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2001_Luzes-ApostoloPulchrum

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No fim do milênio,<br />

uma voz profética...


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 34, Janeiro <strong>2001</strong><br />

ortaleza<br />

e Temperança<br />

Sob as luzes douradas de um<br />

entardecer em Paris,<br />

Le Pont Neuf ostenta seus<br />

vigorosos arcos acima<br />

das tranqüilas águas do rio Sena


D<br />

Dir-se-ia mais um dos atraentes aspectos da<br />

Europa de antigos tempos. Mais uma ponte,<br />

bonita como tantas outras que por lá construiu<br />

o engenho humano. Comum, portanto, para os padrões<br />

do Velho Continente.<br />

Porém, Le Pont Neuf (a Ponte Nova), que transpõe o poético<br />

rio Sena na capital francesa, poderia dar acesso a um<br />

faustoso castelo. Porque, apesar de erigida com uma pedra<br />

tão banal como é o granito, suas linhas e seu traçado artístico<br />

lhe conferem uma grandeza que a torna venerável.<br />

Extremamente larga, ela se estende sobre arcos ladeados<br />

por grossas colunas, além dos sustentáculos em forma<br />

de braços que concorrem para ampará-la na sua longa arquitetura.<br />

Os arcos se repetem com uma seriedade e distinção<br />

completas. São dignos, sisudos, pesados e muito profundos,<br />

como que compenetrados da grave missão de esco-


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Verhille/Maison de la rance<br />

rar ponte tão extensa e vigorosa. Vigor e extensão que, a<br />

quem passa de barco sob ela, dão a impressão de se estar<br />

atravessando a espessa muralha de um castelo mítico.<br />

Nela não se vê nenhum brilhante, nenhuma safira. Raros<br />

enfeites. oi construída com parcos recursos financeiros.<br />

Pouco dinheiro entrou na sua edificação. O que entrou,<br />

pois? A arte. Mas, arte em que sentido? Alma. E alma<br />

em que sentido? Notam-se ali restos da seriedade austera,<br />

firme e forte da Idade Média.<br />

Por que firmeza e força?<br />

Simplesmente porque a ponte enfrenta uma série de obstáculos.<br />

Em geral, ela se ergue sobre um fundo de leito viscoso,<br />

e precisa deitar as garras por baixo do lodo, no terreno<br />

firme, a fim de possuir solidez. Por outro lado, carrega<br />

um peso muito grande: o da sua longa plataforma,<br />

acrescido do fardo que representam tudo e todos que sobre<br />

ela passam. Ela tem de ser tal que, se a imaginarmos<br />

repleta de gente ou de veículos numa hora de trânsito<br />

muito obstruído, isto não lhe traga o menor problema. Le<br />

Pont Neuf os sustenta com seriedade e indiferença.<br />

Ora, a seriedade indiferente a obstáculos, que agarra as<br />

dificuldades, empunhando-as e impondo-se a elas, é o próprio<br />

aspecto da alma católica dotada da virtude da fortaleza.<br />

De outra parte, a regularidade dos arcos e das linhas<br />

da Pont Neuf nos fala de temperança, a qual é regular em<br />

tudo. Assim, nesse lindo monumento da Cidade Luz, vemos<br />

simbolizadas de modo magnífico duas virtudes cardeais.<br />

Há, portanto, uma beleza moral por detrás dessa ponte.<br />

Há a formosura da alma humana e o pulcro do sobrenatural.<br />

v<br />

34


Seriedade indiferente a obstáculos, que agarra<br />

as dificuldades, impondo-se a elas: Le Pont Neuf nos fala<br />

da fortaleza e da temperança cristãs


O que é<br />

a felicidade?


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 35, Fevereiro <strong>2001</strong><br />

GRANDEZAS<br />

E PULCRITUDES<br />

DA DOR<br />

Sepultura<br />

do Rei<br />

Eduardo II<br />

da Inglaterra<br />

(Catedral de<br />

Gloucester)


Ohomem tem necessidade de<br />

tornar suportável a vida nesta<br />

Terra. Para adoçar suas<br />

agruras, ele tem à disposição muitos lenitivos<br />

lícitos, entre os quais, a contemplação<br />

do que há de celeste e maravilhoso<br />

na obra da Civilização Cristã.<br />

Acontece, porém, que um dos frutos<br />

excelentes engendrados pela Cristandade<br />

é, precisamente, a atitude que<br />

o católico deve tomar em face da dor.<br />

Certa vez, nos meus tempos de aluno<br />

dos jesuítas, um professor de Religião<br />

nos propôs um problema muito<br />

interessante, abstraindo-se do aspecto<br />

prosaico que o envolve.<br />

— Imaginem — dizia ele — que<br />

uma galinha fosse capaz de pensar, e que<br />

alguém se aproximasse dela e lhe dissesse:<br />

“Tu foste criada para servir de alimento<br />

ao homem. Daqui a pouco, seu<br />

dono vai te matar e te almoçar”. Pergunta-se,<br />

então, que sentimento deveria<br />

ter a galinha: de horror, porque vai morrer?<br />

Ou de entusiasmo, porque o fim<br />

para o qual ela existe — alimentar o<br />

homem — vai se realizar?<br />

O problema estava bem apresentado,<br />

e me impressionou de modo profundo.<br />

Anos depois, procurando resolvêlo<br />

à luz da doutrina católica, a solução<br />

me pareceu clara. Não se trata, é evidente,<br />

da galinha, mas do estado de<br />

espírito delineado pela figura metafórica<br />

que o professor nos pintou. A resposta<br />

que encontrei foi esta: a galinha<br />

sentiria necessariamente a dor horrorosa<br />

de sua própria imolação; porém,<br />

mais do que a dor, ela não poderia<br />

deixar de sentir a felicidade inerente<br />

ao fato de ter alcançado o seu fim último,<br />

a sua completa realização. E isto<br />

traz uma alegria muito superior à infelicidade<br />

do holocausto. Portanto, os<br />

dois sentimentos deveriam se juntar,<br />

de tal maneira que a galinha amasse o<br />

fato de chegar a seu fim, embora o<br />

fizesse com dor.<br />

O mesmo se pode aplicar à vida humana.<br />

Neste mundo, a pessoa feliz não<br />

é a que vive muito, nem a que vive<br />

prazerosamente. É, na verdade, aquela<br />

que conduz a sua existência segun-<br />

Túmulo do Infante D. Alfonso (Catedral de Burgos)<br />

do o objetivo para o qual foi criada:<br />

amar, servir e glorificar a Deus no cumprimento<br />

dos desígnios que Ele tem<br />

sobre ela. Nosso ânimo deve decorrer<br />

desse senso de que a alegria elevada e<br />

serena da finalidade alcançada é a autêntica<br />

alegria da vida. Nela encontramos<br />

as forças para suportar os sofrimentos<br />

que a Providência permite<br />

em nosso caminho, e os recursos para<br />

compreender tudo quanto eles significam<br />

na consecução de nossa realização<br />

suprema.<br />

Por isso mesmo, na época da Europa<br />

maravilhosa, nos áureos tempos<br />

da Civilização Cristã, encontramos a<br />

dor instalada no meio dos esplendores<br />

da vida, com toda a amplitude possível.<br />

Assim, a morte transformava-se<br />

numa grande solenidade, a respeito<br />

da qual a etiqueta tinha disposto todas<br />

as suas exigências.<br />

Por exemplo, quando um arquiduque<br />

d’Áustria agonizava, no momento<br />

em que lhe seria ministrado o Santo<br />

Viático, todos os príncipes da Casa<br />

Imperial ali presentes entravam em<br />

procissão no quarto, e formavam uma<br />

corola de velas acesas em torno do<br />

Senhor Eucarístico e daquele que em<br />

breve partiria para a eternidade. No<br />

meio de toda essa magnificência, o<br />

moribundo recebia o Santíssimo Sacramento,<br />

era ungido com os santos<br />

óleos. Seu falecimento se dava em<br />

meio a esse aparato da morte realizado<br />

com as pompas da vida. Como suprema<br />

despedida, seu funeral era um<br />

requinte de gala.<br />

Magnífica expressão desse enobrecimento<br />

da dor, dessa superior beleza<br />

de que se revestia o sofrimento, temos<br />

os garbosos e hieráticos gizantes medievais,<br />

os grandiosos monumentos<br />

fúnebres, as estátuas representando<br />

homens cobertos de véu e carregando<br />

imponentes caixões. Toda uma arte<br />

imensamente desenvolvida, para re-<br />

29


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

vestir de pulcritude o aspecto doloroso<br />

da vida.<br />

Mais. O entusiasmo com que se esperava<br />

e se cantava, nas vésperas das<br />

batalhas, a agonia da luta. Nasceram<br />

as canções de gesta, nas quais cada<br />

golpe, cada “ai!” recebia a glorificação<br />

de um acento épico, de uma arrebatadora<br />

melodia. Nas salas de armas<br />

dos castelos, na noite que antecedia<br />

a partida para a frente de combate,<br />

os homens conversavam e sorriam.<br />

E nos bailes das festas de primavera,<br />

enquanto dançavam pelos salões<br />

dos palácios, aqueles nobres de cabeleira<br />

empoada, de sapatos de fivelas<br />

de prata e saltos escarlates sabiam<br />

que dali a poucas semanas estariam<br />

partindo para a guerra. Sabiam que<br />

muitos não retornariam, que várias<br />

daquelas senhoras estariam na viuvez,<br />

mães ficariam sem filhos, e os filhos,<br />

sem pais. Entretanto, dançavam...<br />

Eles encaravam a dor com serenidade<br />

e grandeza de alma.<br />

Do mesmo modo eram respeitadas<br />

e postas em foco as mais variadas formas<br />

de sofrimento — inclusive o da<br />

maternidade ou o do esforço intelectual<br />

levado a bom termo —, porque<br />

bem se compreendia a noção de que<br />

esta Terra é um vale de lágrimas, segundo<br />

a linda expressão da Salve Rainha.<br />

Sorria-se para a dor por uma superior<br />

razão: “Vou realizar meu fim,<br />

aquilo para o que existo, e, por causa<br />

disso, apesar de todo sofrimento, estou<br />

alegre”.<br />

Daí vêm, igualmente, o júbilo e a<br />

pompa com que a Igreja celebrava —<br />

e celebra — a entrada de alguém para<br />

a vida religiosa. É o ingresso numa<br />

existência de renúncias e provações.<br />

Mas, em se tratando de uma jovem,<br />

esta se veste de noiva, orna-se a capela<br />

de flores, toca-se o órgão, o coro<br />

canta, e tudo se passa como se fosse<br />

uma esplêndida festa de casamento.<br />

A razão disso: a moça está em vias de<br />

realizar a finalidade para a qual foi<br />

criada.<br />

Em sua vida no claustro ela encontrará<br />

a dor, sem dúvida, porém a assumirá<br />

de grand coeur, com abundância<br />

de alma, sondando-a até o extremo, a<br />

exemplo do Divino Mestre que, diante<br />

da Cruz, abraçou-a e chorou. Pranto<br />

de comoção no qual, avantajandose<br />

ao oceano de amargura interior,<br />

entrava uma imensa felicidade: era<br />

seu supremo objetivo, a Cruz para a<br />

qual toda a vida d’Ele havia sido ordenada.<br />

v<br />

Gizante do<br />

senescal Philippe Pott<br />

(Museu do Louvre)<br />

Na página seguinte,<br />

gizantes na catedral de<br />

Canterbury<br />

30


31


Um homem<br />

de certezas


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 36, Março <strong>2001</strong><br />

RUTOS ESPLENDOROSOS<br />

DO SANGUE DE CRISTO


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Segundo o ensinamento da Igreja,<br />

no Paraíso Celeste, além da<br />

visão beatífica que inunda de<br />

gáudio as almas dos justos, há também<br />

uma realidade material — o Céu<br />

Empíreo — onde Deus semeou maravilhas<br />

inimagináveis, para que os corpos<br />

ressurrectos vivam imersos num<br />

universo físico que lhes fale das grandezas<br />

de seu Criador.<br />

Por essa disposição divina percebese<br />

quão necessário é ao homem alimentar<br />

o seu espírito, não só na consideração<br />

dos aspectos teóricos e doutrinários<br />

da Religião, mas igualmente<br />

através das coisas temporais que o façam<br />

desejar aquelas superiores belezas<br />

da bem-aventurança eterna.<br />

Compreenderam-no muito bem os<br />

filhos da velha Europa, a Europa da<br />

Civilização Cristã, os quais corresponderam<br />

de modo único às graças que<br />

receberam da Providência, alcançando<br />

realizações magníficas nesta terra.<br />

Por isso, até hoje olha-se para os esplendores<br />

europeus como para uma<br />

espécie de mito que a Religião Católica<br />

elevou à condição de ante-câmara<br />

ou de “seminário” do Éden celestial.<br />

A Sainte Chapelle e o rei São Luís<br />

Na página anterior, Vitrais da Paixão, na mesma capela<br />

32


Tempo houve, pois, em que todo o<br />

teor da vida era diverso do de nossos<br />

dias, num continente onde foi possível<br />

ao homem idealizar e construir um<br />

mundo de maravilhas, de coisas arquitetônicas<br />

e sapienciais capazes de<br />

nos falar do Céu e, ao mesmo tempo,<br />

deleitar de maneira virtuosa o “irmão<br />

corpo” de quem as contempla. São os<br />

símbolos excelentes e nobres daquelas<br />

magnificências que nos aguardam<br />

no Céu Empíreo.<br />

Dado, porém, que o efeito é sempre<br />

menor que a causa, comprazo-me<br />

em salientar que a maior dessas pulcritudes<br />

da antiga Europa é precisamente<br />

o espírito daqueles que as conceberam,<br />

as almas sedentas das grandezas<br />

celestiais, os corações nos quais<br />

se sentia este anseio de modo mais intenso<br />

do que naquilo que produziram<br />

e legaram à posteridade.<br />

*<br />

Penso nisto, ao considerar uma Sainte<br />

Chapelle e o monarca que a construiu,<br />

São Luís IX; ao admirar um<br />

Eremo delle Carceri e seu mais ilustre<br />

habitante, São rancisco de Assis; ou<br />

ao examinar a pujança e beleza de<br />

formas de uma Torre de Belém, diante<br />

da qual eu gostaria de passar uma<br />

noite inteira, sob as refulgências do<br />

luar, meditando no heroísmo dos valorosos<br />

portugueses de que ela é portentosa<br />

expressão.<br />

E por que não lembrar do palácio<br />

do Rei Sol, do Versailles de Luís XIV,<br />

cujas linhas e arquiteturas, no que têm<br />

de virtude e catolicidade, nasceram<br />

da Igreja e, a fortiori, estavam conti-<br />

D. Sebastião de Portugal<br />

e a Torre de Belém<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

das na mentalidade e no modo de ser<br />

dos homens e instituições sagrados<br />

que incutiram nos seus artífices o espírito<br />

católico? Logo, num São Vicente<br />

de Paulo, por exemplo, insigne santo<br />

do tempo do pai de Luís XIV e que<br />

freqüentava a corte, proporcionando<br />

uma abertura de alma para as virtudes<br />

que realizaram Versailles.<br />

O mesmo se poderia dizer do Escorial,<br />

concebido por elipe II de Espanha,<br />

o qual era mais “Escorial” que<br />

todo o seu famoso palácio. E como<br />

não imaginar a influência sobre essa<br />

idealização de uma alma que sobrepujava<br />

a do próprio Rei: a grande<br />

Santa Teresa de Jesus, ela mesma um<br />

“Escorial do Céu”?<br />

*<br />

Portanto, na causa de tantas maravilhas<br />

que duram há séculos e que ainda<br />

hoje encantam o mundo, havia toda<br />

uma estrutura moral, virtudes e<br />

qualidades de alma, havia um portentoso<br />

vínculo entre Igreja, Religião e<br />

civilização, concorrendo para realizálas.<br />

Para se dizer tudo, havia o Sangue<br />

infinitamente precioso de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo e as lágrimas de Nossa<br />

Senhora, fontes de graças inapreciáveis<br />

que fecundaram e geraram um<br />

mundo inteiro posto na perspectiva das<br />

grandezas eternas, apetecendo-as e<br />

procurando espelhá-las do modo mais<br />

perfeito possível nesta terra de exílio.<br />

*<br />

E assim são os esplendores da Europa<br />

cristã, da Europa sacrossanta, cujos<br />

passado e relíquias nos enchem do<br />

desejo de, ali chegando, oscular o solo<br />

em que primeiro pousam nossos pés.<br />

Porque, seja como for, é a parte do<br />

mundo por excelência onde os sofrimentos<br />

de Cristo e as dores de sua Mãe<br />

Santíssima engendraram uma grandiosa<br />

civilização, ante-câmara do Paraíso<br />

Celeste.<br />

v<br />

elipe II<br />

e seu famoso palácio,<br />

o Escorial<br />

34


Na origem de Versailles<br />

se encontram virtudes<br />

desabrochadas pela<br />

presença de um<br />

São Vicente de Paulo<br />

na corte francesa


A Páscoa<br />

que se renova


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 37, Abril <strong>2001</strong><br />

orça e<br />

esplendor<br />

góticos no<br />

interior da<br />

catedral de<br />

Bourges,<br />

rança<br />

EXTRAORDINÁRIA<br />

MANIESTAÇÃO<br />

DE É<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Em sua infinita sabedoria, a<br />

Divina Providência freqüentemente<br />

se aproveita de certos<br />

fenômenos que tocam nossos sentidos<br />

corporais para, através deles,<br />

exercer determinada ação em nossas<br />

almas. Assim, por meio daquilo que<br />

atinge sua percepção física, o homem<br />

discerne algo de sobrenatural que lhe<br />

enriquece o espírito.<br />

Um exemplo. Estamos passando<br />

diante de uma linda catedral gótica,<br />

sentimo-nos atraídos pela imponência<br />

de suas linhas, e entramos: igreja vazia,<br />

silenciosa, recolhida, com seus<br />

grandes vitrais batidos de sol, povoando<br />

de pedras preciosas o solo do templo.<br />

O ambiente e o colorido logo nos<br />

prendem o interesse pelas vistas. De<br />

repente alguém toca o órgão, despertando<br />

nossa sensibilidade pelo ouvido.<br />

Mas, ao mesmo tempo em que a<br />

beleza da arquitetura, da luminosi-<br />

dade e do som nos colhe, age também<br />

em nós um toque da Graça, pelo qual<br />

percebemos uma misteriosa analogia<br />

daquelas maravilhas sensíveis com certas<br />

riquezas sobrenaturais, com valores<br />

da é, com virtudes e princípios<br />

católicos.<br />

Mais: aquela grandiosidade de formas,<br />

aquela envolvente música de órgão,<br />

aquela radiosa policromia dos vitrais,<br />

são símbolos de determinadas<br />

perfeições do Criador e, por isso, tornam-se<br />

veículos para o homem conhecer<br />

algo do próprio Deus.<br />

*<br />

É o que acontece quando se contempla<br />

a Catedral de Bourges, tida como<br />

uma das mais bonitas da rança.<br />

Em sua ampla e esplendorosa fachada<br />

se sucedem portas e arcarias góticas,<br />

incrustadas de esculturas incontáveis.<br />

No centro, a grande rosácea,<br />

ponto de convergência de toda a decoração.<br />

O pórtico principal, formado<br />

por várias camadas de ogivas, prolonga-se<br />

sob um esguio e anguloso telhado,<br />

guarnecido por vigorosas colunas.<br />

À direita e à esquerda da entrada<br />

maior se abrem mais quatro, menores,<br />

também precedidas por fileiras de<br />

ogivas, recobertas de pequenas imagens<br />

talhadas em pedra.<br />

Cada um dos pórticos se enfeita com<br />

uma rosácea e uma imagem mais expressiva.<br />

Na principal está a figura de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo vitorioso,<br />

triunfante, deixando passar os fiéis pelas<br />

grossas e lavoradas portas de madeira.<br />

As entradas laterais obedecem<br />

à mesma estrutura, embora menos ricas,<br />

fazendo o papel de damas de honra<br />

que acompanham a rainha, completando-lhe<br />

a beleza arquitetônica e simétrica.<br />

O mesmo papel de acólito<br />

desempenham as colunas secundárias<br />

que separam as entradas menores da<br />

32


Catedral de Bourges parece ter sido<br />

feito “a galope” ou “a toque de caixa”.<br />

Naquele tempo, não se marcavam<br />

datas para concluir edificações<br />

como essas. Pelo contrário, sabia-se<br />

que talvez várias gerações passariam,<br />

até que os homens pudessem admirar<br />

em todo o seu esplendor mais um<br />

grandioso templo católico.<br />

Para se ter um pouco idéia do trabalho<br />

que uma construção desse porte<br />

exigia, basta reparar na espessura das<br />

paredes, na quantidade imensurável de<br />

pedras utilizadas, na profusão de imagens<br />

e floreados góticos, de colunetas<br />

e arcarias: é quase uma orgia de labor<br />

e dedicação. É um esbanjamento de<br />

arte. Na verdade, uma extraordinária<br />

manifestação de fé.<br />

Chama particularmente a atenção<br />

as seqüências de ogivas formando arcadas<br />

que resultam numa composição<br />

de força e leveza, arrematadas por<br />

agulhas e florões de pedra que lhes<br />

conferem especial nota de elegância,<br />

todas apontando para o firmamento,<br />

como a dizerem aos homens: “Confiem,<br />

pois no Céu tudo se resolverá!”<br />

*<br />

O edifício é imenso, porque as catedrais<br />

eram feitas para conter a população<br />

inteira da cidade, naquela é-<br />

principal, assim como as ornamentações<br />

daquelas servem de respeitoso e<br />

enlevado pendant para as desta.<br />

De todo esse conjunto sobressai uma<br />

expressão harmoniosa do espírito hierárquico<br />

predominante na época histórica<br />

em que foi construído. Tudo<br />

nele é ordem, é classe, é categoria; é o<br />

espírito da Idade Média.<br />

Agora, se tomarmos em consideração<br />

que todos os adornos da Catedral<br />

— e são inúmeros! — foram esculpidos<br />

em pedra, e que muitas dessas esculturas<br />

são genuínas obras de arte, facilmente<br />

percebemos que seus realizadores<br />

não se preocupavam com o tempo,<br />

nem com o trabalho e a mão-de-obra<br />

necessários para chegar a essa maravilha<br />

da arquitetura cristã. Não se incomodavam<br />

com prazos, não tinham<br />

frenesis de terminar logo. Nada na<br />

Dr. Plinio admira a majestosa<br />

Catedral de Bourges, durante sua última<br />

viagem à Europa, em 1988<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

poca áurea da Civilização Cristã em<br />

que todos eram católicos. Assim, tornava-se<br />

possível que a maioria dos<br />

fiéis assistisse às missas e participasse<br />

das cerimônias litúrgicas dentro do<br />

recinto sagrado, ao abrigo das vicissitudes<br />

climáticas, nevascas, tempestades,<br />

fortes calores, etc. A igreja era a<br />

própria casa do povo, porque era o<br />

palácio de Deus, onde havia lugar<br />

para ricos e pobres, reis e senhores<br />

feudais, autoridades eclesiásticas e representantes<br />

civis, para nobres e plebeus.<br />

Dentro, formavam uma só família<br />

cristã, sob o manto da Santa Madre<br />

Igreja e a celeste proteção de<br />

Maria Santíssima.<br />

Todos podiam se beneficiar<br />

da amplitude daqueles espaços<br />

interiores, das sólidas e<br />

imponentes colunas que se<br />

lançam para o alto abrindo-se<br />

e se encontrando em ogivas<br />

góticas, das grossas paredes<br />

de pedra e — mais que tudo<br />

— da maravilhosa luminosidade<br />

multicolorida, proporcionada<br />

por seus deslumbrantes<br />

vitrais. Verdadeiras rendas<br />

de vidros policromados, fundindo-se<br />

numa mescla de cores<br />

capaz de encantar ao mais<br />

insensível dos homens.<br />

ixando-se neles a atenção,<br />

é-nos permitido discernir<br />

uma série de figurinhas que<br />

se movem, que tomam atitudes,<br />

que falam e gesticulam:<br />

em geral são representações<br />

de episódios do Antigo e do<br />

Novo Testamentos, cenas históricas<br />

da Cristandade, batalhas<br />

memoráveis, ou acontecimentos<br />

decisivos para a humanidade,<br />

como a Ressurreição<br />

dos mortos e o Juízo inal.<br />

Nessa feeria de cores predomina<br />

o azul, profundo, lindíssimo,<br />

lembrando o anil de<br />

certas asas de borboletas que<br />

embelezam nossos bosques<br />

tropicais. Talvez não fosse exagerado<br />

afirmar que o azul de<br />

Bourges é o azul da rança,<br />

posto em vitrais que não só entusiasmam,<br />

como encerram lições de História<br />

Sagrada: os fiéis que não sabiam ler,<br />

acabavam conhecendo a Bíblia através<br />

daquelas luminosas e coloridas páginas<br />

de vidro...<br />

*<br />

Vale apontar, ainda, a beleza dos<br />

chamados botaréus, os contrafortes<br />

que arrimam as paredes externas da<br />

igreja. Parece que os medievais não<br />

possuíam pleno domínio dos cálculos<br />

necessários para garantir a estabilidade<br />

de gigantescos edifícios como a Catedral<br />

de Bourges. Para evitar que ruíssem,<br />

erguiam do lado de fora uma<br />

Nos vitrais de<br />

Bourges, a Bíblia<br />

escrita em páginas<br />

de vidro<br />

série de arcos-botantes, colocados de<br />

encontro ao corpo da igreja.<br />

Mas essa função prática se oculta<br />

sob formas tão bonitas, tão elegantes,<br />

tão leves que, se alguém pensasse em<br />

tirar essas escoras, os artistas da<br />

rança e do mundo inteiro protestariam.<br />

Compreende-se: quando se tem<br />

uma grande alma, até o não-conhecimento<br />

leva ao belo...<br />

Eis a Catedral de Bourges, o fruto<br />

de almas cristianizadas e estuantes de<br />

fé, que acabaram dando origem a esse<br />

magnífico estilo gótico, por meio do<br />

qual nos aproximamos da grandiosidade<br />

e da força, da harmonia e leveza<br />

infinitas de Deus Nosso Senhor. v<br />

34


Os arcos-botantes da Catedral<br />

de Bourges, símbolo da<br />

grandeza da alma cristã sempre<br />

à procura do mais belo


INOCÊNCIA:<br />

TEMA CARO A<br />

DR. PLINIO


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 38, Maio <strong>2001</strong><br />

Grandiosa<br />

solidão,<br />

convívio celestial<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Vista parcial do maciço do Mont Blanc, na cordilheira<br />

dos Alpes; na página anterior, o “Dente do Gigante”<br />

32


Quando, em sua divina onipotência, dispôs o Padre<br />

Eterno que a terra se povoasse de cordilheiras e<br />

montanhas, ainda não havia no mundo homens para<br />

contemplá-las. Naquela ocasião, os maravilhosos panoramas<br />

constituídos por tantas e tantas elevações desenrolaram-se<br />

apenas aos olhos de Deus, e assim permaneceram<br />

para proporcionar às criaturas humanas<br />

uma leve idéia das belezas arquitetadas por Ele antes de nós<br />

existirmos. Podemos, pois, conjecturar que, ao modelar todos<br />

esses cenários montanhosos, Deus teve como principal intenção<br />

a de nos fornecer a oportunidade de meditar e refletir a<br />

respeito de sua grandeza e de sua majestade infinitas.<br />

Uma das paisagens mais propícias para esse gênero de considerações<br />

é, a meu ver, a que descortinamos nas regiões circundadas<br />

pelos Alpes, ombreadas por aqueles montes e montanhas<br />

cobertos de neve, com toda a poesia e a magnificência<br />

que esta traz consigo.<br />

Às vezes, contudo, o que há de mais belo nesses panoramas<br />

não são as camadas de alvura eterna, e sim a configuração<br />

deste ou daquele pico — como o famoso Mont Blanc —, com<br />

cristas que se sobrepõem e se elevam umas às outras, dando<br />

formas extraordinárias às cordilheiras. Alguns se assemelham<br />

a crateras de vulcões que entraram em irrupção, jorrando das<br />

entranhas mais quentes da terra um jato imenso de lava que<br />

logo se congelou, petrificado para sempre naquela posição.<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Outros parecem cercados de uma como que muralha natural,<br />

imitando a estrutura de muitas fortalezas medievais.<br />

No centro do recinto fortificado se encontraria o castelo,<br />

formado por rochas mais acentuadas; e no meio desse castelo<br />

imaginário, à maneira de uma torre prodigiosa, elevase<br />

o píncaro mais proeminente.<br />

Em geral, o céu em que esses montes se recortam é de um<br />

azul belíssimo, ora claro e límpido, ora profundo e malhado<br />

de nuvens que procuram envolver os castelos de ficção.<br />

Tudo isso contribui para o esplendor e a riqueza do panorama,<br />

que ainda aquire maior expressividade ao ser introduzida<br />

nele a presença humana.<br />

Com efeito, o homem não pode contemplar os Alpes sem<br />

se imaginar a si próprio nesses píncaros, e sem medir a sensação<br />

que ele teria se, por exemplo, lhe fossem oferecidos<br />

os meios financeiros e técnicos para construir uma fortificação<br />

de verdade naquelas alturas. Quem pudesse habitar<br />

esse castelo se sentiria colocado no cume de uma grandeza<br />

colossal. Ele se teria pelo castelão dos castelões, o homem<br />

que se encontra numa elevação fantástica e que domina<br />

a partir deste ápice, pelo olhar e pelo pensamento,<br />

tudo quanto de contemporâneo se desenvolve aos seus pés.<br />

Em compensação, ele experimentaria também um imenso<br />

isolamento. Antes de tudo, porque a neve não é o seu habitat<br />

natural. O homem não foi feito para viver constantemente<br />

na neve, mas em lugares onde ela cai durante certo<br />

período do ano. Embora existam povos (como os esquimós)<br />

que conseguem viver em panoramas nevados, fazem-no entretanto<br />

em condições de vida bastante primitivas e com<br />

um desenvolvimento cultural dos mais elementares.<br />

Nessa perspectiva, a neve acaba dando a impressão de<br />

uma paisagem lunar, em que o homem estaria tão isolado<br />

quanto se achasse na lua, separado de seus semelhantes,<br />

longe de todos, incompreensível para todos, a todos dominando<br />

lá de suas alturas. E sofrendo daquilo a que se referem<br />

as Escrituras, a propósito da criação de Eva: “Não é<br />

bom para o homem que ele esteja só”. Na verdade, o isolamento,<br />

sobretudo quando se torna mais imponente e mais<br />

esmagador pela grandeza, é algo que pesa sobre os nossos<br />

ombros.<br />

E podemos imaginar que não seria diferente para o<br />

castelão na sua fortaleza, vivendo ali com apenas dois ou<br />

três serviçais, vendo os dias se sucederem às noites e as<br />

noites aos dias, com neves e nuvens cercando todas as<br />

34


suas janelas, e seu castelo de tal maneira isolado do próprio<br />

monte sobre o qual se ergue que o homem se pergunta<br />

se não está voando...<br />

De outro lado, porém, para os que não vivem na neve,<br />

para os que têm de suportar a existência no dia-a-dia rotineiro<br />

e trivial, mas conservando suficiente elevação de espírito,<br />

para estes haverá sempre uma vontade de sair da<br />

banalidade, um desejo de voar com a alma para dentro dos<br />

horizontes grandiosos. De maneira tal que, postos diante<br />

de panoramas como os dos Alpes, não seria estranho que<br />

pensassem: “Como seria bom estar lá no alto!”<br />

Essa grandiosidade amiga das alturas, essa magnífica<br />

solidão que procura companhia, em ambas há um pouco de<br />

verdade que nos fazem compreender melhor o Céu.<br />

De fato, o Paraíso Celeste é de uma elevação, de uma altitude<br />

— não física mas moral — incomparável. Por outro<br />

lado, nele não se está só. O homem se encontra na presença<br />

d’Aquele que é sua finalidade, e sente a companhia absoluta<br />

para a qual foi criado. Junto a Deus, o justo está como<br />

que embriagado da alegria de ter contato com seu Criador,<br />

de adorá-Lo face a face, de conversar com Ele, infinitamente<br />

mais alto do que todas as montanhas dos Alpes, mas, ao<br />

mesmo tempo, infinitamente mais condescendente, afável e<br />

amoroso do que as idéias que essas montanhas sugerem.<br />

Além disso, o homem se vê inserido em toda a Corte Celeste,<br />

na qual ele passa a ser príncipe, ao lado dos Anjos e<br />

Santos que povoam a bem-aventurança eterna. E cada um<br />

sente ali a felicidade completa, que reúne as alegrias antitéticas,<br />

aparentemente contraditórias, de fazer parte de uma<br />

multidão e de estar isolado num píncaro próprio. Ele se<br />

acha no mais alto dos cumes, cercado de um convívio idealmente<br />

afetuoso, respeitoso, amável, com a mais perfeita<br />

das multidões, que é o imenso povo formado por aqueles<br />

que se salvam.<br />

v<br />

Nas paisagens<br />

alpinas,<br />

envoltas na neve,<br />

circundadas de<br />

grandiosas<br />

solidões, é dada<br />

ao homem uma<br />

das mais belas<br />

oportunidades de<br />

meditar na<br />

magnificência<br />

infinita<br />

do Criador<br />

35


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

O<br />

Revista Dr Plinio 39, Junho <strong>2001</strong><br />

PODER DA<br />

FÉ E DA<br />

DEVOÇÃO


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Exposta aos luminosos ósculos do sol, envolta<br />

nas sombras de uma nublada atmosfera,<br />

ou emergindo numa certa penumbra prateada<br />

romana (que é preciso conhecer para<br />

compreender toda a sua beleza), a grande cúpula da<br />

Basílica de São Pedro se destaca no cenário da Cidade<br />

Eterna. No alto, uma espécie de pequeno mirante se adelgaça<br />

até se cobrir de uma esfera dourada, tendo por arremate<br />

o símbolo de nossa Redenção. É a glorificação festiva<br />

da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

O Cupolone (assim a chamam em italiano) é como que<br />

separado em gomos por largas estrias de pedra, todas elas<br />

de uma simetria perfeita, cobertas de uma camada azula-<br />

da, tendente ao prateado e meio propensa a refletir o céu.<br />

Imenso, sob ele se poderia construir um edifício com várias<br />

dezenas de andares. Tal é o tamanho interno da Igreja<br />

de São Pedro.<br />

À esquerda e à direita da grande cúpula erguem-se<br />

duas menores, na aparência sem muita significação. Entretanto,<br />

quando queremos compreender a razão de ser de<br />

algo ou de alguém, não devemos considerar apenas a impressão<br />

que causa por sua atuação e presença. Devemos<br />

igualmente imaginar como seriam as coisas se ele estivesse<br />

ausente ou se não existisse. Essa é a pergunta que<br />

nos importa fazer, diante dessas duas cúpulas pequenas,<br />

diminutas imitações do Cupolone. Poderiam alegar que a


função estética delas não passa de mero enfeite. Eu digo:<br />

são enfeites, mas por que possuem essa capacidade de<br />

adornar?<br />

Imaginemos que essas cúpulas menores não existissem.<br />

Teríamos logo a impressão de que o Cupolone esmaga a<br />

igreja. Portanto, para a ótica humana, elas como que suportam<br />

psicologicamente o peso da cúpula gigantesca, e<br />

ajudam a tornar leve algo que, sem elas, tornar-se-ia por<br />

demais pesado.<br />

*<br />

Abaixo da grande cúpula, surge o frontispício da Basílica,<br />

assinalado por vigorosas colunas. Nele encontra-se a<br />

loggia, isto é, o balcão de onde os papas costumam abençoar<br />

o povo reunido na Praça de São Pedro. Ato que se reveste<br />

de brilho e emoção particulares quando se dá logo após a<br />

eleição do Sumo Pontífice. Segundo a sapiencial tradição<br />

da Igreja, o Conclave se realiza no palácio do Vaticano, a<br />

portas fechadas. Os fiéis, conhecendo a hora em que os<br />

Cardeais se reúnem para as votações, dirigem-se para a<br />

praça e ali permanecem à espera do resultado. De uma pequena<br />

chaminé evola-se uma fumaça preta, quando o novo<br />

Papa ainda não foi eleito. O povo então se dispersa, desapontado<br />

e ansioso. Quando sai branca, uma estrondosa<br />

ovação ressoa pelos ares: a Igreja já não está mais órfã.<br />

Após os rituais que se seguem a uma eleição pontifícia<br />

— como a escolha do nome adotado pelo sucessor de Pe-


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

dro e a obediência que lhe é prestada pelos cardeais presentes<br />

—, o Papa se dirige para esse balcão. As portas se<br />

abrem ante o entusiasmo indescritível do povo: este conhecerá,<br />

finalmente, a fisionomia do atual Pai da Cristandade.<br />

Os carrilhões da Basílica começam a tocar, acompanhados<br />

pouco a pouco pelos sinos de todas as igrejas de<br />

Roma. É a glória de São Pedro que se faz ouvir em toda a<br />

Cidade Eterna. Então o Sumo Pontífice dá a primeira<br />

bênção urbi et orbi — para Roma e para o mundo inteiro.<br />

*<br />

A loggia e o frontispício triangular, testemunhas de toda<br />

essa glória do Papado, olham para a praça, no meio da qual<br />

se levanta um enorme obelisco. É um tipo de pedra coberta<br />

de inscrições egípcias, que se encontrava originariamente<br />

na terra dos Faraós. Em monumentos semelhantes costumavam<br />

esses soberanos deixar gravados os fatos marcantes<br />

de seu reinado e outros acontecimentos do gênero.<br />

No alto do obelisco foi colocada uma cruz, que nos faz recordar,<br />

emocionados, o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum<br />

volvitur orbis”— enquanto o mundo todo gira, a Cruz permanece<br />

de pé.<br />

É muito interessante observar que a arquitetura da Praça<br />

de São Pedro foi concebida de maneira a que ela representasse<br />

a forma da cabeça de uma chave, que toma contornos<br />

a partir das colunatas de Berninni, dispostas em semi-círculo.<br />

Habitualmente, no dia de Corpus Christi, o Papa<br />

realiza aí a procissão com o Santíssimo Sacramento,<br />

acompanhada por uma multidão<br />

de fiéis, sob o dobrar<br />

dos sinos da Basílica e das<br />

igrejas romanas.<br />

O corpo da chave é desenhado<br />

por uma avenida<br />

de linha retíssima — a Via<br />

della Conciliazione — que<br />

chega até as margens do<br />

rio Tibre. Assim ficam lembradas<br />

as chaves de São Pedro,<br />

a dos Céus e a da Terra,<br />

quer dizer, o mando do<br />

reino celestial e, indiretamente,<br />

do terreno.<br />

*<br />

Entre todos os eloqüentes<br />

aspectos que enriquecem<br />

a Basílica do Vaticano,<br />

entre a fabulosa pluralidade<br />

das cores de seus mármores,<br />

o reluzimento de seus<br />

ouros e a beleza extraordinária<br />

de suas pratas, um objeto<br />

sobressai por seu maravilhoso<br />

simbolismo: é a famosa<br />

imagem de bronze de<br />

São Pedro. Antiqüíssima, datada<br />

ainda do tempo anterior<br />

à Idade Média, e cujos<br />

pés os católicos do mundo<br />

inteiro vêm oscular. De tantos<br />

beijos depositados ao<br />

longo dos séculos, ficaram os<br />

dedos do pé completamente<br />

sem saliência. É o poder<br />

do amor e da dedicação sobre<br />

o poder do bronze. Os<br />

lábios dos fiéis, penetrados<br />

pela doçura da Fé, corroeram<br />

a dureza do metal... v<br />

34


N<br />

um maravilhoso símbolo do<br />

poder da devoção cristã,<br />

a suavidade dos ósculos dos fiéis<br />

corroeu a dureza do bronze secular...


FLORESCERÁ<br />

RENOVADA A<br />

IGREJA?


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Santuário<br />

de Santiago<br />

de Compostela,<br />

Espanha<br />

Admirável<br />

continuidade<br />

de bênçãos


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Certos lugares que reluziram com invulgar esplendor<br />

nos áureos tempos da Cristandade<br />

conservam ainda hoje, e com intensidade<br />

por vezes surpreendente, uma admirável continuidade com<br />

seu passado. E em se tratando sobretudo de tradições religiosas,<br />

a fé muito acentuada pela qual sempre se distinguiu<br />

o povo espanhol nos leva a encontrar, nesta nação, significativos<br />

exemplos dessa continuidade.<br />

Talvez o mais expressivo deles seja o Santuário de Santiago<br />

de Compostela.<br />

Situado na Galícia, ao norte da Espanha, seu nome deriva<br />

do latim Campus Stellae, isto é, Campo da Estrela. Segundo<br />

as crônicas, após o martírio de São Tiago o Maior,<br />

ocorrido em Jerusalém, seu corpo foi transladado por discípulos<br />

para aquela região hispânica e ali o sepultaram.<br />

Com o passar do tempo, porém, perdeu-se a noção de<br />

onde seus restos mortais haviam sido depositados. Até um<br />

32


dia em que, no século<br />

IX, alguns<br />

camponeses avistaram<br />

uma luz<br />

inusitada refulgindo<br />

sobre o local.<br />

Começaram a escavar e depararam<br />

com os ossos do grande Apóstolo.<br />

Em breve erguia-se o santuário, que haveria de se<br />

tornar um dos maiores centros de peregrinação de toda a<br />

Cristandade. Da Europa inteira se acorria para Santiago<br />

de Compostela, e num tal afluxo que, em determinadas<br />

épocas do ano, certos trechos dos caminhos transformavam-se<br />

em verdadeiras ruas, repletos de peregrinos!<br />

É difícil existir lugar mais sagrado e mais venerável do<br />

que Compostela. O devoto que ali se apresente com verdadeiro<br />

espírito de peregrinação e a alma voltada para o sobrenatural,<br />

não pode deixar de sentir as bênçãos inapreciáveis<br />

de continuidade com as mais antigas e excelentes graças da<br />

Civilização Cristã. Bênçãos peculiares, diferentes das que<br />

se nota em outros santuários igualmente veneráveis como<br />

Aix-la-Chapelle ou Genazzano; bênçãos palpitantes num<br />

ambiente repassado de fervor e entusiasmo.<br />

*<br />

A igreja é o maior templo românico do mundo, embora<br />

sua fachada obedeça às linhas de um estilo posterior. É grandiosa,<br />

magnífica e imponente. À primeira vista, o exterior<br />

pode parecer excessivamente sobrecarregado. Mas depois<br />

de uma ponderada análise, e tendo nossos olhos se habituado<br />

a considerá-lo, percebe-se que essa sobrecarga é ordenada<br />

e muito bonita. As fachadas laterais<br />

também se revestem de uma ex-<br />

A<br />

o longe, o<br />

peregrino divisa<br />

o monumental<br />

edíficio da<br />

Catedral de<br />

Compostela, e sente<br />

redobrar o ânimo<br />

para chegar ao<br />

"Pórtico da Glória"<br />

(ao lado), onde o<br />

espera a imagem do<br />

Apóstolo. Na página anterior, no canto,<br />

uma das incontáveis conchas que guiam os<br />

passos dos peregrinos ao longo dos<br />

"Caminhos de Santiago"<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

trema beleza, e todo o edifício compõe um harmonioso,<br />

digno e lindíssimo conjunto com os outros prédios<br />

da praça em que ele se encontra.<br />

Internamente, possui a formosura própria da arte<br />

românica, com um pormenor bem espanhol: não há<br />

vitrais. A luz penetra através de uma clarabóia cuja<br />

abertura foi cuidadosamente estudada para que todo<br />

o recinto receba suficiente iluminação. Em seus corredores<br />

laterais abrem-se diversas capelas, consagradas<br />

a certas invocações de Nossa Senhora e a alguns santos.<br />

E no centro, a meio termo entre o altar-mor e a<br />

porta de entrada, existe uma capela do Santíssimo<br />

Sacramento, bonita e piedosa. Os fiéis que ali se ajoelham<br />

para adorar o Rei dos Reis, perpetuamente exposto,<br />

são acolhidos por uma tocante imagem do<br />

Sagrado Coração de Jesus, impregnada de unção e de<br />

bondade celestiais.<br />

Entretanto, o local mais abençoado do Santuário é,<br />

a meu ver, a cripta onde se encontram os despojos de<br />

São Tiago o Maior. A urna funerária em que estão<br />

conservados é, na verdade, uma bela e rica imagem do<br />

Apóstolo, lavorada em ouro e pedras preciosas, com<br />

traços de inspiração ainda pré-gótica.<br />

Acima, o célebre "botafumero" de Santiago de Compestela.<br />

No alto, Dr. Plinio durante sua peregrinação ao Santuário, em 1988<br />

Êmula dessa bênção toda particular é a que se<br />

sente noutra capela do Santuário, situada embaixo<br />

da escadaria principal. Trata-se de uma<br />

construção dos tempos de Carlos Magno, o<br />

grande e piedoso monarca do Sacro Império Romano-Alemão,<br />

muito devoto de São Tiago e que<br />

ali esteve diversas vezes. Ali dentro torna-se ainda<br />

mais nítida a noção da continuidade desse<br />

presente com as magníficas tradições da Cristandade,<br />

e mais viva a idéia de que as graças de hoje<br />

e as de ontem se respeitam e se entrelaçam, constituindo<br />

um tesouro espiritual que nada poderá<br />

destruir!<br />

*<br />

Duas coisas merecem especial destaque no<br />

conjunto dos atraentes aspectos do Santuário.<br />

Uma é o botafumero, imenso turíbulo de prata<br />

que, em dias de festa, costuma ser levantado<br />

para a vasta abertura da cúpula e, lá no alto, descrevendo<br />

um gigantesco semicírculo, se põe a espargir<br />

o odorífero incenso por todo o recinto<br />

sagrado.<br />

Para alguém que o assista pela primeira vez,<br />

esse interessante e louvável ritual de incensamen-<br />

34


to pode tomar um certo ar de exercício de força, como<br />

quem observa se os homens encarregados de puxar as cordas<br />

têm o necessário vigor para espalhar aqueles tufos<br />

fumegantes. E, portanto, no meio desse ato religioso, há algo<br />

de campesino e de um pouco tosco. Mas, de um tosco e<br />

um campesino saborosos, encantadores, que dão gosto de<br />

serem vistos, porque fazem a beleza dos costumes de um<br />

lugar como Santiago de Compostela.<br />

Outra coisa que atrai especialmente a atenção, porque imbuída<br />

de simbolismo, é a presença dos sinos que tocam<br />

nas majestosas torres da igreja. Eles já ressoavam por<br />

aquelas regiões, nos dias anteriores à dominação moura.<br />

Quando os invasores chegaram a Compostela, saquearam<br />

o Santuário, levando os sinos para uma mesquita de Sevilha.<br />

Séculos depois, durante os heróicos feitos da Reconquista<br />

espanhola, São Fernando de<br />

Castela recuperou estes mesmos<br />

sinos e ordenou que fossem recolocados<br />

em seu lugar de origem.<br />

Quando ali estive, eu também como<br />

peregrino, ao ouvir o timbre desses<br />

bronzes, testemunhas de tantas<br />

epopéias, pensei no triunfo daquele<br />

grande rei espanhol e no triunfo ainda<br />

maior da Igreja Católica. E os dobrares<br />

que ecoavam das torres imponentes<br />

encheram minha alma de<br />

uma harmonia extraordinária.<br />

Uma vez mais, reluzia a admirável<br />

continuidade das bênçãos da Civilização<br />

Cristã.<br />

v<br />

As<br />

bênçãos de<br />

continuidade com o<br />

passado da Civilização<br />

Cristã fazem de Santiago<br />

de Compostela um dos<br />

mais veneráveis<br />

santuários do mundo.<br />

Acima, a cripta onde<br />

repousam os restos<br />

mortais do Apóstolo; ao<br />

lado, vista da nave<br />

central e do altar-mor<br />

35


MARIOTROPISMO


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 41, Agosto <strong>2001</strong><br />

Castelo de<br />

Chambord (França)<br />

Imagem épica<br />

do Criador<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Que maravilhoso conglomerado de torres! Quanta<br />

força nessas torres, quanta solidez nesse<br />

conglomerado! Que harmonia misteriosa: uma<br />

32


Em geral, uma pessoa imbuída de<br />

elevados sentimentos encontra especial<br />

agrado na admiração por<br />

algo que seja verdadeiramente admirável.<br />

Ela possui o que podemos chamar de espírito<br />

épico, ou seja, um espírito propenso a desejar<br />

e a se entusiasmar por tudo o que é<br />

maravilhoso.<br />

Uma alma assim, impulsionada pelas graças<br />

que recebeu no batismo, e por aquelas<br />

que Deus derrama sobre todo católico, tende<br />

a ver as alturas épicas do pensamento.<br />

Mais ainda, as alturas épicas da ordem do<br />

universo, as alturas épicas da história, as alturas<br />

épicas — quão mais sublimes e mais<br />

extraordinárias — da Religião Católica e da<br />

Civilização Cristã.<br />

Imaginemos, à guisa de exemplificação,<br />

que essa pessoa seja colocada diante de uma<br />

das mais belas construções do século XVI: o<br />

castelo de Chambord, no Vale do Loire, França.<br />

Contemplando o magnífico monumento<br />

exposto a seus olhos, tomar-se-ia de entusiasmada<br />

admiração.<br />

Que maravilhoso conglomerado de torres!<br />

Quanta força nessas torres, quanta solidez<br />

nesse conglomerado! Que harmonia<br />

misteriosa naquilo que faz com que, ao mesmo<br />

tempo, elas pareçam estar colocadas um<br />

pouco ao acaso, mas dêem, no seu conjunto,<br />

uma sensação de delicadeza, contrastando<br />

agradavelmente com o que têm de forte, de<br />

vigoroso, de guerreiro!<br />

Há qualquer coisa de nobre nesses tetos<br />

azulados, que descem tão harmonicamente<br />

até a parte de cantaria. Há algo de robusto<br />

nessas pedras atarrachadas, agarradas ao chão<br />

de tal maneira que parecem dizer: “Quem<br />

quiser derrubar-me se espatifa, quem quiser<br />

arrancar-me do solo tem que tirar o mundo<br />

dos seus próprios gonzos, porque eu sou uma<br />

torre do castelo de Chambord e ninguém<br />

me leva daqui.”<br />

Dessas análises ainda se poderia subir<br />

mais alto: como é bela a conexão entre a força<br />

e a delicadeza, entre o planejado do castelo<br />

e o aparente espontâneo da disposição<br />

daquelas torres! Como é belo, portanto, o<br />

ver juntas qualidades antitéticas.<br />

E por que oferecem uma beleza especial<br />

as qualidades antitéticas juntas?<br />

Porque o princípio de toda beleza é a<br />

unidade na variedade. E nada de mais variado<br />

do que a antítese completa entre a delisensação<br />

de delicadeza, contrastando<br />

agradavelmente com o que têm de forte,<br />

de vigoroso, de guerreiro!<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

cadeza e a força, e nada de mais belo do que ver<br />

os elementos dessa antítese se reunirem numa<br />

só harmonia. A unidade na variedade é bela<br />

porque é a melhor imagem de Deus na criação<br />

natural. É um dos princípios de perfeição e excelência<br />

que o Altíssimo pôs no universo. É uma<br />

das exigências da alma humana. Esta tende ao<br />

que é uno e bem-ordenado, mas também ao que<br />

é vário, diverso e movimentado.<br />

Ora, nesse castelo há a unidade na variedade,<br />

e minha alma ali repousa e ao mesmo tempo<br />

pensa em Deus.<br />

Sim, considerando os esplendores de Chambord,<br />

poder-se-ia fazer uma meditação que chegasse<br />

até Nosso Senhor. Admirando-os, vemnos<br />

ao espírito este pensamento: “Que beleza,<br />

que elegância, que distinção, que nobreza, que<br />

grandeza, que raffinnement! Como isso nunca se<br />

conseguiu, a não ser na Civilização Cristã! Como,<br />

ó Senhor Jesus Cristo, vosso sangue é fecundo<br />

de toda graça e de todo bem, de maneira<br />

que mil e quinhentos anos depois de vossa morte,<br />

ainda nasce essa flor de beleza, ainda desabrocha<br />

esse encanto de civilização, porque ela<br />

é cristã nas suas raízes!<br />

“Ó Senhor Jesus Cristo, Vós sois a fonte de<br />

toda graça, de toda glória e de toda beleza! Eu<br />

Vos adoro!”<br />

v<br />

34


Reunindo em si<br />

beleza, elegância, distinção,<br />

força e grandeza, em<br />

Chambord encontra-se a<br />

unidade na variedade, e a<br />

alma humana ali repousa, ao<br />

mesmo tempo em que pensa<br />

nos esplendores infinitos<br />

do Criador


UMA<br />

SOCIEDADE<br />

IDEALMENTE<br />

CATÓLICA


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 42, Setembro <strong>2001</strong><br />

Símbolos,<br />

fantasia e<br />

Veneza e seu leão alado<br />

realidade<br />

Sendo constituído de corpo e<br />

alma, o homem não se sente<br />

plenamente satisfeito enquanto<br />

seus sentidos não puderem captar<br />

aquilo que seu espírito concebeu. Essa<br />

necessidade se torna ainda mais in-<br />

tensa e primordial quando se trata<br />

d’Aquele que nos criou: mais do que<br />

tudo, temos o desejo de ver a Deus<br />

com os olhos da carne, depois de o termos<br />

percebido através dos olhos da<br />

alma.<br />

Acontece, porém, que Deus não<br />

pode se manifestar visivelmente ao homem,<br />

pois este se desconjuntaria inteiro<br />

diante da sua infinita e sobrenatural<br />

magnificência. Para remediar essa<br />

impossibilidade, o Senhor dispôs de


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

modo santo e maravilhoso que nossos<br />

sentidos tivessem de alguma forma o<br />

conhecimento d’Ele. Essa percepção<br />

nos é dada através dos símbolos.<br />

O que é, pois, o símbolo? É aquilo<br />

que nos faz conhecer as perfeições do<br />

Criador, as realidades sobrenaturais<br />

ou as meramente espirituais, de maneira<br />

tal que nos tocam no corpo, dão movimento<br />

à nossa sensibilidade e satisfazem<br />

os nossos anseios de distinguir<br />

fisicamente o que compreendemos pelo<br />

intelecto.<br />

Por exemplo, o heroísmo é um elemento<br />

da virtude da fortaleza. Pode-<br />

“Imagine-se um castelo gótico no alto<br />

de um monte ou na encosta de uma<br />

colina, meio agasalhado na névoa.<br />

Assim ele diz mais o que deseja<br />

expressar do que se estivesse<br />

sem a bruma...”<br />

(Castelo de Neuschwanstein, Alemanha)


mos ter todas as noções teóricas sobre<br />

o heroísmo, mas “sentiremos” o que<br />

ele é se analisarmos um leão. Deus incutiu<br />

neste animal certos movimentos,<br />

“élans”, vais-e-vens, que são análagos,<br />

à maneira de bicho, aos gestos<br />

e atitudes de um herói. O rei das selvas<br />

é, portanto, um símbolo que tem<br />

em si uma misteriosa semelhança com<br />

coisas da alma, e que nos faz conhecer<br />

o espírito de um homem leonino,<br />

como terá sido Carlos Magnos e tantos<br />

outros personagens históricos que<br />

se distinguiram por seu heroísmo e<br />

sua fortaleza. Como nos faz conhecer<br />

um pouco mais Aquele que é a Coragem,<br />

a Fortaleza e o Heroísmo, Deus<br />

Nosso Senhor.<br />

O que se disse do leão, pode-se<br />

aplicar a uma águia. Contemplando esta<br />

ave que começa a levantar vôo, teremos<br />

idéia do que é a ousadia soberana,<br />

que não duvida, que não toma<br />

precauções pequenas e mesquinhas.<br />

O alçar da águia rumo ao sol é semelhante<br />

a determinadas atitudes da alma<br />

também audaciosa, e tal analogia<br />

faz com que entendamos pelos sentidos<br />

aquilo que já compreendemos pela<br />

inteligência.<br />

Essas simbologias permitem que o<br />

homem não julgue monstruoso, mas<br />

compreenda e goste de algumas figuras<br />

da heráldica que são imagens de altos<br />

valores morais e espirituais.<br />

Por exemplo, poucos símbolos heráldicos<br />

são mais bonitos do que a águia<br />

bicéfala. Criatura que, se existisse, seria<br />

tomada como uma aberração da<br />

natureza, adorna entretanto o escudo<br />

e as coroas dos mais elevados soberanos<br />

do mundo. Pintada, ela faz sentir<br />

uma universalidade de poder: tantas<br />

são as coroas que é preciso mais de<br />

uma fronte para sustentá-las. Transmite<br />

uma impressão de nobreza, na<br />

qual o elemento pensante — a cabeça<br />

— é tão mais valioso que o elemento<br />

corpo, que existem duas, imperando<br />

sobre o resto da matéria física.<br />

Outro belo símbolo de heráldica é<br />

o leão alado de Veneza. Olha-se para<br />

ele e não se o julga um monstro. É a<br />

força conjugada com a leveza, o arrojo<br />

com a graça e a distinção, é a superioridade<br />

de quem pode se impor pela<br />

robustez temperada pela elegância de<br />

quem pode voar.<br />

Conta-se um episódio célebre, passado<br />

na Veneza sob dependência austríaca,<br />

nos velhos e bons tempos da


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

diplomacia cavalheiresca. Um nobre veneziano e um<br />

representante da Áustria conversavam num daqueles<br />

encantadores balcões da cidade das águas, e os olhares<br />

de ambos se detiveram na imagem do leão alado. O austríaco<br />

virou-se para o veneziano e disse num tom de<br />

pouco caso, como quem graceja:<br />

— Curioso este país onde os leões têm asas...<br />

O outro respondeu ato contínuo, na mesma toada:<br />

— Mais curioso o país onde as águias têm duas<br />

cabeças...<br />

Na verdade, estavam fazendo uma<br />

brincadeira quase que de salão,<br />

porque, de si, nem uma coisa<br />

nem outra é ridícula. Tratamse<br />

de símbolos, aos quais se<br />

permite uma ousadia que<br />

não se concede aos se-<br />

alta expressão da arte, sobretudo a arte inspirada pela<br />

Igreja, seja a de proporcionar ao homem a manifestação<br />

dos símbolos que tanto enriquecem sua inteligência e seu<br />

espírito.<br />

Havia uma escola de pintura do século XIX que costumava<br />

apresentar a realidade sempre envolta numa espécie<br />

de névoa. Na verdade, esta missão da arte tinha em vista<br />

apresentar um certo caráter simbólico que a névoa confere<br />

aos ambientes e aos objetos por ela abarcados.<br />

Imagine-se, por exemplo, um castelo gótico no<br />

alto de um monte ou na encosta de<br />

uma colina, meio agasalhado na<br />

bruma. Assim ele diz mais o que<br />

deseja expressar do que se estivesse<br />

sem a bruma. Por<br />

quê? Porque esta apresenta<br />

o lado irreal, que<br />

res vivos. Com efeito,<br />

o universo dos símbolos,<br />

embora exprima uma realidade,<br />

é até certo ponto o<br />

mundo da fantasia. Ele se situa<br />

entre a fantasia e a realidade: não podendo<br />

ser inteiramente fantasia, não será —<br />

senão mais raramente — uma mera realidade. De fato, o<br />

símbolo será tanto mais artístico quanto mais exprima o<br />

fundo da realidade, distanciando-se ao mesmo tempo das<br />

aparências desta.<br />

Qual é o papel do leão alado ou da águia bicéfala? É,<br />

novamente, fazer repercutir na nossa sensibilidade algo que<br />

a mente já compreendeu, tornando essa compreensão ainda<br />

mais completa. Por isso o símbolo é tão conveniente<br />

para o conhecimento humano. E, a meu ver, talvez a mais<br />

é preciso a fantasia<br />

juntar ao real, para a<br />

sensibilidade ser inteiramente<br />

tocada. Numa palavra, o símbolo ajuda a<br />

sensibilidade a se elevar às alturas, onde o intelecto<br />

do homem foi conduzido pela razão, e,<br />

sobretudo, pela fé.<br />

Para concluir, lembremos que Deus outorga a certos<br />

homens e mulheres a missão de simbolizar. E, curioso,<br />

nem sempre são pessoas de muito valor. Porém, possuem<br />

uma estampa, um modo de ser, que, se corresponderem à<br />

graça, externam e tornam particularmente atraentes determinadas<br />

virtudes. Por causa disso, são chamados a<br />

praticá-las eximiamente, transformando-se em anúncios<br />

luminosos da perfeição moral. Estes são os Santos. E um<br />

Santo nunca se apagará da história.<br />

v<br />

34


Situados entre a fantasia e a<br />

realidade, os símbolos — como a<br />

águia bicéfala e o leão alado —<br />

enriquecem o conhecimento humano,<br />

permitindo à nossa sensibilidade se<br />

elevar às alturas onde o intelecto foi<br />

conduzido pela razão e pela fé.


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 43, Outubro <strong>2001</strong><br />

Como grandes vôos<br />

de espírito...


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Entre as belas e atraentes realizações do engenho<br />

humano, notadamente aquelas cuja arte reflete<br />

uma inspiração católica, sempre me aprouve contemplar<br />

as fontes e chafarizes que encontramos, ridentes e<br />

convidativos, em incontáveis praças e jardins.<br />

Quantos bons sentimentos e retas disposições de alma<br />

eles despertam!<br />

Suas águas, ora surdem murmurantes e cristalinas, ecoando<br />

sons prateados, suaves como os de um cravo a tocar minueto,<br />

e transmitindo uma sensação de castidade e de pureza<br />

ao ambiente por elas adornado; ora se projetam em jatos<br />

vigorosos e imponentes, a nos falar de cogitações elevadas,<br />

de vôos de espírito, de pensamentos que partem de<br />

pequenas para maiores considerações; do mesmo modo como<br />

o filete líquido, que atravessa encanamentos, parece<br />

confiscado e chupado pelas trevas, mas, ao atingir a extremidade<br />

do condutor, é lançado para o mais alto dos ares.<br />

Esse encanamento é, outrossim, imagem das tubulações<br />

em que canalizamos nossos entusiasmos, nossos fervores<br />

de alma. Na aparência, destituídas de beleza, elas têm, entretanto,<br />

na ponta a força de um maravilhoso e esfuziante<br />

golpe de água.<br />

Os jorros de fontes e chafarizes podem ser ainda comparados<br />

a outro aspecto do espírito humano, quando este<br />

atinge o máximo de sua capacidade empreendedora. Levando<br />

o esforço ao ápice, o homem sente que, por uma nobre<br />

ascensão interior e uma extraordinária mobilização de<br />

32


suas energias, vai tirando de dentro de si vastidões e amplitudes,<br />

amplitudes e vastidões, até chegar à ponta de si<br />

mesmo e dizer: “Meu Deus, eu agora desfaleço, mas é para<br />

aquele supremo lance de realizações desejadas por Vós!”<br />

Esse convocar de forças nas profundidades de seu ser<br />

para projetá-las, rebrilhando, à luz dos acontecimentos,<br />

faz com que um homem se sinta como um chafariz das volumosas<br />

águas de Versailles, que emergem das entranhas<br />

da terra para povoarem as alturas, osculadas pelos raios<br />

do sol. É bonito, é grandioso!<br />

Além disso, as cortinas líquidas, transparentes e luminosas<br />

dos chafarizes, rorejando miríades de gotinhas ao<br />

seu redor, revestem-se de um verum, um bonum e um pulchrum<br />

que, longe de dissiparem o espírito contemplativo,<br />

convidam-no para maiores e mais compenetradas considerações<br />

sobre as infinitas maravilhas de Deus.<br />

O homem cujo pensamento tiver uma dimensão mais vasta,<br />

ao ver o chafariz, pode perfeitamente cogitar em coisas<br />

e temas superiores, elaborar planos, decidir sobre situações,<br />

solucionar problemas, etc., movido por uma acuidade<br />

especial que essa vista favorece.<br />

Pode, ainda, experimentar uma peculiar alegria do equilíbrio,<br />

da objetividade, da tranqüilidade. Ele observa as<br />

águas subirem e descerem numa profusão calma e constante,<br />

volta-se para os movimentos de seu coração e pensa:<br />

“Sinto que dentro de mim as coisas estão em ordem; vejo<br />

tudo o que me cerca nas devidas proporções, catalogo tudo<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Á guas de chafarizes,<br />

símbolos dos grandes vôos<br />

de espírito, da vastidão<br />

do pensamento humano,<br />

dos vigores e entusiasmos<br />

de alma, da filial e<br />

jubilosa gratidão daquele<br />

sobre quem recaem os<br />

favores celestiais...<br />

(Fontes do Parque do Retiro,<br />

em Madri, e dos Jardins do<br />

Palácio Real de Aranjuez)<br />

segundo os predicados e circunstâncias inerentes a cada<br />

objeto de minhas ponderações; distingo o que é<br />

bom do que é mau, o falso do verdadeiro, o belo do feio,<br />

sem mexer em ninguém, mas simplesmente observando<br />

e formando o meu universo interior, imagem fiel do<br />

universo exterior analisado.”<br />

Esse sentimento confere ao homem uma plenitude<br />

de satisfação pela qual ele passa a exprimir a si próprio,<br />

com as idéias claras e, por isso mesmo, encontrando<br />

as palavras adequadas para se expressar. Palavras<br />

que saem cristalinas e fluentes, não como um esguicho,<br />

mas como a fonte cujas águas brotam puras, generosas,<br />

abundantes, cheias de donaire e serenidade.<br />

Enfim, as comparações e analogias poderiam se estender<br />

e se multiplicar. Encerro-as, lembrando apenas<br />

que a água de um chafariz que bate no chão e depois<br />

respinga para o alto numa porção de gotas é, também,<br />

símbolo da gratidão do beneficiário sobre o qual recaem<br />

os favores celestes e que lança para cima, de novo<br />

para o Céu, a sua filial e jubilosa ação de graças... v<br />

34


35


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 44, Novembro <strong>2001</strong><br />

Harmonioso<br />

cântico<br />

de matizes


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

ASainte Chapelle (Santa Capela), mandada construir<br />

pelo rei São Luís de França, é um desses<br />

tesouros da arte católica, inspirado por uma Fé<br />

tão rica e tão florescente, que sempre encontramos algo<br />

de novo a se dizer e se comentar a respeito dela.<br />

Por exemplo, acerca de seus magníficos vitrais.<br />

Quando os conheci, tive a impressão de estar ouvindo<br />

um fabuloso coro cantando, no qual cada vitral era uma<br />

voz, e que entoava uma melodia entendida de maneira peculiar<br />

por mim, assim como era compreendido de modo diverso<br />

pelas diferentes almas que o “escutavam”. E como é<br />

o próprio da interlocução, deram-me oportunidade de discernir,<br />

no meu interior, mil virtualidades, anseios, sedes<br />

que eu tinha e que só percebi no momento de “beber a<br />

água”, ou seja, “ao ouvir” aquele cântico feérico dos vitrais<br />

da Sainte Chapelle. Supérfluo dizer que me encantaram ao<br />

ponto do indizível. A partir desse momento, ao pé da letra,<br />

vários espaços de minha alma começaram a viver.<br />

Que lembranças guardo do que eles me diziam com suas<br />

“vozes” que não emitiam sons, mas fabulosos coloridos?<br />

Eu não imaginava que daquelas cores — digamos, de<br />

um azul, de um vermelho, de um verde, etc. — fosse pos-<br />

sível obter tantos matizes, finos, suaves, fazendo aparecer<br />

o que essas cores têm de mais delicado, sem se transformarem<br />

em cor-de-rosa, azul claro ou verde-água triviais que<br />

por aí existem.<br />

Por outro lado, desmentiam para mim uma idéia primitiva,<br />

segundo a qual essas cores muito delicadas só eram obteníveis<br />

com matérias-primas raras e com elas apenas se<br />

podiam pintar superfícies pequenas, deteriorando-se logo. E<br />

que, portanto, havia um irremediável divórcio entre a grandeza<br />

e aquela forma de delicadeza matizada que estava lá.<br />

Ora, diante de mim reluziam vitrais enormes, apresentando<br />

matizes de extrema suavidade, sem serem homogêneos,<br />

com uma agradável variedade de tons dentro de cada<br />

painel. E então este instantâneo da delicadeza fixada, tornada<br />

grandeza, e o débil que se apresenta rei, deu-me a impressão<br />

de uma vitória da alma justa, de uma vitória de tudo<br />

quanto é frágil, reto, inocente, sobre o que é ruim, uma<br />

impressão de fato extraordinária, que produziu no meu espírito<br />

um “tressaillement” de contentamento.<br />

Agora, num misto de análise artística e psicológica, notei<br />

também que esses matizes que assim se ostentavam não venciam<br />

com a arrogância de um boxeur que derruba o adver-


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

sário, põe o pé em cima dele e depois acena para a platéia.<br />

Nada disso. Essa delicadeza de matizes vencia com uma<br />

espécie de dignidade, com folga tal que ela não sentia sequer<br />

a necessidade de esmagar o adversário. Este não se<br />

encontrava estirado ao solo: estava eliminado do panorama.<br />

Assim, criava-se a idéia de um mundo onde, desde o começo,<br />

só ele, vitral, existira. Algo parecido com aquela Sabedoria<br />

que, no princípio dos séculos, brincava com todas as<br />

coisas...<br />

Percebi que na delicadeza de cores daqueles<br />

vitrais havia a candura e a como<br />

que inexperiência do virginal, aliada à<br />

estabilidade e à dignidade da experiência<br />

de uma matriarca no auge<br />

mais dourado de sua vida, na plena<br />

lucidez e no pleno conhecimento<br />

das realidades da nossa existência<br />

terrena.<br />

Ainda nessa linha de impressões,<br />

imaginando que cada vitral era como<br />

que alguém que tivesse a alma construída<br />

daquele jeito, imaginando que esses “alguéns”<br />

do mundo dos possíveis foram sonhados<br />

pela Idade Média e tiveram começos de realização<br />

em milhares de almas, então eu pensava em São Luís,<br />

nos artistas dele que edificaram essa maravilha da arte<br />

católica, na multidão de súditos que amavam seu monarca<br />

santo e admiravam nele as suas semelhanças com o Rei<br />

dos Reis, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu pensava nisso e<br />

entendia ainda melhor o que foi a época áurea da Cristandade.<br />

Essa é a análise dos matizes.<br />

Agora, a impressão que tive do conjunto de todos os vitrais<br />

foi a de uma harmonia constituindo uma espécie de figura<br />

não-expressa, ideal, de um vitral arquidelicado, de um vitral<br />

perfeito contendo em si todas as cores arqui-suaves naquele<br />

estado que acabei de descrever. Trazendo consigo<br />

a noção de que essa delicadeza assim<br />

apresentada — longe de ser inimiga<br />

dos tons mais fortes, na linha dos<br />

estados de alma como na linha<br />

das cores e na dos sons — fazia<br />

pensar no desfile sem fim<br />

de todos os coloridos possíveis,<br />

mesmo os mais<br />

antitéticos, em todos os<br />

estados de espírito possíveis,<br />

mesmo os mais diversos,<br />

dentro daquela harmonia.<br />

E dessas impressões se desprende,<br />

afinal, uma idéia de perfeição<br />

enquanto perfeição, de harmonia<br />

enquanto harmonia, de santidade enquanto<br />

santidade — portanto, de verdade enquanto verdade, e de<br />

beleza enquanto beleza — reluzindo neste píncaro da<br />

montanha da delicadeza, a partir do qual se percebe toda a<br />

cordilheira dos sentimentos opostos e afins que constituem<br />

o espírito indizivelmente rico da Igreja Católica. v<br />

34


Matizes de extrema suavidade, com uma agradável variedade de<br />

tons; o débil que se apresenta rei, dando a impressão de uma vitória<br />

da alma justa, e de tudo quanto é frágil, reto e inocente sobre o que<br />

é ruim. Vitória com folga e dignidade, como se desde o começo só ele, vitral,<br />

existira. Algo parecido com a Sabedoria que, no princípio dos séculos, brincava<br />

com todas as coisas...


Com Dr. Plinio,<br />

aos pés do<br />

Menino Jesus


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Revista Dr Plinio 45, Dezembro <strong>2001</strong><br />

N oite santa,<br />

noite<br />

S ilenciosa...


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Ao longo dos séculos da história<br />

cristã, as noites de Natal<br />

têm recordado aos homens<br />

e lhes feito compartilhar as bênçãos<br />

inefáveis do augusto momento<br />

em que o Redentor nasceu para o mundo.<br />

Sobretudo antes das festas laicas e<br />

comercializadas de hoje, as celebrações<br />

natalinas possuíam um néctar,<br />

uma poesia, um encanto, um discernimento<br />

de espírito por onde todos como<br />

que sentiam e conheciam a graça<br />

de Deus e de Cristo que desce como<br />

um orvalho do mais alto do céu, ou<br />

seja, do claustro sacratíssimo de Nossa<br />

Senhora, e sem transgredir a virgindade<br />

intacta da mãe, entra nesta terra.<br />

A Virgem teve um filho e a humanidade<br />

se extasia!<br />

Dir-se-ia revestido de completa beleza<br />

o cenário dessa noite na Terra Santa,<br />

iluminada por estrelas reluzentes como<br />

nunca, povoada de Anjos que anunciam<br />

o nascimento do Salvador. Entretanto,<br />

como lucra em formosura o Natal,<br />

quando considerado nas manifestações<br />

de piedade e de inocência com<br />

que o festejam os povos germânicos!<br />

Imagine-se a igrejinha, a<br />

paroquiazinha toda coberta<br />

de neve, com o relógio iluminado<br />

por dentro, indicando<br />

10 para a meianoite;<br />

os aldeiões que<br />

se aproximam com os<br />

tamancões grandes,<br />

porque a neve enche<br />

o caminho,<br />

e ainda cai aos<br />

flocos. A igreja,<br />

bem aquecida,<br />

acolhe generosamente<br />

os seus<br />

fiéis que entram<br />

depressa e logo se<br />

acomodam naquele<br />

pequeno palácio do<br />

Menino-Deus.<br />

Ao longe, as casinhas<br />

da aldeia espargem<br />

cintilações<br />

douradas através<br />

de suas janelas,<br />

pontilhando de<br />

luz o imenso man-<br />

to de neve com que se veste a natureza.<br />

Das chaminés escapam tufos de<br />

fumaça: é a festa de Natal que já está<br />

preparada, a lareira acesa, as suculentas,<br />

atraentes e substanciosas delícias<br />

da culinária alemã postas no forno, os<br />

presentes junto à esplendorosa árvore<br />

montada na sala principal, enfim, tudo<br />

pronto para as santas alegrias que se<br />

seguem à jubilosa celebração litúrgica.<br />

Esses vários aspectos constituem,<br />

dentro da inocência da neve, um quadro<br />

só, completado pelos sentimentos<br />

da canção natalina por excelência, o<br />

Stille Nacht.<br />

Stille Nacht! Heilige Nacht!<br />

Alles schläft, einsam wacht<br />

Nur das traute hoch heilige Paar.<br />

Holder Knabe im lockigen Haar,<br />

Schlaf in himmlischer Ruh!<br />

Noite silenciosa, noite Santa!<br />

Tudo dorme. Solitário, está velando<br />

O nobre e altamente santo Casal.<br />

E o Menino de cabelos cacheados,<br />

Dorme em celestial tranqüilidade!<br />

Composta no século XIX por um<br />

modesto professor austríaco, o mundo<br />

inteiro a adotou como a música do<br />

Natal. E desde então não se compreende<br />

um 25 de dezembro em que não<br />

se entoe, nos mais diversos países e nos<br />

mais diferentes idiomas, o Stille Nacht<br />

— o nosso “Noite Feliz”...<br />

Por movimentos aos quais não é<br />

alheia a mão da Providência, o consenso<br />

popular soube compreender o<br />

significado mais profundo desta canção,<br />

e daí a indiscutível primazia dela<br />

sobre as demais melodias natalinas.<br />

Que significado?<br />

No Stille Nacht existe em alto grau<br />

a idéia de que os Céus se abriram, e o<br />

32


Apoesia e o encanto<br />

natalinos, expressos<br />

nessas imagens de<br />

presépio, sempre<br />

recordaram aos<br />

homens o augusto<br />

momento em que<br />

o Verbo de Deus<br />

desceu até nós,<br />

como um orvalho<br />

caído do mais<br />

alto dos céus<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Menino Jesus fez um percurso gigantesco para<br />

chegar até nós. Portanto, por trás da idéia da<br />

Encarnação, e como elemento necessário para<br />

se situar inteiramente a posição do homem em<br />

face do nascimento do Verbo, está a noção de<br />

um acontecimento fabuloso, desmedido, imenso,<br />

que se deu e se converteu em intimidade e<br />

amor. E, por causa disso, em ternura, o tempo<br />

inteiro maravilhada.<br />

É a ternura diante das fragilidades de um<br />

Deus feito homem, diante das quais nós não temos<br />

nem sabemos o que dizer. De outro lado,<br />

porém, esse mesmo Deus é o Senhor do Universo,<br />

onipotente, eterno Juiz de toda a Criação.<br />

Portanto, num sublime paradoxo, é a ternura e<br />

a compaixão para quem é infinitamente mais do<br />

que nós, extremamente delicadas, envoltas num<br />

alto critério de sentimento para serem dignas de<br />

se apresentarem Àquele que de fato merece essa<br />

compaixão, mas que é Deus. Então é a piedade<br />

humana ao mesmo tempo admirativa e súplice,<br />

é o homem que tem pena fazendo um pedido ao<br />

Deus de quem tem pena... Outro paradoxo, outra<br />

grandiosa beleza!<br />

Paradoxos e contrastes que despertam em nossas<br />

almas toda sorte de delicadeza de emoções.<br />

Ao lado da ternura e da compaixão, a reverência,<br />

a veneração, a submissão de todo o nosso ser<br />

ao Divino recém-nascido, e um deixar-se levar<br />

a subidas cogitações às quais esse acontecimento<br />

entre todos bendito nos convida. Além disso,<br />

a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime,<br />

e um imenso agradecimento de quem recebe<br />

uma misericórdia sem limites, por nos sentirmos<br />

visitados e impregnados por todas<br />

as graças que Ele trouxe ao mundo, para<br />

a nossa salvação.<br />

A todas essas boas disposições nos<br />

inclina a melodia do Stille Nacht, cujas<br />

notas e inflexões têm isso de próprio,<br />

que fazem um comentário do<br />

sentido da palavra cantada. Então,<br />

nos tons mais baixos, é a ternura vigilante<br />

que se debruça sobre a manjedoura,<br />

velando para que nada toque<br />

no Menino, que nada O moleste.<br />

Ele está chorando, mas a<br />

Mãe o consola... E com que incomparável<br />

desvelo!<br />

Em outros momentos, porém,<br />

nas notas mais agudas, novamente<br />

ressalta a idéia de que<br />

este Menino de cabelos cacheados,<br />

é Deus. O Menino dorme. E a sua<br />

tranqüilidade, assim como Ele,<br />

não é da terra. É do Céu... v


A inocência da neve, a<br />

ternura e a compaixão diante<br />

das fragilidades de um Deus; a<br />

imensa gratidão de quem<br />

recebe uma misericórdia sem<br />

limites, trazida pelo Menino de<br />

cabelos cacheados.<br />

O Menino que dorme em<br />

celestial tranqüilidade...

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