Lavoura n. 4
Quarta edição da revista semestral Lavoura, dedicada à publicação de literatura brasileira contemporânea. Editada por André Balbo, Arthur Lungov e Lucas Verzola
Quarta edição da revista semestral Lavoura, dedicada à publicação de literatura brasileira contemporânea. Editada por André Balbo, Arthur Lungov e Lucas Verzola
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52<br />
era uma aventura plenamente confortável,<br />
mas felizmente minha companheira não<br />
parava de falar.<br />
“Você sabia que nas fundações da<br />
Muralha estão enterrados alguns trabalhadores<br />
que se acidentaram durante a sua<br />
construção?”, ela continuou.<br />
“O guia disse alguma coisa a respeito,<br />
mas não entendi muito bem.”<br />
“Existe uma bela história que conta<br />
que uma moça atravessou o país para se encontrar<br />
com seu amante que trabalhava na<br />
construção daqui. Depois de meses de viagem,<br />
ela finalmente chegou a seu destino,<br />
ansiosa para reencontrar seu bem-amado.<br />
Alguém lhe disse que o marido havia morrido<br />
já fazia vários meses. Ela ficou tão enlouquecida<br />
que emitiu um grito tão feroz<br />
que fez ruir todo o trecho já construído da<br />
Muralha. As pedras caíram sobre ela, enterrando-a<br />
viva próxima ao túmulo de seu<br />
companheiro. Não é lindo?”<br />
Na verdade, naquele momento a história<br />
pareceu forte demais aos meus sentidos.<br />
Mesmo assim, concordei com ela.<br />
Por uma fresta aberta entre os galhos,<br />
pude ver de relance um trecho da fortificação.<br />
Uma das torres havia sido decorada<br />
com bandeiras brancas, e uma torre seguinte<br />
com bandeiras vermelhas, ambas semelhantes<br />
àquelas que portávamos, feitas em<br />
papel de arroz. Por fim, chegamos a uma<br />
pequena passagem pelo interior de uma<br />
das torres que dava acesso ao alto. Fomos<br />
recebidos por duas adolescentes igualmente<br />
vestidas em seda branca. Encaminharam-nos<br />
para o centro da passarela de cem<br />
metros que interligava as duas torres decoradas.<br />
Várias pessoas já se encontravam aliquando<br />
chegamos. Eram dezenas de chineses<br />
vestidos humildemente, camponeses de<br />
todas as idades. Pude avistar até mesmo<br />
uma mãe com seu bebê adormecido. O clima<br />
era de relaxamento e expectativa. Todos<br />
estavam apoiados nos parapeitos da<br />
Muralha e, como eu, portavam lanternas.<br />
Aparentemente, nós dois éramos os únicos<br />
ocidentais ali presentes.<br />
Algumas moças serviam aos convidados<br />
uma bebida alcoólica forte e doce que<br />
não consegui identificar, mas que sorvi com<br />
gosto. Esperamos cerca de meia hora sem<br />
que qualquer coisa acontecesse. Vez por<br />
outra, os bambus que sustentavam as bandeiras<br />
no alto das torres soavam um acorde<br />
melancólico.<br />
De repente, o som de um forte gongo,<br />
vindo da torre vermelha, ressoa por<br />
todo o espaço. Todos silenciam. A batida é<br />
logo sucedida por outra semelhante, vinda<br />
da torre branca. Em seguida, ouvimos virem<br />
dos dois extremos notas secas e agudas<br />
emitidas por um conjunto de flautas<br />
de bambu. Os camponeses apagam as lanternas<br />
imediatamente. Faço o mesmo. Somos<br />
absorvidos pela mais absoluta escuridão,<br />
não fosse pela tênue luz da fina Lua<br />
crescente e de algumas estrelas esparsas.<br />
Pelos portais das torres, à nossa esquerda<br />
e à nossa direita, saem duas comitivas enfileiradas<br />
simetricamente. Uma espécie de<br />
bumbo, de som oco e surdo, começa a compassar<br />
a caminhada lenta e pontual de uma<br />
comitiva em direção à outra. A comitiva da<br />
torre vermelha é composta exclusivamente<br />
de homens, enquanto que a branca integra<br />
homens e mulheres. Os de branco estão<br />
trajados com túnicas de seda nessa cor, e<br />
cada um porta uma lanterna vermelha, presa<br />
num fino bambu, como grandes sóis acima<br />
de suas cabeças. Para minha surpresa,