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— Não senhor. Eles não dão notícia.<br />
— É. É duro. Não precisavam fazer isso. E sua mãe, como é que está suportando tudo?<br />
— Como Deus é servido, Seu Chamun.<br />
— É. Mulher <strong>de</strong> fibra. Diz a ela que quando precisar <strong>de</strong> aviamentos não se acanhe. É só vir aqui que<br />
eu forneço. Abro uma conta para ela.<br />
Agra<strong>de</strong>ci a gentileza, me preparei para sair; e quando abri o guarda-chuva na porta, Seu Chamun me<br />
chamou.<br />
— Você precisa <strong>de</strong> um guarda-chuva novo. Esse aí já <strong>de</strong>u o que podia. Venha escolher um a seu gosto.<br />
Sem jeito <strong>de</strong> escolher, eu disse que aceitava o que ele me <strong>de</strong>sse. E foi melhor assim porque ele<br />
apanhou um dos mais caros, <strong>de</strong> cabo <strong>de</strong> metal e pano encorpado, abriu e fechou para ver se funcionava<br />
direito, pendurou-o no meu braço e disse que o outro eu jogasse na enxurrada.<br />
Depois que contei a mamãe o acontecido, e conversamos sobre a nossa situação em geral, concluímos<br />
que tínhamos saído lucrando. O emprego <strong>de</strong> entregador não era gran<strong>de</strong> coisa, rendia pouco e gastava<br />
muito sapato e energia, às vezes eu entregava embrulhos tão gran<strong>de</strong>s e pesados que só podiam ser<br />
carregados na cabeça, e nesses dias eu chegava em casa com dor no pescoço. Eu perdia o emprego mas<br />
ganhava um guarda-chuva novo, muito útil naqueles dias, e ainda fazia amiza<strong>de</strong> com Seu Chamun; agora<br />
mamãe não precisava mais cortar na comida para po<strong>de</strong>r comprar aviamentos.<br />
Não tendo motivo para sair tanto, eu passava mais tempo junto <strong>de</strong> mamãe, às vezes estudando para<br />
mostrar adiantamento quando a escola reabrisse, às vezes ajudando na costura. De tanto olhar aprendi a<br />
<strong>de</strong>smanchar costura errada e a chulear, mamãe fingia <strong>de</strong>saprovação por eu estar querendo fazer trabalho<br />
<strong>de</strong> mulher, mas bem que gostava <strong>de</strong> me ver puxando fio com a ponta da tesourinha, com muito cuidado<br />
para não furar o tecido; e dizia que o meu chuleado era caprichado <strong>de</strong>mais e ia acostumar mal as<br />
freguesas.<br />
Mas o que nós mais fazíamos enquanto a chuva <strong>de</strong>spejava milho no telhado era relembrar o que foi a<br />
vida aqui <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a chegada <strong>de</strong> tio Baltazar, a alegria <strong>de</strong>le e <strong>de</strong> todo mundo no dia da inauguração, as<br />
festas, a esperança geral em dias melhores. Pessoas que não conhecíamos paravam tio Baltazar na rua<br />
para agra<strong>de</strong>cer, elogiar ou simplesmente cumprimentar, ser visto conversando com ele era <strong>de</strong>monstração<br />
<strong>de</strong> prestígio. O que mais ouvíamos naquele tempo era que se esta cida<strong>de</strong> tivesse mais duas ou três<br />
pessoas como ele isso aqui virava um paraíso em pouco tempo.<br />
Falar em tio Baltazar me levava a pensar em tia Dulce, o que eu evitava porque ainda não tinha me<br />
curado <strong>de</strong> todo. A carta suspen<strong>de</strong>ndo a minha ida me aliviou no princípio, <strong>de</strong>pois ficou me arranhando<br />
por <strong>de</strong>ntro. A recaída <strong>de</strong> tio Baltazar podia ser uma <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> tia Dulce para se livrar <strong>de</strong> mim — e toda<br />
vez que eu pensava nisso sentia raiva, <strong>de</strong>speito, sauda<strong>de</strong>, tudo misturado, e ficava imprestável pelo resto<br />
do dia, ninguém gosta <strong>de</strong> se sentir rejeitado.<br />
Como mamãe disse uma vez, relembrando o bom tempo <strong>de</strong> tio Baltazar — tudo um dia passa, o bom e<br />
felizmente também o ruim —, os dias tristes <strong>de</strong> chuva e névoa foram finalmente dando lugar a um<br />
solzinho a princípio arisco, <strong>de</strong>pois mais <strong>de</strong>cidido. O povo começou a voltar às ruas para festejar o fim<br />
das chuvas e também para secar o corpo e a alma <strong>de</strong> tanto bolor. Até mamãe comprou um par <strong>de</strong> sapatos<br />
novos, e sempre que podia dava um passeiozinho "para <strong>de</strong>senferrujar as pernas".<br />
As ruas lavadas davam à cida<strong>de</strong> um aspecto renovado, e se não fossem os muros, sempre em pé,<br />
sempre antipáticos, podia-se pensar que o tempo feliz não tardaria. Nas praças e jardins, nos quintais,<br />
nos pátios as plantas brotavam com um viço impressionante, e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> borboletas que<br />
apareceram <strong>de</strong> repente, como nascidas do contato do sol com a umida<strong>de</strong> da terra, <strong>de</strong>ixava todo mundo