Benedito Bacurau - O pássaro que não nasceu de um ovo
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O que o Lucas estava chamando de brincar de brincadeira era um jogo
sem pé nem cabeça que a gente tinha inventado. Na verdade não foi bem a
gente quem inventou, pois existem muitos animaizinhos que gostam de ficar
rolando uns sobre os outros numa farra sem tempo nem espaço. Os gatinhos
fazem isso com certeza. Já vi muitas vezes pais e filhos gatos nessa animação.
Mas quando começamos a brincar de brincadeira não tínhamos pensado
nisso. Nem era uma vez nem nada. Ficávamos empurrando um ao outro com
o corpo, sentindo os sentidos e nada mais. Parecia que tínhamos o mesmo
peso e tamanho. Vez por outra parávamos um pouquinho fingindo um
cansaço dramatizado.
Essa brincadeira era feita em cima da cama, que virava uma estação de
naves espaciais durante o tempo do nosso relaxamento. Algo entre perguntar
por perguntar e responder por responder:“Da minha nave estou vendo uma
estrela de lâmpada vestida de fada, câmbio”;“Da minha vejo um som gigante
tocando música nas nuvens, câmbio”. Câmbio. Se “o planeta Terra é uma ilha
no céu” como diz o Lucas, aquela cama virava uma ilha na Terra quando
brincávamos de brincadeira. Era como se estivéssemos em um teatro sem
atores, sem personagens, sem história, sem platéia, sem palco nem nada ou
num parque de diversões sem ingresso, sem brinquedos, sem filas nem nada.
Apenas estávamos com o espírito do bacurau a brincar de brincadeira. Rindo
à toa, sorrindo pra nada. Com a chegada do Artur descobrimos a brincadeira
de três. A Andréa, mãe deles, se animou e até comprou uma cama maior
para a brincadeira de quatro. Descobrimos, principalmente, que sem pé nem
cabeça essa é a mesma brincadeira de cinco, de dez, de cem e de tantos mil, a
bater como bate o pequenino e fabuloso coração infantil.
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