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349840591-Sombras-de-Reis-Barbudos

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mandar sapo virar borboleta, água virar areia, estéreo virar ouro, e ser obe<strong>de</strong>cida? Era como a gente<br />

preparar os olhos para ver um dinossauro e ver uma lagartixa.<br />

E para completar a <strong>de</strong>cepção, o homem tinha uma mancha avermelhada <strong>de</strong> ferida ou sarna <strong>de</strong> um lado<br />

do rosto, tomando o canto da boca e parte do queixo, <strong>de</strong> vez em quando ele tirava um lenço do bolso e<br />

enxugava aquilo, que parecia estar aguando.<br />

E agora? O homem era aquele, não tinha outro. É nisso que dá a gente acreditar em tudo o que ouve.<br />

Ele podia ser mágico, mas <strong>de</strong> magiquinhas corriqueiras.<br />

Saímos dali calados, não querendo dar o braço a torcer. Para preencher o mutismo íamos chutando<br />

coisas miúdas que encontrávamos, caixas <strong>de</strong> fósforos, tampinhas <strong>de</strong> garrafa, pescoços e pernas secas <strong>de</strong><br />

urubus mortos durante a gran<strong>de</strong> invasão <strong>de</strong>les e ainda espalhados por toda parte.<br />

Eu me <strong>de</strong>sinteressei do Gran<strong>de</strong> Uzk e teria perdido o primeiro espetáculo se não fosse a insistência<br />

<strong>de</strong> uns colegas que estavam combinando uma gran<strong>de</strong> vaia para quando ele aparecesse no palco; eles<br />

achavam que o meu assovio fino e cortante era necessário. Só para atendê-los fiz o sacrifício.<br />

Vendo aquela gente toda se mexendo nas filas, mastigando em seco e se empurrando disfarçadamente<br />

com pressa <strong>de</strong> entrar, eu e meus colegas sorríamos uns para os outros como pessoas que sabem com<br />

antecedência o que vai acontecer. Não íamos sofrer <strong>de</strong>cepção porque tínhamos apanhado o mágico<br />

<strong>de</strong>sprevenido e avaliado a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le. Eu achava que a explicação para os elogios ao mágico era que<br />

ninguém gosta <strong>de</strong> se <strong>de</strong>cepcionar sozinho. Aquilo <strong>de</strong> dizerem que o homem era fantástico, que só vendo<br />

para crer, não passava <strong>de</strong> esperteza <strong>de</strong> gente lograda para arrastar outros ao mesmo logro. Era como a<br />

história da gruta encantada, on<strong>de</strong> se entrava por um corredor estreito em que só cabia uma pessoa. Cada<br />

um que entrava só encontrava estéreo e fedor, mas na volta confirmava as maravilhas para se vingar da<br />

<strong>de</strong>cepção <strong>de</strong>cepcionando os outros.<br />

Dentro do teatro encontramos uma novida<strong>de</strong>: uma cortina vermelha na frente do palco com o mesmo<br />

rosto do cartaz circulado pelas palavras EL GRAN UZK em gran<strong>de</strong>s letras pretas, as letras e os traços do<br />

rosto coincidindo direitinho com as dobras da cortina, só o Z aparecia um pouco <strong>de</strong>scentrado.<br />

Os alto-falantes tocavam músicas antigas que já estávamos cansados <strong>de</strong> ouvir, todo mundo já tinha<br />

entrado, e o espetáculo não começava. Quando tocaram todo o repertório, e voltaram à "Serra da Boa<br />

Esperança", parecendo que iam repetir também o "Carinhoso", o "Despertar da montanha", a "Vereda<br />

tropical", um garoto gritou, "Chega!", outros repetiram o grito aqui e ali. A música parou e<br />

experimentaram um disco novo na coleção do teatro, o "Chá para dois" em solo <strong>de</strong> órgão. Mas a agulha<br />

empacou logo no começo e ficou repetindo o mesmo risco, tatandararan, ruc... tatandararan, ruc...<br />

tatandararan, ruc, parecia que não tinha ninguém perto para dar o empurrãozinho. Aí nós abrimos fogo<br />

com a maior vaia que já ouvi, perfeita no barulho e no andamento, parecia coisa ensaiada. Os mais<br />

velhos pediam silêncio, levantavam, olhavam em volta, faziam gestos, mas só paramos quando os altofalantes<br />

tocaram uma introdução <strong>de</strong> cometas. Uma voz <strong>de</strong> mulher pediu a atenção do público, <strong>de</strong>sculpouse<br />

pelo atraso em nome do Gran<strong>de</strong> Uzk e anunciou que o espetáculo ia começar em um minuto. Mas ainda<br />

tocaram o tango "Jalousie" até o fim.<br />

Novo toque <strong>de</strong> clarins, três batidas solenes <strong>de</strong> gongo e a cortina começou a se abrir <strong>de</strong>vagarinho do<br />

centro para os lados, as letras e o rosto do Gran<strong>de</strong> Uzk se sumindo nas dobras do pano.<br />

É difícil explicar, mas no momento que a cortina se abriu eu senti qualquer coisa diferente no ar,<br />

assim um arrepio vindo não sei se <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro ou <strong>de</strong> fora <strong>de</strong> mim, uma mudança na qualida<strong>de</strong> dos sons,<br />

como se meus ouvidos tivessem acabado <strong>de</strong> passar por uma limpeza sensacional, e sei que todo mundo<br />

sentiu a mesma coisa. O homem que estava no palco <strong>de</strong> braços abertos para a platéia — o mesmo que eu<br />

tinha visto dias antes na sala <strong>de</strong> espera — era novamente o Gran<strong>de</strong> Uzk dos cartazes.

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