MOSTRA MORTOS E A CAMERA
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do grupo. Filmado em uma paisagem aborígene muito semelhante à de Good-Bye Old
Man, esse é sem dúvida um dos filmes mais intrigantes da mostra, de uma ousadia
formal inédita, caracterizado pela própria Povinelli como um “realismo improvisado”
(improvisational realism). De uma estética surreal e inovadora, o filme se estrutura em
uma série de flashbacks que apresentam diferentes versões sobre o que teria causado
o problema no motor de um barco, deixando a família presa em uma praia distante. A
mise-en-scène dos mortos ou ancestrais como prováveis causadores do estrago do
motor é um dos pontos altos do filme.
Last but not least, fechamos com o magistral Sigui Synthèse, dos gigantes Jean
Rouch e Germaine Dieterlen, defuntos ilustres, entre outros, de nossa mostra piacular.
Sigui Synthèse é o filme síntese de uma série de sete filmes realizados entre os anos de
1966 e 1974 sobre as cerimônias que os Dogon do Mali chamam de Sigui. Realizadas
a cada 60 anos e com duração de sete anos, essas cerimônias foram primeiramente
descritas por Marcel Griaule, em 1907. Durante a cerimônia, os Dogon comemoram a
revelação da palavra oral aos homens, a transformação ou regeneração da terra, bem
como a morte e funeral dos primeiros ancestrais dogon. É impossível esquecer os cantos
e as danças de centenas de pessoas, em ritmo marcado pelo solo árido das montanhas
do território dogon, bem como o comentário over, na voz inconfundível do realizador
que, como demonstra Matheus Araújo, em ensaio escrito especialmente para a mostra,
“interage com as vozes dos Dogon (nunca legendadas), os sons da sua vida comum, as
músicas das suas cerimônias (cantos, percussões etc) e a força de suas falas rituais, que
Rouch traduz e recita com sua típica entoação encantatória”.
Não é a primeira vez que esse filme magistral é exibido no forumdoc: a primeira
sessão, interminável, foi realizada dentro da mostra Rouch-Dieterlen de 2000, no antigo
Cine Nazaré, talvez em seu último ano de vida, com um projecionista, como bem recorda
nosso colega Ewerton Belico, que não sabia trocar os rolos de 16mm, e foi marcada pelas
quebras e pausas constantes causadas tanto pela inépcia do projecionista quanto pela
antiguidade da cópia. Reza a lenda que essa sessão durou alguns dias, e a sensação
era a de uma sessão que nunca iria terminar, como os ritos e filmes de longa-duração.
wake work | trabalho de vigília
A mostra “Mortos e a Câmera” será acompanhada de um seminário, no Cine Humberto
Mauro (Palácio das Artes-MG), casa do forumdoc desde 1997, que pretende abordar
as conexões parciais entre memória, necropolíticas, cosmojustiças e cinema, antropologia,
performance e arte. A intenção do seminário é se alinhar à proposta de Michael
Gillespie a partir da formulação “cinema na vigília” (cinema in the wake), na esteira de
Christina Sharpe, bem como ao chamado de Claudia Rankine, de modo a expandi-los
para territórios não explorados por esses autores. O fato de a existência de pessoas
negras, mulheres, indígenas e lgbtqi, entre outros, ser uma existência na vigília (existence
on the wake), marcada pela escravidão e pelos genocídios, faz toda a diferença
para pensarmos os modos como lidamos com a vigília de nossos mortos, em especial
quando utilizamos mediações políticas e artísticas, raramente acadêmicas, para fazer esse