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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Ano 1

nº 2

junho/julho

2021

COGITO,

ERGO

SUM

1


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Ano 1 - número 2 - Junho/Julho - 2021

Paranaguá - Pr - Brasil

Nº SNIIC (Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais): AG-206110

Publicação Bimestral

Distribuição Gratuita on-line

Idealização: Paulo Ras

Editoria: Paulo Ras

Diagramação: Paulo Ras

Todos os textos foram revisados por seus autores e não sofreram nenhuma alteração

por parte da revista, respeitando assim a gramática, o estilo e o país de origem

de cada autor.

As imagens não creditadas foram retiradas da internet e têm licença gratuita de

uso

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desde que sejam preservados os nomes de seus respectivos autores, que seja

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Capa: pixabay

Site da revista: www.revistatracos.art.br

Contato: culturaltracos@gmail.com

Facebook: facebook.com/revistaculturaltracos

A Revista Cultural Traços foi criada para unir escritores, fotógrafos, músicos e

artistas de Língua Portuguesa, publicados ou não, de todos os lugares do mundo.

Toda a participação na revista é gratuita, com publicação em PDF e distribuição

on-line.

Política de direitos autorais

Autores que publicam na Revista Cultural Traços concordam com os seguintes

termos:

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

EDITORIAL

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Na quarta parte da versão francesa do Discurso sobre

o Método, René Descartes escreve a famosa frase: “Je pense,

donc je suis”, “cogito ergo sum” em latim, “penso, logo existo”,

em bom português. Trazendo para 2021, e seguindo o raciocínio

do filósofo, físico e matemático francês, quantas pessoas

ainda existem? Afinal de contas, castra-se cada vez mais o indivíduo

para valorizar o pensamento coletivo, aquele efeito de

manada, de cardume que nada para o mesmo lado, sem questionamento,

sem pensar, sem existir. Não somos peixes, não

somos gado, somos seres pensantes e questionadores por natureza,

e o debate de ideias contrárias nos faz aprender mais,

pensar mais, existir mais. A manipulação de massas não tem

lado, não tem cor, não tem partido político, não tem religião

nem ideologias. Ela é ancestral e, hoje em dia, encontra mais

eco nas pessoas que “pensam” por redes sociais, alimentam

suas convicções, seus ódios, seus preconceitos com notícias

falsas, com mentiras deslavadas, colocadas na internet com

o único intuito de perpetuar interesses próprios. E pensar incomoda.

Que o diga Sócrates, o filósofo grego, condenado à

morte por não acreditar nos costumes e nos deuses gregos,

unir-se a deuses malignos que gostam de destruir as cidades

e corromper jovens com suas ideias. Nada mais atual, diga-se

de passagem.

A grande questão é quando esse censor invisível chega

à arte e à cultura, áreas de livre pensar por natureza. Por isso

a Revista Cultural Traços abraça todos os pensamentos, todos

os estilos, todas as linguagens, todas as artes.

Estão abertas as portas para a segunda edição da nossa

revista, que apenas quer fazer a cultura girar.

Ótima leitura.

Ótima cultura.

“Cogito, ergo sum” para todos.

Revista Cultural Traços

Por amor à cultura. Para um mundo que sempre precisa

de arte.


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Colaboradores

• Jô Diniz 7

• Marga Cendón 8

• Paulo Ras 9

• Penélope Jones 10

Seções

• A casa é sua 12

• Dicas joinhas 15

• Pretéritos 16

• Coisas do Br 17

• Inclusivo 18

• Prazer em conhecer 19

• Coisas que... 22

• Cartas de amor são ridículas 23

• Espaço SerEsta 25

Autores Classificados

Agnes Izumi Nagashima 27

Alberto Arecchi 28

Alessandro Padin 30

Aline Bischoff 31

Anderson A. da C. Roberto 32

Antonio Gil Neto 34

Arisson Tavares 35

Arthur Senra 36

Branca Lescher 37

Camila Mazi 38

Chai Rodrigues 39

Clara Gerhardt David 40

Clarice de Assis Rosa 42

Cleber Profeta 44

Darlene Honório Medeiros 45

Diana Magalhães 46

Edgar Borges 47

Eduardo Ramos 48

Escobar Franelas 49

Eva Vilma 50

Éverlan Stutz 52

Farlley Derze 53

4

Felipe Chagas 54

Fernando Portela 55

Flávia Redman 56

Fran Pigosso 57

Francieli Vareira 59

Geraldo Magela de Faria 61

Gustavo Fontele Dourado 63

Hellen Rodrigues 64

Hera de Jesus 66

Ian Anderson Gomes Dias 67

Iara Marina de Sales Santos 68

Izadora Laner 69

Jhulia Vitória Ferreira Sales 70

João Rosa de Castro 71

José Carlos Vaz 72

Júlio César 73

Kika Souza 74

Lamaris 75

Leticia Bahrbosa 76

Lima Júnior 77


Lorenza Gioppo 78

Luisa Garbazza 79

Maju Assis 80

Malú Bortoletto 82

Marco Bulhões 83

Marcos Nunes Loiola 84

Mari Brito 85

Maria Catarina 86

Maria Gabriela Cardoso 87

Maria Jorgete Teixeira 89

Maria Pia Monda 90

Maria Struduth 91

Mariana Brecht 92

Mariana Sperandio 93

Marih Dütrien 94

Marina P. P. Oliveira 95

Maurício Simionato 97

Milla Trigo 98

Mozão Muniz 99

Nilza Verônica Amaral 100

Paula Scofano 102

Paulo Esdras 104

Pedro Antônio Lima Pereira 105

Pedro Gonçalves 106

Pedro Guerra Demingos 107

Pricila Marchese 108

Priscila De Bom 109

Priscila Lima 110

Projeto Vermelho Candiru 111

Regilene Martins 112

Regina Borges 113

Regina Ruth Rincon Caires 114

Ricardo Mainieri 116

Roberta Ramos 117

Ronaldo Magalhães 118

Rose Barboza 119

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JUNHO/JULHO

2021

Rosilene Souza 121

Sabina Sabino 122

Sam Moura 125

Sammis Reachers 127

Sandra de Castro 128

Sara Binatti dos Anjos 129

Shirlei Pinheiro 130

Simone Magalhães da Silva 131

Steresa Nery 132

Téo Senna 133

Teresa Barranha 134

Thomas Brenner 135

Uirá Rauan 136

Verônica Amaral/Déllio Reis 137

Verônica Spnela 138

Walneane Moraes 139

William tRAPo 140

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JUNHO/JULHO

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Nº 2

JUNHO/JULHO

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JÔ DINIZ

BELO HORIZONTE - MG

Andar de bailarina,

olhos de não ver o

que se subentende

pulsando no peito,

foge da própria natureza,

mas a arte, sempre ela, a

encontra na esquina, oferece

mil promessas e a tira pra

dançar.

FEITIO

Feito relógio ao contrário,

que rompe corda de prata,

umbigo, entranhas.

Que escreve na carne o gosto do orgasmo,

e tatua o lamber do desgosto na alma,

pela primeira vez.

Feito reza ao avesso, que desfaz karma,

desfaz despedida, desfaz morte.

Feito quebranto, que se espalha em tantos, tantos pedaços,

e que nunca, nunca mais se juntam.

Feito encanto repetido dia e noite, até a exaustão.

Feito feitiço, sem permissão.

Feito reza forte, e canção nove vezes entoada,

que se entrega em ondas,

ao encontro do que foi,

do que é,

e do que será.

Feito a travessia indecente da verdade,

e a saliva que escorre numa sintonia de afinidade.

O amor quer tudo.

Quer o céu e o inferno.

Quer o outro.

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JUNHO/JULHO

2021

MARGA CENDÓN

URUGUAIANA - RS

Marga Cendón é artista

plástica, fotógrafa

amadora

e escritora com

dois livros publicados - Lonjuras,

2013 e Sal e Trigo, 2014, ambos

pela Editora Viapampa. Integra

oito coletâneas, dentre elas, Os

Cem Melhores poemas do Twitter,

2013 e Contos de Pampa e Fronteira,

2019.

VENDE-SE

Forcei a maçaneta

enferrujada e o

corredor estendeu-

-se à minha frente,

com as portas entreabertas.

Passei os olhos pelos cômodos.

Das frestas nas janelas,

a luz da tarde revelava sobrepostas

camadas de tinta

no descascado das paredes;

colchas de retalhos desbotadas,

bonecas de louça em cadeiras de palha, jarros sem água, vasos sem plantas. Há

muito eu tinha partido e os que ficaram, viviam agora do outro lado, reclusos em sépia

nos porta-retratos do aparador da sala. Seus semblantes, mudos convites ao desenterro.

Vieram-me então os aromas, os gostos, as vozes, as faces. Lá fora, o branco dos lençóis

ainda balançava em varais enfileirados, esconderijo de cantigas e suas rodas, sob o

azul que esquecera de entardecer. Tudo à minha espera... A casa repleta, as conversas

paralelas em torno da mesa, a leveza do silêncio na hora da sesta. Um tempo em que

dizer-se feliz era dispensável. E não o ser, impossível.

O eco de meus próprios passos nas tábuas corridas do assoalho trouxe-me de volta

aos escombros. Os anos de afastamento me haviam modificado e o passado, agora,

resumia-se a uma cena em preto e branco cheirando a mofo, umidade, abandono.

Não, eu não queria a mobília, as cortinas, os cristais. Nada além das lembranças que

já estavam comigo.

Dei meia-volta, bati a porta e entreguei a chave ao corretor.

www.margacendon.com.br

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Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PAULO RAS

PARANAGUÁ - PR

Utópico, tem certeza

de que a arte salva,

a literatura liberta

e a cultura oferece

meios para que cada pessoa

se entenda, para que cada um

ouça e decifre o grito contido

na própria voz.

OLÍVIA

Eu poderia ter

desfeito o nó

na gravata e

ter te esperado

cru no espaldar

da cama desarrumada.

Mas neguei a mim

mesmo este desfrute

feito para os tolos e

para os fracassados.

Tenho em meu sangue a genética da prole Albuquerque Vilemond, não me dou

por cansado nem por vencido, afinal o ouro é o meu deus, meu Jeová, minha

profissão de fé. Eu poderia ter afrouxado o cinto, sentado no sofá de couro de

bisão-europeu, enchido meu copo com uma bela dose de Ouzo e esperado o

mundo se achegar a mim. Porém fiquei alerta, atento. Bolsa, dólar, juros, euro. A

vida é essa avalanche de cifrões fazendo cachoeira sobre o meu corpo enquanto

entro na sauna para aproveitar mais um instante de negócios. Eu poderia ter tirado

a roupa e dormido o sono dos justos, contudo os justos padecem na pobreza,

enquanto nós, os focados, esperamos a abertura das bolsas de Tóquio e a de

Shanghai. A vida é essa eterna roda da fortuna que esmaga os desafortunados.

Eu poderia... Está me ouvindo, Olívia? Olívia? Está me ouvindo?

O ressonar da mulher ecoou mais alto na vaidade do homem do que no quarto

vazio de motel. Tentou acordá-la. Perda de tempo. Sono profundo, enrodilhada

na roupa que nem se dera ao trabalho de tirar. Praxedes a cobriu. Beijou sua

testa. Deixou o dinheiro combinado e um extra pela noite que ela perdera. Ele

poderia muito, ele poderia tudo, menos com Alice, a Olívia que dormia cansaços

e solidões em um corpo sem dono, em um coração livre que nem mesmo Praxedes

de Albuquerque Vilemond poderia comprar.

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Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PENELOPE JONES

PASÁRGADA

Sonhadora por parte

de pai, mãe e orixás.

Ariana por capricho

do cosmos e de algum

alinhamento aleatório dos

astros. Personalidade forte,

loucura decidida e cortante

feito os raios de Iansã.

CALENDÁRIO

Calendário afoito se afasta cada vez mais do tempo em que nos fomos.

Veja, os dias insistem em correr, as pessoas envelhecem em

suas casas, as manhãs continuam devorando sonhos quando a noite

se despede e parte. Mesmo assim, um aroma teu, fraco, quase

inexistente, ainda se perpetua em minha pele vadia, nas memórias que me traem

e me trazem mais de você nas horas impróprias que só quero te esquecer. Loucura,

tara ou fetiche? O que importa? Tatuei tuas digitais em meus seios, teus

lábios em meu ventre, gravei teu arfar de gozo,

soletrei teus impropérios de paixão. Mesmo

distante te tenho em mim. Cinco sentidos ao

seu dispor. Saudade ingrata, saudade maldita,

soletra teu nome nos meus sonhos, declama

tuas loucuras em meus delírios, e eu, santa,

intocada e puta, te acalmo, me toco, te chamo,

com teu nome em sílabas, reverberando hipnótico

e melódico nos quatro cantos do meu

orgasmo carregado de tudo que foi passado,

de tudo que ainda sempre será você.

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ANO 1

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Eu estava zapeando o youtube naquela garimpagem

tradicional de quem ama música e está

atrás de um som diferente. Na primeira pesquisa

vem a sugestão: Terra Cabula. O nome me

chamou a atenção. Acessei. O clipe? Sino da Igrejinha/

Clarão. Já no começo a voz marcante de Vinicius Bolivar

rasga o silêncio. Pronto. Eu estava pego, sem saber

que o melhor estava por vir. Quando a banda entrou, foi

o xeque mate. Eu estava apaixonado por aquele som,

por aquela sonoridade, por aquela banda carismática

e fodástica. Amor à primeira vista? Mais que isto, admiração

à primeira vista. Assisti clipe, live, procurei em

streaming. Queria mais do Terra Cabula. Foi quando

pensei: por que não tentar uma entrevista para a Traços?

E-mail mandado, a resposta rápida da sempre simpática

e receptiva Milena Nominato, produtora da banda. Era

um sim de uma banda que tem música, fé e amor correndo

e pulsando nas veias. Sem mais, um pouco sobre

o Terra Cabula e a entrevista mais que especial.

Paulo Ras

Da esq. para a dir: Emanuel, Ingrid, Vinicius e Lene. Foto Okun.

Terra Cabula canta sonoridades presentes na

relação Brasil – África, através dos tambores,

distorções de guitarra, programações eletrônicas

e performance cênica. Ao assumir, musicalmente,

essa profusão de elementos e identidades,

adota em seu repertório referências do universo folclórico

e popular afro-brasileiro como congada, maracatu,

afoxé e toques de terreiro a partir de releituras

desses elementos, compondo sonoridades híbridas a

partir de diálogos e confrontos experimentais da tradição

estrutural com o rock, o funk, o jazz e o afrobeat.

A banda surgiu em 2015 e hoje conta com quatro integrantes.

Vinicius Bolivar que é vocalista, compositor

e presença; Ingrid Lobo é responsável pelo som potente

das guitarras saturadas e faz parte do vocal, junto

com Emanuel Mastrella, que traz para palco a pulsação

com suas programações eletrônicas, ele também é

compositor e contrabaixista; a percussão, marcante no

som do Terra, é tocada pelas mãos de Lene Black.

O grupo, que atualmente se prepara para gravação

do primeiro álbum, faz apresentações compostas por

músicas autorais, parcerias e de

domínio público com influências

que vão dos batuques de terreiro

ao rock progressivo. evocando a

cada sonoridade um grito de resistência

a ancestralidade do coletivo

brasileiro, num ambiente catártico

e livre.

A escolha do nome representa a

própria fusão de elementos sincréticos

que marca historicamente

grande parte do processo de formação

da identidade cultural/religiosa

brasileira. Cabula é o termo

resultante dos volteios em que os

negros escravizados encontravam

para exercer sua cultura e crença

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no Brasil diante das barreiras da colonização cristã.

Ao misturar ritos africanos com elementos do cristianismo

surge uma nova prática cultural/religiosa

permeada pela fusão de crenças e culturas, é nesse

contexto e luta que a Terra Cabula canta resistências

e embrenha-se no solo fertilizado com sangue e suor

do povo preto.

Qual a história do Terra Cabula?

VINICIUS - O Terra Cabula tem início no ano de

2015. Eu, como médium umbandista, sempre guardei

forte interesse nas musicalidades de terreiro. O projeto

se inicia com uma amiga, Alessandra Almeida,

produtora e também de terreiro, que sabendo do meu

interesse em retomar na cena musical e que fosse com

referências afro-brasileiras, decide produzir e fazer o

trabalho acontecer de alguma forma.

Fiquei um longo período sem executar música de

modo mais ativo na minha vida. Volto-me um pouco

mais para a cena teatral e deixo a música em standby.

Até o surgimento dessa amiga que começa a viabilizar

esse projeto, várias pessoas fizeram parte da trajetória

da banda. E cada integrante que passou acredito que

algo tenha ficado para o que temos hoje.

MILENA - Eu comecei como fã. Ahahaha. De cabulete

a produtora, essa é minha história com o Terra.

Brincadeira, mas foi quase isso mesmo, antes de tudo

sou fã do trabalho musical do Terra, enquanto produtora

audiovisual gravei um web programa (Som de

Lugar) com eles o que me aproximou e fez conhecer

ainda mais o trabalho da banda, que na época tinha

outra formação. Depois, a vida me aproximou - amorosamente

- ainda mais com eles, nossos caminhos se

estreitaram e agora o Terra terá que me aturar para

sempre.

Como surgiu a ideia dessa fusão dos cantos sagrados


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das religiões afro com ritmos como o rock e o funk?

VINICIUS - Inicialmente não tínhamos ainda muito

certeza do que iria surgir. Sabíamos que as músicas

com referências afro brasileiras fariam parte do repertório,

mas ainda sem muita consciência do caminho.

O Emanuel Mastrella esteve desde o início da

formação, mas algumas pessoas passaram pela banda

até a formação atual. Inicialmente era uma banda

com muitas referências percussivas, por meio do Flávio

Borges e do Marcos Borges, mas logo os meninos

tomaram outros caminhos e ficamos eu e Mastrella.

Tivemos também a passagem do Danilo Tuques na

bateria e posteriormente o Weiler Jamaica. Nas guitarras

estavam Gabriel Gueiros até a chegada da Ingrid

Lobo, em um formato já próximo do que somos

hoje com 4 pessoas. A percussão era feita pelo Kemuel

Kesley e que hoje é feita pela Lene Black. Então

acredito que a junção de ritmos se deu de forma natural

nos momentos das releituras de pontos e a partir

da caminhada musical de cada músico.

EMANUEL MASTRELLA - A métrica desses cantos

sagrados tem uma semelhança incrível com a rítmica

do rock e do funk, o que possibilita uma mistura rica

e fácil de ser trabalhada, com inúmeras

possibilidades de resultado.

Quais são as influências da banda?

VINICIUS - Bem, posso aqui dizer

um pouco das minhas influências

que são múltiplas, mas ele está

muito embebido de muita coisa que

já existia e que nos guiou. Pra mim

talvez o álbum Tecnomacumba, de

Rita Benneditto, foi mola propulsora

para eu pensar um pouco do formato

que gostaria de fazer músicas.

Junção de pontos e músicas autorais

ou simplesmente fazer um apanhando

de cânticos ligados à umbanda e

candomblé e dar um pouco da nossa cara. As manifestações

culturais do povo preto também acabam sendo

caminhos de expressão do nosso som: Congadas, Maracatus,

Jongos, Tambor de Crioula e Samba de Roda,

por exemplo.

Como é tocar “pontos de terreiro” em um país ainda

tão cheio de intolerância religiosa?

VINICIUS - Olha, acredito sim que

nossa música não entra em qualquer

lugar. Mas isso não nos desmotiva

e quase nunca chega algo aos nossos

ouvidos em relação a isso. Uma

fala ou outra (bem pouca ainda) que

chegam pelo youtube. Mas nada que

nos enfraqueça de resistir e mostrar

algo que é nosso, que é brasileiro e que traduz o nosso

povo. Que é exatamente esse hibridismo cultural no

qual estamos inseridos.

MILENA - O Terra surgiu com essa vontade de ser

O Terra surgiu com

essa vontade de

ser grito, de cantar

nossas lutas, dores

e amores.

grito, de cantar nossas lutas, dores

e amores. Então seguimos assim e a

gente segue tocando em um país tão

intolerante.

A banda sofreu algum tipo de preconceito

religioso?

VINICIUS - Talvez tenha. Não que

eu saiba. Mas de fato acho de suma

importância abordarmos sempre

termos como racismos e intolerância

religiosa. Algo que ainda é tão

vigente em nossa sociedade, infelizmente.

MILENA - Presencialmente, cara a

cara, não. Mas já rolou alguns comentários bem desagradáveis

nos vídeos do YouTube.

Qual é a recepção e a reação dos adeptos das religiões

de matriz africana quando conhecem o som do Terra

Cabula?

espiritualidade.

VINICIUS - Ahhhh, essas aqui são

as melhores possíveis. De fato, o

público que consome muito do que

o Terra produz, é o povo de terreiro.

Às vezes surgem os mais puristas

que irão dizer que lugar de ponto

é no terreiro. Tudo bem também.

Todo nosso trabalho é feito com

muito respeito e consentimento da

MILENA - No terreiro que frequento a recepção é

de puro acolhimento e sempre relembrando da nossa

responsabilidade enquanto umbandistas e enquanto

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artistas.

A banda tem alguma história inusitada,

interessante neste tempo de

estrada?

VINICIUS - Pra mim particularmente

a história inusitada é a de

que já tiveram pessoas que já bateram

o pé que eu estivesse incorporado

em alguns momentos dos shows ( rsrsrs). Ai eu

sempre reitero que minha formação é nas Artes Cênicas,

e a performance desenvolvida nos shows, claro

que em alguns momentos surgem ali no calor de um

show muitas ideias, mas há sempre um trabalho de

pensar movimentação cênica, ordem de repertório e

os simbolismos possíveis que iremos abordar.

MILENA - eu sempre tenho que explicar para as

pessoas essa relação do Vini com as artes cênicas e

tal. Mas geralmente as pessoas não

acreditam. Ah, o pessoal agora resolveu

mandar ponto pra gente

gravar aahahha, mas nem vejo isso

como algo inusitado, mas sim como

acolhimento, carinho e vontade que

o Terra toque em todos os cantos.

A gente convida

todo mudo para refletir

sobre a real

importância da arte

na vida de cada um.

Prosa Sonara; na programação do Lives Terça no Teatro,

do Teatro Sesi; e pela Lei Emergencial Aldir Blanc

do município de Goiânia. Todas essas lives estão disponíveis

no YouTube, nos canais do Prosa Sonora, do

Teatro Sesi e do Terra Cabula, respectivamente.

Estamos em processo de pré-produção

do nosso primeiro álbum,

mas todo o processo está andando

de forma lenta. Por entendermos a

gravidade do momento que estamos

vivendo, nossos encontros, reuniões

e planejamentos são feitos de forma

remota. Mas já podemos adiantar

que esse trabalho está sendo preparado com muito

amor.

Em tempos de streaming, onde o pessoal encontra o

som do Terra Cabula?

LENE - Ainda ( a-i-n-d-a) não lançamos ep, álbum ou

single. Mas nosso canal do Youtube tem muito material

de shows e projetos que fizemos

parte e nas plataformas de streaming

de áudio você também consegue ouvir

algumas músicas do Terra.

Só colocar Terra Cabula estará

um clique pra você curtir em

casa com segurança.

seguir. Nesse último ano falamos muito de como a

arte foi importante para manter a sanidade mental,

muita #arteimporta sendo usada, então a gente convida

todo mudo para refletir sobre a real importância

da arte na vida de cada um, a repensar o modo

em como consumimos artes e como valorizamos os

artistas, principalmente os locais e independentes.

Agradecemos com toda força o público do Terra, que

sempre esteve presente, ainda que virtualmente, vocês

não sabem como isso nos mantém forte, nos dá gás e

não nos deixa desistir. Axé e luz para esse mundo. E

logo vem um álbum por aí! Saravá

Nestes tempos de pandemia, o Terra

Cabula fez live, pocket show, tem

mais alguma novidade pela frente?

E os projetos para este ano?

INGRID LOBO - No período de

pandemia, o Terra Cabula participou

de algumas lives: no Festival

Para terminar, um recado da

banda para os fãs e para os leitores

da revista.

São tempos difíceis de se manter

em pé, de continuar acreditando

e não se desanimar. Mas

a gente deseja dias melhores, fé

e muita força para que possam

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Nº 2

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2021

A Revista SerEsta é uma criação de um

grupo de professores e ex-alunos apaixonados

pela arte e tem a finalidade de

homenagear figuras proeminentes da literatura.

Acesse, leia, baixe, participe.

https://revistaseresta.blogspot.com/

A Revista LiteraLivre é uma publicação brasileira

de periodicidade bimestral, com distribuição

eletrônica em PDF e totalmente gratuita.

A missão principal é dar espaço aos escritores

e artistas de todos os lugares, amadores ou

profissionais, publicados ou não, que desejam

divulgar seus escritos e mostrar seu talento de

forma independente e livre.

https://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/inicio

Você escreve e quer ficar por dentro dos melhores

concursos literários do país? Acesse

uma das referências do país e não perca nada.

Esse é super indicado.

https://concursos-literarios.blogspot.com/

O site Razões para acreditar tem como

lema a frase “Não é que o mundo esteja

pior, você que não fica sabendo das

coisas boas que acontecem.”. Ali você

encontra todas as novidades que vão te

deixar mais otimista e o seu dia mais

leve. Vai uma notícia boa aí?

https://razoesparaacreditar.com/

Sabe aquele livro que você leu e está jogado

em um canto, servindo de criadouro de poeira?

Aquele que você não leva para o sebo

porque eles vão de pagar uma merreca por

ele? Seus problemas acabaram. O livralivro

é um site de troca de livros. A ideia é simples:

Um livro por um ponto, um ponto por

um livro.

https://livralivro.com.br/

15

Hypeness é um site que, como diz o

próprio slogan, oferece inovação e

criatividade para todos. Com reportagens

abordando estes temas, dá

uma visão mais ampla e criativa sobre

os mais diversos assuntos.

Confira. Vale a visita.

https://www.hypeness.com.br/


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Durante a década de 1930 os dirigíveis

Graf Zeppelin e o LZ 129 Hindenburg

operaram voos transatlânticos regulares

da Alemanha para a América do Norte

e para o Brasil. Muitas cidades brasileiras

testemunharam e registraram em

fotos a passagem dos balões. Na foto

ao lado, datada de 1º de dezembro de

1936, colorizada digitalmente, vemos

o Hindenburg passando pelo centro de

Paranaguá, Paraná, chamando a atenção

dos populares que andavam pelas

ruas. Esta e outras fotos fazem parte

do acervo do Instituto Histórico e Geográfico

de Paranaguá, guardião das

memórias e fatos da cidade e do litoral

paranaense.

Alguns pesquisadores e historiadores

afirmam que estas viagens também serviam

para mapear o Brasil, principalmente

de São Paulo para baixo, para

instalar bases do regime nazista no

nosso país. Mas, além disso, o que mais

aconteceu em terras tupiniquins e no

mundo, neste mesmo ano?

Na literatura, Monteiro Lobato publicou

as obras “Dom Quixote das Crianças”

e “Memórias da Emília”. Gilberto

Freyre publica o clássico “Sobrados e

Mocambos”. Nasce, em Porto Alegre,

o escritor Luis Fernando Verissimo.

Na música, Carmen Miranda grava

“Como vai você?” e “No tabuleiro da

baiana”, de Ary Barroso, e “Balancê”,

de Braguinha e Alberto Ribeiro. Em 6

de junho, nasce a cantora Maysa, que

marcou época com canções “dor de cotovelo”,

hoje chamadas de “sofrência”.

Falece Luigi Pirandello, dramaturgo,

poeta e romancista italiano.

A Alemanha utilizou os Jogos Olímpicos

com propósitos propagandísticos.

Jesse Owens calou Hitler e virou símbolo

contra o racismo. Mas o pior preconceito

Owens sofreu em casa: grande

estrela dos Jogos Olímpicos, o velocista

não foi recebido pelo presidente dos Estados

Unidos, Franklin Roosevelt, que

fez uma recepção apenas a atletas brancos

na Casa Branca. “Hitler não me

esnobou, mas o presidente dos Estados

Unidos sim. Ele não me mandou nem

um telegrama”, reclamou o corredor.

O passado serve para nos mostrar erros

e acertos para tentarmos corrigir rumos,

aprimorar passos, tentar evoluir.

Mas será que conseguiremos?

Paulo Ras

16


Congadas de Minas Gerais

A Exposição Congadas de Minas Gerais consiste

num desdobramento da Exposição “Congado: repercussões

plásticas” em parceria com o projeto Agosto

Vivo, de Montes Claros. Agosto é o mês das celebrações

das centenárias Festas de Congado da cidade.

Daí o nome do projeto ser alusivo ao mês. O Congado

é uma das mais importantes manifestações da

rica cultura popular de Minas Gerais. São vários dias

de festas que acontecem durante todo o ano, levando

milhares de pessoas a pontos históricos das cidades.

Festeiras. Por conta da pandemia, a programação dos

festejos, inclusive exposições aconteceram virtualmente.

Visando homenagear esta importante tradição, a

curadora e Artista Plástica Fátima Aquino deu seguimento

ao projeto Congadas de Minas. Visando

divulgar a produção artística mineira, propõe, então

realiza-la de modo virtual, reunindo Artistas de várias

regiões de Minas Gerais e do país, produzindo

a Exposição coletiva Congadas de Minas Gerais, no

modo virtual.

Além de promover a continuidade do

circuito das artes visuais, deseja-se contribuir

para que a cultura popular se

mantenha viva. A grande visibilidade

das festas congadeiras é decorrente do

envolvimento dos grupos folclóricos e

da população. Participantes e público

identificam no evento as memórias e o

modo de vida do povo mineiro, especialmente

da cultura africana.

Consultas através do

www.agostovivo.com.br

Acesse o Instagram de Fátima Aquino:

@artistafatimaquino

E-mail: fatimaquinoartes@gmail.com

Artistas participantes

Gerotto

João Rafael

Márcia Valadares

Marina Alves

Mauro Kersul

Mônica Mendes

Willian Júnio

Participação especial de

Yara Tupinambá e

Historiador Jeremias

Brasileiro

ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Curadoria:

Fátima Aquino

Localização:

https://biblioteca.metrosp.com.br/index.

php/ptbr/359-linha-visuais/814-deus

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Cabelos loiros

Mulher dos cabelos loiros

Onde cada fio é um raio de sol

Possuindo o perfume mais puro

E possuindo os lábios que curam a minha insanidade.

Cicatrizes fazem parte da jornada dela

E mesmo com o caminho cheio de espinhos

Ela carrega a esperança em uma mão

E a fé em outra.

Ela é luz que ilumina a mais densa escuridão

Seus abraços são o que mantém a minha lucidez

E aquecem o meu coração.

Vinicius Bispo Pereira (conhecido

também como vickdebadu)

tem 22 anos e é

autista. Sempre gostou de

animes, games e música. Apesar das dificuldades,

nunca desistiu de buscar os

seus objetivos e hoje está cursando Letras

- português na Unespar. Também

faz vídeos de perguntas e respostas sobre

Autismo.

YouTube: eu sou autista

Facebook: eu sou autista

Instagram: vickdebadu

Não deixe sua luz se apagar....

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

sempre mantém essa essência curiosa de saber

como tudo funciona ao meu redor, descobrir novas

coisas, visitar minhas memórias a toda hora

e fazer mais bagagens em todos os lugares que eu

conheço. Acredito que tudo na vida é construção,

tudo se faz e se cria movido por paixões.

Como você começou na arte?

Desde criança sempre gostei de brincar com materiais

artísticos, de molhar minhas mãos na tinta

e transformar papeis em branco em um universo

colorido, sentava frente a Tv com massinha

de modelar e passava horas reproduzindo meus

personagens favoritos, mas me tornei mais conhecido

quando compartilhei minhas obras nas

redes sociais aos 18 anos, muita gente começou

a acompanhar meu trabalho.

de poesias, contos e notas de rodapé que escrevo

por inspiração.

Você vai expor no Carrousel du Louvre. Como

surgiu o convite e o que ele representa para você?

Expor em um dos maiores museus do mundo é

algo fascinante, uma grande oportunidade que

surgiu de repente a convite da empresa Vivemos

Arte, nunca planejei ou imaginei investindo meu

potencial criativo para ser apreciado no país do

romantismo e das artes, foi impactante pelo fato

de eu ser apaixonado por história da arte e imaginar

que diversos artistas estiveram um dia na

mesma posição que eu é surreal.

Você tem uma rotina de trabalho? Como é o seu

"Prazer em conhecer" é uma seção da Revista

Cultural Traços em que apresentaremos artistas

de várias linguagens e vertentes para os nossos

leitores. Um dos nomes desta edição é Rodrigo

Paladino.

Entre, leia, consuma arte, cultura e tenha prazer

em conhecer novos nomes, novos talentos.

Rodrigo Paladino por Rodrigo Paladino

Apaixonado pela vida! Artista desde criança que

Como você define a sua produção

artística?

Minhas produções são emoções

materializadas, acredito

na arte como sendo uma

forma de linguagem que não

depende apenas das palavras,

a minha intenção é fazer com

que o apreciador sinta parte

do que eu senti naquele momento

que foi criada, geralmente

o que crio é uma síntese

19


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

processo de criação?

Sempre tento tornar dos meus processos criativos,

algo leve. Não gosto muito de prazos, salvos

alguns casos onde isso se faz necessário, meu fluir

artístico é sempre baseado em emoções e sentimentos

e como naturalmente é oscilante em qualquer

ser humano eu respeito meu tempo e confio

na minha intuição.

Aonde você busca suas referências criativas?

Minhas maiores inspirações vêm do universo cinematográfico,

sou apaixonado por fotografia e

vejo as lentes das câmeras como um portal para

registrar a magia que existe nas coisas, gosto de

criar universos fantásticos me referenciando nos

meus filmes favoritos, em especial os de animação

Stop Motion. Sou apaixonado pela obra de diretores

como Tim Burton e Guilhermo Del Toro.

Quais são seus próximos projetos?

Eu gosto de me surpreender com minhas conquistas,

são elas que determinam meus próximos

passos, estou a todo momento fazendo contatos

novo e conexões com artistas e pessoas que apreciam

meus trabalho e é daí que surgem novas

oportunidades e novos projetos, tento não criar

tantas expectativas pois a frustração é um dos

maiores inimigos da inspiração. Mas tenho muitos

sonhos, gostaria de dirigir um curta metragem

de animação com uma história original minha e

levar ele para festivais de cinema, criar personagens

cativantes, escrever um best seller, a lista é

imensa!

20

Qual o recado que você deixa

para quem está começando?

A todo momento vejo pessoas

iniciando nas artes e me pedindo

dicas e conselhos sobre como

crescer, como aperfeiçoar e lapidar

as produções, muitos acreditam

que a arte é um dom, mas

eu discordo, se existe dom esse

dom se chama paixão, paixão

extrema por aquilo que faz, ver

seu trabalho idealizado e materializado

é uma das coisas mais recompensadoras

que existem, faz você ganhar mais impulso para

a próxima tacada, o segredo é sempre acreditar

que você tem todos os recursos para fazer o que

você quer.

Como as pessoas podem achar as obras de Rodrigo

Paladino?

É possível encontrar meu trabalho nas minhas redes

sociais, posto fotos e interajo bastante com

quem me segue no meu instagram (@paladino.

art) e outras redes secundárias que sempre estou

divulgando por lá também.


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

O DUO

Morgana Moreno

& Marcelo Rosário

Virtuosismo, afinidade e interação musical são

alguns dos adjetivos que a flautista Morgana Moreno

e o violonista Marcelo Rosário colecionam

apresentando Nascente, o mais recente projeto

do duo que em 2019 passou pelo Brasil e Europa.

O lançamento do álbum aconteceu em março

de 2020 através das plataformas de streaming e

da participação nos editais Funarte Respirarte e

Itaú Arte como Respiro.

Neste projeto autoral, através de suas composições

retratam o universo brasileiro a partir de

uma experiência muito particular. É perceptível

a síntese da referência aos gêneros brasileiros

acrescida inevitavelmente da influência de outros

gêneros como a música clássica e o jazz, experienciados

em sua vivência de 6 anos no continente

europeu.

Lançando mão de uma formação mais intimista,

flauta e violão, ambos buscam uma abordagem

onde revezam o papel de solista e acompanhador,

dialogando todo o tempo através dos arranjos e

dos momentos de improvisação, permitindo assim

mais visibilidade às possibilidades dos seus instrumentos

e à notável afinidade artística e musical de

ambos, que possuem uma parceria que data mais

de 10 anos.

Autalmente finalistas da 6a edição do Prêmio Profissionais

da Música, os jovens baianos trazem

uma ampla bagagem ao longo de uma duradoura

parceria, passando por importantes palcos do Brasil,

Alemanha, Portugal, Espanha, França,

Suíça e Holanda como Bimhuis, Viva Brasil

Amsterdam, Breda Jazz Festival,Choro

Festival Rotterdam, Clube do Choro de

Brasília, etc. Em passagem pela Europa,

onde ambos viveram por 6 anos, gravaram

seu primeiro disco, também autoral, Miscellaneous

(2016), com a participação de

músicos europeus da cena do jazz e world

music.

OS ARTISTAS

Morgana Moreno

Natural de Salvador-Ba, desde cedo já se

21

destacava por sua autenticidade, linguagem própria

e som expressivo, resultados do contato com

diversos estilos musicais. Em sua trajetória inclui

o prêmio Melhor Música Instrumental com

sua composição "Baião" no Festival da Música

da Educadora 2014 (Bahia/BR) e a indicação ao

Künstlerinnenpreis NRW 2015 (Colônia/DE).

Morgana é Bacharel em Música (Instrumento)

pela UFBA e Mestra em Música (Flauta Jazz)

pela Hochschule fur Musik und Tanz Köln. Ensinou

no CODARTS -Universidade de Artes de

Roterdã e na EPM Holanda -Escola de Choro.

Atua como flautista e compositora e possui dois

discos gravados na Alemanha.

Marcelo Rosário

Extremamente versátil, o jovem Marcelo Rosário

também começou muito cedo como multi-instrumentista,

antes de decidir tocar violão. Ainda jovem,

mudou-se para Brasília e se especializou em

música brasileira com foco em samba, choro e o

típico violão de 7 cordas. Estudou World Music

na Codarts, Roterdã, na Holanda, onde obteve

bolsa integral e lecionou na Escola de Choro

"EPM Holanda". Ele tem trabalhado como violonista,

compositor, arranjador e educador.

Confira o vídeo da música "Terra Vermelha":

www.youtube.com/watch?v=Y-AmifReSlk

Conheça o trabalho do Duo e de Morgana Moreno

no youtube

https://url.gratis/Fbj5A


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

vi li ouvi

Emily Dickinson é uma jovem escritora em ascensão

que se sente deslocada em seu próprio tempo. Cheia

de ideias progressistas demais para o século XIX em

que ela nasceu, a poetisa vai ter que usar da sua vasta

imaginação para lidar com os obstáculos que sua família

e a sociedade colocam no seu caminho.

A serie usa a imagem de Emily Dickinson para observar

os dias atuais. Desde a primeira cena está claro

que não se trata de uma biografia comum, mas sim de

uma analogia fantasiosa.

Com capítulos que não passam dos 35 minutos, a série

cumpre a missão de entreter e de trazer ao público

um pouco da obra genial da autora.

A série está na segunda temporada e disponível na

Apple TV+.

Neste mês, não vamos falar de

um livro, mas do conjunto da

obra de um dos gênios da nossa

literatura. Dalton Trevisan produz

contos curtos, escritos em

linguagem tão concisa que muitas

vezes chega a ser elíptica: ele mesmo

declarou que seu caminho vai

"do conto para o soneto e dele

para o haicai". Seu estilo é direto

e ágil e suas narrativas apresentam

os dramas de pessoas que se

movem entre as expectativas de

felicidade e realização que aprenderam

a alimentar e a realidade crua e desumana, que as frustra

e aniquila. As relações humanas que apresenta comprovam que a

realidade é degradada e cruel: as pessoas se maltratam e se ferem

em vez de manterem no cotidiano vínculos de carinho e respeito.

Assim, marido e mulher estão sempre em conflito, pais e mães oprimem

os filhos, amigos se confrontam e disputam o poder... Nem

os animais de estimação escapam desse moinho de sentimentos:

sua ingênua dedicação recebe impaciência e indiferença como retribuição.

Sua escrita sintética e contundente pode ser considerada uma referência

constante no trabalho de muitos contistas recentemente

surgidos, como os da Geração de 90.

Tímido e arredio, o curitibano Dalton Trevisan foge do assédio dos

jornalistas e guarda sua vida pessoal a sete chaves. Não fornece

seu telefone, tem raros amigos nos círculos literários e por vezes

se recusa a receber pessoalmente os prêmios conquistados por seus

contos magníficos. Mas é possível imaginá-lo à noite, percorrendo

às escondidas as ruas da capital paranaense, escutando atrás das

portas as manifestações dos desejos escondidos da população, alimentando-se

deles, trazendo-os à superfície e incorporando-os a

seus escritos.

Não por acaso, o escritor que muitos consideram o maior contista

brasileiro contemporâneo costuma ser designado pelo título de um

de seus livros de histórias curtas: o Vampiro de Curitiba.

Fonte: https://novaescola.org.br/

22

Vanguart é uma banda de indie rock formada no ano

de 2002 em Cuiabá, Mato Grosso, pelo vocalista e

violonista Helio Flanders. O nome da banda foi retirado

de um vídeo sobre Andy Warhol. O Vanguart é

bastante influenciado por artistas de rock alternativo,

blues e rock clássico.

Apresentação feita, a banda tem um som marcante,

com letras carregadas de poesia. “Meu sol”, um dos

sucessos do Vanguart, é pura sensibilidade, daquelas

músicas para se ouvir de olhos fechados, com o vento

batendo no rosto. Destaque para o vocalista Hélio

Flanders, e para o violino marcante de Fernanda Kostchak.

Você encontra o trabalho da banda nas plataformas

de streaming e no youtube.

Depois de conhecer o trabalho deles, com certeza

você vai colocar o Vanguart na sua lista de favoritos.


Cartas de amor

são ridículas

Já disse Fernando Pessoa, nas tintas do seu heterônimo

Álvaro de Campos, que “Todas as cartas de

amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não

fossem ridículas.”. Pois bem, não precisamos daquele

blá-blá-blá sobre os males da modernidade, afinal

isto já está mais do que batido, rebatido, falado e refalado.

Quem tem mais de 30 ou 40 anos deve ter

tido a experiência de escrever cartas, seja para amigos,

para parentes, para um amor, para uma promoção

de alguma marca que realizava sorteios ao vivo

no Faustão, na Xuxa, no Gugu, no Sílvio Santos, no

Chacrinha. Mas como nossa revista é uma revista literária

que, apesar da modernidade do digital, é old

school, fizemos esta seção chamada Cartas de amor

são ridículas. O título é para homenagear o imortal,

eterno e atemporal Fernando Pessoa, que, com seus

fakes, maravilhava e continua maravilhando leitores

do mundo inteiro. O conteúdo é para reviver aquela

tradição e fazer com que nossos leitores e autores se

aventurem no mundo do “ridículo” e enviem cartas

de amor. Será publicada uma carta por edição. Quem

sabe a sua não será a que estará no próximo número?

Envie para o nosso e-mail. No assunto apenas

coloque Cartas de amor. Pode ser uma carta real ou

inventada, com nome verídico ou com personagens.

Pode ser romântica ou erótica. Melosa ou lasciva. Ou

tudo isso junto. O espaço é seu, a criatividade é sua.

Ah... a carta precisa ter no máximo 400 palavras, e

se você quiser dar mais um tchan pra sua carta, pode

mandar o texto manuscrito, digitalizado em pdf, se o

garrancho for legível, claro.

Nesta edição publicaremos, excepcionalmente, duas

cartas, a primeira de Neide Oliveira, a segunda de

Patricia de Campos Occhiucci.

23

ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Como vai? Espero que você esteja bem.

De fato sei muito pouco da sua vida, superficialmente, através das redes sociais, vejo suas fotos e seus sorrisos, aliás

eles são mais lindos que qualquer paisagem.

Por aqui tudo vai indo.

Não estranhe essa carta, é que eu não sou tão bom com palavras ditas, por isso me apego à escrita. Posso lhe fazer

uma sugestão?

Leia-me como se eu fosse essa carta, não apenas palavras frias no monitor, sou mais do estilo retrô, de papéis enfeitados

e perfumados, escrita com canetas coloridas, às vezes com letras tão intensas, que escorrem a tinta, desfazendo-se

em um borrão.

Sabe ainda recordo aquele dia em que você me disse para “não se apaixonar”, infelizmente foi um pouco tarde...

Por isso resolvi lhe escrever esta carta, que talvez não seja enviada, talvez apenas fique guardada na minha própria

lembrança, como a atitude covarde de deixar você ir, sem lê-la.

Devo confessar que aceitar somente sua amizade foi como engolir uma enorme pílula quadrada, amarga e dolorosa,

meu peito por vezes arde, então tenho que me rasgar por dentro, para voltar a respirar, por isso lhe escrevo.

Não é nenhum tipo de cobrança, vida que segue, livre arbítrio, cada qual no seu próprio caminho, tantas vezes me

pergunto por que você cruzou o meu?

É incrível como você reside em meus pensamentos, a sua voz, o seu jeito, os seus olhos, ah, os seus olhos! Seus olhos

são o meu céu, onde meus dias se iluminam, e tantas vezes refletem estrelas noturnas, alimentando meus sonhos, esses

desejos que já não me cabem.

Se conselho fosse bom por hora não seriam os meus, pois no íntimo meu coração ainda é seu, talvez um dia eu consiga

esvaziar os escaninhos da minha memória, desocupando os espaços desse latifúndio que você tomou posse em mim.

Desculpa! Tento me corrigir e não lhe sentir assim, mas o que eu posso fazer?

Dizem que as pessoas são racionais e objetivas, parece que ser romântico é clichê, serve apenas para alimentar fantasias

e poesias, fazer o que se sou assim?

É brega, eu sei.

Quando há sentimentos não existem culpa ou culpados, pode-se considerar que foi uma paixão no momento errado,

um amor não correspondido, um tanto atrevido que sequer você teria imaginado, a vida nem sempre entrega aquilo

que se havia planejado.

Não quero lhe causar nenhum transtorno, falando assim pareço aquelas placas sinalizadoras, perdidas em alguma

curva, e que ninguém presta atenção, soam como mensagens jogadas ao vácuo.

Sobre esta carta?

Bem, agora que ela está em suas mãos esqueça se assim quiser, se preferir nem abra, deixe que essas palavras flutuem

sem destino, pode rasgar, apagar da sua caixa de e-mail, deixar perdida feito spam.

Agora tanto faz o destino que terá esta carta, não tenho pretensão nenhuma de que mude sua vida, apenas peço a

você que permita-se.

Permita-se ser feliz, experimentar, errar, ousar, e quem sabe amar.

Neide Oliveira

Vitória - ES


Cartas de amor

são ridículas

ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Mogi Guaçu, 22 de abril de 2021.

Prezado Gael

Aqui quem lhe escreve é a Rafa. Tudo bem? Espero que sim. Imagino

sua cara de surpresa ao receber esse envelope pelos correios e ler o nome

da remetente. Bem, foi a maneira que escolhi para chegar até aí. Estou

com muitas saudades de você. Muitas mesmo. Queria saber por que você

deixou de falar comigo, de responder minhas mensagens. Essa não é uma

cobrança, e se parecer muito melosa, fazer o quê... Cartas de amor são

ridículas mesmo.

Talvez eu tenha sido um pouco inconveniente em minha abordagem,

peço desculpas se passei da conta ou o assustei. Não era a minha intenção

causar mal estar, ou fazer você se posicionar de alguma forma, menos

ainda provocar seu afastamento. Na verdade, eu só precisava falar o

que sentia, porque eu não conseguia mais fingir que só sua amizade me

bastava. Claro que era o que nos unia, um carinho muito grande, porém,

de minha parte essa ligação tomou outras proporções, maiores e mais

significativas.

Comecei a desejar ter você ao meu lado pra fazer companhia nas tardes

quentes de verão, em meio ao calor que faz nessa cidade e também nas

noites de frio, que não são tão intensas por aqui, mas o suficiente para

despertar a vontade de ter um abraço quente nas madrugadas sempre tão

solitárias. Gostaria de ter você nos bons e maus momentos, para tudo o

que viesse. Sei que nem sempre o amor é correspondido, às vezes, amamos

por dois, e uma hora isso acaba sendo insuficiente. Percebo que meu

querer anseia em ser recebido e retribuído. Parece que nunca dei muita

sorte nesse quesito.

Com você, imaginei que iria ser diferente. Não sei, acho que pelo seu

jeito de ver o mundo, de tratar as pessoas, sonhar, tão parecido com o

meu. Mas, pode ser que justamente nossas semelhanças tirem a graça da

tentativa. Você pensa que já sabe o que vai encontrar. Na verdade, já te

adianto que não. Muito pouca coisa você sabe sobre mim. Só teve tempo

de conhecer a superfície. Ainda tinha (ou tem) toda uma profundidade

para investigar. E esse negócio de que os opostos se atraem, sempre achei

a maior “furada”, pois alguém muito diferente pode até ser excitante no

começo, mas depois tanta discrepância pode se tornar um transtorno.

Sei lá quais argumentos eu poderia usar pra te chamar de volta. Se você

não gosta de mim dessa maneira, não tem como dar uma chance, sem

problemas, eu não vou ficar batendo na mesma tecla. Entretanto, eu sinto

falta da sua presença, mesmo que pela tecnologia, nas conversas de

final de tarde, e dos “bons dias” logo quando acordava. Gentilezas, num

contexto de tanto isolamento e esquecimento desses tempos de pandemia,

onde muitos amigos ficaram tão longe, não se comunicam, parecem

que nem se lembram. Parentes então, só os mais chegados mesmo, pais

e irmãos. Sinto saudade das suas mensagens no WhattSapp, por mais

simples que fossem, como uma piada ou um vídeo curioso. Se vinham de

você, eram importantes.

Essa carta é mais pra dizer o quanto você é especial. E também que não

precisava cortar nossos laços. Sei que cada um se apaixona por quem o

coração escolhe, e mal sabemos por onde essa estrada da vida vai nos

levar. Somos ainda jovens e, provavelmente, o futuro nos reserva pessoas

e acontecimentos que não fazemos nem sequer ideia.

Mas, confesso que viver um romance com você levaria minha inspiração

a mil, com mais poemas escritos que o normal e, aposto, várias outras

cartas de amor, junto com bombons e vinho. Se puder ao menos me chamar

mais uma vez pra trocarmos uma ideia, ficarei feliz. E se estiver disposto,

pense com carinho no que tenho pra oferecer, pois nesses tempos

onde tanta coisa é passageira, o meu amor vem mesmo pra ficar.

Um abraço apertado,

Rafa.

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Arte: João Alberto

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

HAICAI DE OUTONO

AGNES IZUMI

NAGASHIMA

Londrina - PR

Escreve contos e

poemas, publicou

em revistas

e coletâneas. É

acadêmica correspondente

da Academia

Internacional da União Cultural,

faz parte da UBT Londrina

e da Comissão de Autores

da WebTv.

Verde desbotou,

folhas caídas de outono.

Sopra o vento álgido.

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ALBERTO ARECCHI

Pavia – Itália

Arquiteto italiano,

mora em Pavia.

Presidente da Associação

Cultural

Liutprand, que edita estudos

sobre a história local e as

tradições (liutprand.it). Escreve

contos e poemas.

DIA DAS CORES

Um dia, ao acordar, cada cor tinha-se

transformada em sua

complementar. O céu estava

rosa e amarelo, as pessoas tinham

a pele cianótica, a grama tinha virado

vermelha.

Dois ratos olhavam-se assustados ao ver a

pele quase fluorescente um do outro. Eles

pareciam desenhados em néon. Uma abelha

listrada em branco e roxo ia voando

como louca. A água do arrozal refletia a

cor amarela do céu. Uma rã de cor vermelha

incendida olhou para um mosquito,

branco como a neve. Ela reagiu instintivamente,

estendeu sua língua e pegou. O

sabor era bom, como o de um bom mosquito.

O batráquio então soube que deveria

manter um olho sobre as pequenas

criaturas brancas esvoaçantes... Pouca a

semelhança com os insetos do dia anterior,

mas mexiam-se como eles e tinham

o mesmo sabor. Mesmo a rã, porém, que

ficava vermelha, também apareceu como

uma boa presa para o corvo branco, que

passou a devorá-la.

Nádia acordou com um susto. Um mês

antes, ela havia pintado seu quarto de

cor-de-rosa e agora aparecia esverdeado,

com um tom um pouco lívido, na luz da

manhã. Esfregou-se os olhos, mas o efeito

não foi alterado. Ela foi até a cozinha

para fazer café e descobriu que todas as

plantas ficavam vermelhas. O pote de

café era opaco, quase preto, enquanto o

pó de café aparecia azulado. O gato de

casa saltou de um móvel para outro em

um ambiente que via estranho, como uma

nave espacial. Em seguida, ele reconheceu

seu cheiro em um canto do tapete, e ele se

acalmou.

Começou a chuva. As gotas iridescentes

pareciam diamantes multifacetados. Onde

batiam, deixavam sua marca. Quebravam

as janelas, esburacavam os guarda-chuvas

e os telhados dos carros. Parecia ter chegado

o dia do fim do mundo.

Foi então que as águas do rio também

começaram a mudar sua cor. Depois de

tantas décadas de assédio, roubo de água

e sujeira de todos os tipos em suas águas,

ele decidiu se vingar, com a escolha de sua

cor. Um filete um pouco mais brincalhão

escolheu tornar-se amarelo, depois rosa,

depois vermelho, enquanto outros optaram

pela variedade dos verdes. As tranças

de água foram como um arco-íris colorido,

ou como esses fios de algodão, mexidos

de todas as cores, a partir dos quais

você pode escolher os tópicos para remendar.

As águas borbulhantes pareciam gozar de

um carnaval repentino de alegria. Então,

todos os córregos do rio remexeram-se

juntos e assumiram uma mesma cor azul,

como a tinta da caneta estilográfica. O

sol batia nas vagas e nos redemoinhos e

traia milhares de reflexões. Foram surpreendidos

os pescadores. Ainda mais foram

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ALBERTO ARECCHI

Pavia – Itália

DIA DAS CORES

surpreendidos os peixes. A notícia se espalhou

rapidamente. O rio de águas coloridas

batia contra os pilares da ponte, e

todos foram para vê-lo.

Os redemoinhos de água e os arabescos

traçados na areia das praias eram como

a escrita ágil de uma mão experiente. Os

marcos tomaram forma e tornaram-se

palavras. Os riachos delineavam mil, dez

mil, cem mil vezes, as mesmas palavras,

durante todo o curso do rio, “Basta! Chega!

Basta!” Basta com a poluição? Com

as guerras? Cada um interpretou a expressão

como ele desejava. Todo mundo

tinha alguma razão para dizer “basta” e,

portanto, quase todos concordaram com

o rio.

Apenas o aterro de resíduos, que manchava

o panorama e infetava a cidade, não

se virou. Enorme, inchado, fedendo como

sempre, o aterro resistiu e não mudar de

cor, ficando cinzento e sombrio. Suas exalações

mefíticas contaminavam o ar, as escórias

ficavam sem se rebaixar, no tempo,

como vestígios para toda geração futura.

Aqui irão se passar as escavações arqueológicas

da posteridade, para reconstruir a

cultura e a história da nossa civilização.

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ALESSANDRO JOSÉ

PADIN FERREIRA

Praia Grande - SP

STORIES

Uma fração de segundos

E um menino jaz com a cabeça esmigalhada

Em uma parte do mundo que não é o nosso

Mais perto, alguém sorri na praia

E outro faz pizzas na companhia amada

Uma fração de segundos

Choramos

Uma fração de segundos

Sorrimos

Uma fração de segundos

Esquecemos

Poeta, professor universitário

e jornalista.

Após anos dedicados

à atividade

jornalística e acadêmica,

retomou sua produção poética.

Está preparando o seu

primeiro livro.

https://medium.com/padin

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

QUINO

ALINE BISCHOFF

Osasco - São Paulo

Aline Bischoff é uma

artista paulista que

atua em diversas

linguagens artísticas,

tais como: música, literatura,

teatro, artes plásticas e

visuais.

31


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ANDERSON A.

DA C. ROBERTO

Belo Horizonte - MG

Natural de Belo

Horizonte. Leitor

assíduo de

livro e criando

coragem para publicar os

seus

O FIM DO MUNDO DE ALAOR

Faltavam cem segundos para o fim do

mundo...

Alaor leu a terrível notícia no jornal.

É um homem de meia-idade, reservado,

sem posição política definida, sem muitos

sonhos ainda a realizar, e historicamente

apegado às tradições, como gostar de ler o

jornal impresso no início da manhã e com o

rádio sintonizado em seu programa preferido.

Nunca tinha lido que existia o tal “Relógio

do Apocalipse”, era assim que o chamavam

na matéria. Descobriu que os ponteiros deste

relógio estavam há muito tempo estáticos, e

que o tempo é relativamente diferente neste

relógio, não se marca o fim ou o início do dia

e da noite como nós seres humanos estávamos

acostumados. Eles marcam o tempo que

a humanidade ainda tem como expectativa

de vida, e que o avançar ou o retroceder dos

ponteiros estavam ligados diretamente à imbecilidade

que os humanos tem para acabar

com tudo e de só pensar em riquezas. O autor

da matéria não havia escrito aquelas palavras,

a interpretação de Alaor havia pedido

até alguns palavrões para adjetivar o homo

sapiens, mas ele se conteve como sempre fez.

Sua esposa o chamou pelo nome, apesar de

saber onde ele nestes últimos anos, sempre

estaria de manhã. Trouxe-lhe o café preto e

sem açúcar por causa do diabetes e uma torrada

com manteiga dos dois lados. Ele sorriu

e ela depois de segundos intermináveis sorriu

de volta, estava embutido na troca de sorrisos

quase melancólicos o diálogo da manhã:

como passou a noite? Eu muito bem e você?

Já tomou os seus remédios? E você, já tomou

o seu? Não sei como você agüenta estas musicas!

E as notícias do jornal, continuam as

mesmas? O seu time ganhou? Me deixe acabar

de ler que daqui a pouco lhe conto... Não

teve coragem de dizer à mulher que o fim do

mundo estava próximo. Esqueceu um pouco

a leitura e a fitou voltando para a cozinha, o

vestido esgarçado e as pernas com algumas

veias salientes. Se contasse a ela, talvez pensasse

que tinha embirutado de vez, andava

reclamando a ela que ultimamente a memória

não andava lá essas coisas. E justamente

na hora em que todos os neurônios voltaram

para novamente pensar no fim do mundo, o

locutor anunciou a música de Cartola, “Preciso

me encontrar”.

Sentiu um baque ao escutar o inicio dedilhado

da música e depois a marcação dos instrumentos

ganhando corpo e volume e a voz

de Cartola a lhe chamar para dar o fora dali

e aproveitar seus últimos segundos de vida,

seus últimos cem segundos. Olhou em volta

e sentiu asco. Sentiu como se estivesse fora

da curva da vida, tantas coisas a aproveitar e

agora aquele mundo ou pelo menos a vida de

que todos tinham conhecimento, iria findar-se

em tão pouco tempo. As palavras e a melodia

entravam em seus ouvidos e também em seus

poros e ele ali, a olhar aquele café sem gosto

e a torrada com todas as suas restrições. Foi

uma retrospectiva bem rápida, exatos os três

minutos que durou a música: foi um bom marido

na medida do possível, bom pai na educação

dos filhos, que agora crescidos tinham

seus próprios problemas. Foi um bom funcionário

da empresa que trabalhou por mais de

trinta anos, mesmo que em alguns momentos

um soco bem dado no nariz diminuiria consideravelmente

os embates diários. Foi um bom

amigo, mesmo que agora a maioria de suas

amizades estava morta e os que ainda continuavam

vivos, Alaor evitava encontrá-los

32


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ANDERSON A.

DA C. ROBERTO

Belo Horizonte - MG

O FIM DO MUNDO DE ALAOR

por não suportar as suas eternas reclamações.

Foi um bom cristão, mesmo sabendo que em

alguns momentos ele poderia ter feito uma

oração e um pedido com mais fervor. Foi um

bom irmão, mesmo não suportando na maioria

das vezes as imperfeições do seu sangue.

Foi um bom filho, mesmo sabendo que poderia

ter dito aos pais que os amava mais do

que eles pensavam. E então como resultado

de suas avaliações, descobriu-se que era apenas

bom em tudo e com o fim do mundo mais

próximo a cada segundo, a sua chance de ser

ótimo em alguma coisa diminuía com um estalar

de dedos.

Cartola deu ainda mais ênfase no refrão.

“Deixe-me ir, preciso andar” ficou martelando

na cabeça de Alaor, os segundos para o fim

do mundo andando cada vez mais depressa e

ele a ponto de chorar sem saber o que fazer.

A mulher o tirou daquele transe, lhe perguntando

o que queria de almoço e como ele não

lhe respondeu, permanecendo com os olhos

esbugalhados e tristes, decidiu ela mesma, já

voltando para a cozinha, que seria bife de peito

de frango e salada de brócolis e tomate.

Foi neste momento que de dentro do peito de

Alaor surgiu um rompante que não surgia há

vários séculos. Olhou tudo em volta até que

os seus olhos encontraram a janela e dentro

dela o mundo, mesmo que por uma ironia

este fosse de forma quadrada. Esticou a vista

o máximo que pôde, mas não conseguiu

ir além de algumas quadras, porque os olhos

não funcionavam mais direito e os prédios a

toda volta limitavam a visão. Mas decidiu que

não queria mais aquele limite, queria como

na música ultrapassar aquela barreira e aproveitar

ao máximo aqueles segundos restantes.

O rompante ainda vociferava no peito e já se

espalhava por outros tecidos e órgãos: já que

os humanos estão acabando com o mundo,

que eles vão à merda e me deixem aproveitar

tudo o que eu puder.

O programa preferido acabou, várias músicas

foram tocadas depois de Cartola, os minutos

da manhã já haviam sido quase todos consumidos

e nada do fim do mundo iniciar. Coitado

de Alaor, levou a interpretação da notícia

ao pé da letra, que mesmo sendo este um

relógio, o do Apocalipse só movimentaria os

ponteiros se os humanos assim o quisessem.

A vida continuava da mesma forma, preservando

as suas esquisitices e idiossincrasias de

cada região do planeta. Não havia risco de asteróides,

terremotos, inundações ou qualquer

tipo de fim com interpretação religiosa. Pelo

menos por enquanto e a não ser nos filmes,

o mundo continuava inteiro e funcionando

normalmente, com uma indisposição aqui e

ali, mas nada que não pudesse ser recuperado.

Dona Ivana, a mulher de Alaor, veio contar-lhe

sobre uma fofoca e dizer que iria sair

para comprar o frango e terminar o almoço.

O encontrou estirado sobre o tapete com os

mesmos olhos esbugalhados e tristes. Deu um

grito de desespero ao perceber que o havia encontrado

já sem vida.

Não era rompante e nem um embate contra a

vida monótona que havia levado. Alaor teve

um infarto fulminante e que levou a sua vida

toda de uma vez.

O fim do mundo pode acontecer de várias

formas, o de Alaor começou no coração...

33


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ANTONIO GIL NETO

São Paulo - SP

CENÁRIO

Chuvinha miúda

incessante

A terra se achocolata e umidifica o que se olha

Os bois

o aroma do jasmim

os cavalos cor de canela

e o que alaranja cenários de nada

Aquarela

as cores sinalizam o que se vai vivendo

Os cafezais vão embranquecendo

antecipam o carmim

O infinito começa

assim

Reside em São Paulo.

Trabalhou em Educação,

na formação

de educadores

e obras didáticas. É autor de

literatura juvenil. Aposentado,

gosta de viajar, a ler e escrever

com renovada alegria.

34


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

REAPING LOVE

ARISSON TAVARES

Escritor, jornalista e

cartunista do portal

Só Notícia Boa,

sendo finalista na

52ª edição do Prêmio de Comunicação

da CNBB.

Saiba mais acessando:

https://arissontavares.wixsite.com/site

35


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

O PILAR DO MUNDO 1

ARTHUR SENRA

A

busca por conhecer

a singularidade

das pessoas marca

a trajetória dos trabalhos

de Senra. Utiliza várias

plataformas para apresentar

seus trabalhos, seja em documentários,

fotografia ou literatura.

36


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

BRANCA LESCHER

São Paulo - SP

Cantora, compositora

e poeta. Lançou

em 2016 o livro

de poesias “Fibromialgia”

e dois discos autorais

“Branca” e “Eu não Existo”

em 2017 e 2020. Participa do

coletivo “Senhoras Obscenas”.

SÓ TEM 39!

É

um acontecimento uma mulher calçar

40, 41. Parecido com ser canhoto. Todo

mundo sabe quando a gente é canhoto e

quando tem pés grandes. Canhoto tem um

certo glamour, tem aquela lenda que diz que os canhotos

são inteligentes, na escola recebem carteiras

especiais, mas ser canhoto e ser uma mulher com

pés grandes trazem consequências bem diferentes.

Sou uma canhota que calça 40, às vezes 41, e todo

mundo que me conhece sabe disso e lança sempre

a mesma pérola, ah nossa, seus pés são finos, nem

parece!

Sei que existem milhares de mulheres pelo mundo

que usam sapatos 40, 41, 42, até 43, mas parece

uma ofensa entrar em uma loja e perguntar

se aquele sapato ou sandália que você gostou está

disponível no número 40 (nem ouse dizer 41), é

sempre assim:

- Boa tarde, gostei daquele modelo, tem até que

número?

- Boa tarde, até 39, que número a senhora precisa?

aí eu digo, 40 mas, 39 não me serve, então pode

deixar, obrigada.

- Não, senhora, a forma é grande, vai servir.

Eu não gosto de experimentar a tal forma grande,

porque ela nunca me serve, mas vez ou outra me

deixo levar, ok, tudo bem, vamos ver, e aí como

sempre eu experimento aquela sensação, pela milionésima

vez, de ser uma das irmãs da Cinderela

que não cabiam no delicado e minúsculo sapatinho

de cristal da protagonista do conto de fadas.

É um inferno.

Quando eu tinha 14 anos e já calçava 40 ia com

a minha mãe na Cordobán, numa loja que ficava

no Shopping Iguatemi aqui em São Paulo em um

corredor que se chamava à época mini-shopping.

Lembrando da loja sinto até uma certa melancolia

pois era uma coisa bem sem graça, bege e marrom,

poucos produtos, mas era lá que eu ia com

a minha mãe para mandar fazer sapatos. Se hoje

é difícil achar meu número imagina há quarenta

anos? Nunca vou esquecer de uma mulher muito

alta que entrou na loja enquanto eu experimentava

o meu salto alto que enfim cabia em mim pois

tinham sido feitos sob medida e disse:

- Ah menina, não fique triste com os seus pés, eu

também calço 40, mas isso não me impediu de casar!

E você tem um rostinho lindo! Nunca esqueci

do que ela disse, só esqueci mesmo foi do modelo

do sapato.

Continua a ser um saco ir em loja de sapatos, mas

o pior são as lojas de tênis, pois os modelos femininos

vão até o número 39. Tenho que comprar os

modelos masculinos que são mais largos e não tem

aquelas cores fofas, rosinha, laranja. É muito chato,

muito difícil um que dê certo, mais complicado

ainda é levar o tênis na mala quando viajo, pois

ocupa metade do espaço e eu só uso em extrema

necessidade, basicamente para fazer caminhada.

Outro dia recebi um amigo em casa que perguntou

se eu era parente da Imelda Marcos, a tirana da

Filipinas, corrupta, que quando foi presa em 1986,

foram encontrados no seu closet mais de 1200 pares

de sapatos. Não gostei. Achei ele mal educado,

mas é verdade, basta eu achar um que me sirva que

compro logo de todas as cores e isso faz com que

eu tenha muitos pares mesmo.

Ter pés grandes é uma espécie de trauma, mas não

faço como muita gente que conheço que anda espremida,

com calos, para caber no 39, o maior número

que existe no mercado, com raras exceções.

Eu venho respeitando os meus pezinhos.

37


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FAROL

somos todos faróis no meio do oceano.

alguns nos avistam e por eles se guiam.

CAMILA MAZI

Campinas - SP

somos todos faróis na encosta de alguma praia.

alguns barcos ali ancoram, mas logo partem.

somos todos faróis abandonados.

a luz que refletíamos parou de funcionar,

e ninguém veio conserta-la.

somos todos faróis envoltos de água.

ondas,

tempestades.

somos faróis,

e resistimos.

Matonense da

gema, queria

muito ser escritora,

mas

por enquanto sou só preguiçosa.

https://linktr.ee/camilamazi

38


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MOLOTOV

CHAI RODRIGUES

Atua nas artes visuais

e cênicas. Em

2019, a primeira

exposição individual

PALIMPSESTO. A vídeo

performance Papisa foi

selecionada pelo Prêmio Funarte

Respirarte, em 2021.

https://www.chairodrigues.

com

39


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

CLARA

GERHARDT DAVID

São Mateus - ES

Clara Gerhardt David,

21, é uma brasileira

por excelência

(e também por

nascimento). Apaixonada

por humanas, música, gatos

e cachorros. Ansiosa por

diagnóstico e agitada por natureza.

Uma sonhadora.

ANSIEDADE

Sabe aquela hora quase noite? Quando as luzes

da rua começam a se acender e o calor do

sol é apenas uma lembrança nos seus braços

que começam a ficar arrepiados. Eu caminhava,

em meio a pingos de chuva e a escuridão

que me abraçava. O céu, todo cheio de nuvens, parecia

até falar comigo, chamar-me para mais perto.

É que, entre o corpo e a mente, a terra e o céu, estou

mais lá que cá. Enquanto andava pelas ruas de

chão de terra, desviando das poças d’água, aproximava-me

mais do mar. Nesses dias, quase ninguém

sai à noite, por ser tão inconveniente. Mas são os

meus dias preferidos. Antes da beira da praia, tem

uma avenida e uma orla, onde as pessoas geralmente

se exercitam. E quanto mais se adentra as pontes

de madeira para o mar, mais escuro fica. E só se

vê o mar pela espuma branca. Eu pisei na areia e

me escondi de quem pudesse ir para lá. A restinga,

composta de cactos, de guriris (coqueiros pequenos)

e diversas outras espécies nativas, me protegia.

Enquanto eu olhava o mar, eu tinha medo e apreço.

Medo, porque sempre sonhei em estar na praia e

a maré, tão alta, me puxa e não me deixa sair da

praia. Enquanto a coluna de areia à minha frente

desmorona quando passo os meus dedos nela para

me agarrar. E eu nunca consigo sair de lá. E apreço,

porque, enquanto a maioria associa viagem a um

avião ou carro, eu penso em um navio. É a forma

mais simples de se viajar a outros continentes. A

mais primitiva. O mar nos conecta. É nossa primeira

forma de conexão. A mesma água salgada que

eu toco é a que alguém em Singapura toca. Mesmo

tão distantes, nos encostamos e nos conhecemos.

Sabe aquele barulho de mar? As ondas quebrando

e pouco a pouco se tranquilizando na beira da

praia. Indo e voltando. Enquanto chove, eu choro.

O mundo para. A noite cai. E as ondas quebram.

O vento gela meu corpo e eu tenho medo da tempestade.

Luzes, bem ao longe, indicam raios. Mas

não se ouve seu barulho. Você sente que não cabe

naquele lugar. Que tem de sair dali. Será que o mar

pode me levar? Se eu pegar um barco, eu consigo

fugir? Para onde eu vou? Como saio daqui? Será

40

que me entrego? Eu vou desaparecer se eu entrar

no mar. As ondas vão me levar. Se eu sair daqui,

será que chegarei a algum lugar? Eu não sei. Se eu

te chamar, você vem? Não. Nenhuma mensagem

ou chat em meu telefone vale a pena meu tempo

agora. A ansiedade em mim me faz imaginar meu

corpo ser engolido por diversas ondas e afundar.

Me faz ir de viagens de avião a conhecer pessoas,

a me machucar, a sofrer por não viver, por querer

viver e não saber como. A fala atropelada. É mais

comum do que se pensa. Mas eles não parecem entender

que eu tenho tanta raiva dentro de mim que

poderia explodir a qualquer momento. Eu quero

te machucar. Eu posso te machucar. SAI. Para. O

tempo não para. O mundo deveria parar. Para de

produzir, para de querer agradar. Para de escrever,

de querer fazer. Para de pensar. Eu não consigo. A

chuva cai. Ela me molha. E eu gosto. É aqui meu

lugar. Quieta, no escuro. No molhado. Onde ninguém

fica. Onde ninguém quer ficar. Deixe estar.

Deixe se envolver até implorar para ir embora. Eu

não sei se sou suficiente para eles, para você. Eu

sempre extrapolo. Eu sou fora do normal. Eu não

quero ser normal, eu quero ser algo que ninguém

é. Eu quero crescer, eu quero que vejam tudo o

que há em mim. Olhem como eu desenho, olhem

como eu falo inglês, espanhol, francês e mandarim.

Olhem para mim. Meu escritório. Minha casa.

Minhas viagens. Olhem. Prêmios. Dinheiro. Reconhecimento.

A melhor. Eu só serei alguém digno de

amor se eu conquistar algo. Até lá, eu vou recusar

seus carinhos, eu vou recusar ficar bem. Eu vou me

punir. Eu preciso sofrer para crescer. Como? Como

vou conquistar tudo? Como vou conquistar o mundo?

Quantas páginas preciso ler, quantas provas?

Quanto sacrifício? Quanto suplício? Para eu dar

orgulho, para eu merecer. Para lembrarem de mim

e me citarem como David. Para ter certeza de que

falarão de mim mesmo depois da minha partida.

Olha como a ansiedade é. Ela corrói. Ela destrói.

Ela me quebra, me dilacera e me dá energia para

me reconstruir do chão e me refazer maior, até cair

um raio e desmoronar o castelo. Como se não fos-


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

CLARA

GERHARDT DAVID

São Mateus - ES

ANSIEDADE

se nada. Apenas um milissegundo de uma energia

intensa que rompe minhas paredes. E, de repente,

tudo que eu fiz, todo o esforço para me manter bem

e prosseguir, tudo... Acabou. Mas ela não para. Ela

faz eu pensar em me apaixonar por alguém assim

que o primeiro ei vem. E estraga tudo por avançar

demais. Ela me faz sofrer pelo dito e pelo não

dito. Ela me deixa só. Ela me faz querer estar só,

porque eu sou ruim, eu incomodo. Olha como eles

me olham. Eles não gostam de mim. Será que eles

gostam? Ela me mantém viva. Ela me faz querer

morrer para parar. Até em meus sonhos, o mar me

agarra e não me deixa fugir. De quê? De mim. De

pensar, sem parar.

PULA PARA OUTRA CENA. Enquanto todos esses

pensamentos eram descritos, eu andava embora

para casa, porque é muito perigoso ficar na rua a

essa hora. Mas ninguém está na rua com esse tempo.

Então eu ando e pulo as poças. Eu chego em

casa. Vou ao meu quarto. Eu quero beber. Para me

sentir melhor. Eu me entendo melhor quando estou

anestesiada. Diferencio o certo do errado e escolho

o errado porque eu mereço o pior. Eu bebo até

dormir. Falo umas besteiras aqui e ali. Eu durmo.

Eu acordo. Tarde. Desregulado o sono. Eu durmo

tarde. Eu vivo à noite. Eu penso. Noite. Dia. Tempo.

Horas. Tic. Tac. Invenção humana? Registro.

Memória. Apago. Deletar. Pensar. Será? Deixe estar.

Deixe ser. Deixe-me ser. O quê? Não sei. Quem

sou eu? Eu realmente não sei. Eu apenas invento

historinhas que querem ouvir sobre mim para mostrar

como sou apta para aquela oportunidade. Eu

me inventei. Então eu posso ser o que eu quiser. E o

que eu quero ser? Não de profissão... Quero dizer,

como eu quero ser? Um rock ou uma mpb? Um

kpop ou um maculelê? Um violino ou um ukulelê?

Moderno, boho chic, diyzado, estilizado, paleta de

beges, marrons, verdes, vinhos, azuis e preto. Sacada

para a praia. Cortinas leves. Cidade. Carro.

Sofá. Eu sou o que eu tenho. Eu sou o que eu penso.

Eu sou capitalismo, exagerado, jogado aos teus

pés, com uma oferta irrecusável (que realmente não

se recusa – ou você trabalha, ou morre de fome). Eu

41

sou ecossocialismo, empático, renovável, envolvente

(até porque não se pode escapar dele, se não, o

mundo acaba e a gente acaba). Eu sou o mundo. Eu

sou China, Brasil, América Latina. Nosotros somos

la guerra, el escudo y la espada esperando matar

alguién a instancias de algo, para lograrmos éxito

en la vida. E só.

pedras, peixe-estranho como os que ganho. Vejo

mais. Murmurinhos sobre a diferença entre nós.

Em todo monte há tormenta. Nele veja se lamentas.

Veja seu pequeno mundo que te toca, o quanto ele

tem. Quantas pedras, coisas, emaranhado de travessos,

rebuliços, novos começos. Seguem tocadas

pelo oceano também? Superfícies transformadas,

desvaraidas, tresloucadas. Banhadas noite e dia pelas

águas atroz.

São pedras todas juntas na beira do cais. A saudade

aparta as ondas do pensamento. Entre elas um

vermelho invulgar, tão iguais aos seus olhos. Um

reflexo caótico de cores, tamanhos, pedras negras,

não pedras, peixe-estranho. Vejo mais. Em todo

monte lamentas. Quantas coisas seguem tocadas

pelo oceano. Superfícies transformadas. Voo pássaro

banhado noite e dia pelas águas atroz.

São pedras todas juntas na beira cais. Todos os

dias, são iguais aos seus olhos. Mas nelas vejo cores,

tamanhos, não pedras, peixe estranho. Vejo

mais, para além dos dias. Lembra do seu pequeno

mundo te toca? Que segue tocado pelo oceano.

Suas superfícies transformadas. Banhadas noite e

dia pelas águas que te traz.

São pedras todas juntas na beira cais. São iguais

aos seus olhos. Nelas vejo cores, tamanhos, não-

-pedras, peixe estranho. Vejo mais. Seguem tocadas

pelo oceano. Suas superfícies transformadas. Banhadas

noite e dia pelas águas que te traz.

São pedras todas juntas na beira cais. São iguais

aos seus olhos. Seguem tocadas pelo oceano. Banhadas

noite e dia pelas águas que te traz.

São pedras todas juntas na beira cais. Banhadas

noite e dia pelas águas que te traz.

São pedras todas juntas na beira do cais.


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

CLARICE DE

ASSIS ROSA

Ituiutaba-MG

Professora de Língua

Portuguesa na Rede

Pública Estadual, em

Ituiutaba, MG, sua

cidade natal. Tem diversos

contos e crônicas em Antologias

digitais, e terá publicado

o primeiro livro de Contos.

ENCONTRO CONTURBADO

A

história dos dois mais se parecia com

alucinação, assim Magda enxergava,

desde o início, no entanto, gostava dos

prazeres sentidos em seus devaneios.

O encontro de Magda e Pedro aconteceu por mera

casualidade. Certo dia, ele estava na cidade em que

ela morava e, graças a um aplicativo de encontro,

que ambos utilizavam, puderam conhecer-se.

Magda não tinha o hábito de utilizar esses aplicativos

modernos, até porque a cidade em que

morava era muito pequena e corria-se o risco, facilmente,

de encontrar pessoas de seu convívio. A

intenção era conhecer pessoas nunca vistas, que

talvez pudessem instigar sua curiosidade e interesse

e, devido a essa falta de prática, quando percebeu

que a ocasião era propícia, hesitou, mas permitiu-se

deixar levar pelo acaso.

Pedro já tinha o hábito de utilizar aplicativos de

encontros, viajava muito e gostava de conhecer

pessoas por onde passava, não por libertinagem

ou desejo de iludir mulheres, mas sim por carência.

Apesar de ter vários encontros, sentia-se só, como

se tivesse receio de manter um relacionamento.

Nada fazia para mudar a situação, uma vez que

não conseguia compreender exatamente o que desejava.

Ora se sentia triste por estar sozinho, não

ter alguém com quem dividir suas experiências,

sonhos e conquistas, ora se sentia aliviado, por

não ter que explicar determinadas atitudes, nem

ter que compartilhar pensamentos e sentimentos.

Depois do impacto inicial, associado à timidez e

medo, Magda conseguiu relaxar e curtir a nova

experiência. Pedro era, sem esforço algum, carismático,

não foi difícil sentir-se à vontade em sua

presença. Ele soube conduzir a situação de tal

forma que foi muito além de um simples encontro,

ela teve a sensação de que o conhecia há anos.

Pedro não a tratou como se fosse mais uma, entre

as muitas que se encontrava, envolveu-a com

cuidado e, assim, toda a tensão foi dissipando-se.

Estavam bebendo, logo, qualquer percepção poderia

não ser real, mas ela conhecia sua capacidade

de análise. Ele cantava e tocava, lindamente,

e ela aproveitava para observá-lo; o sorriso era

extremamente atraente, o olhar um pouco triste,

as vezes parecia contrastar-se com as risadas emitidas.

Em momento algum, ela percebeu tensão.

Era um homem seguro de si e gentil demais para

simplesmente concluir o objetivo do encontro sem

uma prévia cautela.

Ambos sabiam o que queriam naquele momento,

porém, enquanto ela procurava embebedar-se

com rapidez para que conseguisse deixar fluir com

naturalidade, ele simplesmente se manteve alheio,

conhecedor do seu potencial e do seu encanto.

Por muito tempo ela o observou, admirada e estática,

sem saber o que pensar diante de tamanha

delicadeza e cuidado. As suas reflexões, em várias

ocasiões, eram negativas a respeito de si mesma,

indagando-se o que ele poderia estar pensando

pelo fato de ela estar ali, alimentando a cultura

de que ao homem é permitido determinadas atitudes,

mas às mulheres não, pois poderiam passar a

ideia de serem depravadas. Percebeu que ele não

demonstrava qualquer vestígio de julgamento e

tranquilizou-se.

Aos poucos, Magda foi ficando alterada, um pouco

em consequência do álcool e muito mais pelo

efeito inebriante da voz suave e, ao mesmo tempo,

potente, que difundia pelo ambiente.

Em pouco tempo estavam beijando-se e logo em

seguida concretizaram algo que, na verdade, era

o propósito do encontro, todavia, poderia não

ter dado certo se ele não tivesse tido o cuidado

de conduzir a situação da melhor forma possível,

desde o início.

Já em casa, absorta em seus pensamentos, buscava

esquecer o ocorrido. Talvez se não tivesse sido

muito agradável, ela procuraria lembrar-se, como

uma forma de aprendizado, no entanto, por ter

42


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

CLARICE DE

ASSIS ROSA

Ituiutaba-MG

ENCONTRO CONTURBADO

sido surpreendente, suas tentativas foram frustradas,

quanto mais tentava esquecer, mais era tomada,

subitamente, por lembranças detalhadas.

Continuaram conversando nos dias seguintes, perceberam

que tinham muitas coisas em comum e

isso favoreceu uma nova amizade.

A princípio, algumas situações pareciam diferentes,

até mesmo estranhas, para Magda. Em determinadas

situações, ele dizia algumas palavras em

tom áspero, pelo menos era o que poderia ser interpretado,

naquele momento, considerando que

o diálogo acontecia por meio de mensagens. Levava

algum tempo para assimilar, pois as circunstâncias

lhe eram atípicas. Sem que percebesse o

motivo, Pedro já a definia como agressiva, grossa

e sumia por algumas horas.

Ela nunca foi boa com reações súbitas, não sabia

lidar com imprevistos, pensava que poderia ofender

as pessoas se agisse com impulsividade, mas

tinha consciência de que nada fizera para ser considerada

como sendo uma pessoa agressiva. Não

naquela ocasião.

Voltavam sempre a conversar, apesar dos desentendimentos,

como se as discórdias jamais tivessem

existido, e talvez realmente não existiram. A

constância tornou-se incômoda, fugindo dos planos

que Magda tinha traçado para si ao buscar

encontros em aplicativos. Não gostava de lembrar

dele, perturbava lhe a sensação de estar sentindo

ainda o seu toque, suas carícias, lembrar da sua

voz, do seu olhar, do seu corpo. Sabia que não

podia imaginá-lo, além de um amigo, entendendo

que o que ocorreu anteriormente fora apenas um

encontro irrelevante. Sabia, mas não se convencia

disso.

Tampouco a amizade era para ter acontecido, uma

vez que, inevitavelmente, Magda buscava suas

redes sociais, relia suas mensagens, procurando

vestígio de algo que pudesse ser um motivo para

que ela conseguisse desprender-se. Ao fazer isso,

percebeu que ele fazia exatamente o mesmo, que

para ele era comum ter encontros e depois causar

situações que o permitisse padronizar essas mulheres,

mesmo que a partir de uma concepção que

poderia não ser verdadeira e, assim, afastar-se. Ela

procurava sentir raiva, buscava traços de personalidade

que pudessem facilitar seu esquecimento.

Não houve.

Não conseguia encontrar defeitos nele, apenas admirava-o

cada dia mais e sofria por ver a destreza

com que ele lidava com a situação de forma segura

e experiente. Observava-o, estudava-o, da forma

que a tecnologia permitia. Repelia a ideia de ser

invasiva, acreditando que essa era uma linha tênue

para a obstinação, no entanto, parecia assim

encontrar-se ao ultrapassar seus próprios limites

para invadir, não o espaço, mas a intimidade do

outro. Sofria calada, ciente de que não tinha o direito

de cobrar explicações.

Sentia-se sempre inferior, desde muito nova. Convivera

com agressões, abusos de pessoas muito

próximas que a fizeram acreditar que era merecedora

de tais situações. Com ele não fora diferente,

talvez tenha sido mais intenso, à medida em que

ela encontrava, em suas redes sociais, as mulheres

que ele se relacionava, com alto padrão de beleza

e cultura e à medida em que ela passou a idealizá-

-lo como um ser dotado de inúmeras virtudes, um

pouco enigmático, confuso, às vezes, mas repleto

de ações e características sublimes que o asseguravam

superioridade moral.

Enquanto Magda vivia um turbilhão de emoções,

foi chegando o dia em que Pedro terminaria a sua

estadia na cidade. Encontraram-se mais uma vez

e, no outro dia, Pedro partiu para o seu destino,

tão tranquilo, como o dia em que chegou.

Magda, após longos anos, até hoje ainda é vista,

constantemente, pelos arredores do hotel em que

Pedro ficava, algumas vezes sentada na calçada,

esperando-o chegar, outros vezes cantarolando

trechos de músicas que ele gostava de cantar para

ela.

43


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

CLEBER PROFETA

São Paulo - SP

IMPRESSÕES DO COTIDIANO

O movimento da rua segue o molejo desengonçado da menina

Vejo as casas empilhadas no morro sinuoso

Devagar, meu olhar analítico observa o senhor vigiando a mesma rua

O garoto vai atrás da pipa caindo vagarosamente, perto do campo de futebol.

Enquanto volto para casa, sigo o morro sinuoso

Crianças vigiam a pipa atrás do campo de futebol

As casas desengonçadas observam o molejo da menina

Meu olhar analítico vagarosamente cai no movimento da rua.

Tem crônicas e poesias

postadas no

Recanto das Letras,

poesia publicada na

Revista Capivara e LetraLivre,

crônicas publicadas no Jornal

Expresso - Camboriú- SC e poesias

em www.autores.com.br.

44


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

DARLENE HONÓRIO

MEDEIROS

Santiago - RS

Professora de História,

capoeira e violão,

especialista em

musicalização infantil,

artesã e apaixonada

por livros. Escreve poesias e

textos desde a infância.

www.instagram.com/darlaa_medeiros

SOBRE O QUE DEVEMOS NOS PERMITIR

Atesto, sem maiores ressalvas, que

amor em caminho inverso, ao invés

de amor in-verso, pode ser

amor real. Amarguras lapidam

seres cansados que se encontram em corpos

e almas magoadas, machucadas, desacreditadas.

Pouco esperam um do outro, mas com

que confiança o fazem. As noites vão tomando

natureza de inverno, mesmo não tendo o

outono fugido de suas mãos. Há dias em que

a chuva ligeira e gelada dá o ar de sua graça,

enquanto as respirações multiplicam o vapor

para dentro dos corpos, das almas e dos espelhos

em que o medo se reflete. Parece que

é tarde, mas é sempre cedo. O tempo escorre

apressado quan-do os abraços aquecem a pele

e confortam a alma disfarçadamente camuflados

de diversão. Não sabem ambos... Não

sabe ele, mal sabe ela. O amor em caminho

inverso é o mais perigoso. Nenhum dos dois

ama até ter perdido. Nenhum dos dois perde

até acostumar-se a não dar valor. Nenhum

dos dois quer usar palavras que interrompam

ciclos de movimento e iniciem ciclos de sentimento.

Nenhum dos dois percebe. Os dias

seguem sua conveniência. Eles falam sobre

qualquer tolice, assuntos densos, piadas, promessas

caladas, carícias ver-bais. Encontram-

-se diariamente mesmo não tocando com a

ponta dos dedos a face do outro. Não percebem

que quando começam a ter sonhos é

porque algo já não está como estava antes.

Eles não comem juntos, não ocupam sofás,

não vão ao cinema, não tem amigos em comum,

não dançam juntos. Eles apenas fogem

quando todos dormem, abraçam seus corpos

com urgência, conversam com certa cautela

e fazem perguntas com medo de ser invasivos.

Eles se parecem mais do que conseguem

admitir... Têm mais medo de amar do que

conse-guem esconder um do outro. Eles estão

brincando de amar ao contrário, enquanto

o outono não os faz amar lentamente, adormecer

um ao lado do outro, contar piadas e

comer batatas fritas, assistir filmes cujo final

passará sem que o conheçam... O começo foi

um engano ao contrário. Um aceitou o outro

pela nomenclatura, muito mais do que pela

segurança. As primeiras palavras foram a

porta aberta. Ambos sentiam uma necessidade.

Seja ela qual for ainda não conseguiram

catalogá-la. Eles se perdem e se encontram

todos os dias. Palavras não podem sanar tudo

aquilo que eles precisam para ser melhores.

Ainda sentem falta do aconchego da tarde de

domingo e corpos em posição fetal adormecidos,

um a proteger o outro enquanto a chuva

fina cai. Eles estão aprendendo a pisar nos caminhos

que levarão um ao outro. Demorarão

para admitir que podem estar se entregando

sem perceber. Mas ao fim dos dias se seguindo

e das palavras se acolhendo e dos corpos se

abraçando, perceberão... Amor que começa

ao contrário, não termina... Renova as palavras,

as frases, os dias, as necessidades... Dá a

mão ao que é novo e tem segurança... Mesmo

quando é veloz tende a trazer tranquilidade e

quando passa das portas pra dentro e enxerga

as paredes brancas tatuadas pela história de

cada um, aprende a decifrar as paixões mais

secretas, a aliviar as dores mais agudas e a

desprezar os minutos de ausência.

45


CORPOS CELESTES

ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

DIANA MAGALHÃES

Bacharel em Cinema

e Graduanda em

Artes Visuais. Tem

experiência em diferentes

áreas do audiovisual,

escreve, é atriz, arte educadora

e apaixonada por

experimentações artísticas

de maneira geral.

Autoras

Diana Magalhães

Camilla Lima

Modelo

Liana Monteiro

46


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

EDGAR BORGES

Boa Vista – RR

FOTOPOEMA

Edgar Borges é escritor

e jornalista.

Lançou 2 livros de

microcontos e tem

textos de prosa e poesia em

publicações impressas e eletrônicas.

Articula o grupo

de autores roraimenses Coletivo

Caimbé.

47


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

EDUARDO RAMOS

Rio de Janeiro - RJ

Servidor da Justiça Federal

no Rio, descobriu

a poesia nas redes

sociais depois dos

50 anos, arte e linguagem pelas

quais se apaixonou e passou

a estudar, ler, pesquisar e

escrever há dez anos.

DOS DESABADOS QUE CHORAM

vi os homens nas ruas, sorrindo

e pareciam tão francos

aqueles sorrisos!...

eles,

tão felizes!

eu, chorando de dor

por mim e por eles

eu, no meio dos que sorriam,

queria urrar,

tamanha dor!

encontrei então, afastados, os que choravam

seus desesperos cruciais,

suas lacunas,

suas derrotas

e eram poucos, estes,

os homens que choram

e me sentei entre eles

e me senti homem

e me senti humano

entre os desesperados

entre os que choram

por suas verdades desabadas.....

48


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

1x1

ESCOBAR FRANELAS

São Paulo - SP

o mesmo sol brilha

o mesmo céu paira

a mesma chuva molha

o mesmo verme come

o joio e o trigo

Escobar Franelas é escritor,

historiador e cineasta.

Paulistano de Itaquera,

é co-gestor dos

coletivos A Casa Amarela - Espaço

Cultural, Lentes Periféricas e

Curta Suzano.

49


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

EVA VILMA

Campo Grande - MS

Eva Vilma é escritora,

mãe, capoeirista

e educadora. Autora

e coautora de

livros infantis e de poesia,

busca na palavra escrita, outros

mundos possíveis.

DEZESSETE, COMO NO FILME

“Saudade é um pedaço de pensamento

que a gente decora com lembranças.

Outdoor de sinestesia.”

Escrevi este poemeto em novembro de

2016 querendo dar vazão a alguma

saudade que apertava o peito.

Hoje, acordei pensando que saudade

é uma caixa mágica guardadora das preciosidades

daquilo, daquela, daquele que não está

perto dos olhos da gente, e no entanto, nunca

sai do coração.

Ele tinha dezessete anos, como Héctor, do filme

Dezessete da Netflix.

Vivia em estado permanente de revolta.

Transbordava carências. Trazia as mãos em

concha, derramando sentimento bom, dando

de beber às securas no deserto de sua caminhada.

Ia flores/sendo em vida.

Wallace… Boca minha dizia seu nome como

fosse um grande herói de filme épico. Era herói

da vida real.

“Era assim todo

dia de tarde / a

descoberta da

amizade…”

Tinha dezessete

anos, como Héctor

do filme Dezessete.

Eu, professora,

vinte e

dois. Descobrindo

a não existência

da docência

sem discência.

Aprendendo que

meu trabalho de

professora, não

era meu trabalho

de professora comigo mesma, mas de professora

com minhas/meus alunas/alunos. Bebendo

inesgotável das fontes de Paulo Freire.

Era assim toda quinta de tarde. Os processos

da cena. O conhecimento do corpo. O movimento.

Expressão. Experiências de vida em

cena. O laço estreitado. O respeito mútuo. A

amizade. O cuidado. O olhar.

Tinha dezessete anos, como Héctor, do filme.

E como Héctor era impulsivo. E como Héctor,

era interrogado por policiais. E como

Héctor, tinha dores desolhadas e deslizes evidenciados.

E como Héctor amava uma mulher,

de um amor transbordante. Não a avó,

como Héctor, mas a mãe. E neste amor todo

confuso, às vezes a odiava, quando pensava

que sabia o que era melhor para ela e as coisas

não saiam do seu jeito. E às vezes a odiava

por não saber onde estava o seu pai. Odiava,

porque a amava demais para vê-la assim se

virando sozinha com o filho.

Tinha dezessete anos e teve uma amiga de

50


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

EVA VILMA

Campo Grande - MS

DEZESSETE, COMO NO FILME

quatro patas, como Héctor. Diana, vira latinha,

mistura da minha poodle e algum cão

andejo das ruas. Tinha dezessete anos e, como

Héctor, perdeu sua amiga. Uma desavença e a

vingança numa bola de carne envenenada atirada

para seu quintal. Dezessete anos e chorou

como uma criança no portão da minha

casa. Nas mãos, um canivete.

— Eu vou matar, professora! Vou matar

quem fez isso.

Eu, professora, vinte e dois, na busca por entender

cadê sentido nas orientações de não

me envolver demais com as alunas e alunos

do projeto para além do espaço e do tempo

das aulas. Eu professora, vinte e dois anos,

abraçando forte e acolhendo aquele meninão

comprido, magro e molhado, suor e lágrimas.

“Era assim todo dia de tarde / a descoberta da

amizade…”

Eu professora, vinte e três anos, bebê na barriga,

risco de perda, proibida de pedalar. Ele,

quase dezoito, sua bike potente de garupeira,

e a carona fiel para o projeto.

Sexta-feira, dezembro de 2008, ele, quase dezoito,

um encontro no ginásio de esportes, o

abraço e as palavras trocadas:

— Que barrigão, professora!

Entre as novidades guardadas de três ou quatro

semanas longe:

— Eu tô mudando, professora. Parei de beber.

Parei com as brigas. Tô arrumando um

trampo. Vou começar a trabalhar. Cê ainda

vai ouvir falar muito de mim. Cê vai ver. Eu

tô numa fase muito boa.

Sexta-feira, dezembro de 2008, eu professora,

vinte e três anos, bebê na barriga, caminho

feliz para casa. Wallace está bem. Tomando

jeito na vida!

Sexta-feira, dezembro de 2008, ele, Héctor da

vida real, caminha de volta pra casa.

Muda sua rota e acompanha a garota que se

diz insegura para voltar sozinha.

Sexta-feira, dezembro de 2008, eu professora,

vinte e três anos, durmo tranquila, sem hora

para levantar.

Sexta-feira, dezembro de 2008, ele, Héctor da

vida real, não chega em casa.

Cilada de treta entre turmas!

O tiro da espingarda calibre 22 vai encontrar

seu umbigo enquanto pula muros tentando

fugir da emboscada.

Sábado, dezembro de 2008, eu professora,

vinte e três anos, aprendo uma dor que é nova

e o gosto amargo-fel sem descrição, de olhar

o ente querido na caixa que guarda corpos.

Camisa engomadinha, talvez nunca usada.

Terço entre as mãos. Sabia rezar? Só o boné

de aba reta honrando sua identidade.

“É tão estranho / os bons morrem jovens

[...]

Vai com os anjos / vai em paz.”

Saudade é uma caixa mágica guardadora de

preciosidades. Héctor do filme foi abrir minha

caixa lá dentrinho deste coração.

Chorei com o cheiro e as cores das preciosidades

dessa relação professora e aluno. Ou

professor e aluna?

Chorei com as preciosidades habitadas naquele

menino.

Chorei porque queria que o mundo todo tivesse

visto, como eu vi.

“Não é sempre mas eu sei / que você está bem

agora.

Até a próxima vez.”

Para Wallace, in memoriam.

51


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ÉVERLAN STUTZ

Belo Horizonte - MG

BATATAS

década por década é esperada a decadência

a flacidez da carne

a pele seca

década por década nos convertemos

em pequenas partículas de nada

década por década desaprendemos a amar

um retrocesso de quem pensa que vence

e perde

e se perde entre a poeira e as estrelas...

Éverlan Stutz é jornalista,

bacharel em

artes cênicas. Foi

um dos vencedores

do Quinto Concurso Literário

das Farmácias Pague

Menos, com o poema in(versão).

52


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FARLLEY DERZE

Brasília - DF

SILÊNCIOS

Eu tinha uma fogueira de

sentimentos. Hoje carrego

uma vela. Se o destino

nos deu uma xícara de chá,

guardo a fumaça da tua voz. Eu tenho

insônias de propósito. Te amo contra

tua vontade. Teu beijo invadiu meu

futuro. Abro minhas gavetas para

sentir o ar da tua varanda. Fecho os

olhos. Enxergo tudo que quero. Fiz

53

uma música pra você. Quisera herdar

o teu sorriso. Ver-te através de uma

taça. Merecer aquela embriaguez.

Quando o céu fica escuro, escuto o

trinco da tua porta. Minha esperança

é um milagre desperdiçado. Ouço o

que o passado consegue me dizer. Envelheço

junto com os teus silêncios.


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FELIPE CHAGAS

LUTO PELOS VIVOS

Nascido em São Bernardo

do Campo, começou a estudar

violão aos 13 anos

de idade. Em seguida estudou

também violão erudito e guitarra,

se dedicando principalmente ao estudo

do blues. Também nesse período estudou

canto.

Aos 18 anos de idade começou a dar

aulas em um Conservatório e não parou

mais. Membro da banda Jazzmin

Blues Band, que já foi finalista em diversos

festivais e tem como objetivo

fazer novas leituras de grandes nomes

do blues.

Também faz parte da Rockin’1000,

um projeto internacional, onde são selecionados

músicos de mundo inteiro

para formar, a chamada ‘maior banda

de todas’ em número de integrantes.

No fim de 2018, lançou em todas as

plataformas digitais o álbum ‘Selva

Oscura: O Inferno De Dante’, baseado

na primeira parte da Divina Comédia

de Dante Alighieri, composto em parceria

com Douglas Sousa.

Em 2019 lançou o videoclipe de O Passado,

pela Prefeitura de São Bernardo

do Campo.

Participou de bandas de jazz, como a

ObamaSoul que teve como objetivo

dar uma linguagem jazzística de clássicos

de nossa música. Também participou

da Triton, um trio de jazz contemporâneo.

Em 2020, participou de projetos como

a Virtual Guitar Orchestra, que reúne

músicos do mundo inteiro e também

da Rockin' 1000, que rendeu uma

participação no Guinness Book of Records.

Em 2017 lançou um EP, onde tocou

todos os instrumentos, disponível em

todas as plataformas digitais, como

Spotify, AppleMusic, Google Play, entre

outros. O EP chegou em 1º lugar

pelo site Number One Music (N1M),

onde ficou por mais de 10 semanas entre

os mais ouvidos em jazz pelo site.

Em 2021 lançou o single autoral Luto

Pelos Vivos, produzido de forma independente,

em todas as plataformas

digitais.

Link para o single Luto Pelos Vivos:

https://ps.onerpm.com/4990136301

54


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FERNANDO PORTELA

Brasília - DF

PETRICOR

De tanto negligenciar

meus passos

minhas unhas

aram a terra

Prendo o cheiro

que se levanta

no peito-betoneira

de esperança e asco

O tempo nem sabe que veio

ele é ao ser

e demora ao se livrar

dessa mistura em mim

Mistura que extravasa:

furacão devasta

querendo abraçar

Fernando Portela é

publicitário, roteirista,

poeta e professor

universitário. Brasiliense,

explora os limites da

literatura, música e artes visuais.

Também é explorado

por eles.

55


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FLÁVIA REDMAN

Manaus - Amazonas

Flávia Redman de

Assis mora em Manaus.

Escreve textos

em diversos estilos

desde diários até poemas e

contos.

Os principais temas são a

melancolia, tristeza, decepção

e amor não correspondido.

O HOMEM VERMELHO

Vermelho de sangue

Vermelho de dor

Vermelho de vergonha

Vermelho de amor

O Homem Vermelho não pode falar

O Homem Vermelho não pode amar

O Homem Vermelho está em pedaços

O Homem Vermelho não é feliz

O Homem é vermelho

Vermelho cor do barro

É vermelho, vermelho

É da cor de grandes lábios

Esse Homem é vacilante

Ele ama sem recíproca

O Homem Vermelho não chora

Mas ora, veja, como ele se excita!

O Homem Vermelho é da cor do pecado

Tem em sua pele a maldade e a vingança

O Homem Vermelho tem a cor da paixão

O Homem Vermelho não tem esperança

O Homem Vermelho está entregue à loucura

Ele não sabe qual é o caminho certo

Então ele segue qualquer rumo

Um aconchego, um abraco, o Homem Vermelho não tem

Qualquer coisa serve para o Homem Vermelho

Ele não tem casa, não tem lar

O Homem Vermelho vive a vagar

Pelas estradas, pelas vielas, trilhas ou cavernas

O Homem cor de sangue

O Homem cor de barro

O Homem vermelho de vergonha

O Homem só quer ser amado

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FRAN PIGOSSO

Farroupilha – RS

Fran Pigosso é natural

de Farroupilha,

RS. Professora de

Língua Portuguesa e

escritora, em especial de contos

e minicontos. Também é

colaboradora de uma web

rádio com contos de terror.

@contos_e_contrapontos

ÓBVIO

- Como o ônibus está demorando para chegar…

- Que horas são?

- Deixe me ver…

Coloco a mão em meu bolso, tento pegar o

celular para ver a hora. Meu bolso é apertado

como o que sinto em meu coração neste momento.

Imerjo a mão no jeans da mesma forma

que, em pensamentos, invado a pele escondida

pela camiseta de botões, branca, de Lavínia

depois do expediente. E em minhas ilusões ela

sorri enquanto me enfeitiça com seus olhos.

Mas está difícil puxar meu eletrônico dentro o

tecido. No fundo não quero ver que está perto

da hora de chegar o ônibus. Não era para ser

assim.

- Mandou fazer o celular?

- Já vai. Que horas que o ônibus parte?

- Dezoito e dez.

...

Oito e dez, segunda-feira. Feriado. O Rio de

Janeiro inteiro comemorando o Carnaval e nós

dois, os escravos da vez, escolhidos para recebermos

reclamações das Rações Vitt. Porra, reclamamos

do trabalho o dia inteiro, mesclando

as queixas com comentários carnavalescos.

- Dérick, sabia que eu torço pra Beija-Flor?

Em silêncio grito que ela é delicada e linda

como um pequeno beija-flor. Ah se soubesse

como amo seus cabelos ruivos crespos, na altura

dos ombros. Ela tem um sorriso iluminado

e vulgar, ressaltado pelo batom marrom. Eu a

vejo andando pelo corredor da empresa, admiro

Lavínia sentando ao meu lado e colocando

sua maçã delicadamente ao lado da tela do

computador. Ela coloca seus fones e aproxima

o pequeno microfone de sua boca. Vejo a nós

dois, abraçados, nus, imergindo e voltando na

praia do Flamengo. Afundamos unidos pelos

lábios, salgando nossa saliva. Emergimos buscando

o mesmo oxigênio. O céu está escuro,

chove, ninguém nos vê.

- Dérick, hello? Você torce pra quem?

- Salgueiro.

Salgueiro, a árvore símbolo da imortalidade na

China, mas acho que não faz flor pra você, meu

beija-flor, sugar. Ah como ela me suga a cada

olhar.

- Ninguém liga pra reclamar de rações numa

segunda de Carnaval. Que empreguinho de

merda temos - disse Lavínia, realmente irritada.

- Melhor que nada.

- Sabe, acho que deveríamos montar nosso próprio

negócio, o que você gosta de fazer?

- Cozinhar. Me amarro em cozinhar.

- Hum, não conhecia esse seu dom. Eu também

gosto de cozinhar, mas sou péssima com sobremesas.

Quem sabe termos um foodtruck de cachorro-quente?

Deve ser fácil.

- Deve ser. Vamos conversando sobre isso.

Continuamos falando sobre diferentes opções

de cachorros-quentes, molhos, acompanhamentos,

condimentos até o final do expediente.

Rimos muito. Temos o mesmo canino torto do

lado esquerdo, e eu acho isso muito real.

Às dezessete e trinta nosso chefe chegou para

saber como foi o dia, bêbado, acompanhado

por uma moça que ficou no corredor vomitando

junto ao capacho na entrada. Mal Lavínia

começou a falar, ele gritou “tá bom, saiam pra

eu trancar essa senzala”.

Descemos as escadas, três lances, sem sabermos

o que falar, mas na calçada trocamos adjetivos

como “bizarro, ridículo, loucura, sem noção”

em diante.

Naquele dia esperei ela pegar o ônibus para

casa. Ele chegou, mas a gente não embarcou.

Fomos ver o pôr do sol na praia do Flamengo,

próxima ao escritório.

Sentado na areia, vimos todas as pessoas ao

nosso redor no ritmo da festa. Turistas lotavam

57


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FRAN PIGOSSO

Farroupilha – RS

ÓBVIO

a areia, mas conseguimos um pequeno lugar

para sentarmos. Eu, em pensamento, mergulhava

com ela no mar a minha frente. Ela se

molhava e suas roupas ficavam transparentes.

E nos agarrávamos. Eu podia sentir a pressão

de cada dedo dela nas minhas costas.

- Por que o que é óbvio não é fácil de ser dito?

- Lavínia, acho que temos medo que aquilo que

pareça óbvio pra nós seja um enigma para o

outro.

- Dérick, eu gosto de enigmas.

- É.

Um vendedor passa por nós oferecendo água,

cerveja ou guaraná. Compramos duas cervejas

e conversamos, embriagando-nos da presença

um do outro.

- Um foodtruck, Dérick. E nunca mais teremos

que atender a reclamações sobre ração de cachorro.

- E nem aturar um chefe bêbado gritando conosco.

Rimos. Nos olhamos. Ela larga o ar bem devagar

e fecha os olhos, depois volta sua cabeça

para o oceano e contempla. Eu a contemplo e

também volto meu olhar para o oceano. Para

nós no oceano.

- Sabe, Lavínia, sempre quis ter uma namorada

que topasse protagonizar cenas de amor no

mar.

- Hum, depravado. Eu já fiz isso.

Um silêncio momentâneo senta-se entre nós.

- Somos seres óbvios demais, Dérick. Nos conhecemos

e sabemos tanto sobre o outro, mas

não conseguimos nos mostrar plenamente. Metade

de nós permanecerá sempre presa dentro

da gente. E sabe o que nos mantém encarcerados

na gente mesmo? Medo e os outros. Não

somos quem realmente somos porque a cela é

feita de bocas e olhos dos outros.

- Você é muito inteligente, Lavínia.

- Obrigada. Eu nunca protagonizei cenas de

58

amor no mar...

...

-Dezoito horas. Agora são dezoito horas.

Lavínia está cheia de malas, sua viagem não parece

ter um retorno e eu tenho muito medo de

perguntar. Muito, porque a gente teme ouvir a

verdade às vezes, em especial quando você já

quase tem certeza qual é. Beija-flor, uma ave de

voo rápido e ágil, não pode se prender a uma

única flor. Ele semeia, fertiliza, mas vai embora.

Eu queria ter pego a mão de Lavínia na beira

da praia, e queria ter imerso minha mão sem

sua blusa branca de botões naquele dia de Carnaval.

Mas era óbvio, e esse foi um problema.

Não conseguimos falar nada um com o outro

naquela rodoviária cheia de gente. Ela olha fixamente

para a passagem. Não está sorrindo.

Eu não consigo ter a força das ondas do mar

que aquela boca desperta em mim ao falar no

microfone, ao morder sua maçã de forma irregular

ou afundar comigo no mar do Flamengo.

Por que é tão óbvio? Por que é difícil?

No mar, agarrados, eu seguro sua cintura e sua

nuca, prendo seus lábios nos meus e chove em

nós. Mas não a deixo ir. Não a deixo ir. Não

quero que ela vá.

- Chegou o ônibus. Obrigada por esses anos de

amizade. Obrigada.

- Lavínia, eu que agradeço.

E a gente só se olha, com o canto da boca descendo,

a mão suando, a perna mole e eu me

vendo naufragar sozinho nas ondas violentas

do mar. Ela segue, pela areia, e some ao entrar

no ônibus. Ela senta próximo à janela, me olha

e vejo que seus olhos se enchem de lágrimas. Lá

vai ela de volta para o interior de Goiás, com a

família que precisa dela.

Lavínia ergue uma folha de papel com duas palavras.

“Era óbvio.”


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FRANCIELI VAREIRA

Glorinha - RS

Francieli Vareira, de

27 anos, é estudante

de Jornalismo e

pretende, um dia,

publicar todos os seus pensamentos

e observações sobre

o mundo. Ainda hoje, mora

na cidade de Glorinha (RS),

onde nasceu.

BEM ACOMPANHADA DE SI MESMO

Um dia, em algum lugar, me

deparei com a seguinte frase:

"bem acompanhada de si mesma

a solidão passa a ser liberdade".

Frase essa um pouco intrigante,

assustadora, ao mesmo passo que libertadora,

ao menos para mim.

Nós, pessoinhas tão dependentes, costumamos

dar um certo ar de tristeza e pena

à nossa solidão, quando

poderíamos muito bem

substituí-la por um ato

de coragem e liberdade.

Parecemos ter medo da

nossa própria companhia,

esquecendo-nos

saudável.

que nós, e somente nós

mesmos, podemos nos cuidar e tratar melhor

do que ninguém. Poderíamos nos fazer

tão felizes, se quiséssemos... pena, por

vezes, não fazermos muita questão.

Poderíamos nos dar todo o amor e cuidado

de que necessitamos. Ser um pouco

autossuficiente não faz mal a ninguém, é

até saudável. O que não é saudável, meu

bem, é mendigar amor, compaixão, aceitar

dores e desamores. Mas, não adianta...

nos contentamos com tão pouco,

quando poderíamos nos dar tudo que, de

fato, merecemos. Afinal, quem nos conhece

melhor que nós mesmos?

Se você procurar sobre solidão, encon-

59

Ser um pouco autossuficiente

não faz

mal a ninguém, é até

trará algo como "estado de quem se acha

ou se sente desacompanhado ou só; isolamento".

Isso é ruim? Eu não acho! Todos

nós viemos ao mundo sós, apenas ao longo

do caminho vamos encontrando pessoas

para fazer parte do trajeto. Algumas

ficam, outras não, mas a verdade é que,

no final, somos nós e nossa própria companhia.

Não falo sobre não ter

amor pelas pessoas e não

precisar nunca de ninguém,

pois claramente

precisamos. Todo mundo

necessita de pessoas por

perto. Mas não o tempo

todo. E não deve ser o

fim do mundo estar sozinho. Precisamos

ter um momento de isolamento vez ou

outra, precisamos fazer coisas que só faríamos

com nós mesmos: dançar, cantar,

gritar, chorar, sentir. Se auto conhecer. Se

amar.

Podemos encontrar uns oito sentidos para

a palavra liberdade: independência, permissão,

direito, libertação, confiança, folga,

ousadia na forma de agir e ainda há

um que acho um tanto quanto admirável

e questionador: o "privilégio de alguns

grupos". Entendeu? Privilégio! Sinta-se

privilegiada! Você tem o direito de agir segundo

o seu livre arbítrio, de acordo com


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FRANCIELI VAREIRA

Glorinha - RS

BEM ACOMPANHADA DE SI MESMO

a sua própria vontade...

desde que não

prejudique outra pessoa,

é claro, já alerta

o dicionário. E, diz

ainda, que liberdade

é a sensação de estar

livre e não depender

de ninguém! Palmas!

Quer coisa mais libertadora

que isso?

Vai lá então, fica linda

para si mesmo.

Ou, só coloca aquele

jeans rasgado e uma

camiseta velha, senta no sofá, com uma

panela de brigadeiro (por favor!). Você é

sua companhia. Sua melhor companhia!

Leia. Veja todos os filmes que ainda não

viu. Viaje. Saia para dançar (aí pode chamar

mais gente, se quiser). Vá ao cinema

(quem disse que não se vai ao cinema sozinho?).

E, vai, vai... vai viver!!! É o que

já cantou Vinícius de Moraes, foi o que

Martha Medeiros me contou.

A verdade é que nem nós mesmos nos

permitimos "se conhecer por completo",

pois, se assim o fizéssemos, saberíamos

exatamente o que queremos e merecemos,

e correríamos atrás com determinação, em

hipótese alguma aceitaríamos o "menos".

Precisamos mesmo nos conhecer. Precisamos

nos moldar. Melhorar. Aperfeiçoar.

Vai aprender uma nova língua, vai mudar

o cabelo, vai fazer aula de ioga, vai se

descobrir, redescobrir, incrementar. Vai...

E então, mas só então, quando fores o

melhor para ti mesmo e já te amar o suficiente,

aí sim deves querer ter alguém por

perto, para te acompanhar. Não para te

completar, porque completa já serás. Mas

sim, e somente, se for para transbordar.

Enquanto isso, acompanhe-se bem.

60


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

GERALDO MAGELA

DE FARIA

Belo Horizonte - MG

Nascido em

Pará de Minas

(MG). Funcionário

aposentado

do Banco do Brasil

(1971-2001). Formado em

Letras pelo Centro Universitário

(UNI-BH). Revisor de

textos. Reside em Belo Horizonte

(MG).

O ESPELHO DE BRANCA

Muita coisa mudou em menos de

um ano. O falecimento do pai, a

mudança do Juninho para Nova

Zelândia e, depois, a morte da

mãe. Assim, Branca ficaria sozinha no apartamento

de quatro quartos e, por isso, resolveu

vendê-lo e adquirir um de dois, que, para ela,

divorciada e sem filhos, seria o ideal.

A venda para um casal vindo do interior foi feita

de porteira fechada, mas ela fez questão de

levar o espelho do quarto de sua mãe. Aquele

espelho, oval e revestido por madeira trabalhada

pintada de branco, causava-lhe certa

curiosidade. Ficava no quarto da mãe, que não

proibia, mas não gostava que ninguém nele se

espelhasse. Nunca explicou o motivo, nem este

lhe foi perguntado.

Depois de fechar negócio com os compradores,

despediu-se e foi descendo, carregando o espelho

com deselegância, tendo-o à frente de si, até

chegar à garagem, onde se escondeu atrás de

um carro para não se encontrar com a Sílvia,

do 502, que, ao saber da venda do imóvel com

tudo dentro, havia lhe pedido justamente o tal

espelho. Como a vizinha era muito ligada a esoterismos,

a curiosidade de Branca foi ainda mais

atiçada.

E lá se foi a caminho do novo destino. Tendo

morado a vida inteira naquele lugar, queria algo

novo, que representasse mudança em sua vida,

até mesmo radical, e, quem sabe, fazê-la encontrar

um grande amor que a tirasse da solidão em

que se encontrava.

Tudo novo, até o nome do bairro: Cidade Nova!

Ao passar pelo túnel, veio-lhe um momento de

angústia, sentimento que a vida, não raras vezes,

lhe trazia. Mas, ao sair, com o sol se derramando

sobre o carro, percebeu que algo de

muito bom a esperava.

Depois de tudo organizado no apartamento, teria

calma para procurar o espelho. Foi até ele.

61

Sentia-se como a criança que ouvia do pai a

história de Branca de Neve e os sete anões; ou

a adolescente ingênua e sonhadora de tempos

atrás; ou até a mulher a quem a solidão prolongada

trouxe um pouco de loucura. Mas estava

resolvida. Assim, meio envergonhada, perguntou-lhe

se era realmente bela, como todos diziam;

e, se for verdade, por que vivia tão só.

Sentiu um burburinho com vozes falando ao

mesmo tempo e, com certa dificuldade, obteve

as respostas. A primeira, a de que era, sem dúvida,

muito bonita. A outra se explicava pelo fato

de os homens terem medo de mulheres muito

bonitas e, se, aliada à beleza, estiver a inteligência,

aí o receio será maior. E ainda mais, era muito

seletiva e não sabia escolher o seu par. Dessa

forma, o espelho reproduzia o que a sociedade

pensava dela. Como estava muito cansada, foi

dormir. Demorou um pouco a conciliar o sono,

cansada e cismada com o tal espelho.

No outro dia, antes de preparar o café, caminhou

até a moldura novamente. Queria uma

resposta que lhe desse esperança. Foi aí que

notou, estupefata, que o espelho agora tinha a

figura de um pequeno homem, formado apenas

pelos traços do corpo, mas com um rosto contendo

nariz, boca e olhos. Lembrou-se do Bonequinho

de O Globo. E o hominho disse que não

o temesse e ficasse à vontade.

Branca insistia em duas respostas: o porquê de,

aos 53 anos, tão bonita, corpo esbelto, cabelos

louros e olhos verdes, viver tão só? O espelho

confirmou o que as vozes disseram na primeira

vez que o procurou: “Um dos motivos você

já sabe, mulher bonita e inteligente. Também é

muito seletiva e, embora a beleza inquestionável,

já estaria em idade que não permite muitas

escolhas. Um exemplo das opções erradas:

quando se casou com o Alcides, o outro pretendente

era o Rodrigo. Nem um dos dois a merecia,

nem dava a impressão de amor ‘infinito


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

GERALDO MAGELA

DE FARIA

Belo Horizonte - MG

O ESPELHO DE BRANCA

enquanto dure’. Assim, outros como Zé Humberto,

Moacir, Alfredo etc., e põe et cetera aí,

atestam o tal do ‘dedo podre’, como costumam

dizer”.

Branca ficou chateada até porque o espelho tinha

sido tão sincero a ponto de ser rude com

ela. Mas, depois do almoço, mais calma, voltou

até ele e disse: “Seu espelho”, sendo logo interrompida:

“Espelho não, meu nome é Nestor,

escolhido carinhosamente por sua mãe. Que, a

propósito, me procurava muito pouco. Fui seu

conselheiro. Por exemplo, quando ela quis se

se separar de seu pai, que a traiu com outra,

eu a convenci e as coisas se ajeitaram. Quando

o Juninho foi para o exterior, provei que era o

melhor para ele. Por ocasião do seu casamento,

com que ela não concordava, dei alguns conselhos,

usei palavras de estímulo. Não ficava bem

para um consulente do meu gabarito, mas” ...

Foi aí que ela notou que seu rosto havia mudado

e continha a figura de... um psiquiatra com

divã e tudo. Ante o susto de Branca, ele disse,

com voz grave e pausada, bem diferente da voz

caricata do bonequinho: “Vi que a amiga precisa

não de um conselheiro e, sim, de um especialista

na mente humana. Talvez agora possa ajudar

mais”. E Branca disse que queria saber se,

algum dia, encontraria um grande amor. Nestor

pediu para pensar e que o procurasse na manhã

seguinte.

E, de novo, lá estava Branca. Novo susto, quando

viu Nestor, agora com um turbante, um rosto

com barba e bigode com pontas. E ele disse,

com outro tipo de voz: “Cheguei à conclusão de

que você precisa é de um vidente, por isso trouxe

minha bola de cristal”. Em seguida, fez movimentos

com braços e mãos e, apontando para

Branca, asseverou: “Ainda hoje você conhecerá

o homem de sua vida”. Branca se assustou, disse

um obrigado nada convincente e ficou pensativa.

Se nem pensava em sair, como conheceria

um homem naquele mesmo dia?

Lá pelas duas da tarde, tocou a campainha; ela

atendeu e, surpresa, deparou com um homem

de cinquenta e poucos anos, alto, olhos azuis,

como se tivesse Sinatra à sua frente. Vendo sua

reação, ele disse: “Muitos me acham parecido

com ele. E meu nome ainda é Francis”.

Ela o convidou a entrar e ouviu sua história recente.

Veio de Porto Alegre, com a missão de

dirigir a área de negócios internacionais da multinacional

em que trabalhava. Passou a ocupar

o apartamento vizinho ao dela, já mobiliado,

reservado pela empresa. Desde que se separou

da esposa, pensava em mudar de cidade. Só que

não conhecia nada em Belo Horizonte e perguntou

se, no início, poderia ajudá-lo.

Claro que a resposta foi positiva. Primeiro, o

supermercado, depois o shopping, pois queria

comprar ternos para assumir o novo cargo na

empresa. Um jantar em um restaurante e, após,

ele, meio sem jeito, comentou que uma das músicas

mais famosas do Sinatra era Strangers in

the Night. Como na canção, os dois ainda eram

estranhos um ao outro, mas a noite estava linda,

convidativa... Ela entendeu, concordou e

foram a um motel. No dia seguinte, combinou

com ele de mostrar-lhe a cidade.

Antes de dormir, foi procurar o espelho. De

novo como Nestor, que, surpreendendo-a mais

uma vez, surgiu com uma trouxinha nas costas,

como quem estava indo embora, por já ter

cumprido sua missão com ela. Desapareceu, de

repente, e Branca não o encontrou mais.

Logo no início da manhã de domingo, Branca

tocou o interfone no prédio da Sílvia para entregar-lhe

o espelho. A ex-vizinha, cinquenta e

cinco anos, bonita, sozinha, inteligente, história

semelhante à dela. Só que, a partir de agora,

com o Nestor...

62


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

CORAÇÃO CIBORGUE

GUSTAVO FONTELE

DOURADO E

GABRIEL ROCHA

Distrito Federal

Gustavo trabalhou

em produções

que foram para a

Cannes Classics

2020, HQMIX 2019, CCXP

2019, Festival de Brasília,

Rio2C.

Gabriel é ilustrador digital.

Trabalhou em filmes e produtos.

63


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

HELLEN RODRIGUES

Itapoã-DF

Criada nas periferias

de Brasília,

sempre acreditei

que as palavras

têm poder, com o tempo

aprendi a importância da escrita

nas mãos de mulheres

que carregam consigo a potência

ancestral.

VISITA

Aguardo sua visita com cada vez

mais ansiedade, faz tempo que não

a vejo desde aquele dia que fugi

de casa, fugi daquela dor, daquelas

sensações horripilantes nunca mais a vi.

Quando decidi buscar o meu rumo contava

com apenas 11 anos, hoje conto com 17 lembro

que naquele dia aguardei sua ida ao trabalho

e o sumiço daquele traste para um bar

qualquer. Ainda lembro os poucos pertences

que levei comigo dentro de uma mochila de

estampa de flores que foram algumas roupas

velhas, um caderno de matérias, algumas canetas

e uma quantia em dinheiro de 2 reais.

Na minha inocência de criança-menina achava

que as coisas seriam menos piores no mundo

fora de casa. Aquilo que aguentamos naquele

barraco nas periferias de Brasília não

era vida, detestava aquele homem que vivia

com a gente lhe batia, minava nossa relação e

sempre que longe de seus olhos dava um jeito

se esgueirar igual a um

bicho peçonhento e mexer

comigo.

Nas ruas da capital do

país aprendi a ser grande

a lidar com as dores e as

saudades que sinto de seu

cheiro, tempero e mente

sonhadora, acredito que

a parte sonhadora puxei a

você, além da pele escura

e dos cabelos crespos. O

caderno que levei comigo

me ajudou a desabafar e

ser vista ao menos em folhas

de papel e não lhe esquecer,

pois sempre escrevo

lembranças que tenho

suas.

Como disse tive que aprender a ser grande,

aprendi que ser grande consiste em sobreviver

não tive muitas escolhas neste jogo roubar

junto com o tráfico era as poucas opções que

me restava, rodei várias vezes, porém esta última

vez que cai no sistema foi cruel, antes de

minha prisão uma de minhas parceiras foi assassinada

a sangue frio em minha frente, isso

me fez a nunca mais querer está aqui.

Querer mudar de vida há esta altura do campeonato

parece um sonho longínquo, mas

como você me ensinou sonhar é algo que

evita o enlouquecer, me apaguei há alguns livros

aqui na unidade de internação de Santa

Maria-DF, voltei a estudar de forma séria, fiz

a prova do ENCCEJA e agora estou regulada

com série que corresponde a minha idade.

Bota fé que irei fazer o ENEM? Estou com

medo, todos(as) aqui estão depositando suas

energias em mim, conforme o dia da prova se

64


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

HELLEN RODRIGUES

Itapoã-DF

VISITA

aproxima mais nervosa fico os(as) professores(as)

aqui da unidade me ajudam bastante

neste momento de tensão e na minha caminhada

para realização deste sonho de entrar

na Universidade.

Queria muito lhe ver, lhe dar um abraço. Os

dias de visitas são mais tristes que o normal,

ninguém vem ao meu encontro

isso junto com a

solidão diária deste lugar

me deixa ainda mais ansiosa.

Por estes dias uma luz

ao fim do túnel apareceu.

Rose, nossa antiga vizinha

trabalha aqui como

faxineira assim que me viu

me reconheceu e pedi a ela

que lhe entregasse o meu recado escrito com

minha melhor caligrafia, espero que o recado

chegue e que você venha ao meu encontro.

Tenho medo de sua recusa e a quase todo instante

fico a acreditar que fui injusta em lhe

deixar.

Mais um dia de visita e tá cada vez mais foda

acho que depois de anos tenho uma boa notícia

e ninguém para compartilhar. Estou em

meu barraco sozinha escrevendo mais algumas

bobagens, até que chamam pelo meu

nome, estranho, dizem que tem gente querendo

me vê. Será que é você? Meu coração

dispara não posso correr, mas minhas pernas

quase que em ímpeto que se movimentar mais

rápido tive que me controlar, minhas mãos

estão suando finalmente chegou ao pátio e

lá está você um pouco mais velha e cansada,

Agora minha vontade

é dizer que iremos

mudar de vida e que

sonhos é tudo que nos

resta para continuar.

mas ainda tão linda como me lembro.

Não sei em qual momento lhe abracei mãe,

só sei que de repente estava em seus braços

lembrando de seu cheiro. Você acariciando os

meus cabelos crespos me fez ser o que sou,

uma jovem menina que está a crescer. Sua voz

dizendo que tudo vai ficar bem que não está

mais com aquele homem

que lhe impediu de me procurar

e pedindo desculpas

foi intenso demais.

Mãe, não precisa pedir

desculpas depois de algum

tempo e com ajuda de alguns

livros descobri que

nós somos apenas mulheres

vítimas de um sistema

construído por algozes. Agora minha vontade

é dizer que iremos mudar de vida e que sonhos

é tudo que nos resta para continuar.

Mãe, eu passei no ENEM e irei cursar Letras

pela Universidade de Brasília (Unb), como

você bem sabe sempre quis ser escritora sei

que para isso não preciso necessariamente estar

na Universidade, porém saber sobre as palavras

é algo apaixonante para mim. Inclusive

preciso lhe dizer que alguns de meus textos

foram publicados por alguns concursos literários.

Sei que este caminho escolhido por mim

não será fácil, mas contigo ao meu lado novamente

forças são renovadas, pois além das

dores da vida, também aprendi que o meu axé

e coletivo herdado de um legado de mulheres

peles azeviches.

65


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

HERA DE JESUS

Maputo - Moçambique

Hera de Jesus poetisa

moçambicana.

Co-autora

de duas

antologias, Soletras Esse

Verso (2019) e, Fique Em

Casa(2020).

@hera.dejesus

MONOTONIA

Há uma canseira

nas coisas que se repetem

todos os dias

a rotina

Os mesmos sapatos

marchando passo á passo, as mesmas lutas

os relógios marcam as mesmas horas

os mesmos segundos,

sem margem de atraso

As mesmas pessoas

os mesmos caminhos

as mesmas notícias

os mesmos embalos

Dá uma canseira

das coisas

do mundo que não passa

dos beijos

dos mesmos amores

permutando de corpo a corpo

saboreando a mesmice

Há uma canseira

nesta vida que transportamos

de lá para cá

ás vezes desconhecendo como viver

Basta-nos acordar

e, ser

ser dono de uma vida cedida

sem saber que fazer dela

é como guiar uma bicicleta

sem antes ter andado nela

Há uma canseira nisto tudo

em todos

nos dizeres, na vivência

tudo decadente

e, de repente

Cansa-se.

66


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

IAN ANDERSON

GOMES DIAS

Manhuaçu - MG

POEMINHA ULTRABUROCRÁTICO

Aos interessados em ler esse poema:

Favor preencher três vias do formulário B

[anexado abaixo.

Depois disso, rolar um dado de 30 faces,

E o resultado será o prazo, em dias,

Para a entrega do requerimento,

Junto de uma taxa simbólica

De 37 vezes o número de letras

Do sobrenome da sua avó.

Em euros, logicamente,

Que o euro é moeda boa.

Recomendo também contratar um

[advogado para auxiliá-lo,

Pois apenas os conhecedores da lei

Saberão que, além de tudo isso,

Há também uma série de normas

De conduta e vestimenta para os

[interessados,

Veiculadas em três volumes,

Totalizando 7000 páginas

E mais de 100.000 regras diferentes.

O item 914, por exemplo, proíbe o uso

De gravatas laranjas às quartas-feiras,

Durante um ano antes e após o requerimento

Da leitura desse poema.

O 75.698, considerado um dos mais

[importantes pelos especialistas,

Diz que aqueles com pítons de estimação

Tem preferência nas filas para entregar a

[papelada.

Para calcular o tempo de espera

Pela liberação do protocolo,

Cabe ao interessado criar

A função cossenóide e gráfico

[correspondente.

Requer-se também uma via adicional

De todos os documentos

Em latim, para facilitar o entendimento

De imperadores romanos e demônios,

Que, como todo mundo sabe,

Só sabem tal língua.

Favor não ligar perguntando sobre o

[andamento do processo,

Salvo na ocorrência de invasões

[extraterrestres.

Aos interessados que sofram de anemia,

Difteria e licantropia,

Não haverá atendimento à lua cheia.

Nascido em 2002,

em Manhuaçu,

Minas Gerais,

Ian Anderson

Gomes Dias sempre foi apaixonado

pela leitura. Geralmente

um garoto taciturno

e solitário, ele escondia um

segredo: ele amava escrever.

67


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

IARA MARINA

DE SALES SANTOS

Francisco Santos - PI

Formada em Letras

Português, reside

em Francisco Santos

- Piauí. Tem 26

anos. Gosta de escrever crônicas

e poesias. Já participou

de concursos literários

e tem textos publicados em

algumas edições.

RUA DE LADRILHOS

Arrancaste-me a pele

dos joelhos e dos pés

arrancaste-me também

a solidão

quando, timidamente

mostrava-me os moleques

correndo sobre ti

e sendo

felizes!

“vá com eles. Há espaço pra você”

eu fui.

em ti corri

dancei

cantei

amei

compartilhei

aprendi.

explorar-te em chuva e sol

foi explorar a mim

conhecer-me.

E a ti que marcou-me

em cicatrizes

e saudades

para a vida toda

dedico a poesia aqui

que só reside em mim

porque antes

pude em ti

apreciá-la.

68


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

IZADORA LANER

AUTORRETRATO

Os cabelos brancos representam

As incontáveis batalhas perdidas;

Reaprendidas.

Manchinhas na pele

E cicatrizes para lembrar

Do inconstante processo “cair e levantar”.

A doçura nos olhos

Diz muito sobre o lugar de empatia,

Vida finita.

Cabelos desgrenhados

E unhas por fazer:

A separação entre autocuidado e estética.

Amo minha caminhada,

Ainda que não pareça bela.

Urbanista, Mestra

em História Urbana.

Uso as palavras

como meio

de sobrevivência entre o caos

que as emoções criam ao

nosso redor. Escrever é um

ato de resistência e resiliência.

@aposto_txt

69


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

JHULIA VITÓRIA

FERREIRA SALES

Jatobá - PE

Sou Jhulia Vitória Ferreira

Sales, nasci em

02/12/2005 em Natal,

RN. Aos 12 me

mudei para Jatobá, PE e aos

14 entrei para o clube do

conto, onde escrevemos histórias.

Meu gênero favorito

é conto.

VIZINHANÇA

Minha rua é bem pequena e se

tem algo de importante para

destacar nela é que qualquer

movimentação se torna imediatamente

de conhecimento geral. E foi assim

que um calmo dia de sábado virou euforia

com a chegada de um novo vizinho que se

mudou para a casa de n° 5.

O caminhão de mudança parou e por uma

mera coincidência, acreditem, todos os moradores

tinham alguma coisa para fazer em suas

respectivas portas.

E como de costume, os moradores começaram

a traçar os seus julgamentos sobre o novato

pelas características de seus móveis:

“Mulher, o que é que uma pessoa com um

sofá e uma geladeira tão bonita vem fazer

num bairro desse?”

“Mulher, sei não. Muito estranho.”

E lá pelas tantas, muitos se reuniram na porta

de dona Zefinha sob pretexto para tomar

um açaí que ela vendia. Foi quando entrou

pela rua um grande carro vermelho e parou

em frente à casa de n° 5. De dentro dele saiu

uma jovem mulher de cabelos de fogo que ao

avistar a vizinhança reunida deu um rápido

aceno com a mão e entrou casa adentro.

A porta mal fechou e os burburinhos já recomeçaram:

“Você viu que antipática!”

“Muito carinha de mimada”

Poucos minutos depois apareceu pela rua um

homem alto, de cabelos castanhos, vestindo

roupas simples e na sua companhia trazia um

enorme cachorro preto encoleirado. Parou

frente à calçada.

“Boa tarde, me disseram que aqui vende um

gostoso açaí. Está quanto? “

“Cinco reais, meu filho. Vai querer um?”

O homem só afirmou com a cabeça. E enquanto

dona Zefinha preparava o açaí daquele

cliente, o assunto da nova vizinha voltou à

tona:

“Achei muito enjoada”

“Você viu que cor de cabelo de tanto mau

gosto”

“Achei os móveis muito cafona”

“Ah, amanhã vou já fazer a minha visita”

“E virou fofoqueira, foi?”

“Fofoqueira, eu? Claro que não, só cuido do

bem da nossa vizinhança.”

A conversa continuou animada sobre a nova

moradora até que dona Zefinha entregou o

açaí. O homem que já tinha tirado o sorriso

do rosto, recebeu o sorvete, pagou e mal respondeu

ao agradecimento. Dirigiu-se à casa

de nº 05. Entrou. Bateu a porta!

Os vizinhos se entreolharam e a voz de um

deles confirmou o que todos estavam pensando:

“É outro mal-educado!”

70


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

JOÃO ROSA DE CASTRO

São Paulo - SP

Escreveu e traduziu

dezenas de livros

em prosa e poesia

em Língua Portuguesa

e Inglesa. Publicou

alguns deles no Clube de

Autores; participa de diversos

concursos literários no

Brasil.

DEPOIS DOS QUARENTA

O

que sobrou de mim

Dilacerado pelas vilas,

Paralelepípedos?

A chuva vespertina,

O céu ainda azul,

Ainda cinza salpicado de nuvens:

Ainda firmamento —

Ainda firme para conter os zilhões de

[alvoradas.

A mãe com a memória do pai no peito,

Seu andar sôfrego e ainda gracioso,

Suas maravilhas de amor e guerra,

Os vícios que se acumulam e comunicam

De si para si o meu corpo novo

De roupa nova,

Novas células que surgem surpresas

[com o meu mundo.

O olor da noite,

Lembranças de noites remotas no tempo.

Invenções saciando o acender e apagar

[de luzes,

Que, apagadas, buscam iluminar;

Acesas, querem escurecer.

O choque da visão.

As meninas sapecas,

A adolescente aterrada com a noite de debute

Tão deslumbrante e — mal planejada.

Luíza tão pequenina e distante.

Tudo isto me toma.

E os burgueses me fustigando

Com avidez por guloseimas.

Sedentos de cerveja e esporte.

A gente perdida a me saudar no recôndito.

A veste conforme o verão lusitano.

Que digo?

Que foi que sobrou de mim?

O caminhar vagaroso do amigo.

Sua risada espontânea,

O entrelaçar de ideias.

A vida aberta para muito,

Quase tudo.

Mas, não!

Sobrou também o presságio,

O suicídio das noites,

Consolo de palhaço que leva ao pranto.

A mulher platônica em temor,

Em terror fecha os olhos.

Tapa os ouvidos e não ouço bem

O que está dizendo.

A mulher biônica,

A mulher sistólica — diastólica.

A quem eu não dei criança,

Gerança,

Bonança,

Esperança,

Fiança,

Matança,

Cachaça —

E eu morro.

71


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

JOSÉ CARLOS VAZ

São Paulo - SP

Professor da Escola

de Artes, Ciências

e Humanidades da

Universidade de São

Paulo. Pesquisa esportes implausíveis

e atualmente prepara

livro sobre a obra do

escritor Breno Caldeira.

ESTÔMAGO

Traz um sanduíche para mim. Estou

meio mole. Acho que vou ficar gripada.

Veja o que achar mais gostoso.

Estômago está com fome.

O sanduíche veio logo. Do hotel até a praça

são cem metros, uns vinte minutos, tudo: o

ir, o pedir, o esperar a preparação, o pagar, o

trazer.

Quando voltei, parecia que ela estava febril.

Tossia. Pus as costas da mão em sua testa. Ao

tato, parecia quente. Um pouco de coriza e o

olhar caído. Estômago. Comeu o sanduíche

com gosto, mesmo adoentada.

Vendo que piorara, ofereci buscar um remédio.

Falou que não precisava, mas insisti. A

farmácia do outro lado da praça, quando

fui comprar o sanduíche vi que estava aberta.

Estômago. Pediu para trazer um sorvete,

também. Antes da minha expressão de espanto,

percebeu o que falou. Traz um docinho,

então. Sorvete nesta situação é demais, né?

Aquele né que costuma soltar no final das frases

tem uma graça muito própria. Estômago.

Comprei remédio, pastilhas para tosse, xarope.

Entrei no quarto sem bater. Ela podia

ter adormecido. Vi que dormia, mesmo. Hesitei.

Não sabia se devia acordá-la. Aproveitei

o tempo da dúvida para olhar. Continua

bonita, até quando a gripe a derruba. Deixei

passar uns dois ou três minutos, pus a mão

em seu ombro, sacudi levemente. Não acordou.

Curvei-me e falei seu nome, baixinho,

ao ouvido. Despertou, mas manteve os olhos

fechados ao sorrir preguiçosamente. Trouxe

meu docinho ou vai só me maltratar com remédio?

Estômago. Para não ter como errar,

eu havia comprado bomba de chocolate e torta

de morango.

Comeu tudo. Parcimônia não combina com

ela, nessas horas. Estômago. A boca lambuzada

de doce, os dedos lambuzados de doce.

Lambeu os dedos e os lábios, só então pediu

água para tomar o remédio. Acho que nem

preciso, curou-me com o doce, mas vou tomar

os comprimidos para não fazer desfeita a

tanta gentileza sua, obrigada.

Os doces fizeram bem, já se lhe via os olhos

mais acesos. Duas jabuticabas. Estava sentada

na cama, de frente para mim, as costas

apoiadas no travesseiro. Segurou minha mão

entre as suas, quentes. Poucas frases na conversa

que tivemos. Agradeceu novamente.

Você escolheu bem, esse xarope é gostoso.

Estômago. Avisei que mudara o horário da

reunião com o cliente. Seria após o almoço,

ela poderia dormir até mais tarde para se recuperar.

Vou descansar, então, mas tomamos

o café da manhã juntos, faço questão. E fica

comigo até eu dormir, vai ser rápido. Puxou

minha mão, para que eu sentasse na beirada

da cama, ao lado dela. Deitou-se e logo pegou

no sono. Estômago.

Ao ver que adormecera, levantei-me. Senti

uma espécie de pudor em continuar sentado

ao seu lado na cama, agora que dormia. Estômago.

Sobre a mesa de cabeceira, os remédios

e as embalagens dos doces, ao lado de seus

óculos.

Quando cheguei ao meu quarto, parei sob o

umbral, sem entrar. Nunca a tinha visto sem

óculos. O hotel não tem bar, hotel modesto

de cidade do interior. Saí para caminhar pela

praça. A noite está agradável, a temperatura

amena. Se ela não estivesse gripada, talvez tivéssemos

ido à pizzaria. Amanhã a reunião

promete ser rápida, encerramos o contrato.

Depois, pegaremos a estrada de volta. Estômago.

72


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

JÚLIO CÉSAR

São Luís - MA

Chamo-me Júlio,

sou um estudante

de 18 anos, moro

em São Luís do

Maranhão.

Instagram: @joootttaaaa

A VIDA DESABROCHOU EM UMA TELA DE CINEMA

Paulo, você fingia? Os holofotes,

os palcos, os aplausos valeram a

pena? Você guardado no segundo

todo, você desconhecido, você

subitamente sentido. Custaste caro, pouca

revolta, Paulo, pouca revolta. A que se

destinou teu dinheiro, a tua fortuna, a tua

paixão? A paixão, literalmente póstuma,

vai para onde, vai por quê? Só se pode fazer

perguntas frente à morte, são sempre

as mesmas: Como vai a família, quais as

últimas palavras, sentiu dor, estava triste,

talvez feliz, como passou, e agora? E agora,

Paulo, o que deixaste para o que sobrou?

Beber teu sobejo, chorar tua derrota,

pedir uma foto, um autógrafo? Paulo,

você pássaro, você livre, você completo

desconhecimento e conhecido. Ouviste de

um amigo que os olhos fechados enxergam

um pouco mais?

Abrir-te-ão todo, vasculharão tudo, remexerão

os teus segredos e pô-los-ão de

cabeça para baixo, teus órgãos que costumavam

funcionar, tua cabeça de fórmulas,

métodos, tanto conhecimento. Paulo,

de que serviu tua gramática, teus chapéus,

olhos de furadeira, agendas de compromissos,

a trigonometria, os artigos da filosofia,

aquele espelho laranja que tu não

largavas... de que serviu tanto, muitíssimo,

esses castelos, quando nasceu teu último

suspiro?

Como crescerão teus filhos? teu casamento

definhará? tua luz se apagará? para

73

onde levarão teu corpo, teu sangue, tua

embolia, tua morte, teu sorriso e fazer

sorrir, tua resistência, tua gentileza, tua

interrogação?

O artista é tão carente, fechado, envelopado,

não tem com quem conversar, o bate-papo

dos finados é a boca dos outros,

deixando-os frescos na lembrança. E se te

esquecem, que resta de ti? uma fala, uma

fotografia, um botão?

Não consigo formular muito mais que

essas perguntas irrespondíveis, pesadas.

E essa seriedade, olhar confuso, cabelo –

pouco cabelo –, perna pendendo no chão

em que te deitas. Paulo, a vida é curta demais,

cortina que se fecha e deixa saudade,

um gesto perdido no ar, um quadro

irreversível, dificuldade de despedir-se, de

entender, de desintegrar o futuro. Paulo,

passou um filme seu, um pouco tarde da

noite, e todos os que estavam dormindo,

levados pelo transporte do mundo, acordaram

sobressaltados como se tivessem

um compromisso com sabe-se lá o quê,

abriram a porta do quarto, juntou-se a

família toda, em silêncio, pretendendo

guardar um segredo, pé ante pé, coração

ante coração, os olhos encheram-se de

lágrimas e ficaram todos a te assistirem,

perplexos, admirados, risonhos, carentes

e tão magnificamente corajosos, como se

assistissem a própria vida que ressurgia

vagarosamente de tua eternidade.


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

KIKA SOUZA

Nova Iguaçu - RJ

Artista Afroindigena.

Cria de Manaus

da comunidade do

Mauazinho. Autora dos

zines "Totalmente Aleatório"

e "Auto Irreverência".

Premiada com Medalha de

melhor poema pelo SENAI-

-AM.

@kikaoficiall

NEM PENSE EM ME MATAR

Segunda, Dona Maria

Terça, a Isabela

Quarta, a Zumira

Quinta Dona Eva

Sexta, a Daiana

Sábado, Dona Ana

No Domingo é sua vez

Em minutos Dona Vanda

No próximo segundo dessa fala

Uma Mulher indígena

Preta

Trans

Lésbica

Quilombola

Mãe de Santo

Será assassinada

Estrangulada

Decapitada

Esfaqueada

Esquartejada

Na rua, nas favelas

No beco, nas vielas

Na vala

Dentro da sua própria casa

Pari

Limpa

Lava

Passa

Deixa isso no passado

Nós não vamos mais carregar no colo

O peso do seu patriarcado

Deixa nosso corpo

Solto

Livre

Exposto

Se expressar

Tira sua mão suja da minha boca

Porque agora eu vou gritar

E não é "para" quando você tentar me

[estuprar

Me assediar

74

Meu coquetel de palavras seu macho

[escroto

Cê vai ter que aguentar

Diz que feminismo é mimimi

Vai pro puto que te abortou com seu

[BLA BLA BLA

Acha que tô sempre sozinha?

Melhor se readaptar

Nada vai nos deixar inerte

Somos sementes Marielle

Somos filhas de Dandara

Do dialeto yorubá

Dendezera de Aruanda

Filhas de Iansã, Oxum e Oxalá

A primavera há de chegar

Pra ecoar o nosso grito feminista

Ainda que muitas das nossas desista

E pra soprar o vento desses novos ares

Eu invoco aqui Elza Soares:

"a mulher de dentro de mim prendeu

[seu carrasco

Eu não vou sucumbir. Eu não vou

[sucumbir".


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

LAMARIS

SOU TUA AGORA

Se chega, me escondo.

Se me olha, finjo não ver.

se toca a minha mão, eu me

[derreto,

Mas não te deixo perceber

Se me chama, não respondo.

Se não me liga, me desespero.

Se me pede para sair, eu digo não.

Te enfeitiçar é o que eu mais quero.

Quero te enlouquecer

Até que você admita

Que sem mim já

Não consegue mais viver.

Fala da lua, e eu do sol.

Se me sonda, faço mistério.

Se perde a paciência, então eu

[choro.

Vou tirar você do sério.

Fala de amor, eu de carinho.

Fala de paz, e eu de guerra.

Se diz que vai embora,

Eu só posso te dizer, sou tua agora.

SOU TUA AGORA

Nunca quis ser cantora, porém

vivo a cantar. Ouvi muitas canções,

muitas passaram pelo

tempo comigo. Algumas vezes

escrevia o que sentia, mas nunca pensei em

transformar em melodias. Entretanto as melodias

surgiam e, para que não se perdessem,

corria gravá-las. Lá ficavam no meu

gravador até que as letras chegassem na forma

de poesia, ou não. Sempre há uma melodia

para uma letra. Basta encaixá-las e a

magia acontece. Nesse universo de “tecer” e

“arrematar”, nasceram mais de 90 canções,

entre sambas, canções da terra, românticas

e pops. Assim surgiu o Eclético I. Assim surgiu a cantora e compositora LaMaris.

Doze canções cuja finalidade é a obra pela obra. Sem pretensões. Apenas a de tocar o

coração das pessoas despertando paixões, trazendo calmaria e paz.

Por causa das canções e da explosão da escrita, nasceu também a escritora Amanda

Kraft. Engatinhando na arte de transformar estórias em palavras. Mas adorando tudo

isso. Participo com vários contos em diversas antologias da Elemental Editoração,

Psiu Editora, EHS Edições, Solar dos Livros, DarkBooks, Cyberus Editora, Boneless

Editora como colaboradora na sessão Contos Desossados, WebTV e Arte Impressa

com um e-book solo: “A Escolhida”.

Acredito que tudo o que fazemos, não fazemos sozinhos. Somos fortes quando nos

encontramos unidos. O que seria disso tudo se não houvesse pessoas dispostas a escrever,

fazer canções, esculpir, desenhar, pintar; se não houvesse quem se abrisse a essas

obras, a ponto de admirá-las? Sendo assim, convido-os a conhecer meus trabalhos

que se encontram na Amazon ou nos sites das editoras, bem como minhas canções no

Youtube, Spotify, CD Baby e outros.

https://www.instagram.com/amandakraft2015/

https://www.facebook.com/amanda.kraft.7777

75

Ouça "Sou tua agora" clicando no link:

https://www.youtube.com/watch?v=cyGxVU9NGL4


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

LETICIA BAHRBOSA

Rio de Janeiro - RJ

ALÉM DO PACÍFICO

E, em ondas,

Quando a maré deixa,

Eu sei que sou amor

E quando

A tormenta me pune,

Transbordo pulsante.

Já não mais serei baú,

Naufragado.

Refém de mim.

Que os ventos do Norte,

Me arrebatem.

Eu sucumbirei.

Na família dos

20 e tantos sonhos.

Alma infinita,

cabelos

coloridos como meu discurso

a vida. Meu prazer é ter

e dar prazer. Acadêmica em

Psicologia, Professora de Inglês

e sonhadora.

76


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

LIMA JÚNIOR

Maranhão

SEJA VOCÊ

LIMA JÚNIOR é músico, cantor e

compositor maranhense, vocalista

das bandas Dizneilandia Dandi e

LiverPaul. Atuante também como

músico Solo. Possui trabalhos autorais lançados

nas plataformas digitais, tanto com suas

bandas como solo. Iniciou uma carreia musical

com a banda "IDP" em 1995, com a qual

começou a compor suas primeiras canções,

dentre elas a música FORA DO AR (gravada

e lançada pela banda THE MADS). Em

1998, entrou para a faculdade de Arquitetura

e Urbanismo, onde conheceu Armando Eugênio

(PANDHA) e Marco Moraes (Parceiro de

composições). Em 2009, iniciou uma parceria

com LUCAS SOBRINHO (Filho do compositor

JOSIAS SOBRINHO), juntos formaram a

banda LIVERPAUL. Em 2013, paralelamente

aos trabalhos da Liverpaul, com o Marco

Moraes e Ramon

Ferreira,

formou a banda

Dizneilandia

Dandi. Em

2020, durante a

Pandemia CO-

VID-19, lançou,

nas plataformas

digitais, sua primeira

canção solo: “Agora Já É Zero Hora”,

em 23 de Novembro de 2020, lançou o EP

Solo "Algo Mais" Volume 1 (Acústico), com

5 faixas, e no dia 25 de janeiro de 2021, lançou

o EP Solo "Algo Mais" Volume 2 (Acústico).

Clique no link e escute a música "Seja você"

www.youtube.com/watch?v=nVAl2y9LdV8

SEJA VOCÊ

Sob o céu existe alguém

Que leva a vida sempre zen

Acima do chão uma multidão

Incomoda com este cidadão

Mas esse cara só quer ser feliz

Hoje quer sair com a namorada

Amanhã um Prime, um Netflix

Ou então ficar sem fazer nada

Sexta-feira quer tocar um blues

Lado A ou lado B, não importa

Ele vai de rosa e ela azul

Que se exploda tanta cara torta

Vive nas nuvens sem saber voar

Um viajante, um trovador

Enquanto os demais

Querem fazê-lo parar

Pra não ser mais

Tão sonhador

Este cara só quer ser feliz

Hoje quer sair com a namorada

Amanhã um Prime, um Netflix

E depois ficar sem fazer nada

Sexta-feira quer tocar um blues

Autoral ou lado B, não importa

Ele vai de Pink e ela Blue

Que se exploda tanta cara torta

Pois não há nada de mal em ser estranho

Pois não há ninguém normal, ninguém medonho

Seja você

77


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

A IMAGEM DESSAS REFLEXÕES

LORENZA GIOPPO

Sou curitibana e formada

em cinema.

Como artista visual

exploro materiais e

suportes diversos e os aspectos

e alcances da autobiografia

na produção artística.

78


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

LUISA GARBAZZA

Bom Despacho – MG

Nascida em Bom

Despacho, MG.

Escritora e professora

de Língua

Portuguesa.

Publicou livros de crônicas,

contos e infantis. Também

participa de algumas antologias.

OUTONO DA VIDA

Das lembranças, nostalgia,

vai real, vem poesia:

tardes amenas de abril.

Instantes, frações de vida,

frio corpo, alma aquecida,

pedaços do que sentiu.

Nas esquinas da existência,

em frascos traz a essência

do que pôde ou não viver:

Muito amor ficou guardado,

outro tanto esperdiçado

sem a quem oferecer.

Na garganta, sufocada,

a palavra não falada

num fio de arrependimento.

Quisera ser passarinho,

alçar voo, montar ninho,

aproveitar o momento.

No rosto, um meio sorriso,

no fundo d’alma, um aviso

quebrando encanto e magia.

Sente a face umedecida

pela lágrima sentida,

misto de dor e alegria.

Sem deixar se amedrontar,

constata, com o olhar,

quase vazia a ampulheta.

Suspira, agradecida,

pois, na aquarela da vida,

hoje é mera silhueta.

79


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MAJU ASSIS

São Paulo - SP

BLASÉ

Todo dia, ela faz sempre tudo

igual, parece que Chico Buarque

cantava a trilha sonora

para o cotidiano dela. A rotina

maçante, os olhares perdidos e distantes

diante do ritmo frenético que toma conta,

mesmo quando não há por quê. Corre

para garantir a comida na mesa, para fugir

do frio e para suportar a dor de existir.

O som ensurdecedor, a fumaça e a neblina

encobrindo o céu e fazendo o olho

lacrimejar. As pernas bambas depois de

percorrer quase uma maratona no trabalho

fitam os vagões repletos de gente vazia

e na volta para casa começa uma disputa

pelos tão desejados e escassos assentos no

metrô. Maria e Joana ou Ana, tanto faz,

ela só é mais uma no meio da multidão,

pequena demais para ser vista, gritando

até a exaustão para ser escutada.

No caminho até à estação contou, um

dois, três, quatro...vinte e nove pessoas

pedindo esmola, um pedaço da maçã

já consumida, um pacote de bolacha ou

qualquer migalha suficiente para forrar o

estômago. Na manhã seguinte, foi a mesma

coisa, a súplica de quem não tem pão,

as queixas daqueles que não conseguem

encontrar conforto e abrigo sob um teto.

As ruas a cada entardecer tornam-se mais

hostis. O trago e o gole na cachaça conquistada

a duras penas agora são indispensáveis.

Os desejos vão se tornando

paulatinamente menos exigentes e sonhar

vira um quadro distante fixado na lembrança.

Pontes, passarelas e passos acelerados

nas vilas e vielas, eles fogem para

evitar o atroz espetáculo da realidade da

metrópole. É difícil de engolir; se eles não

vestissem a capa da indiferença, não suportariam

o cenário e teriam que lidar

com o incessante nó na garganta, dar espaço

para angústia e vazão para tristeza

que não é permitida nos dias de hoje.

Tudo que a gente precisa é ser feliz, esquecer

da negatividade e se abastecer de

boas vibrações. A vida é bela, não há com

o que se preocupar e os desafios tornam

as conquistas mais prazerosas. Procuro o

melhor ângulo, escolho a luz estratégica,

coloco a roupa mais bonita, sorrio para

foto, abro o programa de edição, faço alguns

retoques, escondo as últimas imperfeições,

abro o Instagram e posto. Essa sou

eu na minha essência, prazer! Finalmente

o primeiro like, confiro o número de visualizações

de novo, de novo e de novo.

Nossa! A tarde passou e eu nem percebi.

Curti a decoração da casa da Ma, a festa

da Ju e o yoga da Fe. Na tela, a versão

80


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MAJU ASSIS

São Paulo - SP

BLASÉ

perfeita de mim para você e por trás dela,

receba a minha atitude blasé.

Não tenho tempo para pensar na vida.

O trabalho dignifica mesmo o homem ou

será que desumaniza? Tropeço na miséria

e não me compadeço e se por um instante

lastimo, logo me esqueço. Percorro a

grande avenida e fito uma mansão, jardins,

quadra de tênis e piscina de natação

e um breve devaneio insisto em desejar

tudo aquilo que eu sei que nunca vou ter.

Vem a frustração, mas a vista dá para

marginal, contraste evidente e desigualdade

sem igual.

Um homem espia do alto do morro, o

palacete luxuoso com admiração. De perto,

mas tão longe para quem um dia edificou

aquela construção. Sessenta mil tijolos

levantados, mil e quinhentos metros

de azulejo rejuntado. Foi se aproximando

para poder ver o resultado de tanto tempo

de trabalho, mas o segurança escorraçou

sem dó, nem piedade. Quanto mais casas

como aquela fazia, mais pequeno ele se

sentia, porque a cidade engolia.

Mesmo acuado, o moço tentava escalar

os muros intransponíveis e depois de ter

sido colocado no devido lugar, respirou

e tentou retornar ao seu pedaço com o

arroz para as crianças. De repente, o pacote

estava esfacelado na ladeira, veio a

agonia de nos últimos momentos, empenhar-se

em resgatar a embalagem, sem sucesso.

Morte violenta vira estatística e me

deparo com a manchete no Facebook. A

respiração fica ofegante e procuro o Mindfulness

da moda para acalmar. Entro no

Instagram e vejo as aulas de yoga da Fe, já

me livrei do incômodo.

81


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

VORAZ

MALÚ BORTOLETTO

São Paulo - SP

Apaixonada por todas

as artes, escreve

desde menina,

completamente

apaixonada por música, cinema,

arte, poesia, literatura

e livros com ilustrações bem

editorados - forma e conteúdo

se complementam

82


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PAISAGEM FANTASMAGÓRICA VI

MARCO BULHÕES

Mestre em Artes

Visuais

pela Escola

de Belas Artes.

Participação em exposições

individuais, coletivas

e Salões de Arte. Ganhador

de quatro prêmios. Criou o

“Memorial das Máscaras”

de Maragojipe/BA.

83


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARCOS NUNES LOIOLA

Botuporã-BA

Sou advogado. Apaixonado

por literatura

desde criança, escrevo

contos e poemas desde

2019.

MISE EN ABYME

No espelho desta longeva cristaleira,

eu, espelho, me vejo em abismo...

Minha face desvela-se embaciada

por frágeis taças de cristal

feito uma pintura surreal...

Vejo-me entre antigas xícaras empoeiradas

que ainda conservam de outrora

o suave cheiro do café...

Reconheço-me em múltiplos planos:

meu eu maior guardando cópias

dos meus eus menores e esses

- ainda inalcançáveis pela retina -

guardando mistérios...

No espelho da cristaleira,

eu, espelho, me vejo em vertigem.

Queda livre ao (in)finito...

84


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARI BRITO

Porto Alegre - RS

Mari Brito dá

aulas de música,

anda de

bici e cuida

de plantas. Gosta de tarô, livros,

abraços, banho de rio e

açaí. É pianista, nortista, feminista

e escritora amadora.

Curiosa e intensa de nascença.

SOFIA

Desabotoou o casaco e sentiu as

meias se agarrarem ao tapete da

sala, como se celebrassem a liberdade

após um sufocante dia dentro

das botas quase surradas. A lenta coreografia

de suas mãos enquanto desenrolava o cachecol

do pescoço conduzia também o desenrolar

dos pensamentos sobre todas as coisas que

ainda precisava fazer naquele dia. Sofia fixava

o olhar num ponto do sofá enquanto sua

mente revia item por item não resolvido de

sua checklist. Ao fim do gesto que desnudou

seu pescoço, ela já havia lembrado de tudo.

Pendurou as roupas na entrada, jogou a bolsa

no sofá, virou à direita na cozinha, encheu

a chaleira, acendeu uma das bocas do fogão.

Esse ano o frio resolveu fazer birra, teimoso

até outubro, e como não tinha muito o que

fazer, Sofia simplesmente aceitou a mãe natureza

temperamental e nos últimos dias virou

adepta dos chás. Precisava se sentir aquecida

para trabalhar. Ágil, apanhou papel e caneta e

anotou as obrigações daquela noite.

“Tanta coisa, meu deus, e hoje é só segunda-

-feira” comentou para sua fiel companheira

dos últimos meses naquele apartamento: ela

mesma. De volta na sala, se estirou no tapete

colorido que ganhou de presente da mãe em

agosto daquele ano. Era um bom presente de

aniversário para quem passava horas na frente

do computador pesquisando bibliografia,

escrevendo artigo e revisando trabalho dos

orientandos — durante as raras pausas, ela

podia fugir e se jogar no chão e rolar, esticar,

deitar, como uma criança livre de obrigações.

E sim, um tapete de pano colorido devia ser

mesmo um presente incomum para quem faz

trinta e cinco anos, mas devia existir ali alguma

sabedoria materna que Sofia ainda não

compreendia.

Ela olhou para o teto. Fechou os olhos e viu

a lista “email pro Rodrigo pra Carla pra Sandra

revisar o capítulo do Diego responder o

coordenador agendar as salas com datashow

escrever o referencial teórico do projeto”,

abriu os olhos antes que a lista acabasse. Sentiu

em seus músculos a exaustão do primeiro

dia da semana e ouvindo o inabalável silêncio

daquele condomínio suburbano depois das

nove, sentiu vontade de estar cansada com

alguém.

A rotina na universidade era bem corrida e

ela estava sempre envolvida em alguma atividade,

evento, organização, planejamento, em

consonância com seu marte em virgem. Sempre

havia algo a ser feito, e devaneios eram

luxos que ela normalmente não se permitia

ter. Entretanto, no calor daquele tapete de

pano, algo que ela não sabia nomear começou

a surgir de dentro, lentamente encharcando

seu peito, até umedecer seus olhos.

Como uma menina desamparada, foi tomada

por um choro quieto, soluçando em silêncio.

Abraçava a si mesma, buscando um consolo

no próprio toque. Sofia se sentia profundamente

sozinha.

Feito um alarme, a chaleira apitou. Ela se

levantou num sobressalto, voltando à superfície.

E, ríspida, repreendeu a si mesma por

esse momento de fraqueza. Recompôs-se e de

pé, carregou seu corpo exaurido em direção

à bebida quente que regaria o trabalho que a

esperava naquela madrugada.

85


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARIA CATARINA

São Paulo - SP

CORRESPONDÊNCIA

Recebi seus envelopes vazios e queria agradecer a falta de

tinta, de novo.

Eu escrevo curto: um confesso, uma piada, duas perguntas.

Mas só recebo de você o embrulho, e ainda rezo pra que essa falta

de reação seja autêntica. Isso Importa porque eu odeio as mentiras

que as vezes te ocorrem.

Maria Catarina

nasceu em

fevereiro de

1999 na cidade

de São Paulo. Apaixonada

por literatura e arte, além

de escrever, trabalha como

tradutora e professora de

idiomas.

Não tenho pena de mim. Só da letrinha que fica ali, cintilando expectativa.

Soa uma criança perdida na correnteza de um rio meio

turvo.

Mania de achar que nós e nossas crianças somos coisas diferentes.

Encho o peito de ar pra escrever, mas só me vem água e lama.

A caneta estoura em cima da escrivaninha.

86


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARIA GABRIELA

CARDOSO

Porto Belo - SC

VERBORRAGIA

É nos confins das mentes silenciosas

Que adormecem os verbos pungentes

Inflamados por salivas raivosas

São ricos em sentimentos latentes

Os sons que os ouvidos guardam

Reverberam pelos séculos encerrados

Emergem em meio a noites nubladas

E transbordam nos travesseiros

As noites longínquas agonizam em meio às luzes oscilantes da lua cheia

Solitária e flutuante

Despede-se no raiar do dia enquanto deixa seus apaixonados carentes

Maria Gabriela

Cardoso, 23

anos, nascida

no Rio Grande

do Sul, atualmente morando

em Santa Catarina. Apaixonada

por todas as formas

de arte, mas principalmente

as que envolvem letras.

No embalar da melancolia

Em meio aos minutos escorridos

Com a cabeça latejando o vácuo

O grito se torna inaudível

O peito refreia todas aquelas emoções

Adormecidas

Mas os ouvidos inocentes

Não possuem proteção contra os sentimentos penetrados

E no epílogo do corpo

Eles são apenas a porta de entrada das emoções

Não são eles que sentem

Os sons são carregados pela veias que os levam até o coração

87


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARIA GABRIELA

CARDOSO

Porto Belo - SC

VERBORRAGIA

Esse quieto e dormente

Sente mesmo com sua derme grossa

Roupa que o veste

E sua clava de ossos na frente

Sua eclosão se dá para o corpo inteiro

Da ponta dos dedos

Percorrendo pela pele

Passa pelo rosto

Chega até a cabeça

Assim seus circuitos são acionados

Suas sinapses erram os trajetos corriqueiros

Uma tropa de pensamentos de berço

Voltam a sibilar raivosas na mente

As letras liquidificam-se

Perdem-se entre as vísceras

Preenchem os espaços

Até não mais caber e sair pelas chuvas torrenciais do corpo

A alma não escuta, não fala,

Pois quem sente é a carne

Que se desmancha em gotas pela face

Quando as palavras perversas,

Deveras diretas, a fazem pingar.

88


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARIA JORGETE

TEIXEIRA

Portugal

Maria Jorgete

Teixeira

nasceu em

Angola. Vive

em Portugal.

Obras: O coração é puta

sempre à espera; Mulher

à beira de uma largada de

pombos, à volta das canções

de José Afonso; A Solidão

das Dunas.

NATAL

89

Uma jovem mulher pariu um filho

numa rua de Lisboa

Isso se sabe.

Abriu as pernas e deixou passar

o filho como um rio

Na madrugada fria

Nada mais aconteceu.

Nenhum grito furou os vidros duplos das janelas

ninguém se inquietou

a colher não se deteve antes de chegar à boca

o açúcar do café não amargou

nem os lábios ficaram a meio do beijo

Toda a gente dormiu em paz!

Uma jovem mulher pariu um filho

numa rua de Lisboa

Mas não lhe contou os dedos,

não viu a cor do cabelo

não soube o cheiro da pele

não o aconchegou ao seio.

No dia seguinte acordaram

as vozes dos que nada tinham visto

nem ouvido nessa noite ácida.

Era preciso indignarem-se

para continuarem a dormir sossegados.


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARIA PIA MONDA

Belo Horizonte - MG

TRÊS DEGRAUS

Três degraus. O suficiente para ir

longe e fingir que eu e ele nunca

fomos próximos.

Da cidade, de seus rios ocultos e

dos cantos dispostos a nos acolher e nos cobrir

com sombras, dando aos nossos olhos a

ilusão de ser invisível para os olhos dos outros,

eu reconhecia apenas algumas formas.

Aquelas que, enquanto ele misturava sua res-

Entreguei o dinheiro para a trocadora, que

provavelmente sorriu para mim, provavelmente

não.

Estava me concentrando no disfarce, em não

mostrar como me machucaria considerar o

momento um prazo, um fracasso, um fim.

Já não era mais dia, ainda não era noite. Era

a hora de voltar para o tempo.

Empurrei a catraca. Antes que ele fizesse a

piração com a minha, se embaralharam em

mesma coisa, enquanto eu estava num canto e

maneiras absurdas, me mostrando o quanto

ele ainda no outro, a percepção da facilidade

meu mundo poderia ser mais bonito, se ele

com que pudéssemos nos separar prenuncia-

me quisesse mais do que eu estava disposta a

va a dificuldade que eu teria em acreditar que,

admitir de querê-lo.

mesmo que apenas por um instante, apenas

Três degraus. Três passos.

numa dimensão imaginária e distorcida, nós

A luz, de repente forte, tirou a magia e come-

dois tínhamos realmente nos reconhecidos.

cei a sentir-me bem triste, impedindo-me de

Fiquei imóvel, esperando que a mulher me en-

me perguntar se aquela tristeza estava ferindo

tregasse o troco. Mas ela entregou o dinheiro

ele também, com uma força igual ou superior.

para ele. Pensou que fossemos um casal.

Italiana de Napoli e,

desde 2015, reside em

BH, é autora de poemas

e contos, publicados em

revistas italianas e brasileiras.

Menor.

Como a tonalidade de uma música que eu

não queria ouvir, um acordo que discordava

com o pensamento absurdo de que eu poderia

considerá-lo um desejo e nada mais.

Porque os meus desejos nunca são disjuntos

do amor.

A naturalidade daquele mal-entendido abalava

a minha intenção de não tentar, nem

mesmo por engano, de sentir um sentimento

de pertença mútuo e mudo. Decidi abandonar-me

ao ruído do tráfego, a estrada fora da

janela de vidro chamava minha atenção, me

afastando do lugar que eu acabei de deixar

Três passos e os gestos retornando triviais.

e me empurrando para o lugar para onde eu

- Vou pagar por ambos- eu disse, mexendo

estava voltando.

a cabeça apenas para que o seu "obrigado"

Que eu não quisesse voltar, o que importava?

roçasse no meu rosto.

Contei três filas e escolhi os nossos assentos.

O ônibus estava quase vazio.

90


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARIA

MARIA STRUDUTH

Bahia

Ilustradora, artesã, compositora,

dentre outras

coisas que a arte lhe

possibilita transmitir.

Aborda em seu trabalho a

importância do amor próprio,

representatividade, capoeira

e espiritualidade.

91


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

Mariana Brecht

São Roque - SP

UM PEDAÇO DE MIM

Prometeu trabalhador

deixa o fígado ser comido

mas faz tudo para

proteger o coração

Amarrado ao prédio da Faria Lima

ao trem da CPTM

ao quartinho de empregada

ao escritório improvisado na cozinha

já não sente mais suas

nem o tempo nem as ideias

nem as partes que se vão.

Prometeu trabalhador

não sabe que deus traiu

nem pra que deus rezar

pra fechar o mês

Dá um salve pra Sísifo

mas diz hoje está sem tempo

que passe tomar algo

quando bater o cartão

ou o cartão virar

Já em casa

ao zapear o celular

e tomar um gole do chá ou

da cachaça

cai no sono

e reconstitui-se

apenas o suficiente para ser comido amanhã.

92


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARIANA SPERANDIO

Santo André - SP

PROCESSOS

Fotógrafa brasileira

que atualmente

mora em Santo André.

Depois de se

formar em Engenharia em

São Paulo, deixou o país

para viajar pelo mundo,

quando iniciou seus estudos

de fotografia no Equador.

93


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARIH DÜTRIEN

Curitiba-PR

Estudante, apaixonada

por escrever,

sendo a escrita o

motivo de sua sanidade

mental. Aspirante a

escritora desde os 12 anos

de idade, tem 17 anos. Sonha

em fazer da escrita sua

razão de viver.

DIÁLOGO

Apesar de termos feito tudo que fizemos,

ainda somos os mesmos?

Estou sozinha nessa. Você se foi,

contrariando as promessas veladas

que um dia me fizera. Talvez você também

esteja sozinho agora, e talvez, sozinhos,

nós dois ainda estejamos juntos. Talvez você

não se reconheça mais, assim como eu. Talvez

você ainda olhe para as memórias em um pêsame

saudoso. Não em uma esperança, claro,

essa ficou para trás no momento em que descobrimos,

sem querer, que fora tudo um acordo

unilateral. Sim, eu sabia que pontos de

vista são diferentes por natureza e conceito,

mas não sabia que olharia para o que já não

é mais com tanta distância e desestima. Eu,

perdida em devaneios como sempre sou, me

encontro em minha clausura, sufocada entre

o que passou e está por vir, interpelando-me

se foi tudo um delírio romantizado de minha

mente, se ela continua a romancear, se algum

dia irá parar, e assim faço-me vítima e autora

própria de meu sequestro.

E por onde começar a partir? Não diria luto,

pois há mais gratidão que arrependimento,

e menos saudade que um trêmulo desejo de

volta, ilegítimo nos momentos de sanidade.

Tem razão, sanidade nunca foi uma palavra

em nosso vocabulário, menos ainda agora em

desterro. Sei que tenho que escapar, de alguma

maneira, mas pelas razões certas, não por

desejo de distinções alheias. Não por vencimento,

ou validação, mesmo que esses infortúnios

desvirtuosos pertençam a mim, pois

duvido da veracidade que seguro há algum

tempo. Desde quando? Poderia dizer-te datas

exatas, com todos os segundos; porém, creio

que uma frase seria a mais exata maneira de

especificar o momento: quando minha orientação

se tornou meu destino.

Como você fazia para me segurar? Não se

preocupe, prometo que não te copiarei: não

pretendo desertar. Empurro-me, é verdade.

Mas não correrei. É a única certeza que tenho:

não pela impossibilidade, mas por uma

escolha forçada pelo resto de razão que me

resta. Aspiro conseguir ser minha própria fortaleza,

sem deixar que meus sentimentos me

afoguem ou que me falte água.

Só quero respirar novamente. Sentir-me em

casa, da mesma maneira que me enganava e

atribuía a sensação a você, não ao retrato que

externalizava constante e fluidamente quando

estava com você. Desta vez não irei me trapacear,

e escolherei não fazer de braços ou ouvidos

- muito bem seletores, por sinal - meu lar.

Agora, meu único objetivo é a subversão. Revolucionar-me.

Negar-me a tudo que não me

faça sentir intrínseca a minha essência. Qual

é ela? Respondo à sua pergunta com o questionamento

que me fez redigir e dirigir-me a

você: (Apesar de termos feito tudo o que fizemos)

ainda somos os mesmos?

94


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARINA P. P. OLIVEIRA

Brasília - DF

Nascida em

terras geladas

e

distantes,

encontrou

seu lugar quando deitou raízes

no Cerrado de Brasília,

onde seus avós plantaram os

sonhos de uma vida melhor

para todos os seus descendentes.

A ESTRELA E O ELEFANTE

Parada no meio do terreiro de festa,

Lilica ouvia, de um lado, o som da

zabumba e da sanfona ensaiando e,

do outro, um vento forte de manhã

de inverno no sertão, tocando poeira fina em

todas as direções. De repente, sente alguma

coisa pregada na testa. Passa o dedo e vem

junto uma estrelinha azul de papel brilhoso

que nem sol de meio-dia.

Imediatamente, passa tudo de novo. Noite da

lua cheia mais enxerida da sua vida. Daquelas

que chegam tão perto da gente para espiar

que dá vontade de pedir licença. Lilica até falou

com ela, mas não adiantou, a danada continuou

seguindo a menina. Esperou as seis irmãs,

mais pai e mãe dormirem, e desceu pela

árvore, que cresce junto à janela do quarto.

Tudo com a lua espiando, interessadíssima!

Chegou pisando macio, igual ladrão profissional

de galinha, que passa a mão e leva

embora sem arrancar um pio das bichinhas.

Procurou no pé da lona um buraco grande o

suficiente para passar o corpo e entrou. Não

calculou que ia adentrar justo atrás do picadeiro.

Pior. O moço, motivo da aventura, estava

justamente ali treinando. Pode?

“Pelo menos aqui dentro a lua não pode espiar”,

pensou, tentando se acalmar e se vingando

da enxerida.

Há uma semana não se falava em outra coisa

na cidade. Em todas as bocas só tinha um

nome: Vikruuuum, ou Víííkrum, dependendo.

Mas era ele! O indiano que tinha vindo

do outro lado do mundo montado num elefante,

atravessado o sertão todinho atrás do

pife perfeito para fazer parelha com sua cítara.

Ou será citáara?! Lilica não estava bem

certa. Aliás, tinha certeza de estar era muito

errada, sem juízo, sem noção.

E antes que pudesse dar meia volta e sair por

onde entrou, deu de cara com ele.

“Vixe, Maria! Só pode ser assombração!

Bonito desse jeito!”, pensou Lilica, fazendo

o sinal da cruz. E ele riu ao ver a menina se

benzendo. E o

som que

saiu

daquela

boca desenhada

e cheia

de carne, fez cócegas

dentro da

orelha de Lilica e

aumentou a confusão.

Quando deu por si,

Lilica estava lá em

cima, perto do céu

de estrelas coloridas

da lona do circo. O

indiano era trapezista.

O ombro forte e

as faixas amarradas

no punho não enganavam.

Parecia

saído de livro.

95


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MARINA P. P. OLIVEIRA

Brasília - DF

A ESTRELA E O ELEFANTE

Pulou no trapézio e começou a voar para cá e

para lá, hipnotizando a menina. Aí, do nada,

voltou para onde Lilica estava, mostrou o trapézio

e ofereceu uma carona, apontando com

o queixo para aquele graveto voador, no qual

se agarrou e foi voar.

V-E-R-T-I-G-E-M.

“Só pode ser ela”, pensou Lilica. “Ou será

o P-R-E-C-I-P-Í-C-I-O da vovó, toda vez que

passa numa ribanceira?” O indiano não é

Vikruuum, nem Víííkrum, é Vertíiigeeem ou

Precipíciiiiiioooooooooo. Não deu tempo

de saber. O moço da pele maravilhosamente

encardida, não dava tempo de pensar. Pegou

firme na cintura de Lilica e a levantou até o

trapézio. O calor das mãos coladas no vestido

fazia mais cócegas que o macio da voz. Mas

não deu para se benzer e o jeito foi agarrar

firme no trapézio e, assim, voou com ele, no

meio das estrelas.

“Agora queria ver a lua enxerida espiando!

Até que ia compor bem o cenário”, diverte-se

Lilica, entregando-se completamente à sensação

de vertigem, cada vez mais gostosa.

“Ô menina! Tá fazendo o quê com essa cara

de abestada no meio do terreiro?!”, grita a

mãe. “Tá na hora de se arrumar!”

Lilica guarda depressa a estrelinha e se recompõe.

Os convidados estão chegando, o som da

zabumba e da sanfona se aproximando junto

com um triângulo rápido que só. Ou será a

batida do seu coração?!

Chegou a sua vez! Depois de esperar as seis

irmãs mais velhas serem o centro da festa,

finalmente seria ela a estrela, sim, a caçula,

a cabeça-de-vento, mas ainda assim E-S-T-R-

-E-L-A. Corre para dentro e entra no vestido

branco rendado por toda parte, a coisa mais

linda do mundo. Põe o véu e pega o buquê.

Vai começar o casamento na roça! Olha o

noivo. Zizinho bem podia ser um indiano

montado no elefante, trapezista, tocador de

cítara. Pensando bem, podia ser muito mais,

ensaia, rindo, depois de notar uma estrelinha

azul se divertindo pregada no meio da testa

dele.

96


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MAURÍCIO SIMIONATO

Campinas - SP

Poeta e jornalista.

Lançou os livros

de poesias Impermanência

(2012,

selecionado pela Secretaria

de Cult. de Campinas), Sobre

Auroras e Crepúsculos

(2017, Multifoco) e O AradO

de OdarA (2021, Patuá).

CAVALO SELVAGEM NA NOITE

A primeira estrela da noite

chega entre nuvens

que já se foram.

O primeiro pássaro da noite

revoa do Leste imaginário

rumo ao Oeste solitário.

O primeiro cavalo selvagem

da noite sequer existiu.

Mesmo assim

partiu agalopado.

As primeiras pedras da noite,

daqui a pouco, se tornam frias.

E tornam-se uma ameaça

aos primeiros passos

da noite, com seus subângulos salientes

feito os primeiros dentes

da noite, que remoem a lâmina cega da imensidão.

A noite, em seu desjejum, nos engole.

E o faz apenas para poder raiar

no primeiro amor do dia.

97


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MILLA TRIGO

Curitiba-PR

FUMAÇAS DE REBOUÇAS

Trago no peito contestáveis diálogos entre sístole e diástole.

Trago de forma emancipatória, em cordilheiras ao norte

[e oceanos ao sul.

Trago no peito essa dor amarga, compartilhada por onde passei.

Na janela, a neblina ofusca o tempo aberto.

Abro o peito para o mundo, talhando novamente feridas em avesso.

Trago a fumaça apartada de um só, em samba melancólico

[engatilhado na ponta dos dedos — souvenir de outros instantes.

Trago a fumaça empilhada no olhar,codificada em poesias

[existenciais.

Trago novamente a lembrança, distante e vivaz.

Trago rotineiramente o vão, o escape, o chão.

Dialogo em silêncio as pulsações, dissolvo o momento,

[acalmo a pressão.

Trago comigo tudo aquilo que não entendi e talvez,

[incontestavelmente, nunca entenda.

Curitibana com coração

baiano, é

redatora, escritora

e roteirista. Processo

é a palavra de (des)ordem.

Permeia entre a escrita

e a imagem desde sempre, ou

quase isso.

98


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

MOZÃO MUNIZ

CASUALIDADE

“Estamos precisando de palavras amigas,

que proporcionem um melhor caminho

para nossa evolução!” (Mozão Muniz)

Artista mineiro, graduado em Música, cantor, compositor e intérprete - Mozão Muniz

possui uma bagagem profissional bem diversificada interpretando sucessos nacionais e

internacionais da música pop, rock, MPB, samba e forró há mais de 15 anos. Participou

de bandas com reconhecimento nacional (“Suor e Ritmo” e o grupo de forró, pé de serra,

“Chama Chuva”) realizando shows em todo o Brasil e gravou quatro discos e um DVD.

Mas em 2019, o artista começou sua carreira solo, com apresentações mais intimistas (SHOW

MOTIVOS). Sentindo um despertar e um chamado para colocar a sua arte mais conectada com

seu lado poético e espiritual.

Suas inspirações ganham vida através de suas canções. As letras falam de otimismo, esperança,

boa conduta, alegria, amor, respeito e, em geral, o artista preza pela reflexão, pela ativação da

Consciência.

Mozão Muniz é com certeza um grande artista, que, no momento, busca se alinhar com lugares

e pessoas afins, que proporcione um canal para que a música seja um instrumento de alegria e

despertar.

Casualidade

É essa luz,

Por causa dessa brilhante luz azul,

que me enche de vontade em desvendar,

o que nem sei o quê.

Que me mantém acordado imaginando,

[imaginando ...

Por trás dos teus cabelos há um mundo

[que eu quero descobrir.

Por trás do teu sorriso um beijo intenso

[que me faz viajar!

Ao longo dessa estrada um conto mágico,

[pra gente ir.

Nas entrelinhas desse texto o meu pretexto

[é para te amar.

Há uma luz em teu semblante, que brilha

[feito pedra rara.

Eu acho boa essa ideia de você me iluminar.

Por trás dos teus cabelos há um mundo que eu

quero descobrir.

Por trás do teu sorriso um beijo intenso que

[me faz viajar!

Casualidade pode ser, tudo bem, mas não

[acredito.

No meu coração bate a certeza que tudo

[estava escrito.

A gente casa muito bem um com o outro

[não podemos negar!

Onde você esteve o tempo todo?

Onde você esteve esse tempo todo?

Graças a Deus, pude te encontrar.

Emergido do lago azul dos teus olhos, é que irei

[repousar para um novo amanhecer.

Onde você esteve o tempo todo?

Onde você esteve esse tempo todo?

Onde você esteve o tempo todo?

Graças a Deus, pude te encontrar!

99


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

NILZA VERÔNICA AMARAL

Palmas - TO

Nilza Verônica

Amaral é Arquiteta

e Urbanista,

Mestre

em Ciências do Ambiente e

Sustentabilidade na Amazônia,

pela UFAM. Seu hobby

é escrever crônicas e poesias,

além de fotografar.

O CAFÉ QUE NOS UNIU

— Eu só tive um namorado...

Virei-me e fitei aquela mulher marcada

pelas rugas do tempo. Falara muito baixo,

quase ensimesmada. Achei que falara

com suas lembranças. Mas mesmo que

não tivéssemos intimidade, baixei minha

prancheta de campo e dei-lhe minha atenção.

Convidou-me para tomar um café e voltamos

do roçado caminhando em silêncio

até sua casa, moradia simples de assentamento

rural

na Amazônia,

onde eu levantava

dados de

campo para

meu mestrado.

Chegamos

e, enquanto

aguardava o

café, observei

os pertences

daquele cômodo:

uma mesa com meia dúzia de banquinhos

gastos pelo tempo e enegrecidos pela

fuligem expelida pelo fogão à lenha; num

canto, sobre uma mesinha, um filtro de

barro, umas poucas vasilhas e uns copos

de alumínio caprichosamente areados.

Mexia-se devagarzinho talvez para escolher

as palavras certas que reiniciariam a

conversa. Coou o café e me serviu, junto

com um pedaço de macaxeira recém-cozida.

- Você disse que só teve um namorado na

vida?

Olhou pra fora de casa com o olhar perdido,

decerto buscando esclarecer.

- Quis dizer que só tive um amor de verdade,

aquele que dói no peito. Mas tive

que casar com outro.

Supondo que seria uma história de amor,

redobrei minha atenção porque histórias

de amor precisam

ser ouvidas

com o

coração.

- Estudei pra

ser professora

e ele, pra

ser agricultor;

mas não era

dotô, não. Conheci

ele quando

fui ajudar

meus irmãos na limpeza da roça. Ele trabalhava

lá, suado, bonito, cabelo preso

debaixo do chapéu; me olhava de longe.

Era homem da cidade e eu não olhava,

não. Dias depois, quando acabou o trabalho,

nós já tava namorando. A gente se

via escondido, sempre espreitava um local

diferente. Interior sabe como é... não tem

nada pra gente fazer. Ele me queria e eu

100


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

NILZA VERÔNICA AMARAL

Palmas - TO

O CAFÉ QUE NOS UNIU

também queria ele. Então deitamos umas

vezes e eu emprenhei; meus irmãos descobriram,

me bateram disseram eu era uma

desavergonhada e me expulsaram de casa.

Uma senhora que me conhecia me levou

pra casa dela, na cidade, e cuidou de mim.

Meus irmãos queriam matar ele, mas ele

fugiu. Nunca mais nos vimos.

Seguiu com a voz embargada.

- O filho dela morava neste assentamento

e queria que eu viesse pra cá, com ele.

Meus irmãos me obrigaram a casar e então

aceitei. Se não fosse assim acho que

morreria de fome; emprenhei mais umas

cinco vezes. Meus filhos cresceram, foram

estudar na cidade e eu fiquei aqui,

com meu marido. Trabalhamos a semana

toda, na roça, numa lida muito dura; no

domingo vamos à missa, na cidade. Num

domingo, vi ele de longe; ainda usava o

cabelo preso debaixo do chapéu e continuava

bonito. Senti uma dor no peito,

quase morri. Voltei pra casa e chorei, mas

a dor nunca passou.

Com uma voz bem baixinha, continuou.

- Sabe, não casei por amor, casei por precisão;

não reclamo da vida, mas queria ter

casado com ele, ser professora, ensinar

meus alunos a ler e escrever. Não pude escolher.

Ler é a única coisa que faço à noite,

depois que faço a janta e limpo tudo.

Minha filha compra pra mim, na cidade,

livros usados e divido eles com a comadre,

que também gosta de ler. Meu marido não

gosta que eu leia, diz que livro só ensina

o que não presta. Mas leio mesmo assim e

ele finge que não sabe!

Nosso café esfriara; dei um último gole,

ela colocou a louça suja no jirau e saímos.

Retornamos em silêncio. No fim da tarde,

enquanto voltava pra casa dirigindo pelos

ramais esburacados, matutava no que

ouvira... Nos meses seguintes continuei

entrevistando outras famílias, mas procurava

encontrá-la sempre que possível,

porque seu café quentinho juntava muitas

histórias. Entretanto nunca mais, a partir

daquele dia, ouvi histórias de amor. Presumo

que, além de mim, somente a comadre

ouviu aquele relato; porque naquela

lonjura toda, ter uma amiga confidente e

fiel é igual a ter um paneiro cheio da melhor

farinha.

Aquela mulher me ensinou que o amor

é universal e cabe em qualquer coração,

em qualquer lugar e em qualquer tempo.

Lembro-me sempre dela, do café que nos

uniu e do amor que guarda consigo todos

esses anos.

101


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PAULA SCOFANO

Rio de Janeiro - RJ

Graduanda em

História no Instituto

de História

da UFRJ, cursando

bacharelado e licenciatura,

Paula Scofano de Almeida

atualmente é Educadora

do Setor Educativo do Theatro

Municipal do Rio de

Janeiro.

O CALOR DO MOMENTO

Sempre gostei de comida em temperatura

ambiente, tinha pavor de

comida quente. Quando preparava

um pão na chapa com manteiga,

deixava-o descansando por uns vinte

minutos para comê-lo. Pão de queijo era

sempre mais gostoso no dia seguinte,

quando borrachudo. O sabor fica mais

intenso, afirmava.

Todo o ritual do preparo da refeição era

muito bem pensado: enquanto o ovo mexido

esfriava, comia a maçã -alimento que

abre o dejejum; o café perdia um pouco de

seu calor a cada movimento da colher que

inicialmente colocou o açúcar na xícara;

para finalizar, uma banana em temperatura

ambiente. Assim seguia meu método

planejado com toda cautela. Muitos me

criticavam, pois era a última a terminar a

refeição e sempre me atrasava.

Nunca tinha parado

para pensar nisso

tudo até um médico

me recomendar incluir

o chá mate em

minha rotina, alegando

que faz muito

bem para o colesterol,

além de aumentar a

energia e o foco mental.

Retruquei dizendo

que é dose bebê-lo

sem açúcar; ele, com

sua autoridade de doutor, propõe que eu

tente tomá-lo quente, visto que, quando

se consome algo em alta temperatura, o

gosto amargo é menos sentido. Chego em

casa e, ao invés de consumir o chá gelado,

o bebo quente sem adoçante. Tudo

fez sentido. O morno disfarçou o gosto

desagradável de antes, fazendo o líquido

bebível e, com o tempo, o negócio virou

um hábito indispensável; afinal, um exame

de sangue de acordo com os padrões

me agrada.

Minha teoria culinária defensora da comida

em temperatura ambiente pouco resistiu.

Ao longo do tempo, comecei a tolerar

a mistura das condições térmicas. O

que antes era uma situação fixa da minha

rotina, tornou a conversar com outros

tipos de costumes anteriormente inad-

102


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PAULA SCOFANO

Rio de Janeiro - RJ

O CALOR DO MOMENTO

missíveis. Desde então, bebo o café não

adoçado, fazendo questão que tenha que

estar quente; alguns me julgam, mas alego

que desce melhor, tenho a ciência ao meu

lado. Beber um cafezinho pelando com

um bolo morno tomou parte dos meus

lanches, os quais se tornaram muito mais

rápidos; não perdia mais tempo esperando

as coisas esfriarem um pouco.

Acontece que, com o tempo, os benefícios

rápidos da coisa quente tomaram

conta de mim. O mundo apressado entrou

na minha vida, fazendo com que eu

comesse as coisas assim que saíssem do

forno, bebendo o chá mate a todo vapor!

A facilidade me acalentou assim como

uma lareira ligada em uma noite fria: o

clima que me cercava começou a ser ignorado

por meio da chama tão logo aderida.

Esse caminho é extremamente seduzente;

ser rigorosa com os métodos era coisa do

passado!

Um dia, atrasada para um compromisso,

fiz tudo correndo, sabendo que daria tudo

certo: eu como comida quente agora! Nessa

rapidez dos movimentos, tomei uma

chuveirada, comi minha fruta, coloquei o

café num copo e saí de casa. Finalmente

entrei para esse mundo moderno. Piso

na rua, tropeço, e o líquido escaldante cai

todo em mim: o café -sem açúcar- ultrapassa

a camada grossa da roupa, me queimando

levemente. Tudo aconteceu muito

rápido, no calor do momento. A rotina

da rapidez me causou isso; a facilidade

de não aguardar me traiu; o golpe quente

veio com tudo. A desilusão da minha

breve jornada não será vista futuramente

com teor revolucionário, mas sim como

uma fase oportunista.

Mesmo com a dor sentida, tenho que

aparecer no compromisso. Ando pela rua

com a mancha marrom em minha camisa,

denunciando o acontecimento anterior.

Agilizo então meu passo, misturando

a vergonha do descuido com a pressa de

cumprir horário. Apareço no local marcado;

apresento meus documentos; aguardo

ser chamada. Chega a minha vez e, apesar

do médico me parabenizar pelos exames,

exijo: quero que o senhor me recomende

outro alimento para melhorar o colesterol!

103


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ESPINHOS DA CAATINGA

PAULO ESDRAS

Brumado - BA

Professor, escritor e

poeta. Membro da

Academia de Letras

de Brumado, foi

contemplado em prêmios

estaduais e nacionais. Publicou

em 2020 seu primeiro

romance "Sadres: o Sábio, o

Louco, o Poeta".

104


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PEDRO ANTÔNIO

LIMA PEREIRA

Guarulhos – SP

Paulista de 19 anos,

graduando em design

de interiores e

design de produtos,

na Belas Artes, com grande

amor na ilustração e pintura.

@adeia.lima

PLEXO PERPLEXO

Caminharíamos por dias, vejo outros fazendo o que fazíamos; forças

ela não teve, abraçou o nada e mentiu; acreditada em que eu desenhasse

problemas em seus traços. Foca agora no que vaza e me deixe

para mim; não fui eu quem desperdiçou tempo pensando noutro,

se iludiu e, preocupou o mundo, mas, sem ou com você, já bastava, da mesma

forma que, comigo ou sem, daria falta ao seu abraço.

Tempo de sentimentos,

por conta de movimentos

cansativos, ações e

reações, opacidades e

reflexões, tudo numa

textura que se cobria

como pele, e só a tirou

para mim quando não

via mais motivo para

casar-te.

Me capacito de mil entendimentos

e com isso, me disponho a calá-la estando quieto; mesmo que um

dia eu pare, espero que tenha entendido o que eu quis dizer, mesmo que nem

sempre desse para escutar.

105


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

RESPIRA

PEDRO GONÇALVES

Tauá - CE

Quando explodimos

Os primeiros

A serem atingidos

Por estilhaços

São as pessoas que amamos.

Respira!

Um acanhado entre

discos e livros

que durante o

dia entrega cartas

para sobreviver e a noite

cursa Licenciatura em Letras

com dupla habilitação

(POR/ING) no Instituto Federal

do Ceará (IFCE).

106


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PEDRO GUERRA

DEMINGOS

Porto Alegre - RS

INSÔNIA

O

sono purga um som para fora dos meus olhos.

Meus tímpanos só fazem concordar.

Meus olhos escoam, minha testa

se abre para aplaudir.

Os acordes são a madrugada, a madrugada

é hipertensão. Não sei se é ansiedade ou arritmia

a matar-me esta noite, no silêncio dos

acordes, os acordes, os acordes.

Miopia, astigmatismo, estrabismo me explodem.

À otite sobrou uma mosca.

Tudo se move, o mundo

faz negar a si próprio.

O tambor, ao longe,

longe ecoa. Nada é suficiente

para libertar-me e, enfim,

acabar – começar – acabar.

Pedro Guerra Demingos

é colaborador

oficial do blog Escrita

Cafeína. Ele

dedica uma fração insalubre

da sua energia à escrita

criativa, pois acredita que a

ficção ergue pontes entre as

pessoas.

@pgdemingos

107


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PRICILA MARCHESE

São Paulo - SP

Os cinquenta anos

trouxeram coragem

para eu

publicar meus

textos. Escrever é magico,

transformador, empolgante,

terapêutico…

Fiz cursos de escrita criativa

na Metamorfose e com Renato

Modesto.

“TODO DIA ELA FAZ TUDO SEMPRE IGUAL”

Salta da cama muito cedo para ir ao trabalho.

Toma banho e encharca-se de

colônia, come pão francês com manteiga

e café forte.

Espera o ônibus perto da sua casa. Pontualmente

às 7:30h, o transporte passa, ela entra

na lotação ainda vazia. Senta-se sempre no

mesmo lugar ao lado da janela. Pega o celular

e tira uma dezena de selfies. Faz caras e

bocas. Usa a tela como espelho. Desembarca

às 8:10h.

É a primeira a chegar ao escritório. Pega um

grande e pesado molho de chaves e escolhe

a que está envolta num elástico amarelo e

grudento, marcando aquela que abrirá a porta.

Ao entrar, coloca a bolsa debaixo da sua

mesa. Vai ao banheiro, retoca o lápis de olho,

a sombra e o batom vermelho cintilante.

Senta-se em sua cadeira.

Sobre a mesa, um monitor com teclado encardido.

Do lado direito, uma rosa de plástico

fincada num vasinho empoeirado. Do lado

esquerdo, um porta-lápis com canetas hidrográficas

coloridas.

Cabelo repartido ao meio, preto e muito liso.

Desliza os dedos a todo momento, impedindo

que eles caiam sobre seus olhos, deixando-os

com aspecto ensebado.

Liga o obsoleto computador, dando início ao

seu dia de trabalho numa repartição pública

no centro da capital paulista.

A mesmice de sua função ganha emoção

quando Paulo aparece. Ele passa todos os

dias no mesmo horário para entregar as correspondências

do enorme prédio comercial.

Ao vê-lo entrar, ela sorri, deixando à mostra

seus dentes tortos. O brilho nos olhos é

tamanho que sua arcada dentária passa despercebida.

Corada, agradece no momento em

que enrola entre os dedos uma mecha do seu

cabelo. Vez ou outra ela morde a ponta da

caneta e pisca o olho direito, exibindo seus

cílios postiços.

Cartas entregues. Ele finge não perceber a sedução

da colega.

Ela fixa o olhar em Paulo enquanto ele desaparece

descendo a escada.

Hora do almoço. Vai ao refeitório, esquenta

a marmita em banho-maria. Posta sua rotina

entediante no Instagram em fotos coloridas.

Volta. Digita centenas de palavras até que a

tendinite a pega de jeito.

Hora do encerramento.

Vai ao banheiro e retoca a maquiagem. Capricha

na colônia barata. Passa pela recepção.

- Até amanhã, Paulo. - diz ela com fala atraente.

Ele sorri desconcertado.

Vai à lanchonete em frente ao ponto de ônibus.

Entra. Pede café forte e pão francês. Às

19:30h, pega a condução lotada. Chega em

casa às 20:30h. Toma banho. Faz uma hora

em frente à TV ao mesmo tempo em que segue

os passos de Paulo numa rede social. Ela

sabe tudo sobre ele. Paulo é a obsessão de Joana.

Desliga tudo às 22h. Tem sonhos eróticos

com o rapaz. Ao acordar, sua cama está

encharcada de suor. Ela vai direto pro chuveiro

livrar-se dos sonhos perturbadores.

Não tem coragem de se declarar. Teme dar

fim à fantasia idealizada por ela. Prefere ficar

nas conjecturas do cotidiano sonso.

Salta da cama muito cedo para ir ao trabalho.

Toma banho e encharca-se de colônia, come

pão francês com manteiga e café forte.

Espera o ônibus perto da sua casa…

108


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PRISCILA DE BOM

Poços de Caldas - MG

Mineira amante

das palavras.

Graduada

em

Direito, pós-graduada em

Língua Portuguesa e Direito

Público. Servidora do

TJMG. Escrevendo palavras

e vivendo histórias. De lutas

e de glórias.

MANDINGA

Eis que a cidadã queria receber por

seu trabalho, posto que, segundo ela,

muito bem realizado.

O que o cliente almejava? O amor!

Sim. O amor, acredite. Nutria por aquela jovem

da qual falara um amor imenso. Tudo o

que precisava era que ela o enxergasse, que

ela o amasse, desejava ser correspondido, esperava

que se olhassem, se entrelaçassem, namorassem,

que fossem felizes para sempre, ou

...até que a vida os separe!

Mas o amor se compra ou só se encontra?

Bem... não vem ao caso. O caso era que a cidadã

era profissional no assunto. Intitulava-se

vidente e capacitada pra trazer ao ser humano

seu projeto de felicidade. Era o amor que ele

queria? Pois era o amor que ela venderia.

E como tudo na vida tem um preço, esse

“trabalho” além do preço, tinha um contrato.

Devidamente assinado, mas, é claro, sem

testemunhas. O amor da jovem a florescer,

retribuído a seu cliente em apenas algumas

semanas. Primeira parcela na assinatura do

contrato, restante quando do início do namoro.

Fico pensando o que passa na cabeça

de uma pessoa para assinar tal coisa.

Ou o desespero é imenso ou a falta de

discernimento, muito grande. Enfim...

o amor.

Eis que do serviço prestado: meia suja,

fio de cabelo, muitas velas acesas e outros

tantos ‘trabalhos’ na encruzilhada

(ela não disse que tinha um caldeirão,

embora eu esperasse ansiosa por essa

notícia!) o amor nasceu. Pareceu realmente

um bom ‘serviço’ prestado pela

cidadã. Não foi realmente fácil, tarefa

árdua, dias e noites de trabalho intenso. Mas,

enfim a garota amada o olhou, um belo dia se

encantou, semanas depois o namoro começou

e pasmem: estavam noivos!

Mas o restante do pagamento para a cidadã?

Nada.

Ainda pasma com o caso recebido, subi as escadas

até a sala do juiz:

— Dr.! Eis que alguém vende o amor. E nada

verbal, pois que há até contrato assinado.

Atônito, me olhou. Gargalhadas e mais gargalhadas.

Objeto ilícito ou impossível?

A cidadã nunca recebeu, ainda que a contragosto

desta que vos conta, a ação tenha sido

proposta com riqueza de detalhes que lhe

coube nos fatos, mesmo que falhos os fundamentos

jurídicos. E, é claro, extinta por quem

de direito, MM. Sr. Dr. Juiz. do Juizado Especial

da Comarca.

Pois foi que mais uma vez o amor venceu. E

apenas com o pagamento da entrada, diga-se

de passagem.

109


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PRISCILA LIMA

Onde é que vai dar

Quero correr rever a lua

Sem tempo nublado

Nem carro parado

Ninguém disfarçado

Olhando pros lados

Estou bem certo dessa curva

Eu vi você naquela rua

Aquele abraço envolvente

Então está tudo bem com a gente

Onde é que vai dar 2x

Eu pago pra ver

Onde é que vai dar 2x

Eu pago pra ver

ONDE É QUE VAI DAR

Priscila Lima é cantora, compositora, arranjadora

vocal, professora de canto, terapeuta

vocal e produtora cultural. Atuando

desde 1998 no cenário artístico do DF,

pôde vivenciar ambientes do reggae, soul, funk e

jazz, que se somaram à sua formação desde criança

na Igreja Batista, onde conheceu o gospel Rhythm

and blues e iniciou seus estudos de canto e

piano. Com mais de 20 anos de carreira, Priscila

já formou diversos alunos, sendo grande representante

da arte e cultura de Sobradinho, já tendo

sido Conselheira de Cultura, além de grande

militante e ativista, integrando coletivos diversos.

Mais tarde já participante ativa do movimento

cultural de Brasília, atuou por 8 anos como uma

das vocalistas da banda Fora de Si, onde aperfeiçoou

seus conhecimentos vocais, estudando arranjos

de voz e harmonia. Participou como backing

vocal de vários grupos da cidade de Brasília. Em

2011 passou a desenvolver seu trabalho solo autoral

e apresenta hoje um repertório sofisticado e de

muita qualidade sonora, com influências do Funk

(gênero musical derivado do Jazz, RAP, Soul Music

e gospel Rhythm and blues) somadas a nossa

Música Popular Brasileira de cada dia”. Esta mistura

de ritmos apresentada pela cantora Priscila

Lima, desperta de forma singular a percepção da

identidade étnica negra, que fortalece o princípio

da diversidade cultural. O universo musical, no

que concerne à produção, tem sido, uma prerrogativa

predominantemente masculina, o que traz a

questão de gênero à tona, pois a cantora delineia

esses traços em sua concepção musical valorizando,

desta forma a força da mulher na produção

cultural brasileira. Moradora da periferia, Priscila

encontra na Arte uma vasta possibilidade de

inserção social, tomando a arte e cultura como

instrumentos de transformação pessoal e coletiva;

uma juventude que se reconhece enquanto

agente cultural é consciente de suas raízes e busca

novos horizontes. Priscila Lançou seu primeiro

álbum em todas as plataformas digitais em abril

de 2019, com a participação de várias vozes da

periferia, e com participação de grandes nomes do

cenário musical, como o baixista renomado Marcelo

Mariano, Felipe Viegas e Wilson Bebel. Hoje

Priscila Lima, acompanhada por Diogo Nicoloff,

produtor e guitarrista Pernambucano do épico

disco “Imorrivel” de Di melo que chega somando

com muito groove e suingue, no novo trabalho da

cantora que vem sendo desenvolvido nesse ano de

2021, com lançamento previsto para o fim do ano.

Priscila Lima, traz ao público o resultado desses

20 anos de estrada, com um som dançante, grooves

e poesias, atingindo a várias faixas etárias e

socioeconômicas.

Para ouvir a música, clique no link:

encurtador.com.br/rxALV

Se você se sente cheio

Mesmo que haja um bloqueio

Não, não perca esse passeio

Se você estiver aberto

Vou estar sempre por perto

Ser feliz é papo reto

O trem sai às onze horas

Eu te espero, não demora

Vem viver a nossa história

110


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

PROJETO

VERMELHO CANDIRU

Rio de Janeiro - RJ

VERMELHO CANDIRU

Autoras

Bárbara Amádio

Diana Magalhães

Camilla Rodrigues

Jéssica Paola

Liana Monteiro

Lorena Lima

Stephanie Oliveira

Stephanny Menezes

@vermelhocandiru

111


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

REGILENE MARTINS

Fortaleza - CE

Professora da Rede

Municipal de Fortaleza.

Aprecia a

cultura oriental. É

apaixonada por livros e nas

horas livres escreve cartas.

Gosta de trabalhos manuais

e de fazer coleções peculiares.

AMIGO DE MEU PAI

Um dos grandes amigos de meu

pai, conhecido como Mola, começou

a praticar atos imprudentes

nesses últimos meses.

Papai não sabia da mudança de comportamento

dele, o considerava um verdadeiro

companheiro por sempre ajudá-lo,

principalmente em momentos de sufoco

no trabalho.

Como de costume, Mola marcou na última

sexta-feira daquele mês ajudar o papai

no trabalho. Naquele dia, meu pai não

esperava que ele fosse furtá-lo, pois tirou

uma ferramenta e foi embora. Passou dias

sem dar notícias e ir à oficina.

Dentre todos os equipamentos de lá, ele

pegara logo a que meu pai mais usava

e estimava: uma chave-estrela especial.

Mas a ferramenta não era importante, necessária

era a amizade entre eles. Papai

sabia que tinha sido ele quem praticou o

ato. Não falava nada, no entanto, depois

de dois meses, meu pai se manifestou.

Dizia coisas como: “-Mola,

você me paga”.

Tempo foi passando e o papai

continuava murmurando.

Também ficava se perguntando

por que o amigo

não pediu emprestada a ferramenta.

Precisava mesmo

pegar sem permissão?Talvez

nem fizesse diferença. Já que

fez o ato, duvidamos se ele

iria devolver.

112

No fim daqueles dois meses, meu pai foi

novamente enganado. Desta vez não foi

por um amigo próximo. Um cliente pegou

uma nova ferramenta da oficina, chave

de boca, que tinha um isolamento de

uma marca um tanto atrativa. Sabe quem

apareceu nesse momento para ajudar? O

Mola. Ele saiu correndo atrás do freguês

que havia pegado a ferramenta do papai.

Meu pai ficava só olhando a cena: o freguês

correndo na Avenida Principal com

medo do Mola, pois o amigo de meu pai

estava indo atrás dele para recuperar a

ferramenta roubada.

No final, papai agradeceu o amigo por

ajudar a recuperar o acessório precioso.

Também gostou de ter resgatado sua

amizade com o Mola. O amigo de meu

pai não disse nada e nem devolveu a ferramenta

que havia pegado nos últimos

meses. E ficamos nos perguntando o que

de fato foi primordial para eles nessa amizade.


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

REGINA BORGES

Jatobá - PE

Sou Regina Borges,

graduada em Letras,

professora da rede

pública estadual de

Pernambuco, produtora

cultural e coordenadora do

Clube do Conto.

MEU CANINO TORTO

Meus caninos nasceram na mesma

época que a minha mãe já tinha

perdido os incisivos centrais e laterais

e praticamente todos os pré-

-molares e molares. Das gargalhadas e risos frouxos

havia poucos vestígios, agora a sua alegria se

apresentava com timidez, mão na boca, e eu que

adorava gargalhar com ela me sentia num ato solitário,

e por isso rezada para que Deus também lhe

fizesse nascer dentes novos.

Deus nunca atendeu. E com o tempo me acostumei

com o seu sorriso acanhado banguela.

No dia da vacina de pistola lá no postinho, aquele

alvoroço todo, criança chorando, gritando, desmaiando

e a mulher dizia: “num dói nada”, “é um

ato cívico”, não era o braço dela! E minha mãe

depois ganhou três escovas, foi o que realmente

consolou, porque eu já estava com muita raiva daquela

senhora gorda, sardenta e que sorria toda se

mostrando com os seus dentes brancos enquanto

eu chorava desesperadamente.

“A enfermeira mandou escovar três vez por dia!”,

repetia minha mãe na volta pra casa, “senão os

dente fica tudo pôde”. Ela parecia contente com

o nosso futuro com dentes. Já eu e meus irmãos,

ainda aos soluços pela dor da vacina, só balançávamos

a cabeça, confirmando as importantes

recomendações. Recomendações essas que foram

esquecidas depois de uma semana por eles, preferiam

mesmo era usar pela manhã as folhas de juá,

isso quando nossa mãe ficava brigando.

Eu me mantinha firme com a minha escovinha

branca de cerdas rosas e quando faltava pasta eu

passava sabonete mesmo, até sabão amarelo, era

horrível! Também gostava muito de mastigar as

folhinhas verdes, e tudo valia para não ficar com

dente podre, ou chorando com dor de dente por

dias como meu irmão João, que mal tinha começado

a nascer o bigodinho já estava praticamente

banguela como nossos pais.

Foi nessa ocasião que comecei a separar as pessoas:

A senhora que trabalhava na prefeitura era

uma mulher bonita e sempre quando ia lá com minha

mãe não sei pra quê, ela me recebia com todos

os dentes sorrindo. Dona Margarida que lavava

as roupas com a minha mãe também era uma mulher

bonita, mas não tinha dentes sorrindo. Nem

ela, nem dona Cícera, nem dona Betina, aliás nenhuma

das lavadeiras tinham dentes felizes. Assim

como seu Manoel, seu Joaquim, seu Damião,

que trabalhavam com meu pai também já estavam

acostumados com sorriso desdentado.

Na igreja, o padre tinha dentes, minha madrinha

tinha dentes, o Dr. do postinho que cumprimentava

sempre minha mãe tinha dentes e as senhoras

que cantavam todas tinham dentes.

Para conclusão de minha investigação, confesso

que comecei a chegar mais perto dos adultos lá

de minha escola: diretora, inspetora, professores,

e percebi que todos também tinham dentes. É verdade

que tinha uns professores com alguns dentes

meio tortos, mas eles estavam lá. Mas seu Marcolino

que cuidava dos jardins só tinha alguns lá no

fundo que só dava pra ver porque ele arreganhava

toda a boca quando gargalhava. E soube que dona

Irene, a faxineira, e dona Josefa, a merendeira,

usavam chapa. No início não entendi do que se

tratava, só depois que minha mãe explicou o que

era. E naquela conversa aproveitei para contar-lhe

sobre as minhas descobertas, então vi que ela se

entristeceu. Será por que eu também ficaria banguela

como ela? Será que eu também ficaria sem

sorrir? Eu não queria deixar de sorrir...

E mais do que de repente ela me puxou daquele

assombroso desespero. Acolheu-me entre os seus

braços e baixinho me segredou que se eu estudasse

muito, eu teria dentes sorrindo. E soltou uma

daquelas gargalhadas do passado, senti-me feliz

e respondi com todos os meus dentes em ordem,

exceto um canino que já nascia torto.

113


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

REGINA RUTH

RINCON CAIRES

DRIBLES DO PASSADO

A

igreja era modesta, miúda, suficiente

para abrigar os fiéis. Uma

capelinha. O restante da praça,

área imensa, servia a todos os

moradores. Ali se juntavam, aproveitando

o sol da manhã, colocavam a conversa em

dia, faziam pequenos negócios, e, na parte

da tarde, aquela terra batida, com pouca

areia solta, pertencia aos moleques. As peladas

aconteciam.

Todas as crianças da vila frequentavam a

escola de manhã. Depois da aula, bastava

o tempo de

tirar uniforme

e engolir

o almoço,

os pequenos

iam brotando

feito

pipoca nas

ruas, nas esquinas,

num

converseiro

danado.

O bando,

adensado,

discutia os times, reclamava da pegada do

dia anterior, traquinava novas jogadas. Levava

um bom tempo até tudo se ajeitar.

Todos descalços, as botinas só eram usadas

na escola. Os times dividiam-se: de camisa,

sem camisa. E eram camisas de botão. Não

existiam camisetas para crianças, apenas os

adultos as usavam sob as camisas. Cavadas.

O espaço da trave, que geralmente era medido

por cinco passos, motivo de muita briga,

ficava delimitado por botinas regaçadas

recolhidas do lixo. O gol já havia sido balizado

por tijolos, paus, pedras. Depois de

muitas cabeças de dedo esmigalhadas, optaram

pelas velhas botinas. As passadas eram

motivo de muita discórdia. O goleiro reclamava

que a perna do contador era grande

demais, o artilheiro queria que o mais alto

da turma fizesse a marcação. Era um tal de

puxar o sapatão para lá e para cá...

A bola era de

meia. Bola

de capotão

era artigo

de luxo que

só aparecia

quando chegava

algum

primo distante.

Assim

mesmo,

só podia ser

usada se o

primo escolhesse

o time, o que não agradava a molecada.

Os meninos da cidade grande eram sem

ginga, sem malemolência, sem contar que

as chuteiras espantavam os pés dribladores

dos moleques da vila.

A cada semana, a bola era revestida com velhas

meias, catadas nas casas. Material cada

vez mais escasso.

114


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

REGINA RUTH

RINCON CAIRES

DRIBLES DO PASSADO

E, sob o sol escaldante ou chuva mansa, as

peladas eram sem fim. Interrompidas apenas

quando os raios cortavam o céu e os

trovões pareciam tremer a terra. Aí, a correria

era tanta que nem os sapatões das traves

eram recolhidos. E quantas camisas ficavam

para trás! Ai! E quantos puxões de orelha...

As crianças nem percebiam o tempo passar,

os meses, os anos. Tudo tão simples e bastava.

Satisfazia, era prazeroso.

De repente, um novo pároco chegou. Por

inúmeras vezes, as crianças o avistavam na

porta da igreja, com as mãos em conchas

protegendo a vista do sol, olhando de um

lado, olhando de outro... Nem imaginavam

as caraminholas que estavam sendo urdidas

dentro daquela cabeça.

Não demorou muito e a notícia se espalhou.

O padre decidira fazer uma igreja do

tamanho da praça. De ponta a ponta!

Os meninos, de início, ficaram assustados,

mas esqueceram. As peladas continuaram.

Continuaram até que um dia, ao chegarem

na praça, a escavação estava iniciada. Muitos

pedreiros, munidos de pás, trenas, estacas,

ocupavam a área do campinho. Dois

caminhões carregados de tijolos estavam

alinhados na beirada do terreno.

Desapontados, os meninos foram se esgueirando

pela velha igreja, calados. Caminhavam

e olhavam, com tristeza, a terra vermelha

sendo retirada das valas. O padre, na

porta da igreja, nem percebeu a decepção

das crianças.

Naquela tarde, tudo ficou estranho. Nem

havia burburinho, silêncio cavernoso. Não

houve escolha de time, não houve onde

colocar os sapatões, não houve medição...

Tudo quieto.

Passados alguns dias, outro canto foi arranjado

para as peladas. Ficava na baixada,

um descampado de capim verde. Sem a

menor graça.

E a igreja?! Durante quatro anos, com muitas

festas, quermesses, leilões, os fiéis buscavam

recursos para erguer a igreja do pároco

megalômano. E ainda bem que a capelinha

foi mantida dentro do esqueleto suntuoso

da construção. As paredes começaram a ser

erguidas em toda a volta do quarteirão, descomunal,

um colosso. Não havia material

que bastasse para a construção, um despropósito.

Talvez pela visão fantasiosa, pela ambição

exacerbada e majestosa do pároco, o bispado

entendeu certa patologia naquele empreendimento.

Então, o padre foi substituído.

Na vila, como herança, restou o esqueleto

vermelho, inacabado e inconcebível, da catedral

que nunca foi.

Os meninos poderiam ter o campinho de

volta. Não quiseram. O encanto, para eles,

havia passado. Estavam crescidos.

115


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

RICARDO MAINIERI

CANTURBANO

urbanidade

arde

na manhã

de segunda-feira

incêndio efêmero

em corpo & alma

eletrizados

o ruído da cidade

& seus dejetos

povoam os espaços

a peste

esconde-se

sorrateira

Poeta e prosador gaúcho.

Nascido nos loucos

anos sessenta.

Autor do livro-solo "A travessia

dos espelhos"

Owner do blog "mainieri's"

numa curva

do caminho

nenhuma calma

paira no ar.

anoiteço.

116


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ROBERTA RAMOS

Sintra - PT

Fluminense, professora

de português,

gosta de escrever sobre

as coisas simples

da vida. Vive em Sintra, Portugal,

país que a adotou com

carinho.

NA PENUMBRA

As ave-marias começam a ser entoadas

nas casinhas da aldeia.

Não entendo essa necessidade

do homem querer se conectar

com algo supremo. Sinto-me maior do

que tudo e todos, vejo-os tão ínfimos.

Trago em mim uma imensidão que eles

jamais terão.

Todo dia, quando os vermelhos e amarelos

começam a pincelar o céu, eu venho.

O vento ronrona, por vezes esfriando o

tempo, tirando dos armários gorros e cachecóis

escaldantes. Deles não preciso,

nem tenho medo de água fria. Visto-me

de breu, e isso me basta.

Estendo meu manto negro pelo muro.

Veja como é macio, como forra os tijolos

quebrados e as folhas da trepadeira. Sei

que você o inveja.

Deslizo meu corpo com cuidado, como se

evitasse os espinhos. Não os temo, sequer

preciso olhar para eles.

Do muro ao chão, não demoro. Começo a

me estender pelo piso.

Duas luzes amarelas acendem-se na minha

escuridão. Espreito o gramado, estrelado

de vaga-lumes, emplastrado de caramujos.

Brinco de seguir um dos insetos, logo

me canso. Efemeridade demais, prefiro o

que se prolonga, sete vidas, ou mil.

Começa a orquestra de cigarras e grilos.

Não há ensaios, maestro, nem palco, e os

instrumentos são timbaus e guiros. Faltam

os violinos dos mosquitos, que preferiram

tocar para os humanos. Desprezo

esse som histérico.

Espreguiço-me, e neste espreguiçar deitam-se

os moradores da casa. Precisam

repousar seus cansaços nos travesseiros.

Eu, não. Eu me deito no mundo inteiro.

Cada quintal, cada telhado é meu lar.

Acelero o passo, minhas patas de azeviche

já alcançam a igreja vizinha, com o cemitério

ao fundo. Ouço guinchos, fogem

ratazanas gordas. Eu as alcanço, deixo-as

prosseguirem caminho atrás de carnes putrefatas

como as que jazem ali, sob arranjos

de flores prostradas.

O sino majestoso já se calou. E de sua torre

jorram morcegos bêbados, tateando o

ar, emitindo os guinchos que são sua bússola.

Não passam de ratazanas, mas magras,

aladas, ambos temidos por sua má

fama.

Olho para trás, pouca coisa se vê agora.

Lâmpadas que espreitam pelas cortinas,

candeeiros tímidos nas varandas, postes

altivos guardando as ruas.

Eu impero. E foi assim, desde o começo

dos tempos. Por isso me descrevem em

poemas, músicas, quadros. O piano de

Pessoa, calado no terceiro andar; Chopin,

com seu conjunto de noturnos; e meu preferido,

de Van Gogh, onde apareço plena,

soberana da criação.

Estrelada.

117


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

RONALDO MAGALHÃES

Salvador-Bahia

Mestre dramaturgia

(UFBA). Escreve

poesias,

artigos, ensaios, contos, roteiros.

Participou de várias

antologias. Colabora: Jornal

Fuxico-UEFS; Soteroprosa

Olhares Contemporâneos;

SG Magazine-Portugal.

CAFÉ MÜLLER

Na cidade nua |o café vazio| submerge na penumbra.

Há cadeiras, mesas. Cadeiras e mesas. Há cadeiramesas desordenadas no caos.

Caosss completamente árido e despovoado, onde o silêncio e a solidão reinam.

De súbito, tateando as paredes cinzentas, ela titubeia contida.

A outra em constante movimento rumo ao desconhecido, dá volteios na escuridão. Se desprende

e se esbarra.

Ele a protege.

Ela e seu duplo, no fluxo cadenciado, se projeta no espaço e, desbrava os limites do instante

numa relação solene de embalo sonoro, trágico e intenso-profundo.

O moço gentilmente segue a rearranjar o espaço como num preâmbulo amoroso para o reencontro

ad infinitum.

Ela se aventura no vácuo.

No

encontro

moldam-se

movimentos.

Eles se encontram todos os dias, no mesmo lugar, na mesma hora.

Eles se encontram, todos os dias, no mesmo lugar, na mesma hora.

Eles, se encontram todos os dias no mesmo lugar na mesma hora

Eles se encontram...

Marionetes do desejo.

Ele quer partir. Ela, perdida, atravessa o real e com pressa, não flui a vida.

Ele pede o café para dois.

As portas do tempo giram vertiginosamente e corroem, corroem, corroem...

Dor e solidão.

Corpos moventes fluem, volitam, extenuam-se em espasmos profundos no cumprimento do

dever cotidiano. São tormentos em tempos de sonhos.

Respiram num átimo o princípio do prazer.

Provocam, atiçam, insistem e suportam [a vã tentativa de serem imortais].

Os corpos mergulham numa catarse de gestos divinos, porém óbvios. Corpos vagabundos que

se entregam ao acaso, frenéticos, numa confusa fronteira do devir, plasmada no aqui e agora

de uma existência.

Passagem dilacerante que asfixia mais do mesmo entre confrontos e ardis.

Limite entre o jogo e o não-jogo que é espelho do real imaginado.

Metas, fases, metamorfoses.

Eles, porém, impávidos, seguem a caminho do fim.

118


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ROSE BARBOZA

Psicóloga e investigadora.

Em sua trajetória

está atenta aos

movimentos de expansão

nas margens da vida,

sobretudo às narrativas que

reexistem, teimosas e íntegras,

nas vozes das mulheres.

VALE DO ANHANGABAÚ

Para Tula Pilar

Eu sabia que você chegaria tarde. Afinal você

vinha do Taboão. Precavida, retirei o livro

amarrotado da mochila e, sem muita atenção

deslizei para o chão da estação. Essa mania de

ler de cócoras. Em qualquer lugar. Acomodei-

-me, não na leitura que tinha nas mãos, mas

naquele mundo, cheio de volume e velocidade

que fluía e estancava entre as escadarias

da estação Anhangabaú. Aquele mar de gente

aflita. Aquela eterna passagem entre mundos

que se contorcem nas vísceras da locomotiva.

Aquele não-estar que, no entanto, arranca

vida, morte e impermanência da tragédia,

como se fosse possível, no atropelo dos dias,

expiar o trabalho e as manchas das noites

profundas. Aquela gente cansada a fazer do

incansável um dia a mais, tomando a sério a

exigência de sobreviver, teimosamente, sem

negociação.

Há quem possa chegar ao Anhangabaú e se

deter em letras, em mensagens frenéticas trocadas

nos celulares sempre em riste. Mas há

muito absorvendo-nos naqueles vãos intensos:

beijos trocados entre um sem número de

casais, jovens, idosos e recém-conhecidos, um

carteado à dinheiro deslocado à esquerda dos

olhares indiscretos dos urubus (funcionários

de uniforme preto responsáveis pela repressão

que pune e esculacha, sem dó e sem regras),

alguém que grita desafinado uma canção de

Adoniran, competindo sem chance de vitória

com o hip-hop metálico dos alto-falantes.

As veias abertas da cidade, diria um escritor

uruguaio parafraseando a si próprio. Sua

pulsação, eu diria. Se a cidade respira ou se

move em sua deriva frenética depende desse

pulso que se contrai e dilata em gestos descompassados

entre um Repente de Caruaru

e um Slam das Minas que joga a real por um

punhado de moedas. O pulso poético da cidade,

tão visceral quanto as entranhas que,

reviradas pela barrigudinha barata, despejam

um vômito honesto nas imediações. Sim, porquê

o pulso dessa metrópole cheira a suor,

urina, vômito e porra. Fluídos que registram

a espessura das emoções que empurram esses

corpos: para seguir, seguir, seguir, seguir.

Alguém disse algum dia que São Paulo é uma

cidade que nunca para. E eu me perguntava

qual era o combustível que alimentava a besta.

Sangue, suor, urina, vômito e porra. Muita

ureia para manter em constante fluxo o sistema,

para sustentar o movimento desejante de

vida que resiste e não se entrega.

Ali, deslizada e acomodada de cócoras, deixava-me

absorver pelas coordenadas da metrópole,

seus pulmões inebriados de fumaça e

desvario. Numa cumplicidade silenciosa com

aquela gente que, sem saber, fazia parte dessa

que eu era também por teimosia, por não

saber ser de outro modo. Sempre agarrada

ao solo hostil de estações, sempre alinhada à

pulsação da vida ali onde ela é quase suspiro,

equívoco, aglomeração. Uma náufraga, encharcada

em ureia dos pés à cabeça. Mas sem

saber muito bem o quê fazer com o incômodo

sob a pele, com as vísceras reviradas, com os

cacos de poemas dispersos.

Eram quase 16h30 quando você chegou: cartazes

e um tumulto todo seu a gritar da ca-

119


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ROSE BARBOZA

VALE DO ANHANGABAÚ

traca algo que tinha a ver com povo, trem e

distância. Esbaforida, largou a bolsa enorme

no chão. Limpou o suor da testa e sem cerimônia

decretou: “– Vamos, o tempo urge”.

Ele urgia. Porquê nunca há nada que não seja

urgente em São Paulo. Nunca há nada que se

possa deixar para amanhã sem consequências

nessa cidade que tem como designío se voltar

contra si mesma.

São Paulo tem como profissão de fé o atraso.

Estamos sempre a um passo, mas nunca

somos pontuais. O centro do nosso mundo

urgia a cada manhã e a cada final de tarde, no

vagão lotado e na fila do Self, o kilão obsoleto

enxotado para fora do novo normal. Ah, se

você soubesse! Mas, naquele dia de atrasos e

urgências, paradoxalmente esse nosso futuro

era ainda impensável.

Saímos com passos rápidos, como quem busca

respirar retendo ar suficiente nos pulmões.

Havia a rua, o mar de gente, um dia atípico de

sol no inverno rabugento e, a distância a ser

percorrida. Havia a pressa porquê também é

o quê somos. E enquanto avançávamos, eu

me deixava extraviar impregnada na paisagem

difícil: o Municipal, o entramado de ferro

e concreto imponente do viaduto, aquele

shopping Light que nunca decifrei e, xs habitantes

daquele mundo, insistentes em desacomodar

certezas de nossos olhos e mãos.

À frente você era só sorrisos. Plena nessa realização

urbana que te fazia fazer casa de tantas

avenidas. Lembro-me de que você chegou

e, sob a marquise, uma aclamação afetiva te

recebeu como quem acolhe um orixá. Ali, reconhecida

e recebida, você era um dos gestos

mais fortes que testemunhara nesse dia: uma

mistura de respeito e dignidade a reivindicar

vida com a cabeça no filho Pedro, um corpo

negro exposto às duras da periferia; na filha

jovem, Samantha, cobiçada por uma pá de

malandro; com Dandara, a caçula e xodó.

Enquanto sorria e distribuía cumprimentos

foi operando no centro da marquise a transmutação,

ou melhor, a tua conversão em Carolina

Maria de Jesus. Cabelos sob um lenço,

vestido branco e, nas mãos, esse gesto que era

o teu tudo: cadernos de infância metamorfoseados

em diários. Tu, Carolina. Carolina

que era tu. Em poucos minutos, a personagem

que você encarnava fazia reverências,

enquanto você cuidava da mágica. Na tarde

de hálito quente que o pulso da cidade resfolegava,

curiosas e demais foram formando

a audiência atenta que decifrava nos teus dizeres,

os dizeres de Carolina. Da artéria da

metrópole para a fome amarela. Da frente do

edifício Matarazzo para o quarto de despejo.

Você, nossa griot urbana a desfiar com magia a

miséria que nos consome, para além da fome,

dos tiros, do suor e do sangue. A questionar

a lida, a ureia e as veias abertas. O aplauso

e a celebração ainda te interrompiam, quando

você retornava à transmutação. Carolina

que você era, Tula Pilar. O tempo urgia. “–

Vamos!”. Também estávamos ali para uma

marcha, a poucos passos da concentração, no

dia 25 de Julho, dia de Teresa de Benguela, a

nossa marcha, das mulheres negras. A última

marcha que estive ao seu lado.

120


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ROSILENE SOUZA

Belo Horizonte - MG

AINDA TEMOS TEMPO!

Mineira, atualmente

vive

em Belo Horizonte.

Graduanda

Licenciatura em

Artes Plásticas e graduada

Comunicação Social. Participou

de exposições, feiras e

mostras de artes.

121


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SABINA SABINO

São Paulo - SP

Moça trans,

faz filosofia,

escreve, ri,

existe, desiste,

desatina-se, de São Paulo

Capital, pobre, e até agora

odeia o estereótipo danoso,

manifesto e vivido, da artista

faminta.

NINGUÉM

Estão todos bem acordados, o

Starbucks deu conta disso. Ninguém

está fora do lugar, ninguém

que a palavra não coloca

nome, nem deixa de dar qualidade ou defeito.

Sempre tem ninguém fora do lugar.

Simetricamente falando, para cada lugar

deve existir, por lei última da natureza, o

não-lugar. Simetria assimétrica, porque

para cada lugar existem milhares de não-

-lugares. E como os lugares são habitados

por pessoas, os não lugares são, portanto,

habitados por não-pessoas. Assim como

as pessoas compram suas necessidades,

as não-pessoas não compram suas necessidades,

como as pessoas andam de carro,

as não-pessoas não andam de carro,

as pessoas vivem suas vidas, enquanto as

não-pessoas frequentemente não vivem

suas não vidas -- permanecem fantasmas

sonâmbulos. Estão todos bem acordados,

mas é um grande sono. Tão grande que

nossa matéria de sonhos foi sufocada em

seu invólucro. O sonho é como o ar, toma

a forma do espaço que lhe foi dado, do

lugar e do não-lugar, do mundo fechado e

aberto em contradição. A geometria onírica

que se forma desse modo de existência,

no entanto, não aguenta sonhos, só

aguenta espectros. E eis aqui um sonho

que eu tive quando desmaiei bêbado num

shopping uma vez:

"Chamo-me NINGUÉM; meu pai e minha

mãe chamavam-me assim, e todos os

meus companheiros me chamam NIN-

GUÉM." - Odisseia, de Homero.

Ninguém é velho, deve ter uns cinquenta

pra uns sessenta anos e trabalha desde

os nove. Pardo, do interior, cansado,

sobretudo cansado. Não é aposentado, é

desempregado, sua mulher, a Lurdes, ainda

trabalha, como empregada de alguma

casa perto do shopping. Tem filhos e filhas,

uma delas entrou em Direito numa

federal, seu nome ele nunca contou, um

filho seu morreu menino, afogou-se num

riacho. E sua vida em anedota bem que

podia terminar em um parágrafo, mas só

porque o que carrega alguém pelo mundo,

sua história, é um texto muito maior

que todas as páginas já impressas, de todos

os livros, de todos os tempos. Não

existe maior fraude que um biógrafo.

Ninguém está no Shopping. Não sabe

porque está ali, mas está. Acordou com

vontade de chorar naquele dia, procurou

a cidade inteira por um lugar para chorar.

Foi ver Lurdes no serviço, não conseguiu

falar, as palavras não saiam da boca. Pediu

desculpas por atrapalhar o serviço,

saiu pelas ruas e, sem pensar, acabou na

marginal, acabou onde agora está, no

shopping. Ele para, na entrada, pelo que

parece ser muito tempo, seus olhos acima

122


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SABINA SABINO

São Paulo - SP

NINGUÉM

da fachada, tentando enxergar o sol. Ele

se move. Algo o move, uma força primeva

e imemorial, que seria descrita por um

poeta como o peso da história, da história

de Ninguém. Ele anda com propósito, determinado,

bravo, com cães do inferno no

seu encalço, ele anda por bem e por mal,

entre os corredores. Chega ao seu destino,

uma loja de sapatos chiques. Ninguém

foi sapateiro, fez muitos sapatos.

Ele entra, com ele, uma rajada de vento,

uma rajada grande demais, que derruba

um atendente e bagunça a peruca de uma

senhora. O mundo cintila, olhos piscam

como faróis vermelhos. A velocidade se

torna lenta. O tempo se afogou no vento.

Ninguém se aproxima de um par de sapatos,

apenas um, um específico no fundo

da loja, sem marca, num canto. Ele os

pega na mão, os sente, a textura do couro

nos dedos, os laços cuidadosos, os minúsculos

relevos de cola. Um par de sapatos

de sua confecção nunca estaria em uma

loja como essa, nunca estaria, em nenhum

mundo estaria, mas estava. Ninguém os

abraça, abraça com todo seu ser, para arrebentar

os próprios braços. Eram seus,

completamente seus, ele os fez. Ele sai da

loja, diante do atordoamento geral, ninguém

nota Ninguém. No corredor, senta

no chão e abraça mais forte os sapatos,

começa a chorar. Chorar como ninguém

nunca chorou e como Ninguém jamais

chorará. Ninguém chora alto, um choro

ranhento e feio, um choro de mãe recentemente

orfanada de seus filhos, desesperado

e sozinho. Sentado de índio, abraçado

com seus sapatos, no corredor estéril, de

mármore e granito, com suas luzes frias,

o choro faz eco. Primeiro foi uma criança,

um menino, loiro, olhos azuis, com

um balão e um sorvete de bolas, sabor

morango, que logo se espatifam sobre o

chão quando o garoto começa a chorar. É

o choro de alguém prestes a ser enterrado

vivo. Depois foram outras crianças, uma

menina ali, mais um menino aqui, mas

logo começaram os velhos. Uma senhora,

a da peruca, começou a espernear, a

prantear, a bater com os punhos no chão,

quebrando as unhas postiças. Um por

um, os habitantes do shopping começam

a chorar. Os pais do menino seguiram o

coro, ajoelhando e rogando. O atendente

que caíra no chão ficou por lá, rolando no

frio, choramingando consigo. O shopping

inteiro lacrimejava sua dor, que não era

nova, nem poderia ser chamada de velha,

porque o seu princípio era o princípio de

tudo que lá foi feito e de tudo que lá seria

feito. Estão todos acordados. O sono

se desfez, restou apenas o que um poeta

chamaria do peso da história. O lugar encontrava

o não lugar, o fantasma tomou

123


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SABINA SABINO

São Paulo - SP

NINGUÉM

forma humana, a ausência reparada, fundida

com o mundo que não a aceita. O

não se tornou sim, mas o pecado era infinito,

a dor insólita. Os chorões foram se

congregando, andando aos poucos, cambaleando.

Pais de família que nunca viam

seus filhos, esposas entediadas, adolescentes

bêbados, crianças velhas, seguranças

e faxineiras, indo em direção a Ninguém.

Ninguém, como bom profeta os acolheu,

acolheu-os em sua dor, em sua angústia

excruciante que torturava os tímpanos e

as pupilas. Deu-lhes o apocalipse de todos

os dias, a revelação suprema do cotidiano,

o que um poeta chamaria do peso da

história. Os chorões fizeram uma roda em

sua volta, Ninguém, ainda abraçado com

seus sapatos, levantou-se. Eles foram para

cima dele, o invadiram, quase o fizeram

em pedaços, mas não. Levantaram-no

ainda mais, como fazem os fãs com um

rockstar que se joga na plateia, boiando

num mar de gente, começou a procissão.

A procissão foi pelos corredores, singelamente,

em marcha fúnebre. Um adolescente,

com uma garrafa aberta de sei-lá-

-o-que na mão, os acompanhava de longe,

tinha uns dezesseis anos, cabelos longos

e mal cuidados. Gritava até os pulmões

arderem: "Joga ele no rio! O que foi achado,

deve ficar perdido, o que foi feito errado,

deve ficar certo!!! Chama-me de João

Batista e joga ele no rio! Joga ele no rio!".

A procissão continuou, imperturbada,

para fora do shopping. Ninguém em cima,

ainda chorando seu choro feio e remelento.

Os chorões levam-no pela passarela,

descem a rampa de entrada e atravessam

a marginal, onde todos os carros param

em fila, dando passagem, os motoristas

todos chorando. A cidade toda chorava,

o estado e logo a nação, uma realidade inteira

chorava um choro feio e remelento,

um lamento duma condição ignóbil, um

lamento pelo próprio sonho.

Os chorões descem às margens concretadas

do Pinheiros.

Quando eu cheguei, eles já tinham ido

embora, voltaram aos seus afazeres. Voltaram

aos seus trabalhos, lojas e quaisquer

distrações da dor do tempo, do peso

da história, a terrível simetria assimétrica

uma vez quebrada, agora restabelecida.

Estão todos acordados. O sol se esconde

atrás dos prédios na outra margem, erguendo

uma enorme sombra que engolfa

o mundo e foi lá, naquela escuridão pontual,

onde eu me sentei para observar o

corpo de Ninguém boiando no rio.

124


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SAM MOURA

Rio de Janeiro - RJ

Sam Moura é PhD em

Direito, mãe da Dalila,

e psicanalista em

formação. Se achou

quando aceitou que adora se

perder, e que palavras são a

melhor forma de se deixar ir.

@dumbigopralem

CREME DE PAPAIA

Eu tenho que ir.

Foi o que pensei enquanto olhava o

meu guarda-roupa sem ver as roupas

diante de mim. Fazia um mês que tinha

retornado da Inglaterra e não tinha mais

motivos para não encontrar Diana. A Diana era

a minha melhor amiga. Era tão minha amiga,

que eu pude contar quando vi na noitada o seu

namorado que lhe havia dito que estava doente.

Tão amiga que pude fazer isso a uma semana de

me mudar para a Inglaterra. Tão amiga que por

muito tempo me preocupei com ela e me questionei

se havia feito a coisa certa. Não acharia

sempre motivos para não ir, e não poderia não

ir sem motivos. Isso seria acabar com a amizade

e amizades não se terminam. Peguei o vestido

marrom, prendi o cabelo em coque, calcei as

havaianas e fui.

Quando cheguei ao café, logo a avistei. Não por

mérito meu. Todos a avistavam. Ela, mais loira

do que nunca, estava de pé, pulando, e acenando

me chamava com uma euforia destoante. O

lugar era pequeno demais para ela. Aliás, era

comum ela exceder os espaços. Os olhares se

voltavam para mim e de repente pensei que talvez

eu também tivesse diminuído e me tornado

pequena demais para ela. Encolhida, segui firme

ao encontro da minha amiga. Ela me recebeu

com um abraço tão forte que uma pontada de

esperança invadiu o meu coração e eu acreditei

que talvez a distância pudesse ter sido só física

mesmo.

Sentei e ela já discursava sobre o creme de papaia,

que era a melhor coisa daquele lugar. Eu

tinha que pedir. Ela duvidava que na Inglaterra

houvesse creme de papaia. Eu devia ter sentido

falta. Emendou dizendo como era bom uma

amizade como a nossa. Depois de tantos anos

podíamos nos encontrar e falar sobre creme de

papaia. Isso era intimidade.

Eu sorri pensando que não gostava de creme de

papaia e não lembrava de um dia ter gostado.

Mas não tinha certeza. Talvez tivesse gostado,

talvez costumasse comer e não lembrava. Pedi

uma água e um café e ela não pareceu notar que

eu não (mais) me entusiasmava com o creme.

Desandou a falar. Seu monólogo girou em torno

da sogra, que se dedicava a infernizar a sua

vida; da cunhada, que vivia para competir com

ela; e do irmão, que por ser super dotado, não

se interessava pelas coisas da família.

Tudo dela me constrangia: a aparência, o tom,

os gestos expansivos, o conteúdo da conversa.

Ela. Toda.

Envolvida por sua própria voz, continuava.

Agora reclamava de como era duro passar o

tempo a ensinar ao novo parceiro como um relacionamento

deve ser.

Pelo menos ele se esforça. Não é como o outro.

Mas a última briga havia sido desgastante demais.

Ela teve que argumentar que ele não podia

largar tudo e virar piloto do nada. Que ele

tinha que agir com ela como gostaria que ela

agisse com ele. Como ele se sentiria se ela resolvesse

largar tudo e virar cantora?

Entende?

Ela me perguntava, como se perguntasse para

todo o café. Todos os pares de olhos em mim.

E eu não entendia. Não entendia nada daquilo.

Para mim, ela estava falando outra língua.

Nada daquilo me interessava. Ao mesmo tempo,

não me animava a mudar o rumo da conversa,

contar sobre mim, sobre a minha vida e

os meus pensamentos. Não conseguia encontrar

nenhum gancho, nada que me fizesse supor

que ela se interessaria por qualquer coisa que

eu pudesse dizer. Não entendia como havíamos

sido tão próximas e não sabia dizer o que ti-

125


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SAM MOURA

Rio de Janeiro - RJ

CREME DE PAPAIA

nha acontecido comigo. A voz dela animada me

soava como algo incompreensível, no melhor

estilo blablabla. Seus olhos carinhosos ficavam

distantes e desfocados e eu só pensava em sair

dali. Queria sumir.

De repente, senti um aperto no peito, como se

alguém esmagasse o meu coração. Era culpa.

Ela não tinha mudado nada. Eu que tinha. Eu

que a abandonara. Não apenas no momento em

que fui embora, mas para sempre.

Eu não era mais

a amiga dela.

Que bom que você voltou. Se bem que não entendo

porque você voltou. Jamais trocaria a Inglaterra

por isso daqui.

Não era a primeira vez que ouvia isso. Normalmente

explicava que as pessoas idealizam morar

fora, que na Inglaterra os ônibus param do

nada e todo mundo tem que descer na chuva

sem reclamar, que fica escuro às quatro horas,

que não é fácil ser estrangeiro lá em tempos de

Brexit e que… A faca da saudade corta mais no

frio.

É. Não sei explicar.

Respondi. Não a ela, mas aos meus pensamentos.

Ela continuou, dizendo que quem sabe um dia

eu poderia voltar. Quando eu fosse ter filho, eu

deveria voltar. Para ter a educação da Europa,

ter mais oportunidades, falar outras línguas.

Ela, com certeza, colocaria os filhos na British.

Sabia que lá as crianças ganham uma placa de

distinção por entenderem que as ações tem consequências

e se comportarem da forma certa?

Eu não sabia.

Enfadada, percebi que a culpa dava lugar a um

outro sentimento. Um do qual eu não me orgulhava,

mas também não podia negar. Um sentimento

de superioridade. Eu me achava melhor

que ela.

126

A minha amiga era um clichê.

A minha culpa por deixá-la era quase pena,

como se ela precisasse da minha amizade.

Como se eu tivesse a responsabilidade de ser

amiga dela.

Já nos despedíamos na porta do Café, quando

vi um garoto preto de uns seis anos se aproximar.

Ele pediu dinheiro. Fui abrir a bolsa, e ela

segurou o meu braço cochichando que não se

devia dar dinheiro para essas crianças.

Elas se acostumam e depois não vão querer fazer

mais nada da vida.

Passando os dedos por dentro da bolsa, constatei

o que já temia: só tinha o cartão comigo.

Nenhuma nota. A culpa cresceu. Pedi desculpa

à criança e envergonhada por tudo, dei um

abraço endurecido na amiga.

Precisamos marcar outro dia com mais calma.

Lá em casa. Para você conhecer a casa e o João.

Ele aprendeu a fazer um creme de abacate especial.

Quase bom como o de papaia.

É, de abacate eu gostava.

Vamos combinar.

Fomos cada uma para um lado. Ela entrou no

carro e eu segui andando pela rua. Um pequeno

ateliê me chamou atenção. Entrei atraída por

um quadro que retratava a profundidade de

uma floresta tropical. Pensei em comprar. Arte é

sempre um bom investimento. Pela janela atrás

do quadro, voltei a ver a criança que pedia dinheiro.

Senti um tranco, como se ela tivesse atirado

uma maçã na minha cabeça.

Tanto quanto a minha amiga, eu também era

um belo de um clichê.

Todo o peso desapareceu.

Não conheceria João.


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SAMMIS REACHERS

São Gonçalo - RJ

INTROEJETADOS

Nascido em Niterói,

mas desde

sempre morador

de São Gonçalo.

É escritor e editor, autor

de nove livros de poesia e

dois de contos e professor de

Geografia no tempo que lhe

resta.

127


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SANDRA DE CASTRO

Brasília - DF

Sandra de Castro nasceu

em Curitiba/PR

e vive em Brasília há

quase 20 anos. Publicou

pela e-galáxia os livros

Entre o Frango e a Crônica

e A Prosa do Desconforto-

-Contos de Desamor e Outros

Escritos.

PASSARINHO

Hoje salvei um passarinho. Tinha peito branco, corpinho

preto e pouca malícia. Deixou-se iludir pela

água no balde do cachorro. Tchéc, tchéc, tchéc. De

tanto lutar ia morrendo esgotado, provando que uma

escolha equivocada, em qualquer espécie, pode mesmo ser fatal.

Alguém ouviu seu debater desesperado e o alguém era eu, que nunca

salvara um bicho sequer.

Sentindo-me especial por ter sido designada para aquela missão,

levei-o com cuidado até a grama e enquanto boiava assustado,

inclinei o balde para que a água escoasse na velocidade certa: nem

tão rápido que terminasse de ensopá-lo e lhe pesasse mais as asas;

nem tão lento que a demora do gesto terminasse por afogá-lo. A

meio caminho da operação, o passarinho voou, repentino. Tão repentino,

para mostrar que sua intimidade com o ar era tanta que

bastava encontrá-lo, por pouco que fosse. Não me disse bom dia,

nem disse obrigado. Mas não foi por falta de polidez, foi apenas

excesso de instinto. Voou longe

me deixando certa inveja. Em algum

lugar daquela sua alma sem

conflito de pássaro, a lição do dia

estaria armazenada para sempre.

128


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SARA BINATTI

DOS ANJOS

Porto Alegre - RS

OS RIOS SOB A MINHA PELE

Neste meu banheiro minúsculo

não cabe toda a minha ansiedade

da manhã. A minha

cara assustada no espelho

não ajuda e eu fico aqui pensando, me

analisando, me criticando. O que são estas

olheiras e estas rugas e estes cabelos

sem brilho e estes poros abertos e estes

pelos de bigode?

Maldita descendência portuguesa!

E estes rios sob a minha pele?

Hem?! O que?!

Olho mais de perto todas as veias azuis

esturricadas sob a pele branquinha do

pescoço, do colo. Das mãos também! E

das pernas, percebo quando me curvo à

procura de provas! Mas o que é isto?!

Me tornei transparente de repente?! Meu

Deus, estou ficando invisível?!

Também pudera, você queria o

quê? Passou dos sessenta, minha filha, vai

te acostumando! Estes rios sempre estiveram

aí, desde a tua infância. Talvez fossem

só riachinhos, sim senhora e você deixou

que eles fossem se enchendo, se enchendo.

Quem mandou não ter paciência e ficar aí

se irritando por coisas bobas?

O mapa repleto de caminhos azuis está

me assombrando, socorro!

Está demorando muito para sair

do banheiro, está fazendo o número dois?

A pergunta que sai da minha cabeça me

faz resmungar e achar graça.

Está falando sozinha, coitada, se

vê que está velha!

129

Sim, estou velha, mas não sou velha.

Que diferença faz?

Estes rios que pensam em transbordar estão

aí mesmo. O que é que eu faço, meu

Deus?

Toma um remédio para a circulação,

minha filha!

Que remédio! O negócio é conviver com

mais isto. Saio do banheiro deprimida,

cansada, triste.

O que? Nem pensar! Trata de sacudir

a poeira dar a volta por cima! Já!

Evito o espelho do quarto porque já vi de

tudo por ali. Me visto com pressa, quero

cobrir com urgência todos os rios, antes

que se transformem em oceano e me afoguem

em sal. Calças compridas, mangas

compridas, gola alta.

Calorão!

Acaba se afogando em sol, minha

filha! Tira tudo, fica nua, vai!

Mas de que foram feitos estes rios? Das

minhas lágrimas?

Deixa de ser boba, você nem chorou

tanto assim!

É, teve aquela vez que... e aquela outra

vez... E no funeral da mãe?

Ok, ok, todos estes momentos foram

sofridos, mas... e daí? Tem mãe que

perde filho, isto sim é que é dor!

Deixo os rios seguirem seu curso sob a

minha pele e saio de casa pensando na dor

de uma mãe que perdeu o filho.

Coitada!


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SHIRLEI PINHEIRO

Teresópolis - RJ

Nascida em Teresópolis

RJ é

cronista e poetisa,

atualmente

é editora do jornal cultural

Escritores da Serra, estudante

de Bacharelado em História

e criadora do Blog Paixão

Crônica.

A BENDITA TIMIDEZ

Recentemente estava conversando

com um amigo sobre timidez e

comecei a lembrar de como isso

afetou minha vida. A timidez me

acompanha desde a infância e tenho vasto conhecimento

de causa sobre o assunto e uma

coisa que sempre me deixou desconfortável é

falar em público, acredito que isso incomode

quase a totalidade dos introvertidos (só de

pensar nisso já começo a sentir os sintomas),

lembro que quando era adolescente e essa sem

dúvida é a pior época na vida dos tímidos, de

ser a primeira a entrar na sala de aula para

assim evitar que ao entrar os que estivessem

lá ficassem olhando para mim. Quantas vezes

ao chegar em um ambiente cheio de gente já

imaginei todos os olhos em minha direção,

claro que a maioria nem estava olhando, mas

vai explicar isso para um tímido.

Quando criança lembro que corria para o

meu quarto sempre que chegava visita e só

saia quando ela ia embora, tamanho era o nível

de vergonha, minha irmã sempre me chamou

de antissocial, mas nunca liguei, li uma

vez em um artigo que existem três tipos de

timidez: situacional, crônica e proposital, nomenclaturas

é o que não faltam para definir.

Tímidos introvertidos, tímidos extrovertidos,

só tímido, só introvertido e por aí vai, acho

que me encaixo na situacional que são situações

específicas, pois interajo bem com quem

conheço. Geralmente é fácil identificar uma

pessoa tímida e acho até engraçado quando

vejo alguns artistas que dizem ser, mas cada

um sabe onde o calo aperta afinal acho que

todo mundo em algum momento da vida já

sentiu as mãos suarem por mais despachados

que sejam. Suor excessivo, taquicardia, coração

acelerado…sintomas bem conhecidos

e recorrentes na nossa vida. Timidez não é

medo, não é transtorno mental nem fobia, mas

inibição em certos momentos. Com o passar

do tempo vamos evitando algumas situações

para facilitar nossa vida, evito aglomerações

— isso a pandemia até facilitou — evito entrar

sozinha em lugares onde não conheço as

pessoas, nem sempre consigo, mas nem tudo

são flores. Várias vezes me peguei na Internet

pesquisando sobre fórmulas e truques milagrosos

para perder a timidez. Mas também

nem tudo é ruim, aprendi a tirar benefícios da

parte boa, trabalhar minha observação, aproveitar

meu ,tempo sozinha, fora que dizem

que é charmoso, também nos blinda de situações

desagradáveis e constrangedoras como

falar o que não deve ou na hora errada, cair

na pilha do tio do pavê e fazer alguma dancinha

ridícula na ceia de Natal, enfim tudo na

vida tem seu lado bom e estou aprendendo a

perceber isso.

Trabalhar com o público me ajudou muito,

com o tempo fui ganhando confiança, desencanando

e vamos combinar que ninguém precisa

saber da minha inibição até por que não

está escrito no meu rosto a não ser quando

fico vermelha.

130


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SIMONE MAGALHÃES

DA SILVA

Brasília - DF

FOTOPOEMA

Jornalista formada, trabalho

atualmente na EBC.

Desde os 8 já escrevia poemas.

Agora durante a pandemia,

resolvi resgatar um

pouco da minha história e

ver que nunca é tarde para

tentar mais uma vez.

131


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

STERESA NERY

Rio de Janeiro - RJ

BOCA SECRETA

Dolores, a vizinha

de nome invernal,

colecionava

batons

lacrados

e

beijos

sonegados.

A

Medicina é meu

ofício. Nos ruídos

e desvios das

palavras seguem

as buscas criativas no campo

da Arte.

132


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FRAGMENTO

TÉO SENNA

Brasília - DF

Artista visual carioca,

arte educador,

parecerista cultural,

graduado pelas

Escolas de Artes Visuais

(Parque Lage/EAV) e de Belas

Artes (EBA/UFRJ). Desde

2000 trabalha com o tema

do graffiti.

133


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

TERESA BARRANHA

Portugal

UM FIO DE VOZ

Quando me restar apenas

um fio de voz

não me peças para falar.

Permite-me levar essas palavras

no bolso direito das minhas histórias.

Essa será a minha bagagem.

Palavras só minhas, como chaves,

para abrir o caminho escancarado

e cheio de melodia.

As minhas derradeiras palavras

acabarão de abrir o meu coração.

Vá para onde for,

terá de ser assim,

de alma à mostra e palavras guardadas

como pedras que pisamos

para atravessar o rio.

Com elas atravessarei

o poema que nunca escreverei.

134


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

THOMAS BRENNER

Curitiba - Pr

Thomas Rodolfo

Brenner. Curitibano

nascido em

1982. Autor do

livro “Desaforos, aforismos

& outros foras” (Editora

Penalux, 2013) e da plaquete

“Ressurreição” (Editora

Primata, 2021) – ambos de

poesia.

SÍSIFO ENCLAUSURADO

déspota de duas faces

- sístole e diástole -

trancado em meu tórax

perseguindo ritmos

e algoritmos

encarando desde sempre

a pedra do repente

de repente é a vida

morro abaixo, morro acima

morro enfim

o coração continua

depois de mim?

135


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

UIRÁ RAUAN

Brasília - DF

SONÂMBULO AMOR

Sonhei que o amor apascentava

Meu coração.

Escorreguei e caí n'outro sonho.

Mais realidade.

O sonho dentro de outro sonho,

Tudo azul!

Minh'alma inquieta te buscava;

Peito nu.

Cruzei a enseada e ardeu-me o olhar;

Te avistei longínqua, difícil de impetrar.

De assombro, voltei-me a mim retratado...

E não dei conta das contas de dores...

Embora acordado tenha tantos amores,

Certamente dormindo é que tenho amado!

Músico, escritor

e estudante.

Morador da

periferia de

Brasília e amante desmedido

da arte literária, venceu - em

2020 - o concurso de poesia

promovido pelo grupo de

pesquisa Mayombe, da UnB.

@uira.rauan

136


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

VERÔNICA AMARAL-

DÉLLIO REIS

FOTOPOEMA

Fotografias de Verônica

Amaral. Natural

de Óbidos Pará, reside

atualmente em

Palmas Tocantins

Textos de Déllio Reis MM

Aquino. Natural de Óbidos

Pará, reside atualmente em

Belém Pará

137


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SIMBIOSE

VERÔNICA SPNELA

São Paulo - SP

Bacharel em Artes Visuais

(gravura) pela

USP (2016) e mestra

em Museologia

(2018) pela mesma instituição.

Desenvolvo o projeto

“Bestiário Peregrino" onde

investigo a estética dos mecanismos

naturais.

138


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

WALNEANE MORAES

Caxias - Maranhão

Formada em Letras

Literatura pela Universidade

Estadual

do Maranhão, com

pós-graduação em Ensino de

Língua Portuguesa e Literatura.

Tenho na leitura e na

escrita meu prazer e conforto

diários.

CÁRCERE DA ALMA

Na noite veloz

Mãos surgem trépidas

Voz que rasga o carrossel

Uma flor murcha rompe o asfalto.

Na solidão do quarto

Um choro abafado

O lençol vermelho rasgado ao meio

E a pulsação constante dos ponteiros do relógio

Como únicas companhias.

A névoa começa a cair

O carnaval de sentimentos,

que chacoalham o coração dormente

Uma angústia, um apelo, um pedido:

Chora não! coração, mesmo ferido.

Ameaçada, amordaçada,

Corre, menina mulher, foge sem dizer nada

Tormentos que devem cessar

Uma andorinha branca voa no céu

Liberdade, onde estás?

139


ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

WILLIAM TRAPO

Goiânia – GO

Desde 1992 pulando

dos prédios,

pixando os prédios

e rolando na

grama.

@guerrilhamor

williamtrapo.blogspot.com

SEIOS

Eram 7 e 15 da manhã

acionei o soneca algumas vezes

o espelho do R$ 1,99 me custou mais que isso

e ele está sujo

acionei o soneca algumas vezes antes de levantar

Antes de sair ainda troquei a areia da gata

troquei a água, coloquei ração

Minha vida é muito corrida

muito mais que a da gata

Queria ter a vida da gata

ela me segue, me vê banhar

vamos pro quarto, me troco

recebe meu carinho

brinca e caça enquanto estou fora

Queria a vida da gata

usufrui da organização que mantenho com as coisas dela

queria a vida da gata

Ninguém limpa o meu espelho

como eu limpo os potes da gata

Poderia acionar o soneca por três dias seguidos

seria uma maravilha

Mas gatos não reclamam, não o tempo todo

e eu gosto de reclamar

tenho dor nas costas, hérnia de disco

Nesse ritmo terei três aos 69 anos

vou poder reclamar mais

mais e mais

Queria a vida da gata

a minha é uma bosta

queria a do vizinho também

mas preferia a da vizinha

queria ter seios e tudo mais

mas queria ser eu

só que naquele corpo

não sei se ela quer ser ela

então se eu fosse ela, poderia querer ser outra pessoa

Quero ser eu, mas queria ser ela

A vida da gata é muito melhor que a minha

a vida da vizinha é muito melhor que a minha

140

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