RCIA - ED. OUTUBRO 2019
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Crônica familiar<br />
Luís Carlos<br />
B<strong>ED</strong>RAN<br />
Sociólogo e cronista da Revista Comércio,<br />
Indústria e Agronegócio de Araraquara<br />
Natália Ginzburg nasceu em<br />
Palermo, na Sicília, em 1916 e<br />
ao ler seu livro, “Léxico familiar”,<br />
fez-me recordar minha mãe, descendente<br />
de italianos, nascida<br />
em 1912 em Jurema, hoje Jurupema,<br />
distrito de Taquaritinga.<br />
Viveram a mesma época, uma na<br />
Europa, outra no Brasil, entre as guerras<br />
mundiais e algumas coincidências<br />
de ideias houveram entre elas,<br />
guardadas as devidas proporções.<br />
Assim, o nome de minha mãe,<br />
Splende, tal como o de seu irmão,<br />
Avenir, foram extraídos dos primeiros<br />
versos do“Inno dei Lavoratori”<br />
(ou “Canto dei Lavoratori”) escrito<br />
em 1886, de autoria de FilippoTurati,<br />
fundador do Partido Socialista<br />
Italiano: “Sufratelli, sucompagne/<br />
suvenite in fittaschiera: / sulla libera<br />
bandiera /splendeil sol dell’avvenir”.<br />
Uma homenagem, anarquistas/socialistas<br />
que eram meus<br />
avós, àquele líder político que<br />
certa vez foi acolhido pela família<br />
de Natália em Turim, perseguido<br />
pelos fascistas de Mussolini.<br />
Recordo-me do que ela me disse:<br />
que seu pai enterrou o retrato<br />
do Duce. Então o admirava e seguia?<br />
Não. É que no início de sua<br />
vida política, Mussolini fazia parte<br />
do Partido Socialista Italiano;<br />
depois é que se tornou ditador.<br />
A família de Natália, de origem<br />
judia e que fazia parte da resistência,<br />
foi perseguida pelos fascistas e seu<br />
marido, Leone Ginzburg, foi torturado<br />
e morto pelos nazistas em Roma.<br />
Splende escrevia crônicas e artigos<br />
no jornal do qual seu pai era<br />
dono; depois tornou-se proprietária<br />
quando a legislação ditatorial<br />
de Getúlio Vargas obrigou os<br />
italianos (e também os alemães e<br />
japoneses) radicados no País — e<br />
que foram perseguidos —, a não<br />
possuírem bens em seus nomes.<br />
Sua formação — também foi<br />
professora no meio rural —, embora<br />
não formada, era e sempre foi<br />
democrática e se revoltava contra<br />
as injustiças de toda ordem. Recebia<br />
na redação do jornal notícias e<br />
informações sobre o andamento dos<br />
combates na Europa e também panfletos<br />
com as fotos chocantes e impressionantes<br />
sobre as atrocidades<br />
praticadas pelos nazistas nos campos<br />
de concentração na Polônia.<br />
Nas correspondências românticas<br />
que trocava com meu pai, que<br />
também na mocidade era jornalista<br />
e cronista, transmitia algumas<br />
ideias que seriam avançadas na<br />
época, sobre a participação ativa<br />
da mulher na vida política e social<br />
do País. Teria sido talvez uma espécie<br />
de feminista, “avant lalettre”.<br />
Contava-me que na fazenda<br />
onde lecionava devorava os clássicos<br />
romances do início do século<br />
sob a lamparina à querosene, a tal<br />
ponto que sua face ficava toda cheia<br />
de fuligem. Lembro-me também<br />
dos livros de Stefan Zweig, caprichosamente<br />
encadernados e guardados<br />
na estante de casa, como<br />
“Carta de uma desconhecida”e<br />
“Amok”, escritor austríaco de<br />
origem judaica que, fugindo<br />
de Hitler, suicidou-se no Brasil.<br />
Deixou de trabalhar quando se<br />
casou e mudou-se para uma cidade<br />
maior, num tempo em que a mulher<br />
deveria ficar em casa a trabalhar<br />
nos serviços rotineiros domésticos.<br />
Era o “zeitgeist”, o espírito da época.<br />
Embora pretendesse sempre<br />
“montar uma livraria”, nunca conseguiu.<br />
Teve de criar seus três filhos<br />
e educá-los dentro dos princípios<br />
socialistas em que também foi formada<br />
pelo pai italiano, o Maestro<br />
Oliviero e, claro, influenciada pelo<br />
marido, livre-pensador e democrata.<br />
Hoje seria considerada moderna<br />
pela intensa participação da<br />
mulher em todo mundo, em todos<br />
os setores de atividade: artística,<br />
social, política e econômica. Creio<br />
que também teria gostado de ler os<br />
livros da escritora Simone de Beauvoir,<br />
nascida em 1908 na França e<br />
que esteve em Araraquara há exatos<br />
50 anos, em companhia de seu<br />
companheiro Jean-Paul Sartre, filósofo<br />
existencialista que proferiu uma<br />
memorável palestra na então Faculdade<br />
de Filosofia Ciências e Letras.<br />
E que foi pioneira na emancipação<br />
da mulher, como relata em seu livro<br />
autobiográfico, “A força da idade”.<br />
Se tivesse nascido na Itália, por<br />
sua formação, talvez tivesse passado<br />
pelas agruras pelas quais<br />
Natália Girzburg passou: perseguições<br />
dos nazifascistas, fome,<br />
mortes na família. A Europa sofreu<br />
duramente nas duas grandes guerras;<br />
mesmo assim recuperou-se,<br />
coisa essa que aqui nunca ocorreu.<br />
Ainda estamos no paraíso.<br />
Quase até o fim da vida continuava<br />
ligada nos acontecimentos<br />
políticos, inconformada com as posições<br />
e atitudes de alguns líderes<br />
em fins do século passado. Gostaria<br />
até, como boa mãe que era, que me<br />
desse algum conselho, que o seguiria,<br />
como bom filho, sobre a atual<br />
situação por que passa nosso país.<br />
Porque parece que os tradicionais<br />
países considerados democráticos<br />
passam por uma fase populista,<br />
quase que como uma era<br />
pré-fascista, nos mesmos moldes<br />
dos acontecimentos que anteciparam<br />
as trágicas guerras mundiais.<br />
Mas esse é assunto para outra<br />
crônica.<br />
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