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349840591-Sombras-de-Reis-Barbudos

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om mágico precisa vir <strong>de</strong> longe), que suas mágicas mais pareciam milagres (ele fazia na hora tudo o que<br />

o público pedisse — transformava pedra em pássaro, areia em água, estrume em ouro, e vice-versa se<br />

alguém quisesse); e além das mágicas que fazia no palco ele sabia outras que só podiam ser vistas <strong>de</strong><br />

perto, como uma na mesa <strong>de</strong> bilhar, tão incrível que metia medo.<br />

São <strong>de</strong>ssas coisas que não adianta discutir antes <strong>de</strong> ver. Um diz que o homem voa como passarinho.<br />

Outro diz que <strong>de</strong> chama <strong>de</strong> vela endurecida ele faz brincos para senhoras. Outro diz que ele pega um<br />

sapo, joga para cima, o sapo vira beija-flor. Eu não acreditei, mas também não ia sair por aí <strong>de</strong>smentindo<br />

quando pessoas <strong>de</strong> bem como o padre diziam que era verda<strong>de</strong>. O jeito era ter paciência e esperar, o<br />

mágico não <strong>de</strong>via <strong>de</strong>morar, os cartazes <strong>de</strong>le já estavam aí.<br />

Gente que viajava voltava com notícias do mágico. Estava em Luzalma. Estava em Aguaçava. Estava<br />

em Guaravaí. Voltou a Pompeinha. Está <strong>de</strong> cama em Manarairema. Mágico adoece? Mau sinal.<br />

Os cartazes pregados nos muros foram <strong>de</strong>spencando, enrolando, se rasgando, até ficar apenas um olho<br />

fuzilante aqui, um nariz iluminado, uma letra, uma palavra incompleta, e muito <strong>de</strong>sapontamento em nós. Já<br />

diziam até que ele não vinha mais, a Companhia não o queria fazendo mágicas aqui.<br />

Não po<strong>de</strong>ndo ver as mágicas do Gran<strong>de</strong> Uzk ficávamos rondando as pessoas que as tinham visto,<br />

ouvindo suas histórias, na certa muito exageradas, e pedindo mais. Quem tinha recursos inventava uma<br />

viagem só para vê-lo, e era recebido com festas na volta. Desconfio que nem todas as pessoas que<br />

viajavam conseguiam ver o mágico, algumas iam era olhar negócios em direção até oposta, mas confessar<br />

a verda<strong>de</strong> seria per<strong>de</strong>r prestígio.<br />

E a nossa frustração se voltava contra a Companhia. Uma noite eu e alguns colegas saímos com umas<br />

bagas <strong>de</strong> tucum no bolso <strong>de</strong>sabafando a nossa raiva nos muros, enquanto dois vigiavam as pontas da rua<br />

outros escreviam ABAIXO A CIA raspando o tucum no muro. Felizmente a brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>u em nada, mas foi<br />

uma loucura: tucum é uma tinta vermelha difícil <strong>de</strong> sair até dos <strong>de</strong>dos.<br />

Eu agora só pensava no Gran<strong>de</strong> Uzk e suas mágicas, e quanto mais pensava mais revoltado ficava com<br />

a Companhia. Que direito tinha ela <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir o que convinha e o que não convinha a gente ver?<br />

Contrariando recomendações <strong>de</strong> mamãe, <strong>de</strong> nunca mais tocar em assunto da Companhia quando meu pai<br />

estivesse em casa, um dia perguntei a ele <strong>de</strong> chofre por que a Companhia tinha proibido a vinda do<br />

mágico. Ele fez cara <strong>de</strong> surpresa e respon<strong>de</strong>u:<br />

— Não me consta que tenha proibido. Se ele não vem é porque não quer. A Companhia não se envolve<br />

com assuntos miúdos. E on<strong>de</strong> foi que o senhor ouviu isso?<br />

O tratamento <strong>de</strong> senhor era sinal <strong>de</strong> perigo. Mamãe notou e veio em meu socorro.<br />

— Consta sim, Horácio. É o que todo mundo está dizendo. O mágico não vem porque a Companhia<br />

não <strong>de</strong>ixa.<br />

— Ahn. É sempre assim — disse meu pai. — Tudo o que acontece ou <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> acontecer, é culpa da<br />

Companhia. Chove, é a Companhia; não chove, é a Companhia. Um menino quebra o braço pulando muro,<br />

é a Companhia. Só faltam dizer que a Companhia é responsável pelos nascimentos e mortes.<br />

Mamãe ia dizendo qualquer coisa, achou melhor não dizer. Meu pai percebeu o recuo e insistiu para<br />

que ela falasse.<br />

— Nada não, Horácio. Ia dizer nada não.<br />

— Ia. Ia e se arrepen<strong>de</strong>u. Vamos, fale. Eu sou fiscal lá na rua, aqui não. Você acha que a Companhia é<br />

responsável pelos nascimentos e mortes? Acha?<br />

— Por algumas mortes, é — disse mamãe.<br />

Meu pai ficou vermelho, a boca tremendo, a respiração curta, parecia que ele era o acusado, ou o<br />

dono da Companhia.<br />

— Veja lá como fala — disse ele. — A Companhia trabalhando sem <strong>de</strong>scanso em benefício <strong>de</strong> todos,

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