Contato VIP - Julho de 2019 - Passo Fundo
Edição da Revista Contato VIP do mês de Julho de 2019, com a capa de circulação da cidade de Passo Fundo/RS
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<strong>VIP</strong> | Crônica<br />
As muitas<br />
camadas <strong>de</strong><br />
uma barba azul<br />
Gustave Doré<br />
Luciana Lhullier<br />
Mestre em Teoria<br />
Literária pela<br />
PUCRS, a autora dos<br />
livros No Coração<br />
da Floresta e A<br />
Casa <strong>de</strong> Dentro e<br />
Outras Loucuras foi<br />
professora, tradutora<br />
e intérprete.<br />
Atualmente é<br />
editora-chefe da<br />
Editora Desdêmona.”<br />
Apesar <strong>de</strong> o relato <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong> noivos que<br />
encarnam o mal, ou que se transformam<br />
em vilões após o casamento ser frequente<br />
na literatura oral, a história <strong>de</strong> Barba Azul,<br />
como é conhecida hoje em dia, foi escrita e publicada<br />
por Charles Perrault em 1697.<br />
Como era seu objetivo, Perrault faz do conto um alerta:<br />
ninguém se transforma com o casamento e, felizes<br />
para sempre, po<strong>de</strong> vir a ser uma gran<strong>de</strong> ilusão, às vezes<br />
um tanto perigosa. Outro aspecto <strong>de</strong>sse conto é que<br />
ele evi<strong>de</strong>ncia as raízes originais dos contos <strong>de</strong> fadas:<br />
histórias para adultos, contadas em círculos sociais.<br />
No conto <strong>de</strong> Perrault, Barba Azul é marcado por um<br />
<strong>de</strong>svio em sua imagem – sua barba longa e azul causa<br />
estranheza nas mulheres. Há também rumores <strong>de</strong> um<br />
passado sombrio e <strong>de</strong> esposas que <strong>de</strong>sapareceram sem<br />
<strong>de</strong>ixar vestígios. Seu charme e sua fortuna, porém, tornam<br />
sua presença “aceitável” nos altos círculos sociais,<br />
impregnados <strong>de</strong> ganância e interesse.<br />
Como O Vampiro, <strong>de</strong> Polidori, Barba Azul transita na<br />
socieda<strong>de</strong> à procura <strong>de</strong> “presas”. Ele seduz suas vítimas<br />
com boas maneiras, presentes e elogios, enquanto<br />
prepara a “cova” em que irá enterrá-las.<br />
Em “Mulheres que Correm com os Lobos”, Clarissa<br />
Pinkola Estés fala <strong>de</strong> Barba Azul como o “predador<br />
natural da psique”. Aquele lado sombrio e <strong>de</strong>struidor<br />
que carregamos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós e que alguns <strong>de</strong> nós<br />
carregam em seu exterior.<br />
Segundo a autora, são com esses que trazem Barba<br />
Azul para a realida<strong>de</strong> concreta, que <strong>de</strong>vemos nos preocupar:<br />
o assassino em série, o estuprador, o traficante<br />
<strong>de</strong> seres humanos. Mas há também um Barba Azul<br />
manifesto no chefe sádico, no marido que espanca<br />
a esposa e, <strong>de</strong> forma sutil e disfarçada, naquele que<br />
pratica o terror emocional e psicológico. Há um tipo<br />
<strong>de</strong> violência <strong>de</strong> gênero que machuca não o corpo físico,<br />
mas os sentimentos, e po<strong>de</strong> ser tão aniquiladora quanto<br />
a violência física. O Barba Azul que abusa emocionalmente<br />
<strong>de</strong> suas presas é geralmente um narcisista<br />
patológico e, portanto, <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> empatia, ainda que<br />
possa vir a ser sentimental e meloso quando lhe convém.<br />
Suga emocionalmente os outros porque acredita ser o<br />
centro do universo. Quando suas necessida<strong>de</strong>s não são<br />
atendidas, não hesita em chantagear suas vítimas, muitas<br />
vezes fazendo-se ele mesmo <strong>de</strong> vítima.<br />
Muitas mulheres <strong>de</strong>ixam-se levar por esses “Barba Azuis”,<br />
seja por ingenuida<strong>de</strong>, ou por um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser a “única que<br />
os compreen<strong>de</strong>”. Muitas não sobrevivem, figurativamente e<br />
realmente, para contar a história.<br />
No caso do conto <strong>de</strong> Perrault, a última esposa <strong>de</strong> Barba<br />
Azul sobrevive porque, antes tar<strong>de</strong> do que nunca, enxerga-<br />
-o como ele é. Ao escolher abrir a porta do quarto proibido<br />
que <strong>de</strong>scobriu ser, na verda<strong>de</strong>, uma câmara sangrenta, a<br />
esposa vê estampado à sua frente o passado do marido. A<br />
partir daí não há mais volta. Ela sabe que será apenas uma<br />
questão <strong>de</strong> tempo até que ele tente matá-la também.<br />
E então ela começa a lutar por sua sobrevivência. Mente<br />
para Barba Azul que nada tinha acontecido, reluta em<br />
mostrar-lhe a chave sangrenta do cômodo, implora para<br />
que ele não lhe tire a vida e pe<strong>de</strong> um tempo para dizer suas<br />
orações que é, na verda<strong>de</strong>, o tempo que leva para que seus<br />
irmãos cheguem e a aju<strong>de</strong>m.<br />
Barba azul é morto, mas sua <strong>de</strong>rrota começou no momento<br />
em que falhou em reconhecer em sua esposa um<br />
espírito lutador. Ao julgar que se tratava <strong>de</strong> mais uma a<br />
ser sacrificada, não contava com a personalida<strong>de</strong> forte da<br />
mulher que se recusa a sucumbir.<br />
A força proveniente da chegada dos irmãos simboliza os<br />
recursos internos dos quais a esposa lançou mão para<br />
antagonizá-lo. É como se dissesse ao carrasco: não mereço<br />
morrer e não vou permitir que você me mate.<br />
A última esposa <strong>de</strong> Barba Azul viveu e reconstruiu sua<br />
vida porque enxergou e agiu.<br />
Po<strong>de</strong> ser que Barba Azul não tenha <strong>de</strong>saparecido completamente.<br />
É possível que ela venha a reencontrá-lo em outras<br />
pessoas ou em outras situações. Mas ela agora tem os<br />
olhos bem abertos e jamais ele será seu dono novamente.<br />
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