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mundo

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A S F E R A S D E U M<br />

DE GILSON<br />

LUÍS DA<br />

CUNHA<br />

M U N D O A O S U L<br />

nova<br />

literatura<br />

E S C R I T O R E S I N S P I R A N D O E S C R I T O R E S


I N S P I R I N G T R A V E L S T O R I E S<br />

WWW.ESTREMOZEDITORA.COM<br />

C O M P R E J Á O S E U


O R G I L S O N L U Í S D A C U N H A<br />

P<br />

W W . G I L S O N L U I S D A C U N H A . C O M . B R<br />

W<br />

eurásia, limitando a ocupação de imensos territórios. Nesta Terra, as grandes feras de sangue quente, a<br />

megafauna, foi quase extinta na Europa, Ásia e África. Mas não no continente americano. Na América do<br />

Sul, em meio a guerras de independência, as colônias europeias começam a se libertar de suas<br />

metrópoles. É uma terra vasta, rica, e, potencialmente, capaz de alimentar um planeta que se prepara<br />

Prólogo: Notas de um naturalista acerca da província<br />

<strong>mundo</strong>. Temo que o jovem príncipe Dom Pedro não esteja à altura de governar do Brasil. Ainda assim, temo que, se<br />

não o fizer, esse país estará fadado ao caos. Esta terra rica em recursos naturais ainda é jovem e inculta, não há uma<br />

Estou passeando pela freguesia de Porto Alegre, antes de seguir viagem para Viamão, onde farei algumas coletas de<br />

testemunho uma cena inusitada: um comboio de gigantescas carroças puxadas por mastodontes avança rumo ao<br />

Os missioneiros são uma civilização ímpar. Nem europeus, nem indígenas, nem cristãos nem pagãos, nem selvagens,<br />

nem civilizados, ao menos pelos padrões europeus. Descendentes de índios guaranis e de jesuítas europeus que se<br />

dois <strong>mundo</strong>s: o culto a arte, à ciência e aos ideais do iluminismo e, ao mesmo tempo, a busca pela inocência perdida<br />

NOVA LITERATURA - ESCRITORES INSPIRANDO ESCRITORES<br />

CONTO<br />

PÁGINA 03<br />

AS FERAS DE UM<br />

MUNDO AO SUL<br />

Esta é a Terra. Mas não a mesma Terra que conhecemos. Nesse planeta, a última era glacial só terminou<br />

pouco antes do início da era do bronze. Nesse <strong>mundo</strong>, o general Aníbal marchou sobre os Alpes, não<br />

com elefantes, mas com mamutes. O clima mais frio retardou a colonização do extremo norte da<br />

para uma nova glaciação.<br />

Agora, os olhos cobiçosos do velho <strong>mundo</strong> voltam-se para o sul...<br />

***<br />

“...E a situação parece insustentável. Do distante norte, chegam notícias de que a independência do Brasil é iminente.<br />

Mas quem herdará essa terra imensa, quase um continente? Os olhos cobiçosos do <strong>mundo</strong> se voltam para o novo<br />

identidade nacional, e os ideais da república estão longe de nela encontrar solo fértil.<br />

espécimes vegetais. Esta vila me parece agitada, mais agitada do que de costume. No centro, perto do cais,<br />

porto. Trazem a produção do trigo missioneiro.<br />

rebelaram contra o tráfico de escravos indígenas e contra o papado, há quem diga que representam o melhor dos<br />

com nossa expulsão do paraíso.


missioneiros prosperaram com a ajuda dos mastodontes. Ninguém, exceto eles, logrou domesticá-los e o povo das<br />

missões mantém o segredo de como fazê-lo. Suspeito que a técnica não difere da usada pelos hindus com o elefante<br />

asiático: É preciso capturá-los ainda filhotes e submetê-los à doma, antes que descubram a força que possuem. De<br />

Invernos quase tão frios quanto os de boa parte da Europa. Nessa época, algumas manadas selvagens migram para o<br />

norte, em busca de comida mais abundante, enquanto outras se concentram junto a mata litorânea, cujas folhas<br />

nunca caem. Diferente do mamute, seu parente do hemisfério norte, seus dentes foram feitos para macerar galhos e<br />

folhas, ao invés da relva. E essa peculiaridade pode vir a ser o estopim de uma guerra. Ocorre que o Reino Unido de<br />

estes passaram a vender a carne bovina para o Uruguai e a Argentina e se associaram aos missioneiros na criação dos<br />

Mastodontes. Por sua vez, os imperiais reagem, capturando ou matando as manadas de mastodontes que se<br />

aventuram para além das fronteiras da província durante a migração anual. Os conselheiros de Dom João, tolos que<br />

são, insistem que isso lhes dará o controle de toda uma nova indústria. Melhor fariam se limitassem seus comentários<br />

fundadores estabeleceram a Nação Missioneira era o de que qualquer um que alcançasse as missões e se dispusesse<br />

a trabalhar por elas, seria considerado um homem ou mulher livre. Isso tem incentivado uma fuga cada vez maior de<br />

existir tal nação, onde as leis dos portugueses não se aplicam e onde homens de todas as cores e crenças trabalham<br />

pelo bem comum? Ora, estamos no Brasil. Pindorama, como o chamam os guaranis. Aqui, tudo é possível. Contanto<br />

portugueses, espanhóis e até por líderes de outras tribos. Foi dele um decreto limitando a caça dos dentes-de-sabre<br />

marsupiais e de outros carnívoros da megafauna em território missioneiro. Atualmente essas feras vivem acuadas na<br />

Contudo, mais do que seguir as tradições de seus ancestrais indígenas, ele argumenta que esses predadores são<br />

necessários, especialmente porque controlam as populações de macrauquênias, essas vorazes lhamas dotadas de<br />

pequenas trombas que, de outro modo, varreriam a província como uma praga, consumindo o alimento dos homens<br />

Mesmo com a próspera paz da província, o delicado equilíbrio de forças no qual ela repousa, temo dizer, não durará<br />

muito. Em minhas expedições pela província, notei uma substancial redução da diversidade vegetal. Ela é bem<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 04<br />

CONTO<br />

Enquanto os guaicurus aprenderam a domar os cavalos selvagens abandonados pelos espanhóis na natureza, os<br />

qualquer modo, essas enormes bestas peludas estão perfeitamente adaptadas aos invernos frios do sul do Brasil.<br />

Brasil, Portugal e Algarve tem exigido pesados tributos dos pecuaristas da província de São Pedro. Em represália,<br />

à qualidade do vinho do Porto que nos chega da Europa.<br />

Soube por um comerciante açoriano que os missioneiros, no que pese seu poderio econômico e militar na região,<br />

encontram-se a caminhar sobre o fio da navalha. Ocorre que um dos princípios sobre os quais Sepé Tiaraju e os<br />

escravos desta e de outras províncias, rumo as missões dos Sete Povos. Sim, admito que é estranho. Como pode<br />

que paguem seus tributos em dia, a coroa portuguesa os deixará em paz. Isso garante um frágil armistício e, até,<br />

relações comerciais com os lusitanos.<br />

O atual líder missioneiro é um mestiço luso-guarani, fluente em seis idiomas. Estudou em Paris e é respeitado por<br />

vastidão dos campos de cima da serra e são uma fonte constante de dissabores aos criadores de gado bovino.<br />

e seu gado.<br />

menor do que aquela que me foi relatada pelos moradores da região quando aqui cheguei. Temo que uma futura<br />

escassez de alimento para a megafauna herbívora acabe levando a um efeito dominó, que forçará a fauna de<br />

carnívoros a atacar as fazendas de gado. Se as relações entre o governo central e a província continuarem a se<br />

degradar, creio que uma guerra de independência será inevitável em, no máximo, vinte anos.


Queira Deus que eu esteja errado. Afeiçoei-me a essa terra e a suas maravilhas e me entristece imaginar que tudo o<br />

cansaço. Mesmo sendo um menino forte e saudável, a rotina dos treinos parecia ter ultrapassado o limite de seu<br />

Replicou o oriental, desferindo um golpe contra o plexo solar do menino. Este, contudo, conseguiu desviá-lo, ainda<br />

O menino não gostou da resposta. Não era aquele um dos “sábios do <strong>mundo</strong>”, como seu pai os chamava, mestres de<br />

monge Shaolin. Queria que ele o tornasse forte e sábio logo de uma vez, para que jamais precisasse estudar nem se<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

CONTO<br />

PÁGINA 05<br />

que nela existe desapareça sob o flagelo impiedoso da guerra.<br />

O futuro é uma incógnita e só podemos torcer pelo melhor. Espero que essa carta lhes encontre com saúde e<br />

prosperidade.<br />

Sinceramente, vosso amigo,<br />

Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire.<br />

Vila de Nossa Senhora Madre de Deus Porto Alegre, 20 de Junho de 1821.<br />

***<br />

Reino dos Sete Povos das Missões, fronteira sudoeste do Brasil, 1820<br />

─Podemos parar agora, mestre Jiao? ─Indagou o jovem Sepé, coberto de suor. Seus braços e pernas tremiam de<br />

fôlego e, também, de seu entusiasmo.<br />

─A vida pode parar agora, jovem herdeiro? ─Respondeu o oriental, em português lusitano e com um sorriso<br />

sarcástico─ Mais meia hora. Depois, banho. Depois, jantar, e política com o professor Lawrence.<br />

─Meu pai não precisou aprender nenhum estilo de luta desarmada.<br />

─Seu pai não tinha as suas facilidades. Aquele que se recusa a usar as benesses que a vida ofertou é um tolo─<br />

que com alguma dificuldade.<br />

─Bom. Foco é tudo─ Disse o mestre Jiao liberando, com um aceno, o menino do dever de contra-atacar.<br />

─Foi Buda quem disse isso?<br />

─Não. Foi meu tio, que era oleiro em Henan. Muitos vasos e tigelas ele arruinou, até ter esse pequeno despertar.<br />

diferentes tradições, escolhidos a dedo, nos quatro cantos da Terra? Ele certamente esperava bem mais daquele<br />

submeter a longas horas de árduo treinamento.<br />

O monge se afastou, deixando o jovem a sós com seus pensamentos. Do alto da fortaleza, ele contemplava o vai e<br />

vem de pessoas e animais pelo interior da cidade fortificada. Já era época da colheita e as gigantescas carroças


puxadas pelas anta-açu estavam sendo carregadas com o trigo missioneiro que seria vendido na capital da província<br />

de São Pedro. O menino não entendia o porquê daquele ritual. A terra dos Sete Povos e mesmo a província de São<br />

vocês seriam varridos do continente. Até mesmo Sepé Tiaraju e os seus fundadores sabiam disso, meu jovem. O seu<br />

─Sob muitos aspectos, sim. E sob outros, não. Quando os Jesuítas chegaram com suas bíblias e o cristianismo, que<br />

seus pajés abominam, trouxeram com eles a escrita. Hoje, vocês possuem extraordinárias bibliotecas, com milhares<br />

envelhecem e morrem. O conhecimento deles pode se perder se não for registrado. E conhecimento, meu jovem, é<br />

Apesar de sua intensa rotina de estudos, o jovem herdeiro se sentia relativamente livre. Seu irmão, o primogênito, era<br />

muito mais cobrado do que ele. Cinco anos mais velho, ele já participava de combates eventuais, fora dos muros da<br />

gerações. Parecia improvável que isso mudasse de uma hora para outra. As maiores preocupações dos Sete Povos<br />

eram manter em segurança as manadas das anta-açu, animais aos quais os brancos chamavam de mastodontes, e<br />

Nem todas as aulas do jovem herdeiro aconteciam dentro das muralhas da cidade. Ele apreciava aquele programa<br />

de estudos que o levava para os campos além das plantações de trigo e dos pomares que alimentavam boa parte do<br />

reino. Lá, na imensidão selvagem, dois mestres muito diferentes o guiavam através daquilo que um deles, o francês,<br />

chamava de ciência natural. O conhecimento daquele europeu era vasto. Maior ainda que o saber do pajé mais sábio<br />

dos sete povos. Ele podia identificar qualquer planta, qualquer animal, qualquer rocha que encontrassem nos Sete<br />

─Diga-me, jovem príncipe, porque é que as árvores deste lado da campina já estão sem folhas se estamos na<br />

─Você enxerga algum mastodonte vagando pelas redondezas? ─O Francês se recusava a usar nomes indígenas para<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 06<br />

CONTO<br />

Pedro, eram ricas em caça e outros recursos. Por que não viver da terra, como seus ancestrais?<br />

─Porque, como caçadores-coletores, os Sete Povos seriam presas fáceis do império brasileiro e de potências<br />

estrangeiras─ Respondia-lhe Lawrence, seu preceptor inglês─ Sem tecnologia, sem produção contínua de alimentos,<br />

antigo <strong>mundo</strong> terminou quando o primeiro europeu pôs os pés nesta terra.<br />

─Vivíamos muito melhor sem vocês─ Disse o menino com um tom amargo na voz.<br />

de livros em diversos idiomas, entre os quais, o Quíchua e o Guarani. Nenhum pajé, nenhum cacique ou homem<br />

sábio poderia guardar em sua mente o volume de conhecimento acumulado nessas bibliotecas. Homens<br />

poder.<br />

cidade fortificada. O acordo de paz entre o reino dos Sete Povos e o Império do Brasil já se sustentava há duas<br />

lidar com os bandoleiros errantes vindos do interior da província de São Pedro.<br />

Povos e em boa parte das províncias do império brasileiro. E ainda que seus métodos fossem extremamente<br />

maçantes (o herdeiro abominava taxonomia e sistemática) era inegável que funcionavam.<br />

primavera?<br />

─As folhas foram comidas, monsieur Saint-Hilaire, provavelmente por anta-açu.<br />

as feras.


puxadas pelas anta-açu estavam sendo carregadas com o trigo missioneiro que seria vendido na capital da província<br />

de São Pedro. O menino não entendia o porquê daquele ritual. A terra dos Sete Povos e mesmo a província de São<br />

vocês seriam varridos do continente. Até mesmo Sepé Tiaraju e os seus fundadores sabiam disso, meu jovem. O seu<br />

─Sob muitos aspectos, sim. E sob outros, não. Quando os Jesuítas chegaram com suas bíblias e o cristianismo, que<br />

seus pajés abominam, trouxeram com eles a escrita. Hoje, vocês possuem extraordinárias bibliotecas, com milhares<br />

envelhecem e morrem. O conhecimento deles pode se perder se não for registrado. E conhecimento, meu jovem, é<br />

Apesar de sua intensa rotina de estudos, o jovem herdeiro se sentia relativamente livre. Seu irmão, o primogênito, era<br />

muito mais cobrado do que ele. Cinco anos mais velho, ele já participava de combates eventuais, fora dos muros da<br />

gerações. Parecia improvável que isso mudasse de uma hora para outra. As maiores preocupações dos Sete Povos<br />

eram manter em segurança as manadas das anta-açu, animais aos quais os brancos chamavam de mastodontes, e<br />

Nem todas as aulas do jovem herdeiro aconteciam dentro das muralhas da cidade. Ele apreciava aquele programa<br />

de estudos que o levava para os campos além das plantações de trigo e dos pomares que alimentavam boa parte do<br />

reino. Lá, na imensidão selvagem, dois mestres muito diferentes o guiavam através daquilo que um deles, o francês,<br />

chamava de ciência natural. O conhecimento daquele europeu era vasto. Maior ainda que o saber do pajé mais sábio<br />

dos sete povos. Ele podia identificar qualquer planta, qualquer animal, qualquer rocha que encontrassem nos Sete<br />

─Diga-me, jovem príncipe, porque é que as árvores deste lado da campina já estão sem folhas se estamos na<br />

─Você enxerga algum mastodonte vagando pelas redondezas? ─O Francês se recusava a usar nomes indígenas para<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

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CONTO<br />

Pedro, eram ricas em caça e outros recursos. Por que não viver da terra, como seus ancestrais?<br />

─Porque, como caçadores-coletores, os Sete Povos seriam presas fáceis do império brasileiro e de potências<br />

estrangeiras─ Respondia-lhe Lawrence, seu preceptor inglês─ Sem tecnologia, sem produção contínua de alimentos,<br />

antigo <strong>mundo</strong> terminou quando o primeiro europeu pôs os pés nesta terra.<br />

─Vivíamos muito melhor sem vocês─ Disse o menino com um tom amargo na voz.<br />

de livros em diversos idiomas, entre os quais, o Quíchua e o Guarani. Nenhum pajé, nenhum cacique ou homem<br />

sábio poderia guardar em sua mente o volume de conhecimento acumulado nessas bibliotecas. Homens<br />

poder.<br />

cidade fortificada. O acordo de paz entre o reino dos Sete Povos e o Império do Brasil já se sustentava há duas<br />

lidar com os bandoleiros errantes vindos do interior da província de São Pedro.<br />

Povos e em boa parte das províncias do império brasileiro. E ainda que seus métodos fossem extremamente<br />

maçantes (o herdeiro abominava taxonomia e sistemática) era inegável que funcionavam.<br />

primavera?<br />

─As folhas foram comidas, monsieur Saint-Hilaire, provavelmente por anta-açu.<br />

as feras.


puxadas pelas anta-açu estavam sendo carregadas com o trigo missioneiro que seria vendido na capital da província<br />

de São Pedro. O menino não entendia o porquê daquele ritual. A terra dos Sete Povos e mesmo a província de São<br />

vocês seriam varridos do continente. Até mesmo Sepé Tiaraju e os seus fundadores sabiam disso, meu jovem. O seu<br />

─Sob muitos aspectos, sim. E sob outros, não. Quando os Jesuítas chegaram com suas bíblias e o cristianismo, que<br />

seus pajés abominam, trouxeram com eles a escrita. Hoje, vocês possuem extraordinárias bibliotecas, com milhares<br />

envelhecem e morrem. O conhecimento deles pode se perder se não for registrado. E conhecimento, meu jovem, é<br />

Apesar de sua intensa rotina de estudos, o jovem herdeiro se sentia relativamente livre. Seu irmão, o primogênito, era<br />

muito mais cobrado do que ele. Cinco anos mais velho, ele já participava de combates eventuais, fora dos muros da<br />

gerações. Parecia improvável que isso mudasse de uma hora para outra. As maiores preocupações dos Sete Povos<br />

eram manter em segurança as manadas das anta-açu, animais aos quais os brancos chamavam de mastodontes, e<br />

Nem todas as aulas do jovem herdeiro aconteciam dentro das muralhas da cidade. Ele apreciava aquele programa<br />

de estudos que o levava para os campos além das plantações de trigo e dos pomares que alimentavam boa parte do<br />

reino. Lá, na imensidão selvagem, dois mestres muito diferentes o guiavam através daquilo que um deles, o francês,<br />

chamava de ciência natural. O conhecimento daquele europeu era vasto. Maior ainda que o saber do pajé mais sábio<br />

dos sete povos. Ele podia identificar qualquer planta, qualquer animal, qualquer rocha que encontrassem nos Sete<br />

─Diga-me, jovem príncipe, porque é que as árvores deste lado da campina já estão sem folhas se estamos na<br />

─Você enxerga algum mastodonte vagando pelas redondezas? ─O Francês se recusava a usar nomes indígenas para<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 08<br />

CONTO<br />

Pedro, eram ricas em caça e outros recursos. Por que não viver da terra, como seus ancestrais?<br />

─Porque, como caçadores-coletores, os Sete Povos seriam presas fáceis do império brasileiro e de potências<br />

estrangeiras─ Respondia-lhe Lawrence, seu preceptor inglês─ Sem tecnologia, sem produção contínua de alimentos,<br />

antigo <strong>mundo</strong> terminou quando o primeiro europeu pôs os pés nesta terra.<br />

─Vivíamos muito melhor sem vocês─ Disse o menino com um tom amargo na voz.<br />

de livros em diversos idiomas, entre os quais, o Quíchua e o Guarani. Nenhum pajé, nenhum cacique ou homem<br />

sábio poderia guardar em sua mente o volume de conhecimento acumulado nessas bibliotecas. Homens<br />

poder.<br />

cidade fortificada. O acordo de paz entre o reino dos Sete Povos e o Império do Brasil já se sustentava há duas<br />

lidar com os bandoleiros errantes vindos do interior da província de São Pedro.<br />

Povos e em boa parte das províncias do império brasileiro. E ainda que seus métodos fossem extremamente<br />

maçantes (o herdeiro abominava taxonomia e sistemática) era inegável que funcionavam.<br />

primavera?<br />

─As folhas foram comidas, monsieur Saint-Hilaire, provavelmente por anta-açu.<br />

as feras.<br />

─Não, senhor.


─Olhe as pegadas em volta. Pequenas, cascos bifurcados. Mas os galhos altos são impossíveis de serem alcançados<br />

─Exato. Elas são mais rápidas que mastodontes. E se reproduzem mais. Seu número não para de aumentar. Diga-me<br />

─Correção: Os súditos dos Sete Povos também caçaram os dentes-de-sabre marsupiais. Armas de fogo facilitaram<br />

suas vidas. Mas também roubaram parte de suas almas─ Respondeu o francês com um amargo tom de voz. ─ Os Riograndenses<br />

já sofrem com o ataque das macrauquênias a suas colheitas, como eu previ que aconteceria. Mas, claro,<br />

─O senhor não acredita nisso, acredita? ─O jovem herdeiro, apesar de muito inteligente, ainda tinha certa dificuldade<br />

─Claro que não. Qualquer tolo com olhos e disposição para ver poderia saber que esse dia chegaria. Mas a vida é feita<br />

de escolhas. Seu maior grilhão é a estupidez. Ela o faz trilhar a estrada que conduz à desgraça. “O homem nasce livre,<br />

─Estou aqui para ensiná-lo a entender a natureza. O homem é um animal estranho demais para mim e, certamente,<br />

Ojombe não falava português nem espanhol, quíchua ou guarani. Suas lições eram dadas exclusivamente em inglês.<br />

Ele era um mudumugu, um xamã. E, embora distante da savana africana, onde aprendeu sua arte, deslocava-se com<br />

eram imensas. Quatro, talvez cinco metros de comprimento do focinho até a ponta da cauda. Embora não fossem<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 09<br />

CONTO<br />

por vacas ou reses do velho <strong>mundo</strong>.<br />

O menino pensou um pouco e respondeu.<br />

─Macrauquênias. Centenas delas.<br />

As vorazes lhamas de pescoço comprido, dotadas de pequenas trombas, como as de uma anta. Moviam-se em<br />

manadas e seu número só fazia aumentar.<br />

porquê.<br />

─Porque o povo da província de São Pedro caçou os dentes-longos quase até a extinção. Eles controlavam a<br />

população das macrauquênias. Agora elas são uma praga.<br />

“a Terra é rica e seus frutos são inesgotáveis”─ Ironizou Saint-Hilaire.<br />

com o sarcasmo dos brancos.<br />

mas está acorrentado em toda a parte”, não é mesmo?<br />

─O senhor acredita nas ideias daquele tal Rousseau?<br />

um que jamais entenderei. Além do mais, filosofia e política são os domínios do senhor Lawrence.<br />

a mesma desenvoltura por entre as feras do Pampa.<br />

─Aquele que conhecer o espírito das feras, fará delas suas aliadas─ Disse o africano, caminhando calmamente em<br />

direção a duas enormes preguiças gigantes que viviam num capão de mata fora das muralhas da cidade. Ambas<br />

agressivas como os dentes de sabre, eram quase tão territoriais quanto os mastodontes e capazes de matar um<br />

homem adulto com um único golpe de suas poderosas garras.


─Os que pastam temem aqueles que os caçam. Cheire como um leão e até o poderoso búfalo o temerá. Funcionava<br />

─Isso é verdade. Mas temos os dentes-de-sabre. A túnica que estou usando foi o cobertor de um deles. Aquele, que<br />

Com sua fala tranquila, e seus longos silêncios, Ojombe era o mestre que o menino mais admirava. Suas lições eram<br />

simples, porém marcantes. Por muitas tardes, o mudumugu o instruiu nos caminhos das feras. Se Monsieur Saint<br />

Mas aquela vida, a vida inconsequente de um príncipe menor, repleta de jogos e divertimentos, acabou na tarde em<br />

que a guarda trouxe o corpo de seu irmão. Numa de suas incursões de fronteira contra bandoleiros, o primogênito do<br />

morubixaba, o chefe-guerreiro dos Sete Povos, foi atingido por uma flecha certeira. Naquela mesma noite, enquanto<br />

responsabilidade e ao dever que um herdeiro deveria carregar diante do povo e dos deuses. E então foi-se embora,<br />

Ele não estava lá. Não deixou nenhuma nota, nenhuma carta ou bilhete. Levou apenas uma faca e algumas roupas.<br />

Viamão. Tropeiros faziam breves paradas em seu estabelecimento, para se abastecer de charque, fumo de rolo e,<br />

principalmente, da cachaça mais forte daqueles pagos. Duelos de facão não eram tão frequentes quanto no passado,<br />

posto que estavam em paz com os castelhanos e a proximidade de Porto Alegre, e da guarnição imperial, costumava<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 10<br />

CONTO<br />

Ambas foram recuando, à medida em que o mudumugu invadia seus domínios. Ojombe parou, dando as feras<br />

chance de se afastarem dele em suas lentas passadas.<br />

─Como?! Como o senhor fez isso?! ─Indagou o jovem herdeiro, ofegante, ao alcançar o feiticeiro.<br />

em minha terra. Funciona aqui também.<br />

─Não temos leões aqui.<br />

vive no zoológico do palácio.<br />

Hillaire lhe revelava os segredos dos corpos dos animais, era com Ojombe que ele aprendia sobre suas almas.<br />

Era uma boa vida.<br />

o corpo era preparado para a cerimônia, seu pai chamou o herdeiro sobrevivente. Durante quase três horas, o<br />

morubixaba do reino dos Sete Povos o bombardeou com “as grandes verdades da vida”, com o chamamento à<br />

deixando seu filho caçula aterrorizado.<br />

Na manhã seguinte, todos estranharam o fato do jovem Sepé não estar pronto para o funeral do irmão. Seu pai,<br />

bastante irritado com a desfeita, mandou que o buscassem em seus aposentos.<br />

Ninguém o encontrou. E ninguém jamais o encontraria, pelos próximos quinze anos.<br />

***<br />

1835 – Província de São Pedro do Rio Grande do Sul<br />

O bolicho do Manoel era pouco mais que uma cabana de pau-a-pique mal-ajambrada na beira da estrada para<br />

inibir a maioria dos arruaceiros.


─Bolicheiro, dê-me um trago da melhor cachaça que houver nessa pocilga─ Disse o homem de meia idade que<br />

Manoel o olhou com atenção. Era outro cavalariano da guarnição imperial de Porto Alegre. Um sargento. Devia ser<br />

Prontamente, o dono do estabelecimento se dirigiu ao nicho na estante de madeira rústica atrás do balcão e dele<br />

Enquanto Manoel o servia, o recém-chegado deu uma passada de olhos no lugar. Era uma cabana com chão de terra.<br />

teto, em ganchos presos por cordas de couro cru. Num dos cantos mal iluminados, a única mesa disponível se<br />

Para a surpresa do militar, a luz do lampião que Manoel acabava de acender, mostrou-lhe que que não se tratava de<br />

um cão, mas sim, de um lobo pampeano. A criatura tinha o porte de um são Bernardo, mas seu corpo era compacto,<br />

musculoso, com uma pelagem parda e listras pretas que lhe desciam das costas até o quadril. Mesmo em repouso, as<br />

O sargento bebeu três copos de cachaça. Então, sem a menor cerimônia, virou-se, e começou a caminhar em direção<br />

mestiço, de cabelos castanhos e olhos quase âmbar. A pele era cor de cuia. Mas seus traços eram mais europeus que<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 11<br />

CONTO<br />

Infelizmente, isso valia apenas para arruaceiros que não usavam uniforme.<br />

acabava de chegar, com indisfarçável desdém na voz.<br />

novo nas redondezas, posto que Manoel não o conhecia. Tinha sotaque de alguma província do norte e, pela<br />

expressão de asco em seu rosto, detestava estar onde estava.<br />

tirou um garrafão pardo.<br />

Havia sacos de arroz e feijão, empilhados contra uma das paredes. Linguiças defumadas e carne seca pendiam do<br />

encontrava ocupada por um homem de idade indefinida. Usava uma camisa de linho bege e um colete preto,<br />

bombachas cinzentas e alpargatas azul marinho, sem meias, apesar do frio daquele fim de tarde de outono. Um<br />

chapéu de barbicacho cobria-lhe a cabeça. Sentado a seu lado, no chão, havia algo que, na penumbra, podia ser<br />

confundido com um cão.<br />

orelhas pontudas e hirsutas se moviam nervosamente, embora nada houvesse ali que valesse a pena escutar.<br />

à porta.<br />

─São vinte centésimos de réis, sargento─ Disse Manoel, com algum desconforto.<br />

O militar se virou e respondeu:<br />

─Vinte centésimos de réis? Por essa merda de cachaça? Isso não se dá nem aos porcos. Agradeça a Deus que uma<br />

autoridade do império tenha lhe dado o privilégio de beber nesse lixo em que você vive.<br />

─Vossa mercê talvez não tenha compreendido. Manoel está a lhe informar que a bebida que vossa mercê tomou<br />

não é cortesia da casa─ Disse o homem sentado, erguendo a cabeça e encarando o militar do império. Era um<br />

indígenas, talvez vinte ou vinte e cinco anos.<br />

─Ninguém pediu tua opinião, bugre─ Disse o sargento, levando a mão ao sabre.<br />

─O termo correto é missioneiro, vossa mercê ─Replicou o estranho se levantando. Ele era pelo menos dez


─Buenas, nestes pagos também hay civilização. Aqui usamos dinheiro, plata, señor. Esse homem precisa que o<br />

pague. É assim que sustenta sua família─ Disse o rapaz, calmamente como se explicasse tudo a uma criança de dois<br />

─ És um desses farroupilhas de merda, não é? Outro desses lacaios de Bento Gonçalves? Vocês, selvagens da<br />

─Vou te ensinar o que é respeito, seu bugre de merda! ─Disse o sargento, avançando contra o mestiço de sabre em<br />

O lobo pampeano se ergueu do chão e começou a rosnar e a fuzilar o imperial com os olhos. Seu pelo se eriçou e ele<br />

─Não, Maypu. Vivo, esse caramuru já é indigesto. Vai, vai-te embora! ─ Ordenou. E a fera simplesmente saltou pela<br />

─Bugre estúpido. Devia ter deixado o animal te ajudar─ Provocou o imperial. E arremeteu contra ele, o corpo meio<br />

─Isso é uma dessas valsas que dançam na corte? ─Indagou o jovem missioneiro, rindo dos movimentos do sargento.<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 12<br />

CONTO<br />

centímetros mais alto que o militar─ Percebo, pela sua fala, que vossa mercê é do norte.<br />

─Sou de São Sebastião do Rio de Janeiro, a capital do império, da civilização ─Disse o sargento, com orgulho.<br />

anos.<br />

O sargento ficou rubro de ódio.<br />

─Obriga-me, bugre. ─Disse o militar.<br />

─Vossa mercê precisa saber que somos gente de bem. Não queremos sarilhos, inda mais, com soldados de El rey.<br />

Pague o homem e vossa mercê sairá daqui andando─ Insistiu o mestiço<br />

província se acham muito valentes, não acham? Pois o império caga em vossas cabeças, na hora em que bem<br />

entender─ Respondeu o militar sacando o sabre.<br />

─Vossa mercê, por favor, me esclareça: é para eu ficar com medo? ─Disse o jovem, pegando o copo de cachaça de<br />

cima da mesa e bebendo de um só gole.<br />

riste.<br />

mostrou seus dentes em desafio. Mas o mestiço apenas afagou-lhe a cabeça, tentando tranquilizar o animal.<br />

janela aberta.<br />

de lado, como numa posição de esgrima francesa.<br />

─Parem, pelo amor de Deus! ─Ordenou Manoel, até então duvidando que o militar se atrevesse a usar o sabre.<br />

Mas o cavalariano não o ouviu. Continuou tentando desferir estocadas contra o mestiço, que mal se movia para<br />

esquivar-se dos golpes. Foram várias estocadas, e alguns golpes de corte, todos errando o alvo por menos de um<br />

palmo. Em menos de dois minutos, a arma já começava a pesar-lhe a mão.


─Calma, Manoel. Ele ficará bem. Farei com que ele monte seu cavalo e siga de volta à Vila de Porto Alegre. Com esse<br />

bafo e com esse uniforme embarrado, antes que abra aboca, ele será posto à ferros por algum oficial, como exemplo<br />

João dos Fortes e Manoel ajudaram o atordoado militar a subir no cavalo. Tiveram o cuidado de colocar seu sabre e<br />

sua arma de volta ao cinto do cavalariano. Quando ele se inclinou, ainda tonto, sobre a crina de seu baio, João pegou<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 13<br />

CONTO<br />

O rapaz limitava-se a sorrir com sarcasmo. Era evidente que o sargento estava bastante fora de forma, como<br />

atestavam sua respiração ofegante e o suor que escorria de sua cabeça calva.<br />

─Por favor, vossa mercê. Pague o homem e vá cuidar de sua vida.<br />

Dando-se por vencido, o militar levou a mão livre ao cinto para sacar o mosquete.<br />

Rápido como um gavião, o rapaz deu um salto para cima e para frente, girando no ar e acertando o queixo do<br />

imperial com um chute certeiro. E este desabou sobre o chão de terra, com um ruído abafado.<br />

─Vossa mercê podia ter saído daqui andando─ Disse o mestiço.<br />

─O que foi que me aprontaste, João dos Fortes?! Sabes como esses caramurus são. Vão pensar que estou com os<br />

farroupilhas<br />

─Puês, e não estás?<br />

─Claro que estou. Mas ninguém precisa saber!<br />

para o resto da tropa. Toma─ Disse João, sacando algumas moedas da algibeira do militar─ Isso deve bastar.<br />

seu relho de couro cru e golpeou as ancas do animal, que disparou em direção à Vila de Porto Alegre.<br />

─Vai ser herói em Porto Alegre─ Disse João, com uma risada.<br />

─Arrisca-te demais, João. Já é a terceira sova que aplicas num caramuru, só esse mês. Dia desses, a guarnição<br />

imperial em peso baterá na minha porta.<br />

─Não baterá, não.<br />

─E como é que me garantes?<br />

─Estes borra-botas jamais farão queixa formal contra um “bugre” de beira de estrada por ele ter lhes dado uma<br />

tunda de laço, inda mais, com as mãos nuas.<br />

─És um diabo, João dos Fortes. Devias pelear ao lado dos Farroupilhas. Que grande soldado tu serias!<br />

─Essa guerra não é minha, Manoel.


palácio. E isso aconteceria em breve. Os dois homens brancos suavam como porcos, mas eram incapazes de afrouxar<br />

Mesmo sob a agradável sombra de um imenso jacarandá, o senador, transpirava bem mais que o coronel. O calor era<br />

haveria alternativa senão matar todos os envolvidos. O senador esperava que não fosse preciso. Havia oportunidade e<br />

─Funcionará, Senador. Vossa não conhece os rio-grandenses com eu. Meu tocaio, Bento Gonçalves, está no limite de<br />

─ Nossa guarda nacional é incipiente. Mal conseguimos dar conta dos motins que já estão em curso. Nossa guarda<br />

─ Kauã é um bugre, não importa todo o grego, latim ou francês que ele tenha aprendido. E é um fraco. Seu único<br />

─Mas se vossa mercê prosseguir com esse plano, os missioneiros entrarão na contenda. Eles são numerosos. E fortes<br />

─Tudo de que preciso é de algumas centenas de homens armados, na trilha das feras. Vamos capturar alguns filhotes<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 14<br />

CONTO<br />

─Quando vais fazer algo mais dessa vida do que tocar teu violão e roubar a mulher dos outros?<br />

─Quando inventarem algo melhor que isso, Manoel─ Respondeu João, com aquele sorriso irritante.<br />

***<br />

Rio de Janeiro, Palácio Imperial, um mês antes<br />

A jovem escrava aguardava, de pé, a uma boa distância, até que lhe pedissem para trazer mais água da copa do<br />

seus plastrões ou remover suas desconfortáveis túnicas, inapropriadas para o calor tropical.<br />

a menor de suas preocupações. Se o propósito daquela conversa chegasse aos ouvidos de espiões palacianos, não<br />

também muitos riscos. Mas podia funcionar.<br />

─O que vossa mercê nos pede é um contra-senso, coronel. ─Disse o senador.<br />

sua paciência. Se devidamente provocado, ele e seus aliados darão um passo em falso. E aí nós os pegamos.<br />

nacional é incipiente. Se vossa mercê prosseguir com esse plano, os missioneiros entrarão na contenda. Eles são<br />

numerosos. E fortes. O líder deles não é um selvagem. É um homem culto, que estudou em Paris.<br />

herdeiro fugiu na véspera do funeral do irmão. Isso diz muito sobre a cepa de onde eles provêm.<br />

─Pois conto com isso, senador. Quando aqueles bugres saírem da toca, atirando para todo lado, ficarão indefesos.<br />

Seu território é grande demais e terão que lutar em muitas frentes. Meus amigos paraguaios estarão prontos para<br />

atacar, quando for o momento oportuno. Não é assim quem os dentes-de-sabre matam as preguiças gigantes?<br />

Cercando-as, enfraquecendo-as?<br />

─Suas metáforas zoológicas são muito coloridas, coronel. Mas preguiças não andam armadas.<br />

e matar todo o resto.<br />

─Isso será um ato de guerra, coronel.


─Eu revisei cada clásula do tratado de São Miguel, bem como as bulas papais e seus adendos. Elas não garantem a<br />

─Dom Pedro é uma criança. Um projeto de imperador. Ele jamais saberá. Para todos os efeitos, será obra de vândalos<br />

Enquanto se retirava, Bento Manoel passou pelo príncipe. Vestido com um dólmã azul, coberto de comendas pelas<br />

quais nada fez, além de nascer em um berço real. Não obstante sua herança europeia, o sorridente menino de olhos<br />

Bento sorriu, enquanto imaginava seu glorioso futuro. Mas seu sorriso se desfez, tão logo a zombeteira voz feminina<br />

“O que foi, bruxa? O que ouviste de nossa conversa que eu já não saiba”? Respondeu o coronel, sem mover os lábios.<br />

Bento Manoel odiava a soberba daquela criatura, mas era astuto o bastante para seguir seus conselhos. Ela o ajudara<br />

diversas vezes ao longo dos anos, invadindo a mente de seus adversários e colocando-o sempre vários passos adiante<br />

─Diga-me, moura, o que mais roubaste das mentes dos palacianos? ─Indagou Bento, entrando na carruagem e,<br />

─Eu vejo um mar de serpentes...de várias cores e tamanhos... ─Disse ela, com sua própria voz. Uma voz esganiçada e<br />

─Pensei que gostavas de metáforas zoológicas, meu senhor─ Riu-se a criatura. O corpo era o de uma mulher, envolta<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 15<br />

CONTO<br />

integridade física de animais selvagens. Já passou da hora de mostrar a esses bugres quem manda no continente.<br />

Ataque agora e eles e seus aliados da província de São Pedro ficarão de joelhos, do jeito que tem de ser.<br />

─Mas Dom Pedro jamais concordaria com...<br />

e arruaceiros. Você foi eleito como um dos regentes para fazer o que é melhor para o império. E então? Tenho seu<br />

apoio, senhor Lima e Silva? ─Disse o coronel, estendendo a mão para um cumprimento que não vinha.<br />

─Que Deus no perdoe, coronel─ Respondeu Lima e Silva, aceitando o aperto de mão do coronel Bento Manoel<br />

Ribeiro.<br />

azuis parecia plenamente adaptado aos trópicos. Brincava com outro menino, um escravo de dez anos, que bem<br />

podia ser seu meio-irmão, dado que seu pai, Pedro I, além de notório mulherengo, tinha gosto pelas escravas do<br />

palácio. No devido tempo, Pedro II e o resto da monarquia brasileira seriam varridos pela nova ordem.<br />

surgiu, de dentro de sua cabeça.<br />

“Bento, Bento! Julgas-te tão esperto! Mas precisarás de uma cabeça maior se ambicionas a coroa”, riu-se ela.<br />

deles.<br />

“Lima e Silva é um fraco. Teme tudo e todos. É um apêndice doente, mal pendurado na corte. José Bonifácio, em<br />

breve, será o novo regente. E seu amigo sabe disso.”<br />

finalmente, usando sua própria voz.<br />

rascante, muito diferente daquela ilusão que projetava quando queria se comunicar à distância.<br />

─Fale de uma vez, criatura maldita.<br />

em mantos e véus negros, não obstante o calor do Rio de Janeiro.


tempo atrás. E seus ossos seriam agora uma curiosidade no museu imperial. Isso, se tivesses sorte de não ter o corpo<br />

─Não foi vosso Shakespeare que disse “todo homem tem negócios e desejo”? Há muitos negócios e desejos atrás dos<br />

carregamentos do trigo missioneiro e de carne de mastodonte. Pouco mais de um século antes, seria tolice imaginar<br />

que aqueles gigantescos animais acabassem por se tornar para os missioneiros o que vacas eram para portugueses e<br />

espanhóis. Oitenta anos antes, sob a benção do tratado de Madri, celebrado pelo papa, portugueses e espanhóis se<br />

cabeça. E as jogaram nos campos, no limite de suas fronteiras. O antigo provérbio, “vergonha é roubar e não poder<br />

carregar”, mostrou-se verdadeiro. Portugueses e espanhóis tentaram inutilmente defumar a carne. A maior parte<br />

dela apodreceu nos campos. O restante, serviu para atrair hordas de lobos pampeanos, dentes-de-sabre marsupiais e<br />

carnívoros menores. Os brancos que não morreram atacados pelas feras, caíram vítimas da peste, durante a retirada.<br />

Após a desastrosa derrota, o tratado de paz de São Miguel foi rapidamente assinado pela Espanha, Portugal e Pelos<br />

O tratado foi aceito pelos europeus, sem objeções. Ficou estabelecido que a soberania dos Sete Povos, outrora parte<br />

do território da República Paraguaia, do norte da Argentina e do sudoeste do Brasil, seria reconhecida sem objeções.<br />

papado. Em troca, os missioneiros se dispunham a permanecer neutros em eventuais conflitos entre essas potências<br />

chamavam os mastodontes, haviam ocupado o lugar dos bovinos como fonte de carne para o reino dos Sete Povos.<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 16<br />

CONTO<br />

─Modere seu sarcasmo, aberração. Você agonizava quando eu a encontrei. Sem mim, você teria morrido, muito<br />

retalhado por carniceiros. Ouse me desafiar e arranco teu véu diante de todos.<br />

─Contenha-te, meu senhor. Nossa parceira tem sido muito lucrativa e espero continuá-la com seus descendentes.<br />

Com meus conselhos, tua linhagem durará mil anos. O que tenho a dizer é simples: Não penses que és o único<br />

conspirador a rondar o palácio. Há muitos. Parte deles já se encontra sob a proteção da regência.<br />

─Diga, criatura. Como posso atingir Bonifácio e os outros, sem despertar suspeitas?<br />

muros do palácio. E lá habitam muitos que matariam para proteger os segredos que eu agora conheço. Ah, se<br />

pudesses ver a cobiça, a luxúria e perversidade que vi nas mentes dos palacianos. Te sentirias como uma criança<br />

inocente. Podes escolher, meu senhor. Eles estão lá, a seu dispor, como quitutes numa refeição.<br />

“Conte-me mais, criatura...” pensou Bento Manoel, com um sorriso.<br />

***<br />

O dia começava cedo no cais da Vila de Porto Alegre. Barcos ancorados no rio Guaíba aguardavam a chegada dos<br />

uniram na tarefa de destruir os sete povos das missões. Os espanhóis queriam escravizar os índios Guaranis. Os<br />

portugueses cobiçavam seu vasto rebanho bovino.<br />

No final da guerra, numa ousada manobra, os missioneiros mataram todas as reses dos sete povos, até a última<br />

Sete Povos.<br />

Os jesuítas locais eram livres para continuar a pregar o cristianismo, mas deixariam de servir à igreja de Roma e ao<br />

e atuar como negociadores. Levaria ainda algumas décadas até que os estancieiros da província de São Pedro<br />

desenvolvessem seu próprio rebanho bovino. Nesse meio tempo, Os Sete Povos se tornaram autossuficientes na<br />

produção de carne. Mas não a carne das reses europeias. As anta-açu, as “grandes antas”, como os guaranis


apenas em altitudes e, com esporádicas aparições no pampa, agora passou a ser comum. A pecuária tornara-se uma<br />

atividade cada vez mais ingrata, posto que as pastagens, antes perenes, morriam com as neves do inverno. Por outro<br />

lado, o frio não parecia incomodar os mastodontes, que dispunham de imensas florestas de folhas perenes para<br />

alimentarem-se, mesmo no inverno. Isso alterou o equilíbrio do poder na região. Restou aos estancieiros riograndenses<br />

formarem uma aliança com os missioneiros para proteger o rebanho de mastodontes, do qual também<br />

rio-grandenses, os conselheiros de Dom Pedro II, o jovem príncipe regente, passaram a exigir tributos escorchantes<br />

dos estancieiros que, liderados por Bento Gonçalves, iniciaram uma campanha pela independência da província de<br />

Os Sete Povos mantinham-se neutros, como parte do tratado. São Miguel, na fronteira oeste, era vital na economia da<br />

Política, entretanto, era algo que não interessava a João dos Fortes. Ele era um tropeiro qualquer, sem nada de<br />

especial, exceto pelo fato de ser seguido por um lobo pampeano. Não era realmente um lobo. Na verdade, tratava-se<br />

de um grande carnívoro marsupial, sem qualquer relação com lobos verdadeiros da América do Norte e da Eurásia.<br />

Mas botava medo em eventuais ladrões de estrada que ousassem atacar os tropeiros e suas reses pelos caminhos da<br />

Naquela manhã, João estava particularmente contente. Com a chegada das caravanas missioneiras, ele podia obter<br />

pelas precárias estradas de chão batido era lenta, posto que os mastodontes missioneiros precisavam puxar carroças<br />

abarrotadas com toneladas de grãos. Eram necessários homens rústicos e destemidos para proteger os comboios de<br />

trigo, homens sem nada a perder. Homens sem chão, gaudérios, como João. Tropeiros eram tolerados, mas não<br />

aceitos, pela maioria das comunidades. E São Leopoldo não era exceção. Mas o dinheiro não era a única recompensa.<br />

Havia Inga. A doce “Ingá”, como gostava de chama-la. Filha de pai austríaco e mãe alsaciana, ela normalmente estaria<br />

fora de seu alcance. Os germânicos tinham chegado uma década antes, fugindo dos longos invernos da Europa e de<br />

um continente arruinado por Napoleão. Sob a promessa da falecida imperatriz Leopoldina, Herr Weigert, sua esposa<br />

“Homens bons criam raízes. Homens bons são pais e filhos. Não aventureiros sem eira nem beira”, dizia Herr Weigert,<br />

E não era de todo ruim ouvi-lo. Para começo de conversa, Herr Weigert jamais consideraria dar a mão de sua filha a<br />

dois anos antes. E passara a frequentar a casa dos Weigert. Sua filha caíra enfeitiçada pelo rapaz de pele acobreada e<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 17<br />

CONTO<br />

Ao longo do último século, os invernos foram se tornando cada vez mais longos e gelados. A neve, antes presente<br />

eles auferiam seus proventos.<br />

Mas isso estava para mudar. Com o sucesso da criação conjunta desse gigantesco gado pelos missioneiros e pelos<br />

São Pedro.<br />

província de São Pedro e de boa parte do Império Brasileiro.<br />

província de São Pedro.<br />

um bom dinheiro conduzindo carregamentos de trigo e outras mercadorias, até o vale do Rio dos Sinos. A viagem<br />

alsaciana, e sua filha, haviam deixado tudo para trás, em busca do novo <strong>mundo</strong>.<br />

a João, sempre que recebia o precioso trigo das missões.<br />

um tropeiro. E mestiço, ainda por cima. João caíra nas graças do austríaco após salvá-lo do ataque de bandoleiros,<br />

olhos verdes, o que começava a preocupá-lo. Um tropeiro não era o tipo de marido que ele queria para sua filha.<br />

“Terei que ser gentil com esse índio”, disse ele, à esposa, em alemão, enquanto jantavam.


maneiras à mesa eram as de um fidalgo e não as de um rústico tropeiro. Para esses jantares, João usava seu melhor<br />

Talvez ele não fosse um partido tão ruim assim, desde que se estabelecesse e parasse de andar com aquele violão à<br />

Sempre sob o olhar vigilante de Herr Weigert, ao se despedirem, ele renovou sua promessa de que voltaria e de que<br />

estava cada convencido de que suas andanças pelo continente estavam por terminar. Pela primeira vez, em mais de<br />

Os missioneiros encarregados de guiar os animais de carga eram guaranis puros, de olhos castanhos, quase negros, e<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 18<br />

CONTO<br />

“Não seja rude, Dieter!”, respondeu Dona Amélie, em francês.<br />

“Madame, seu marido não está sendo rude. Está só protegendo seu maior tesouro”, disse João, em Francês.<br />

“Mon Dieu! Você fala francês? ”<br />

“E inglês, espanhol e um pouco de latim. Estudei essas línguas quando vivia nas missões.”<br />

“Vocês querem parar de falar como se eu não estivesse aqui? ” Disse a jovem, furiosa. Sua pele alva enrubescera de<br />

raiva.<br />

“Desculpe ma cher. Não tive a intenção”, respondeu João.<br />

“Não se vê muitos de vocês por aqui”, disse Dieter.<br />

“De fato, não. Meu povo é muito ligado à terra. Mas eu queria conhecer o continente. Por isso, parti”.<br />

“Nunca vi um índio de olhos verdes”, disse Dona Amélie, com uma curiosidade inapropriada ao momento.<br />

“Minha mãe era uma açoriana de olhos azuis. Meu pai era guarani. Creio que o castanho e o azul chegaram a um<br />

acordo em meus olhos.”<br />

Não eram apenas seus estranhos olhos ou seu conhecimento de idiomas que surpreendiam os Weigert. Suas<br />

traje, e lustrosas botas de couro preto, ainda que preferisse suas confortáveis alpargatas.<br />

bandoleira. “Somente boêmios e vagabundos carregam o violão a toda parte”, pensava Herr Weigert.<br />

uma década, o tropeiro sentia a falta de um lugar para onde voltar.<br />

Na estrada, na volta para Porto Alegre, os mamutes, livres de sua pesada carga, percorriam o trajeto em menos<br />

tempo, embora não fossem páreo para os cavalos, mesmo que estivessem das carroças.<br />

pele mais escura que ele. Falavam entre si em quéchua, assim como os germânicos gostavam de falar em alemão,<br />

pensando que a língua manteria sua privacidade diante de forasteiros.<br />

Ledo engano.


“Ouvi dizer que os brancos estão matando os rebanhos de anta-açu que migram para o norte”, disse um Homem de<br />

“Então, porque as anta-açu selvagens não são mais vistas ao sul do Prata, como em eras passadas? ” Indagou o<br />

Durante toda a conversa, João caminhava ao lado da gigantesca carroça. O homem chegou a suspeitar que estavam<br />

Antes que o jovem pudesse dizer algo, a fêmea de mastodonte que puxava a carroça parou de supetão, gerando um<br />

solavanco que quase derrubou o jovem cocheiro. Seu imenso corpo tremia, enquanto ela urrava e jogava a cabeça<br />

Humanos, entretanto, teriam grande dificuldade de se deslocar rapidamente por entre os densos arbustos, o que<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 19<br />

CONTO<br />

João também aproveitava essas viagens para ficar sabendo do que acontecia em São Miguel.<br />

seus quarenta anos.<br />

“Não acredito nisso. Eles são muitos. Seria preciso um exército para isso”, respondeu um jovem de dezesseis anos.<br />

homem.<br />

sendo espionados. O jovem resolveu testar essa teoria.<br />

“Ei, seu monte de merda de branco!” Disse o rapaz, rindo. “Você mesmo, montado nesse cavalo negro”.<br />

João nem se virou.<br />

“Viu? Se esse sujeito soubesse quéchua, já lhe tinha cortado a garganta”, disse o homem, rindo.<br />

para os lados, como que à procura de uma ameaça invisível.<br />

Quase no mesmo instante, Maypu começou a rosnar, uivar, e a eriçar os pelos.<br />

“Estamos sendo vigiados”, disse João. “E não é gente”.<br />

O cocheiro mais velho concordou em silêncio com um aceno de cabeça.<br />

“Essa fêmea teme o som de armas de fogo?”<br />

“Não. Ela foi treinada”, disse o rapaz.<br />

“Sugiro que peguem suas armas e cerquem a carroça. Eu cuido da frente”.<br />

“Somos em três”, disse o homem mais velho. “Um lado ficará descoberto”.<br />

“Não. Somos em quatro. Maypu! Vá para trás e fique lá! Vá!”<br />

O lobo pampeano o encarou, meio a contragosto, soltou um ganido e correu para a traseira do veículo.<br />

Aquele trecho de estrada era perfeito para uma emboscada, uma vez que era cercado de mata pelos dois lados.


lhes custaria o elemento surpresa. Humanos, mesmo desesperados, pensariam antes de atacar homens armados e<br />

Três dentes de sabre saltaram do lado esquerdo da estrada, dez metros à frente de João e de seu cavalo. A montaria<br />

“Fiquem onde vocês estão! ”, gritou João. Ele nunca vira os dentes de sabre caçarem em bando. Mas a estratégia deles<br />

Aquele que parecia ser o líder do bando se adiantou e saltou em direção a João e seu cavalo. Morreu antes de tocar o<br />

mastodonte que puxava a carroça. Ele certamente era incapaz de matá-la, mas poderia feri-la gravemente e esperar,<br />

João esperou por um ataque que não veio. Os dois dentes de sabre que o confrontavam fugiram para o lado direito<br />

João disparou para a parte de trás da gigantesca carroça, a tempo de ver Maypu e um dos felinos, se engalfinhando<br />

em uma luta de vida ou morte, sob o olhar atento dos outros sobreviventes. Com quase menos da metade do peso<br />

de um dentes de sabre, O lobo pampeano não duraria muito. João precisava agir. Ainda lhe restava uma pederneira<br />

Disparou contra a massa indiferenciada de pelos avermelhados e pardos que rolava sobre o chão de terra, torcendo<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 20<br />

CONTO<br />

uma fera que podia destroça-los com uma pisada. Mas os atacantes nada tinham a perder.<br />

se agitou, mas João conseguiu controla-la. Dois outros surgiram do lado direito da carroça, que era guardado pelo<br />

rapaz. E um surgiu por trás, ficando frente a frente com Maypu.<br />

era óbvia.<br />

chão, abatido por um tiro de pederneira. Os outros dois recuaram, mas não fugiram. Estavam famintos. Magros,<br />

costelas aparecendo, movidos como marionetes pela fome insana. João quase lamentou o que tinha que fazer.<br />

Na parte de trás, o dente de sabre busacava um meio de saltar para a carroça e, dela, para as costas da fêmea<br />

enquanto sua refeição agonizava. Maypu, entretanto, era um obstáculo. Bem mais leve que seu oponente, o lobo<br />

pampeano não apenas manteve sua posição, mostrando os dentes e rosnando, como também bloqueou cada<br />

tentativa de avanço do felino.<br />

No flanco direito do veículo, o rapaz aguardava, com duas pederneiras em punho. Um dos felinos saltou em sua<br />

direção e ele disparou um tiro certeiro contra o peito da fera, que caiu se contorcendo e urrando de dor. O outro<br />

fugiu para a mata.<br />

da estrada e sumiram na vegetação. Por um instante, quase respirou aliviado.<br />

Até que ouviu o ganido de Maypu.<br />

“Venha para a frente! ”, gritou ele para o cocheiro.<br />

carregada. Mirar a cabeça da fera era arriscado demais. Um leve desvio da mira e seu amigo estaria morto.<br />

para que sua decisão fosse a melhor.<br />

O projétil acertou o quadril direito do dentes de sabre, que dobrou-se de dor, soltando o lobo pampeano. Dois de<br />

seus companheiros mortos e dois agonizando foram o bastante para que os sobreviventes desistissem e fugissem<br />

para a mata.


“Vocês estão bem?”, indagou o homem mais velho, se aproximando da parte de trás do veículo, cautelosamente de<br />

João não respondeu. Desceu do cavalo, passando ao largo do dentes de sabe que se contorcia de dor, e se dirigiu ao<br />

“Maypu precisa de ajuda. Temos que voltar a São Leopoldo”, disse João, agachado ao lado do animal, de costas para<br />

“Temos que voltar para Porto Alegre, carregar nossas encomendas, e voltar para São Miguel”, argumentou o cocheiro.<br />

muitos anos no continente, deixara crescer os cabelos e uma barba espessa, que agora começavam a embranquecer.<br />

Mesmo após vinte e cinco anos na nova terra, seu sotaque lusiano não deixava dúvidas de que ele era um forasteiro. E<br />

Percorrera as estradas da província de São Pedro e da Cisplatina pelos últimos dez anos, sempre perdendo seu alvo<br />

algumas vezes por questão de minutos. Entretanto, não se frustrava, mesmo que seu mestre considerasse sua missão<br />

uma total perda de tempo. Por causa disso, pediu a seu mestre que o liberasse de seus deveres, até que cumprisse<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 21<br />

CONTO<br />

armas em punho.<br />

“Eu estou”, disse o rapaz, o corpo tremendo, olhos arregalados. Aquela devia ser sua primeira viajem.<br />

lobo caído, que gemia baixinho.<br />

os dois missioneiros.”<br />

O cocheiro mais velho se aproximou e examinou os ferimentos do lobo pampeano.<br />

“O ferimento é muito profundo. Não há nada a fazer, a não ser abreviar a dor dele”, disse o cocheiro, secamente.<br />

“Eu decido o que fazer”.<br />

“Ele vai sangrar até morrer”, insistiu o homem.<br />

“Não se for socorrido a tempo”<br />

“Pois então, que voltem sozinhos ”, respondeu João.<br />

“Você não será pago”.<br />

“Eu não me importo”, Disse João, entre dentes.<br />

***<br />

O oriental se deslocava por entre as bancas do mercado do cais de Porto Alegre, chamando pouca atenção. Após<br />

Com a pele bronzeada, em trajes de tropeiro, passaria por indígena. Porém, quando abria a boca, tudo mudava.<br />

sempre seria.<br />

sua meta. Voltaria a São Miguel com o herdeiro. Ou não voltaria.


“Vossa mercê viu um tropeiro de mais ou menos vinte e cinco anos de idade? Pelo que dizem, ele vive da escolta de<br />

“Há muitos tropeiros por aqui”, respondeu o dono da banca, um descendente de açorianos, alto, de cabelos pretos e<br />

“Tu por acaso o conheces, bugre?”, indagou um homem calvo, de meia-idade, que bebia numa mesa próxima. Usava<br />

O sargento não terminou a frase. Sua pistola, chutada pelo chinês, disparou para o alto, causando alvoroço entre os<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 22<br />

CONTO<br />

A seu favor, ele tinha o fato de sua presa, nos últimos dois anos, ter se tornado descuidada, repetindo<br />

incessantemente o mesmo trajeto. Era uma questão de tempo até que finalmente o encontrasse.<br />

cargas que chegam das missões”.<br />

olhos azuis.<br />

“Esse tem fama de pelear bem. Luta sem armas, com as mãos e com os pés”, disse o oriental. “Também ouvi dizer<br />

que é acompanhado por um lobo pampeano”.<br />

o dólmã azul da guarda nacional e divisas de sargento.<br />

“Não sou um bugre”, respondeu o oriental, calmamente. “Sou chinês”.<br />

“Não foi o que te perguntei”, disse o sargento, sacando a pistola de pederneira”.<br />

“Digamos que eu o conheça. O que vossa mercê quer com ele? ” Indagou o oriental, sem se deixar intimidar pelo<br />

sargento de arma em punho.<br />

“Isso não é da sua conta. Apenas leve-me até ele e eu o deixarei ir”.<br />

“É muita bondade de sua parte. Mas devo recusar”, disse o oriental.<br />

“Pois que seja. Estás preso por desacato à autoridade do império do Brasil”. Ponha as mãos na cabeça, disse o<br />

sargento.<br />

Nesse momento, o oriental notou o enorme hematoma que cobria boa parte do lado direito do rosto do militar.<br />

“Ah. Entendo. Vossa mercê deve perdoá-lo. Ele é jovem e um tanto tolo. Eu mesmo me encarregarei de puni-lo,<br />

quando o encontrar. ” Replicou o oriental.<br />

“Isso é o que veremos. Tu vais me acompanhar até o arsenal da guarda, para averiguações”.<br />

“Lamento, mas não posso. Em outra ocasião, talvez”.<br />

“Vens comigo ou devo puxar o gat...”<br />

outros fregueses e derrubando pedaços do teto. Antes que o militar se recobrasse da surpresa, foi atingido por um


“Isso não será necessário”, disse o chinês, retirando uma placa de prata com incrustrações em ouro. “Este é um salvoconduto<br />

diplomático do Reino dos Sete Povos. Estou a serviço de sua majestade, o Rei Cauã”, disse o chinês, exibindo<br />

afirmações do forasteiro. Na verdade, cauã não era um rei. Era um chefe guerreiro, o principal, mas não o único. E o<br />

“Sou médico, não veterinário”, insistiu, até que João e Inga convencerem-no a traar do lobo pampeano. A recusa do<br />

renano, entretanto, era outra. Fosse aquele um animal de fazenda ou mesmo um cão, ele não se negaria a atendê-lo.<br />

Mas tratava-se de uma criatura selvagem, uma daquelas medonhas feras do novo <strong>mundo</strong> que, com a graça de Deus,<br />

Herr Weigert também não gostava de animais selvagens e Maypu sempre lhe deu calafrios. Diferente da maioria dos<br />

animais, o lobo pampeano olhava nos olhos das pessoas e sustentava o olhar. Nada parecia assustá-lo. O austríaco<br />

animais da comunidade de São Leopoldo. Sempre que precisava comer, o lobo pampeano desaparecia nas matas,<br />

discretamente, e voltava, tão silenciosamente quanto saíra, após matar a fome com algum roedor ou ave de médio<br />

descia da costela ao abdome, destacava uma ilha de pele rosada, em meio à densa pelagem avermelhada, depilada<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

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CONTO<br />

soco do oriental, direto no nariz, e desabou como um barril vazio.<br />

“Chamem a guarda!” Gritou o dono do estabelecimento.<br />

o objeto, do tamanho de um livro. Nela havia inscrições em Português, Guarani e Espanhol que confirmavam a<br />

poder era dividido entre diferentes casas ou famílias. Mas não cabia a ele explicar isso àquela gente.<br />

“Parece genuíno”, disse um velho de cartola e óculos bifocais, com uma respeitável barba branca, se aproximando<br />

para ler as inscrições e o brasão dos Sete Povos.<br />

“Lamento pelo inconveniente. Creio que isso deve ressarci-lo”, disse o chinês, entregando ao homem algumas<br />

moedas de ouro. “Onde estávamos mesmo?”<br />

O dono da banca, embasbacado, respondeu:<br />

“São Leopoldo. Ele costuma escoltar cargas até são Leopoldo”.<br />

“Obrigado, senhor”, disse o oriental, tocando de leve na aba de seu chapéu e saindo do estabelecimento”.<br />

***<br />

João passara toda a noite uma parte da manhã no estábulo, ao lado de Maypu. O doutor Schüneman, o médico<br />

local, havia suturado o corte que vinha da última costela direita até o abdome do animal. Mas a febre não cedia.<br />

seriam varridas da Terra pelo bem maior da civilização.<br />

temia que a fera, um dia, se rebelasse contra o rapaz, embora ele jamais tenha atacado ninguém, nem mesmo os<br />

porte.<br />

“Devias dormir um pouco”, disse Inga, tocando gentilmente a mão de João, enquanto este afagava o animal.<br />

Deitado de lado, sobre uma cama improvisada de palha, o enorme animal ardia em febre. O talho suturado, que


“Também pudera. Este animal perdeu muito sangue, pelo que me contaram”, disse uma voz jovial, com forte sotaque<br />

“De João”, disse o oriental, polidamente, mas sem muito entusiasmo. “Por favor, deixem-me ver esse ferimento”, disse,<br />

“O fogo e a água lutam pelo espírito de seu amigo João. Mas posso ajudá-lo. Vou até meu cavalo pegar algumas ervas.<br />

“Obrigado, senhorita” disse Jiao, lançando a João um olhar que parecia dizer “em breve teremos uma longa conversa”.<br />

pampeano. Mantiveram-se em silêncio a maior parte do tempo. Sempre havia o risco de serem ouvidos por Inga ou<br />

“Levei dez anos procurando por ti, jovem príncipe”, disse Jiao, aplicando uma compressa de ervas sobre o ferimento<br />

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CONTO<br />

para que o médico pudesse tratá-lo.<br />

“Alguém precisa estar aqui quando ele acordar”, respondeu João. Não o Jovem confiante, arrogante até, que Inga<br />

conhecera dois anos antes, convidado por seu pai a jantar em sua casa. O que a jovem austríaca via era homem<br />

comum, se esforçando em esconder o medo que sentia.<br />

“ E a febre?” perguntou a moça.<br />

“Não está baixando”, respondeu ele, a cabeça baixa, a voz quase sumindo.<br />

lusitano, vinda de trás deles. João estava tão absorto que ignorara os reflexos de uma vida inteira. Fosse o recémchegado<br />

um bandoleiro, ambos estariam mortos.<br />

“Como me achaste?”, perguntou João, surpreso.<br />

“Teu animal é o assunto da cidade. Não foi difícil. ”<br />

“João, quem é este senhor?” Perguntou Inga.<br />

“Meu nome é Jiao Wei, senhorita. Eu sou um velho amigo de...”<br />

“João”, adiantou-se o rapaz.<br />

se agachando.<br />

Os dois se afastaram e ele pôde ver que o ferimento começava a purular.<br />

Preciso de água, uma panela, e fogo”.<br />

“O senhor pode usar nossa cozinha, Herr Wei. Por favor, me acompanhe”. Disse a jovem.<br />

João dormiu pouco mais de duas horas. Logo ele estava de volta, com seu antigo mestre, cuidando do lobo<br />

por Herr Weigert. Com a chegada da madrugada, puderam conversar livremente.<br />

do animal.


“ És um homem agora. Criado no <strong>mundo</strong>. Conheceste as provações das bestas e dos homens. Mas nada aprendeste”.<br />

“Vim por que falhei contigo. Nunca entendeste o real sentido de nossa prática. Era sobre alcançar o espírito através<br />

do corpo. Desenvolveste tuas habilidades com os pés e com as mãos. Mas o esforço em alcança-las não fez de ti um<br />

homem melhor. Mas ainda há tempo. Não desistirei até que voltes comigo. Teu reino precisa de ti. Outros príncipes,<br />

“Não. Também sou mau perdedor”, respondeu o chinês, com um sorriso. “Essa jovem nada sabe sobre ti, não é ?”<br />

“E como a família dela reagiria ao saber que o pretendente de sua filha é um herdeiro real? ”<br />

“Isso tornaria as coisas mais fáceis, certamente. Mas quero que me aceitem por quem eu sou, não pelo meu sangue”.<br />

“Como quiseres, João. Não precisas provar nada para a senhorita Weigert. Ela já te adora. Vocês poderiam ser felizes<br />

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CONTO<br />

PÁGINA 25<br />

“Eu não sou príncipe. E meu pai não é rei. Nunca tivemos esse conceito”.<br />

“Bem, as responsabilidades de teu pai são as de um rei. E haverá um dia em que ele não mais poderá sustenta-las,<br />

por mais forte que seja o espírito dele”.<br />

“Eu não voltarei. Isso devia ter ficado claro para todos. Até para ti”.<br />

“Eu não sou aquele menino. Tenho uma vida diferente. Não entendo porque tu, entre todos os outros, resolveu vir<br />

atrás de mim”.<br />

de outros clãs, estiveram sendo preparados para suceder teu pai. Nem todos, lamento dizer, apreciam a paz. Há<br />

serpentes se movendo nas sombras. Nesses tempos, o Reino dos Sete Povos precisa de homens como tu, mais do<br />

que nunca”.<br />

“E me seguistes só por isso? Enfrentaste esta terra e tudo que há nela, apenas para provar que estavas certo a meu<br />

respeito? “<br />

João concordou, com a cabeça.<br />

“Sepé...”<br />

“João”, interrompeu o jovem, bruscamente.<br />

no Reino. Do que tens medo?”<br />

“Temo que não a aceitem. Temo que nossos filhos sejam rejeitados pelos outros clãs. Que nos considerem uma<br />

linhagem demasiado branca”.<br />

“Falou o filho de um guerreiro guarani e de uma açoriana de olhos azuis que fugiu de um reino sem escravos”.


“Tolice. O reino não é apenas Guarani. Pertence a gente de todas as cores e credos. Tem sido assim, desde o<br />

João baixou os olhos para o ferimento de Maypu, esperando que seu antigo mestre não voltasse a repetir a pergunta.<br />

Mas era inútil. As palavras são como flechas. Uma vez proferidas, assim como flechas não voltam ao arco, não voltam<br />

“Eu tive medo. Nunca julguei que um dia seria o responsável pelo destino de uma nação. E então, aconteceu. Eu fugi.<br />

acompanhes. Se não acreditas em meus lábios, uma imagem valerá mais que mil palavras. Vá e veja. Depois<br />

“O animal não resistiria viajar nessas condições. Melhor que fique aqui, com a família de tua amada” .<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 26<br />

CONTO<br />

“Não sabes o que enfrentaríamos”.<br />

juramento dos fundadores. Algo mais te incomoda”.<br />

aos lábios.<br />

Hoje, o que sinto é vergonha. Uma imensa vergonha”.<br />

“Tua mãe sente saudades. Teu pai também, ainda que não o diga com palavras”.<br />

“Não há volta. Eu seria um pária, um covarde. Um desertor”, disse o jovem, erguendo os olhos e encarando seu<br />

mestre. Eles estão melhor sem mim”.<br />

“Nunca foste convencido por palavras. Só confias no que teus olhos podem ver. O africano me contou”.<br />

“Como está Ojombe? ”<br />

“Já esteve melhor. Mas viverá o bastante para ver-te de volta a teu lugar de direito. Tudo o que peço é que me<br />

escolherás o caminho que desejares”.<br />

João hesitou.<br />

“E Maypu?”<br />

João ficou algum tempo em silêncio. Respirou fundo, e então falou, olhando Jiao, bem nos olhos.<br />

“Eu aceito voltar a São Miguel”.<br />

“E quem disse que voltaremos? O que precisas ver não se encontra dentro das muralhas das Missões”.<br />

“Então, para onde vamos?”<br />

“Seguiremos os carniceiros”, respondeu Jiao, sem demonstrar qualquer esforço em se fazer entender.<br />

***


suas densas florestas. Seu sorriso desapareceu quando, próximos do canyon da Fortaleza, o vento mudou de direção,<br />

Antes que Jiao pudesse dizer qualquer coisa, João disparou com seu cavalo, rumo à borda do canyon. Era o meio da<br />

fundo do canyon durante o verão. João parou e apeou, a menos de dez metros da borda do abismo. Jiao alcançou-o<br />

escureciam o canyon. Do fundo do abismo, o rugido de dentes de sabre, agora reduzidos a carniceiros, chegava até<br />

“Não, jovem herdeiro. Isso é humano. Homens, não monstros. Homens de carne e osso fizeram isso. Homens como eu<br />

“Como...Quem faria tal covardia?”, disse João, talvez mais horrorizado pelo que via do que pelo cheiro da morte e da<br />

aguardavam enquanto os carniceiros se ocupavam da tarefa de fazer emergirem os ossos dos gigantescos cadáveres.<br />

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PÁGINA 27<br />

CONTO<br />

A viagem a cavalo demorou quase duas semanas, com paradas para dormir, caçar e coletar água, depois que<br />

deixaram as cidades e pequenas vilas para trás. João e seu velho mestre cultivavam o silêncio. E era melhor assim.<br />

João sabia que ele o torturaria com enigmas e metáforas, apenas para que ficasse mais curioso.<br />

Enquanto se encaminhavam às terras altas, O jovem herdeiro e o monge redobravam sua atenção. Nunca lhes<br />

ocorreu que dentes de sabre poderiam se atrever a sair de seus refúgios e rondar lugares tão distantes quanto São<br />

Leopoldo. Agora eram eles os estranhos a invadir o domínio das feras.<br />

João alegrou-se em ver um mar de pegadas de mastodontes pelas trilhas enlameadas que conduziam ao norte e<br />

trazendo-lhes o cheiro da morte.<br />

tarde e o frio daquele início de outono era suficiente para evitar a formação do denso nevoeiro que encobriria o<br />

poucos segundos depois.<br />

Mesmo com o ar frio, centenas de metros acima do abismo, o cheiro era insuportável. Densas nuvens de urubus<br />

os ouvidos dos viajantes.<br />

“Isso é monstruoso”, disse João, sem se voltar para seu mestre, que acabava de apear.<br />

e você.<br />

putrefação.<br />

“Quem teria algo a ganhar com isso?”<br />

“Eu não sei.”<br />

“Saberia, se tivesse concluído seus estudos com o inglês”.<br />

João não deu atenção ao comentário. Tudo o que desejava era poder descobrir os responsáveis por aquela<br />

abominação e fazê-los pagar.<br />

Nas profundezas do abismo, milhares de carcaças de mastodontes, em diferentes estágios de decomposição,<br />

***


Leopoldo e descobrir que Maypu havia se recuperado. Esforçou-se em não deixar que os Weigert percebessem que<br />

“Normalmente, ele sairia para caçar. Mas estava fraco demais para isso. É quase um milagre ele ter sobrevivido”, disse<br />

“Nein, mein lieben. Ele aceitou a comida que oferecemos. Estamos com algumas galinhas a menos. Mas ficamos<br />

José Bonifácio não teve a chance de se candidatar a regente, até que o jovem Dom Pedro II pudesse assumir a coroa.<br />

NOVA LITERATURA - AS FERAS DE UM MUNDO AO SUL<br />

PÁGINA 28<br />

CONTO<br />

O caminho de volta foi bem mais silencioso e melancólico. O humor de João só melhorou ao chegarem a São<br />

algo o afligia. Mas Inga sentia que algo estava errado.<br />

João.<br />

felizes em ajudar. Até mesmo meu pai”.<br />

“Muito obrigado por tudo”, disse ele, tocando a mão da moça.<br />

“Seja o que for que o perturba, saiba que estamos todos com você”, disse ela, segurando a mão dele, com força.<br />

Antes de tomarem o rumo oeste, de volta para as missões, João fez questão voltar a Porto Alegre.<br />

“Tens certeza do que estás para fazer? Isso poderá trazer mais mal do que bem.”, indago o monge.<br />

“As pessoas precisam saber, antes que seja tarde”, respondeu João.<br />

“Depois que essas cartas forem enviadas, não haverá mais volta”.<br />

“Eu espero que não”. Disse João, entregando os envelopes selados ao oficial do correio da província.”<br />

***<br />

Enquanto João dos Fortes e seu mestre rumavam para os canyons do nordeste da província, ele foi acometido de<br />

uma estranha doença renal, vindo a morrer em poucas semanas. Ninguém soube explicar.


histórica<br />

sátira<br />

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