27.07.2019 Views

349840591-Sombras-de-Reis-Barbudos

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Mamãe estava mais inocente do que eu. Quando me viu entrar estranhou que o ensaio tivesse acabado<br />

tão cedo, e eu não disse nada para não assustá-la. Remexi um pouco aqui e ali, engoli sem vonta<strong>de</strong> um<br />

pedaço <strong>de</strong> bolo e um copo <strong>de</strong> leite que mamãe me empurrou e disse o mais casualmente que pu<strong>de</strong>:<br />

— Acho que vou dar um pulo em casa <strong>de</strong> tio Baltazar.<br />

— Então aproveite e leve um vestido <strong>de</strong> sua tia que eu trouxe para consertar. Já está passado e<br />

embrulhado. Mas faça o favor <strong>de</strong> não maltratar o embrulho pelo caminho para não amarrotar. Diz a ela<br />

para <strong>de</strong>sculpar se não ficou ao gosto.<br />

Encontrei tia Dulce andando <strong>de</strong> um lado para outro na sala. Ela mal recebeu o meu beijo, e mandou<br />

que eu <strong>de</strong>ixasse o embrulho em cima <strong>de</strong> uma mesinha baixa. Em cima da mesa estava um cinzeiro cheio<br />

<strong>de</strong> pontas <strong>de</strong> cigarros. De repente tia Dulce pára perto <strong>de</strong> mim e pergunta por mamãe. Quando abri a boca<br />

para respon<strong>de</strong>r, ela correu para olhar qualquer coisa na janela. Fiquei parado na sala, completamente<br />

inútil, como uma estaca mesmo, só olhando para tia Dulce. Eu queria ajudar, fazer alguma coisa, mas não<br />

sabia como nem o quê.<br />

Tia Dulce acen<strong>de</strong>u um cigarro, voltou para perto da mesa, mudou o vestido <strong>de</strong> lugar, quebrou no<br />

cinzeiro o cigarro mal começado, olhou-me como se me visse pela primeira vez e perguntou se eu estava<br />

crescendo direito. Aí eu vi que a situação era mesmo grave e que a minha presença ali não ia adiantar<br />

nada. Beijei tia Dulce <strong>de</strong> novo e sai <strong>de</strong>sapontado com a minha incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajudar.<br />

Quando eu ia <strong>de</strong>scendo a escadaria <strong>de</strong> pedra do palacete o carro <strong>de</strong> tio Baltazar entrava no portão e<br />

começava a subir a rampa que ro<strong>de</strong>ava o gramado da frente. Para não ser visto, eu me escondi atrás <strong>de</strong><br />

uma urna <strong>de</strong> pedra e fiquei olhando. O carro parou diante da escadaria, o chofer <strong>de</strong>u a volta e abriu a<br />

porta. Tio Baltazar estava sentado imóvel lá <strong>de</strong>ntro, olhando fixo para o encosto do banco da frente. Tia<br />

Dulce <strong>de</strong>sceu a escada correndo, passou por mim sem' me ver e foi ajudar tio Baltazar a sair do carro.<br />

Naquela mesma noite, enquanto mamãe e eu ficamos esperando a chegada <strong>de</strong> meu pai com a notícia<br />

do que havia acontecido na Companhia — e esperamos inutilmente porque ele só apareceu na manhã<br />

seguinte —, tia Dulce levava tio Baltazar muito doente para tratamento fora. Não <strong>de</strong>ixaram bilhete nem<br />

recado <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida, e foi muito bem feito para apren<strong>de</strong>rmos a não ser ingratos.<br />

Tempos <strong>de</strong>pois soubemos que o palacete, os móveis, as bebidas finas, os carros restantes e tudo mais<br />

estavam sendo vendidos por procuração. De meus tios não tivemos notícias por muito tempo.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!