sagrado<br />
esse lugar.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Passeando de gôndola<br />
pelos canais de Veneza<br />
Em minha última viagem à Europa,<br />
tive diante de muitos monumentos a impressão<br />
triste, de cortar o coração, de<br />
que essas graças tinham se retirado, e<br />
as cenas históricas ali desenroladas haviam<br />
perdido o nexo sobrenatural com<br />
aqueles monumentos. Ou que esses restos<br />
de continuidade da graça estavam<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma palestra em janeiro de 1989<br />
nos seus últimos lampejos e já iam desaparecendo,<br />
o que a multidão de turistas não censurava,<br />
e nem sequer sabia ser possível sentir isso, e visitava<br />
a Catedral de São Marcos, por exemplo, mais ou menos<br />
como se visita um museu.<br />
No entanto, essa densa presença de sobrenatural e<br />
de história, que em Veneza é incomparável, ainda senti<br />
quando tomei uma gôndola para passear pelos canais<br />
da cidade. Navegando no escuro entre aqueles palácios,<br />
tem-se a impressão de estar participando da vida psicológica,<br />
temperamental, social, daqueles personagens<br />
de trajes medievais ou do tempo das monarquias absolutas,<br />
com máscaras como se usava em Veneza, o bater<br />
dos remos na água, o brado dos gondoleiros para evitar<br />
trombadas; de repente, vê-se um homem que, ao passar<br />
diante de uma casa onde não quer ser reconhecido, pega<br />
o seu manto e cobre o corpo inteiro, só se desvendando<br />
mais adiante... Esses mistérios todos de Veneza temos<br />
a impressão de que ainda vivem, e nos metemos no meio<br />
deles ao passear de gôndola à noite pela cidade.<br />
O uso da lancha nos canais já estraga isso, porque o<br />
mistério vai embora. A lancha tem o determinismo estúpido<br />
das coisas mecânicas. O bonito é o silêncio, o mistério<br />
e o deslizar lento da gôndola, na qual os passageiros<br />
vão sentados meditando no que fizeram ou farão. Esse<br />
mistério tem seu charme.<br />
v<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
(Extraído de conferência de 11/1/1989)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> diante da Catedral de São Marcos, em 1988<br />
35
O segredo<br />
Francisco Barros<br />
da calma<br />
Pelo dom de profecia, Maria Santíssima<br />
conheceu individualmente todos os homens<br />
que existiriam até o fim do mundo,<br />
com suas qualidades e defeitos, e tem para<br />
com cada um a misericórdia incalculável da<br />
melhor das mães.<br />
Devemos, pois, ter a certeza de que pedindo-Lhe<br />
qualquer coisa, obteremos. Pode ser<br />
que alguém peça algo que não seja para o seu<br />
próprio bem. Neste caso, Nossa Senhora não<br />
dará. Porém, até nisso entra a misericórdia<br />
d’Ela porque, conhecendo melhor do que nós<br />
o que nos convém, a Mãe de Deus nos concede<br />
outra graça mais valiosa do que aquela pedida<br />
por nós.<br />
Mesmo que estejamos em estado de pecado,<br />
a Santíssima Virgem tem pena de nós e<br />
nos obtém graças preciosas para nos emendarmos<br />
e brilharmos diante d’Ela por toda a<br />
eternidade.<br />
Sendo assim, não há razão para ficarmos<br />
nervosos e agitados, pois ainda que não compreendamos<br />
por que está acontecendo algo de<br />
muito triste conosco, devemos estar tranquilos,<br />
pois a nossa Mãe vela por nós.<br />
A perfeição consiste, portanto, em manter-<br />
-se sereno e tranquilo, compreendendo que tudo<br />
se faz pela vontade de Nossa Senhora. Aí<br />
está o segredo da calma.<br />
(Extraído de conferência de 12/10/1990)<br />
A Virgem e o Menino - Igreja de São<br />
Pedro Apóstolo, Montreal, Canadá