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— Infelizmente não, filho.<br />
Era a primeira vez em não sei quanto tempo que ele me chamava <strong>de</strong> filho, assim com naturalida<strong>de</strong>.<br />
Para ele eu vinha sendo o maroto, o sem-vergonha, quando muito esse-menino.<br />
— Primeiro precisamos arranjar o capital — continuou ele enquanto eu ainda me sentia inchado com a<br />
mudança <strong>de</strong> tratamento.<br />
— Precisa muito?<br />
— Bem... Para quem não tem nenhum, qualquer dinheirinho maior fica sendo muito dinheiro.<br />
— Não po<strong>de</strong> pedir emprestado? — Eu queria ver o armazém já instalado e funcionando.<br />
— Foi o que pensei. Mas estou <strong>de</strong>scobrindo que ninguém empresta dinheiro a quem já não tem. Mas<br />
não faz mal. No fim do ano <strong>de</strong>vo receber um extraordinário. Com mais um pouco que tenho em mãos <strong>de</strong><br />
amigos, e mais uma coisa e outra que arranjar aqui e ali, acho que dá para começar. Vamos ser<br />
comerciantes, Lu.<br />
Pensei em sugerir um pedido <strong>de</strong> empréstimo a tio Baltazar, mas tive medo. Eu não ia estragar a<br />
alegria <strong>de</strong> meu pai lembrando um nome que ele <strong>de</strong>testava. Imaginei-me atrás <strong>de</strong> um balcão, como um<br />
colega meu que ajudava o pai na loja <strong>de</strong> calçados, eu aten<strong>de</strong>ndo a freguesia, pesando e embrulhando,<br />
recebendo dinheiro e dando troco, a gaveta se enchendo, nós ficando ricos.<br />
De repente me lembrei do convite <strong>de</strong> tia Dulce e achei que talvez não valesse a pena aceitá-lo.<br />
Ficando aqui eu podia ajudar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, em vez <strong>de</strong> encontrar o armazém já pronto quando voltasse.<br />
O problema era convencer mamãe da <strong>de</strong>sistência. Se meu pai proibisse a minha ida, eu ficava dispensado<br />
do trabalho <strong>de</strong> dizer a ela que eu já estava não querendo. Não era uma manobra bonita, mas assim eu não<br />
precisava <strong>de</strong>sapontar minha mãe.<br />
Como quem não quer nada, fingi que mudava <strong>de</strong> assunto e soltei a bomba:<br />
— Tia Dulce escreveu. Está querendo que eu passe as férias com eles.<br />
Não veio estouro nenhum. Meu pai apenas passou a mão na nuca cocando qualquer coisa, olhou a<br />
mão, pensando, e disse:<br />
— Até que enfim se lembraram <strong>de</strong> você, hein?<br />
Isso não resolvia nada. Eu precisava <strong>de</strong> uma resposta clara, sim ou não. Talvez o nome <strong>de</strong> tio<br />
Baltazar pen<strong>de</strong>sse a balança.<br />
— Tio Baltazar tem perguntado muito por mim.<br />
— É? E como vai ele?<br />
Meu pai estava mudando mesmo. Primeiro me chama <strong>de</strong> filho. Agora pergunta por tio Baltazar.<br />
— Bem melhor. Já anda e já fala.<br />
— Antes assim.<br />
E a minha ida? Só se ele estava guardando o veto para o fim.<br />
— O que é que <strong>de</strong>vo respon<strong>de</strong>r?<br />
A <strong>de</strong>mora <strong>de</strong>le em falar me <strong>de</strong>u esperança. Eu estava pensando em dizer que mamãe tinha muita<br />
vonta<strong>de</strong> que eu fosse, mas fui salvo antes <strong>de</strong> cometer mais essa malda<strong>de</strong>.<br />
— Se você quer, vai.<br />
Dei-lhe mais uma chance <strong>de</strong> voltar atrás.<br />
— O senhor <strong>de</strong>ixa mesmo?<br />
— Por que não? Eles gostam <strong>de</strong> você, você gosta <strong>de</strong>les. E sua mãe <strong>de</strong>ve estar querendo que você vá.<br />
Eu <strong>de</strong>ixo, mas com uma condição: você estar aqui para a inauguração do nosso armazém — disse ele já<br />
em tom <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira.<br />
Essa referência ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> minha mãe me <strong>de</strong>u novamente vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir. Ali estava meu pai<br />
finalmente fazendo uma coisa para agradá-la, e eu manobrando para trás. Qual <strong>de</strong> nós dois era o