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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Ano 1
nº 2
junho/julho
2021
COGITO,
ERGO
SUM
1
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Ano 1 - número 2 - Junho/Julho - 2021
Paranaguá - Pr - Brasil
Nº SNIIC (Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais): AG-206110
Publicação Bimestral
Distribuição Gratuita on-line
Idealização: Paulo Ras
Editoria: Paulo Ras
Diagramação: Paulo Ras
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Política de direitos autorais
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termos:
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
EDITORIAL
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Na quarta parte da versão francesa do Discurso sobre
o Método, René Descartes escreve a famosa frase: “Je pense,
donc je suis”, “cogito ergo sum” em latim, “penso, logo existo”,
em bom português. Trazendo para 2021, e seguindo o raciocínio
do filósofo, físico e matemático francês, quantas pessoas
ainda existem? Afinal de contas, castra-se cada vez mais o indivíduo
para valorizar o pensamento coletivo, aquele efeito de
manada, de cardume que nada para o mesmo lado, sem questionamento,
sem pensar, sem existir. Não somos peixes, não
somos gado, somos seres pensantes e questionadores por natureza,
e o debate de ideias contrárias nos faz aprender mais,
pensar mais, existir mais. A manipulação de massas não tem
lado, não tem cor, não tem partido político, não tem religião
nem ideologias. Ela é ancestral e, hoje em dia, encontra mais
eco nas pessoas que “pensam” por redes sociais, alimentam
suas convicções, seus ódios, seus preconceitos com notícias
falsas, com mentiras deslavadas, colocadas na internet com
o único intuito de perpetuar interesses próprios. E pensar incomoda.
Que o diga Sócrates, o filósofo grego, condenado à
morte por não acreditar nos costumes e nos deuses gregos,
unir-se a deuses malignos que gostam de destruir as cidades
e corromper jovens com suas ideias. Nada mais atual, diga-se
de passagem.
A grande questão é quando esse censor invisível chega
à arte e à cultura, áreas de livre pensar por natureza. Por isso
a Revista Cultural Traços abraça todos os pensamentos, todos
os estilos, todas as linguagens, todas as artes.
Estão abertas as portas para a segunda edição da nossa
revista, que apenas quer fazer a cultura girar.
Ótima leitura.
Ótima cultura.
“Cogito, ergo sum” para todos.
Revista Cultural Traços
Por amor à cultura. Para um mundo que sempre precisa
de arte.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Colaboradores
• Jô Diniz 7
• Marga Cendón 8
• Paulo Ras 9
• Penélope Jones 10
Seções
• A casa é sua 12
• Dicas joinhas 15
• Pretéritos 16
• Coisas do Br 17
• Inclusivo 18
• Prazer em conhecer 19
• Coisas que... 22
• Cartas de amor são ridículas 23
• Espaço SerEsta 25
Autores Classificados
Agnes Izumi Nagashima 27
Alberto Arecchi 28
Alessandro Padin 30
Aline Bischoff 31
Anderson A. da C. Roberto 32
Antonio Gil Neto 34
Arisson Tavares 35
Arthur Senra 36
Branca Lescher 37
Camila Mazi 38
Chai Rodrigues 39
Clara Gerhardt David 40
Clarice de Assis Rosa 42
Cleber Profeta 44
Darlene Honório Medeiros 45
Diana Magalhães 46
Edgar Borges 47
Eduardo Ramos 48
Escobar Franelas 49
Eva Vilma 50
Éverlan Stutz 52
Farlley Derze 53
4
Felipe Chagas 54
Fernando Portela 55
Flávia Redman 56
Fran Pigosso 57
Francieli Vareira 59
Geraldo Magela de Faria 61
Gustavo Fontele Dourado 63
Hellen Rodrigues 64
Hera de Jesus 66
Ian Anderson Gomes Dias 67
Iara Marina de Sales Santos 68
Izadora Laner 69
Jhulia Vitória Ferreira Sales 70
João Rosa de Castro 71
José Carlos Vaz 72
Júlio César 73
Kika Souza 74
Lamaris 75
Leticia Bahrbosa 76
Lima Júnior 77
Lorenza Gioppo 78
Luisa Garbazza 79
Maju Assis 80
Malú Bortoletto 82
Marco Bulhões 83
Marcos Nunes Loiola 84
Mari Brito 85
Maria Catarina 86
Maria Gabriela Cardoso 87
Maria Jorgete Teixeira 89
Maria Pia Monda 90
Maria Struduth 91
Mariana Brecht 92
Mariana Sperandio 93
Marih Dütrien 94
Marina P. P. Oliveira 95
Maurício Simionato 97
Milla Trigo 98
Mozão Muniz 99
Nilza Verônica Amaral 100
Paula Scofano 102
Paulo Esdras 104
Pedro Antônio Lima Pereira 105
Pedro Gonçalves 106
Pedro Guerra Demingos 107
Pricila Marchese 108
Priscila De Bom 109
Priscila Lima 110
Projeto Vermelho Candiru 111
Regilene Martins 112
Regina Borges 113
Regina Ruth Rincon Caires 114
Ricardo Mainieri 116
Roberta Ramos 117
Ronaldo Magalhães 118
Rose Barboza 119
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Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Rosilene Souza 121
Sabina Sabino 122
Sam Moura 125
Sammis Reachers 127
Sandra de Castro 128
Sara Binatti dos Anjos 129
Shirlei Pinheiro 130
Simone Magalhães da Silva 131
Steresa Nery 132
Téo Senna 133
Teresa Barranha 134
Thomas Brenner 135
Uirá Rauan 136
Verônica Amaral/Déllio Reis 137
Verônica Spnela 138
Walneane Moraes 139
William tRAPo 140
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JUNHO/JULHO
2021
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Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
JÔ DINIZ
BELO HORIZONTE - MG
Andar de bailarina,
olhos de não ver o
que se subentende
pulsando no peito,
foge da própria natureza,
mas a arte, sempre ela, a
encontra na esquina, oferece
mil promessas e a tira pra
dançar.
FEITIO
Feito relógio ao contrário,
que rompe corda de prata,
umbigo, entranhas.
Que escreve na carne o gosto do orgasmo,
e tatua o lamber do desgosto na alma,
pela primeira vez.
Feito reza ao avesso, que desfaz karma,
desfaz despedida, desfaz morte.
Feito quebranto, que se espalha em tantos, tantos pedaços,
e que nunca, nunca mais se juntam.
Feito encanto repetido dia e noite, até a exaustão.
Feito feitiço, sem permissão.
Feito reza forte, e canção nove vezes entoada,
que se entrega em ondas,
ao encontro do que foi,
do que é,
e do que será.
Feito a travessia indecente da verdade,
e a saliva que escorre numa sintonia de afinidade.
O amor quer tudo.
Quer o céu e o inferno.
Quer o outro.
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Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARGA CENDÓN
URUGUAIANA - RS
Marga Cendón é artista
plástica, fotógrafa
amadora
e escritora com
dois livros publicados - Lonjuras,
2013 e Sal e Trigo, 2014, ambos
pela Editora Viapampa. Integra
oito coletâneas, dentre elas, Os
Cem Melhores poemas do Twitter,
2013 e Contos de Pampa e Fronteira,
2019.
VENDE-SE
Forcei a maçaneta
enferrujada e o
corredor estendeu-
-se à minha frente,
com as portas entreabertas.
Passei os olhos pelos cômodos.
Das frestas nas janelas,
a luz da tarde revelava sobrepostas
camadas de tinta
no descascado das paredes;
colchas de retalhos desbotadas,
bonecas de louça em cadeiras de palha, jarros sem água, vasos sem plantas. Há
muito eu tinha partido e os que ficaram, viviam agora do outro lado, reclusos em sépia
nos porta-retratos do aparador da sala. Seus semblantes, mudos convites ao desenterro.
Vieram-me então os aromas, os gostos, as vozes, as faces. Lá fora, o branco dos lençóis
ainda balançava em varais enfileirados, esconderijo de cantigas e suas rodas, sob o
azul que esquecera de entardecer. Tudo à minha espera... A casa repleta, as conversas
paralelas em torno da mesa, a leveza do silêncio na hora da sesta. Um tempo em que
dizer-se feliz era dispensável. E não o ser, impossível.
O eco de meus próprios passos nas tábuas corridas do assoalho trouxe-me de volta
aos escombros. Os anos de afastamento me haviam modificado e o passado, agora,
resumia-se a uma cena em preto e branco cheirando a mofo, umidade, abandono.
Não, eu não queria a mobília, as cortinas, os cristais. Nada além das lembranças que
já estavam comigo.
Dei meia-volta, bati a porta e entreguei a chave ao corretor.
www.margacendon.com.br
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Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PAULO RAS
PARANAGUÁ - PR
Utópico, tem certeza
de que a arte salva,
a literatura liberta
e a cultura oferece
meios para que cada pessoa
se entenda, para que cada um
ouça e decifre o grito contido
na própria voz.
OLÍVIA
Eu poderia ter
desfeito o nó
na gravata e
ter te esperado
cru no espaldar
da cama desarrumada.
Mas neguei a mim
mesmo este desfrute
feito para os tolos e
para os fracassados.
Tenho em meu sangue a genética da prole Albuquerque Vilemond, não me dou
por cansado nem por vencido, afinal o ouro é o meu deus, meu Jeová, minha
profissão de fé. Eu poderia ter afrouxado o cinto, sentado no sofá de couro de
bisão-europeu, enchido meu copo com uma bela dose de Ouzo e esperado o
mundo se achegar a mim. Porém fiquei alerta, atento. Bolsa, dólar, juros, euro. A
vida é essa avalanche de cifrões fazendo cachoeira sobre o meu corpo enquanto
entro na sauna para aproveitar mais um instante de negócios. Eu poderia ter tirado
a roupa e dormido o sono dos justos, contudo os justos padecem na pobreza,
enquanto nós, os focados, esperamos a abertura das bolsas de Tóquio e a de
Shanghai. A vida é essa eterna roda da fortuna que esmaga os desafortunados.
Eu poderia... Está me ouvindo, Olívia? Olívia? Está me ouvindo?
O ressonar da mulher ecoou mais alto na vaidade do homem do que no quarto
vazio de motel. Tentou acordá-la. Perda de tempo. Sono profundo, enrodilhada
na roupa que nem se dera ao trabalho de tirar. Praxedes a cobriu. Beijou sua
testa. Deixou o dinheiro combinado e um extra pela noite que ela perdera. Ele
poderia muito, ele poderia tudo, menos com Alice, a Olívia que dormia cansaços
e solidões em um corpo sem dono, em um coração livre que nem mesmo Praxedes
de Albuquerque Vilemond poderia comprar.
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Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PENELOPE JONES
PASÁRGADA
Sonhadora por parte
de pai, mãe e orixás.
Ariana por capricho
do cosmos e de algum
alinhamento aleatório dos
astros. Personalidade forte,
loucura decidida e cortante
feito os raios de Iansã.
CALENDÁRIO
Calendário afoito se afasta cada vez mais do tempo em que nos fomos.
Veja, os dias insistem em correr, as pessoas envelhecem em
suas casas, as manhãs continuam devorando sonhos quando a noite
se despede e parte. Mesmo assim, um aroma teu, fraco, quase
inexistente, ainda se perpetua em minha pele vadia, nas memórias que me traem
e me trazem mais de você nas horas impróprias que só quero te esquecer. Loucura,
tara ou fetiche? O que importa? Tatuei tuas digitais em meus seios, teus
lábios em meu ventre, gravei teu arfar de gozo,
soletrei teus impropérios de paixão. Mesmo
distante te tenho em mim. Cinco sentidos ao
seu dispor. Saudade ingrata, saudade maldita,
soletra teu nome nos meus sonhos, declama
tuas loucuras em meus delírios, e eu, santa,
intocada e puta, te acalmo, me toco, te chamo,
com teu nome em sílabas, reverberando hipnótico
e melódico nos quatro cantos do meu
orgasmo carregado de tudo que foi passado,
de tudo que ainda sempre será você.
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Eu estava zapeando o youtube naquela garimpagem
tradicional de quem ama música e está
atrás de um som diferente. Na primeira pesquisa
vem a sugestão: Terra Cabula. O nome me
chamou a atenção. Acessei. O clipe? Sino da Igrejinha/
Clarão. Já no começo a voz marcante de Vinicius Bolivar
rasga o silêncio. Pronto. Eu estava pego, sem saber
que o melhor estava por vir. Quando a banda entrou, foi
o xeque mate. Eu estava apaixonado por aquele som,
por aquela sonoridade, por aquela banda carismática
e fodástica. Amor à primeira vista? Mais que isto, admiração
à primeira vista. Assisti clipe, live, procurei em
streaming. Queria mais do Terra Cabula. Foi quando
pensei: por que não tentar uma entrevista para a Traços?
E-mail mandado, a resposta rápida da sempre simpática
e receptiva Milena Nominato, produtora da banda. Era
um sim de uma banda que tem música, fé e amor correndo
e pulsando nas veias. Sem mais, um pouco sobre
o Terra Cabula e a entrevista mais que especial.
Paulo Ras
Da esq. para a dir: Emanuel, Ingrid, Vinicius e Lene. Foto Okun.
Terra Cabula canta sonoridades presentes na
relação Brasil – África, através dos tambores,
distorções de guitarra, programações eletrônicas
e performance cênica. Ao assumir, musicalmente,
essa profusão de elementos e identidades,
adota em seu repertório referências do universo folclórico
e popular afro-brasileiro como congada, maracatu,
afoxé e toques de terreiro a partir de releituras
desses elementos, compondo sonoridades híbridas a
partir de diálogos e confrontos experimentais da tradição
estrutural com o rock, o funk, o jazz e o afrobeat.
A banda surgiu em 2015 e hoje conta com quatro integrantes.
Vinicius Bolivar que é vocalista, compositor
e presença; Ingrid Lobo é responsável pelo som potente
das guitarras saturadas e faz parte do vocal, junto
com Emanuel Mastrella, que traz para palco a pulsação
com suas programações eletrônicas, ele também é
compositor e contrabaixista; a percussão, marcante no
som do Terra, é tocada pelas mãos de Lene Black.
O grupo, que atualmente se prepara para gravação
do primeiro álbum, faz apresentações compostas por
músicas autorais, parcerias e de
domínio público com influências
que vão dos batuques de terreiro
ao rock progressivo. evocando a
cada sonoridade um grito de resistência
a ancestralidade do coletivo
brasileiro, num ambiente catártico
e livre.
A escolha do nome representa a
própria fusão de elementos sincréticos
que marca historicamente
grande parte do processo de formação
da identidade cultural/religiosa
brasileira. Cabula é o termo
resultante dos volteios em que os
negros escravizados encontravam
para exercer sua cultura e crença
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no Brasil diante das barreiras da colonização cristã.
Ao misturar ritos africanos com elementos do cristianismo
surge uma nova prática cultural/religiosa
permeada pela fusão de crenças e culturas, é nesse
contexto e luta que a Terra Cabula canta resistências
e embrenha-se no solo fertilizado com sangue e suor
do povo preto.
Qual a história do Terra Cabula?
VINICIUS - O Terra Cabula tem início no ano de
2015. Eu, como médium umbandista, sempre guardei
forte interesse nas musicalidades de terreiro. O projeto
se inicia com uma amiga, Alessandra Almeida,
produtora e também de terreiro, que sabendo do meu
interesse em retomar na cena musical e que fosse com
referências afro-brasileiras, decide produzir e fazer o
trabalho acontecer de alguma forma.
Fiquei um longo período sem executar música de
modo mais ativo na minha vida. Volto-me um pouco
mais para a cena teatral e deixo a música em standby.
Até o surgimento dessa amiga que começa a viabilizar
esse projeto, várias pessoas fizeram parte da trajetória
da banda. E cada integrante que passou acredito que
algo tenha ficado para o que temos hoje.
MILENA - Eu comecei como fã. Ahahaha. De cabulete
a produtora, essa é minha história com o Terra.
Brincadeira, mas foi quase isso mesmo, antes de tudo
sou fã do trabalho musical do Terra, enquanto produtora
audiovisual gravei um web programa (Som de
Lugar) com eles o que me aproximou e fez conhecer
ainda mais o trabalho da banda, que na época tinha
outra formação. Depois, a vida me aproximou - amorosamente
- ainda mais com eles, nossos caminhos se
estreitaram e agora o Terra terá que me aturar para
sempre.
Como surgiu a ideia dessa fusão dos cantos sagrados
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das religiões afro com ritmos como o rock e o funk?
VINICIUS - Inicialmente não tínhamos ainda muito
certeza do que iria surgir. Sabíamos que as músicas
com referências afro brasileiras fariam parte do repertório,
mas ainda sem muita consciência do caminho.
O Emanuel Mastrella esteve desde o início da
formação, mas algumas pessoas passaram pela banda
até a formação atual. Inicialmente era uma banda
com muitas referências percussivas, por meio do Flávio
Borges e do Marcos Borges, mas logo os meninos
tomaram outros caminhos e ficamos eu e Mastrella.
Tivemos também a passagem do Danilo Tuques na
bateria e posteriormente o Weiler Jamaica. Nas guitarras
estavam Gabriel Gueiros até a chegada da Ingrid
Lobo, em um formato já próximo do que somos
hoje com 4 pessoas. A percussão era feita pelo Kemuel
Kesley e que hoje é feita pela Lene Black. Então
acredito que a junção de ritmos se deu de forma natural
nos momentos das releituras de pontos e a partir
da caminhada musical de cada músico.
EMANUEL MASTRELLA - A métrica desses cantos
sagrados tem uma semelhança incrível com a rítmica
do rock e do funk, o que possibilita uma mistura rica
e fácil de ser trabalhada, com inúmeras
possibilidades de resultado.
Quais são as influências da banda?
VINICIUS - Bem, posso aqui dizer
um pouco das minhas influências
que são múltiplas, mas ele está
muito embebido de muita coisa que
já existia e que nos guiou. Pra mim
talvez o álbum Tecnomacumba, de
Rita Benneditto, foi mola propulsora
para eu pensar um pouco do formato
que gostaria de fazer músicas.
Junção de pontos e músicas autorais
ou simplesmente fazer um apanhando
de cânticos ligados à umbanda e
candomblé e dar um pouco da nossa cara. As manifestações
culturais do povo preto também acabam sendo
caminhos de expressão do nosso som: Congadas, Maracatus,
Jongos, Tambor de Crioula e Samba de Roda,
por exemplo.
Como é tocar “pontos de terreiro” em um país ainda
tão cheio de intolerância religiosa?
VINICIUS - Olha, acredito sim que
nossa música não entra em qualquer
lugar. Mas isso não nos desmotiva
e quase nunca chega algo aos nossos
ouvidos em relação a isso. Uma
fala ou outra (bem pouca ainda) que
chegam pelo youtube. Mas nada que
nos enfraqueça de resistir e mostrar
algo que é nosso, que é brasileiro e que traduz o nosso
povo. Que é exatamente esse hibridismo cultural no
qual estamos inseridos.
MILENA - O Terra surgiu com essa vontade de ser
O Terra surgiu com
essa vontade de
ser grito, de cantar
nossas lutas, dores
e amores.
grito, de cantar nossas lutas, dores
e amores. Então seguimos assim e a
gente segue tocando em um país tão
intolerante.
A banda sofreu algum tipo de preconceito
religioso?
VINICIUS - Talvez tenha. Não que
eu saiba. Mas de fato acho de suma
importância abordarmos sempre
termos como racismos e intolerância
religiosa. Algo que ainda é tão
vigente em nossa sociedade, infelizmente.
MILENA - Presencialmente, cara a
cara, não. Mas já rolou alguns comentários bem desagradáveis
nos vídeos do YouTube.
Qual é a recepção e a reação dos adeptos das religiões
de matriz africana quando conhecem o som do Terra
Cabula?
espiritualidade.
VINICIUS - Ahhhh, essas aqui são
as melhores possíveis. De fato, o
público que consome muito do que
o Terra produz, é o povo de terreiro.
Às vezes surgem os mais puristas
que irão dizer que lugar de ponto
é no terreiro. Tudo bem também.
Todo nosso trabalho é feito com
muito respeito e consentimento da
MILENA - No terreiro que frequento a recepção é
de puro acolhimento e sempre relembrando da nossa
responsabilidade enquanto umbandistas e enquanto
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artistas.
A banda tem alguma história inusitada,
interessante neste tempo de
estrada?
VINICIUS - Pra mim particularmente
a história inusitada é a de
que já tiveram pessoas que já bateram
o pé que eu estivesse incorporado
em alguns momentos dos shows ( rsrsrs). Ai eu
sempre reitero que minha formação é nas Artes Cênicas,
e a performance desenvolvida nos shows, claro
que em alguns momentos surgem ali no calor de um
show muitas ideias, mas há sempre um trabalho de
pensar movimentação cênica, ordem de repertório e
os simbolismos possíveis que iremos abordar.
MILENA - eu sempre tenho que explicar para as
pessoas essa relação do Vini com as artes cênicas e
tal. Mas geralmente as pessoas não
acreditam. Ah, o pessoal agora resolveu
mandar ponto pra gente
gravar aahahha, mas nem vejo isso
como algo inusitado, mas sim como
acolhimento, carinho e vontade que
o Terra toque em todos os cantos.
A gente convida
todo mudo para refletir
sobre a real
importância da arte
na vida de cada um.
Prosa Sonara; na programação do Lives Terça no Teatro,
do Teatro Sesi; e pela Lei Emergencial Aldir Blanc
do município de Goiânia. Todas essas lives estão disponíveis
no YouTube, nos canais do Prosa Sonora, do
Teatro Sesi e do Terra Cabula, respectivamente.
Estamos em processo de pré-produção
do nosso primeiro álbum,
mas todo o processo está andando
de forma lenta. Por entendermos a
gravidade do momento que estamos
vivendo, nossos encontros, reuniões
e planejamentos são feitos de forma
remota. Mas já podemos adiantar
que esse trabalho está sendo preparado com muito
amor.
Em tempos de streaming, onde o pessoal encontra o
som do Terra Cabula?
LENE - Ainda ( a-i-n-d-a) não lançamos ep, álbum ou
single. Mas nosso canal do Youtube tem muito material
de shows e projetos que fizemos
parte e nas plataformas de streaming
de áudio você também consegue ouvir
algumas músicas do Terra.
Só colocar Terra Cabula estará
um clique pra você curtir em
casa com segurança.
seguir. Nesse último ano falamos muito de como a
arte foi importante para manter a sanidade mental,
muita #arteimporta sendo usada, então a gente convida
todo mudo para refletir sobre a real importância
da arte na vida de cada um, a repensar o modo
em como consumimos artes e como valorizamos os
artistas, principalmente os locais e independentes.
Agradecemos com toda força o público do Terra, que
sempre esteve presente, ainda que virtualmente, vocês
não sabem como isso nos mantém forte, nos dá gás e
não nos deixa desistir. Axé e luz para esse mundo. E
logo vem um álbum por aí! Saravá
Nestes tempos de pandemia, o Terra
Cabula fez live, pocket show, tem
mais alguma novidade pela frente?
E os projetos para este ano?
INGRID LOBO - No período de
pandemia, o Terra Cabula participou
de algumas lives: no Festival
Para terminar, um recado da
banda para os fãs e para os leitores
da revista.
São tempos difíceis de se manter
em pé, de continuar acreditando
e não se desanimar. Mas
a gente deseja dias melhores, fé
e muita força para que possam
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Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
A Revista SerEsta é uma criação de um
grupo de professores e ex-alunos apaixonados
pela arte e tem a finalidade de
homenagear figuras proeminentes da literatura.
Acesse, leia, baixe, participe.
https://revistaseresta.blogspot.com/
A Revista LiteraLivre é uma publicação brasileira
de periodicidade bimestral, com distribuição
eletrônica em PDF e totalmente gratuita.
A missão principal é dar espaço aos escritores
e artistas de todos os lugares, amadores ou
profissionais, publicados ou não, que desejam
divulgar seus escritos e mostrar seu talento de
forma independente e livre.
https://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/inicio
Você escreve e quer ficar por dentro dos melhores
concursos literários do país? Acesse
uma das referências do país e não perca nada.
Esse é super indicado.
https://concursos-literarios.blogspot.com/
O site Razões para acreditar tem como
lema a frase “Não é que o mundo esteja
pior, você que não fica sabendo das
coisas boas que acontecem.”. Ali você
encontra todas as novidades que vão te
deixar mais otimista e o seu dia mais
leve. Vai uma notícia boa aí?
https://razoesparaacreditar.com/
Sabe aquele livro que você leu e está jogado
em um canto, servindo de criadouro de poeira?
Aquele que você não leva para o sebo
porque eles vão de pagar uma merreca por
ele? Seus problemas acabaram. O livralivro
é um site de troca de livros. A ideia é simples:
Um livro por um ponto, um ponto por
um livro.
https://livralivro.com.br/
15
Hypeness é um site que, como diz o
próprio slogan, oferece inovação e
criatividade para todos. Com reportagens
abordando estes temas, dá
uma visão mais ampla e criativa sobre
os mais diversos assuntos.
Confira. Vale a visita.
https://www.hypeness.com.br/
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Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Durante a década de 1930 os dirigíveis
Graf Zeppelin e o LZ 129 Hindenburg
operaram voos transatlânticos regulares
da Alemanha para a América do Norte
e para o Brasil. Muitas cidades brasileiras
testemunharam e registraram em
fotos a passagem dos balões. Na foto
ao lado, datada de 1º de dezembro de
1936, colorizada digitalmente, vemos
o Hindenburg passando pelo centro de
Paranaguá, Paraná, chamando a atenção
dos populares que andavam pelas
ruas. Esta e outras fotos fazem parte
do acervo do Instituto Histórico e Geográfico
de Paranaguá, guardião das
memórias e fatos da cidade e do litoral
paranaense.
Alguns pesquisadores e historiadores
afirmam que estas viagens também serviam
para mapear o Brasil, principalmente
de São Paulo para baixo, para
instalar bases do regime nazista no
nosso país. Mas, além disso, o que mais
aconteceu em terras tupiniquins e no
mundo, neste mesmo ano?
Na literatura, Monteiro Lobato publicou
as obras “Dom Quixote das Crianças”
e “Memórias da Emília”. Gilberto
Freyre publica o clássico “Sobrados e
Mocambos”. Nasce, em Porto Alegre,
o escritor Luis Fernando Verissimo.
Na música, Carmen Miranda grava
“Como vai você?” e “No tabuleiro da
baiana”, de Ary Barroso, e “Balancê”,
de Braguinha e Alberto Ribeiro. Em 6
de junho, nasce a cantora Maysa, que
marcou época com canções “dor de cotovelo”,
hoje chamadas de “sofrência”.
Falece Luigi Pirandello, dramaturgo,
poeta e romancista italiano.
A Alemanha utilizou os Jogos Olímpicos
com propósitos propagandísticos.
Jesse Owens calou Hitler e virou símbolo
contra o racismo. Mas o pior preconceito
Owens sofreu em casa: grande
estrela dos Jogos Olímpicos, o velocista
não foi recebido pelo presidente dos Estados
Unidos, Franklin Roosevelt, que
fez uma recepção apenas a atletas brancos
na Casa Branca. “Hitler não me
esnobou, mas o presidente dos Estados
Unidos sim. Ele não me mandou nem
um telegrama”, reclamou o corredor.
O passado serve para nos mostrar erros
e acertos para tentarmos corrigir rumos,
aprimorar passos, tentar evoluir.
Mas será que conseguiremos?
Paulo Ras
16
Congadas de Minas Gerais
A Exposição Congadas de Minas Gerais consiste
num desdobramento da Exposição “Congado: repercussões
plásticas” em parceria com o projeto Agosto
Vivo, de Montes Claros. Agosto é o mês das celebrações
das centenárias Festas de Congado da cidade.
Daí o nome do projeto ser alusivo ao mês. O Congado
é uma das mais importantes manifestações da
rica cultura popular de Minas Gerais. São vários dias
de festas que acontecem durante todo o ano, levando
milhares de pessoas a pontos históricos das cidades.
Festeiras. Por conta da pandemia, a programação dos
festejos, inclusive exposições aconteceram virtualmente.
Visando homenagear esta importante tradição, a
curadora e Artista Plástica Fátima Aquino deu seguimento
ao projeto Congadas de Minas. Visando
divulgar a produção artística mineira, propõe, então
realiza-la de modo virtual, reunindo Artistas de várias
regiões de Minas Gerais e do país, produzindo
a Exposição coletiva Congadas de Minas Gerais, no
modo virtual.
Além de promover a continuidade do
circuito das artes visuais, deseja-se contribuir
para que a cultura popular se
mantenha viva. A grande visibilidade
das festas congadeiras é decorrente do
envolvimento dos grupos folclóricos e
da população. Participantes e público
identificam no evento as memórias e o
modo de vida do povo mineiro, especialmente
da cultura africana.
Consultas através do
www.agostovivo.com.br
Acesse o Instagram de Fátima Aquino:
@artistafatimaquino
E-mail: fatimaquinoartes@gmail.com
Artistas participantes
Gerotto
João Rafael
Márcia Valadares
Marina Alves
Mauro Kersul
Mônica Mendes
Willian Júnio
Participação especial de
Yara Tupinambá e
Historiador Jeremias
Brasileiro
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Curadoria:
Fátima Aquino
Localização:
https://biblioteca.metrosp.com.br/index.
php/ptbr/359-linha-visuais/814-deus
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Cabelos loiros
Mulher dos cabelos loiros
Onde cada fio é um raio de sol
Possuindo o perfume mais puro
E possuindo os lábios que curam a minha insanidade.
Cicatrizes fazem parte da jornada dela
E mesmo com o caminho cheio de espinhos
Ela carrega a esperança em uma mão
E a fé em outra.
Ela é luz que ilumina a mais densa escuridão
Seus abraços são o que mantém a minha lucidez
E aquecem o meu coração.
Vinicius Bispo Pereira (conhecido
também como vickdebadu)
tem 22 anos e é
autista. Sempre gostou de
animes, games e música. Apesar das dificuldades,
nunca desistiu de buscar os
seus objetivos e hoje está cursando Letras
- português na Unespar. Também
faz vídeos de perguntas e respostas sobre
Autismo.
YouTube: eu sou autista
Facebook: eu sou autista
Instagram: vickdebadu
Não deixe sua luz se apagar....
18
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
sempre mantém essa essência curiosa de saber
como tudo funciona ao meu redor, descobrir novas
coisas, visitar minhas memórias a toda hora
e fazer mais bagagens em todos os lugares que eu
conheço. Acredito que tudo na vida é construção,
tudo se faz e se cria movido por paixões.
Como você começou na arte?
Desde criança sempre gostei de brincar com materiais
artísticos, de molhar minhas mãos na tinta
e transformar papeis em branco em um universo
colorido, sentava frente a Tv com massinha
de modelar e passava horas reproduzindo meus
personagens favoritos, mas me tornei mais conhecido
quando compartilhei minhas obras nas
redes sociais aos 18 anos, muita gente começou
a acompanhar meu trabalho.
de poesias, contos e notas de rodapé que escrevo
por inspiração.
Você vai expor no Carrousel du Louvre. Como
surgiu o convite e o que ele representa para você?
Expor em um dos maiores museus do mundo é
algo fascinante, uma grande oportunidade que
surgiu de repente a convite da empresa Vivemos
Arte, nunca planejei ou imaginei investindo meu
potencial criativo para ser apreciado no país do
romantismo e das artes, foi impactante pelo fato
de eu ser apaixonado por história da arte e imaginar
que diversos artistas estiveram um dia na
mesma posição que eu é surreal.
Você tem uma rotina de trabalho? Como é o seu
"Prazer em conhecer" é uma seção da Revista
Cultural Traços em que apresentaremos artistas
de várias linguagens e vertentes para os nossos
leitores. Um dos nomes desta edição é Rodrigo
Paladino.
Entre, leia, consuma arte, cultura e tenha prazer
em conhecer novos nomes, novos talentos.
Rodrigo Paladino por Rodrigo Paladino
Apaixonado pela vida! Artista desde criança que
Como você define a sua produção
artística?
Minhas produções são emoções
materializadas, acredito
na arte como sendo uma
forma de linguagem que não
depende apenas das palavras,
a minha intenção é fazer com
que o apreciador sinta parte
do que eu senti naquele momento
que foi criada, geralmente
o que crio é uma síntese
19
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
processo de criação?
Sempre tento tornar dos meus processos criativos,
algo leve. Não gosto muito de prazos, salvos
alguns casos onde isso se faz necessário, meu fluir
artístico é sempre baseado em emoções e sentimentos
e como naturalmente é oscilante em qualquer
ser humano eu respeito meu tempo e confio
na minha intuição.
Aonde você busca suas referências criativas?
Minhas maiores inspirações vêm do universo cinematográfico,
sou apaixonado por fotografia e
vejo as lentes das câmeras como um portal para
registrar a magia que existe nas coisas, gosto de
criar universos fantásticos me referenciando nos
meus filmes favoritos, em especial os de animação
Stop Motion. Sou apaixonado pela obra de diretores
como Tim Burton e Guilhermo Del Toro.
Quais são seus próximos projetos?
Eu gosto de me surpreender com minhas conquistas,
são elas que determinam meus próximos
passos, estou a todo momento fazendo contatos
novo e conexões com artistas e pessoas que apreciam
meus trabalho e é daí que surgem novas
oportunidades e novos projetos, tento não criar
tantas expectativas pois a frustração é um dos
maiores inimigos da inspiração. Mas tenho muitos
sonhos, gostaria de dirigir um curta metragem
de animação com uma história original minha e
levar ele para festivais de cinema, criar personagens
cativantes, escrever um best seller, a lista é
imensa!
20
Qual o recado que você deixa
para quem está começando?
A todo momento vejo pessoas
iniciando nas artes e me pedindo
dicas e conselhos sobre como
crescer, como aperfeiçoar e lapidar
as produções, muitos acreditam
que a arte é um dom, mas
eu discordo, se existe dom esse
dom se chama paixão, paixão
extrema por aquilo que faz, ver
seu trabalho idealizado e materializado
é uma das coisas mais recompensadoras
que existem, faz você ganhar mais impulso para
a próxima tacada, o segredo é sempre acreditar
que você tem todos os recursos para fazer o que
você quer.
Como as pessoas podem achar as obras de Rodrigo
Paladino?
É possível encontrar meu trabalho nas minhas redes
sociais, posto fotos e interajo bastante com
quem me segue no meu instagram (@paladino.
art) e outras redes secundárias que sempre estou
divulgando por lá também.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
O DUO
Morgana Moreno
& Marcelo Rosário
Virtuosismo, afinidade e interação musical são
alguns dos adjetivos que a flautista Morgana Moreno
e o violonista Marcelo Rosário colecionam
apresentando Nascente, o mais recente projeto
do duo que em 2019 passou pelo Brasil e Europa.
O lançamento do álbum aconteceu em março
de 2020 através das plataformas de streaming e
da participação nos editais Funarte Respirarte e
Itaú Arte como Respiro.
Neste projeto autoral, através de suas composições
retratam o universo brasileiro a partir de
uma experiência muito particular. É perceptível
a síntese da referência aos gêneros brasileiros
acrescida inevitavelmente da influência de outros
gêneros como a música clássica e o jazz, experienciados
em sua vivência de 6 anos no continente
europeu.
Lançando mão de uma formação mais intimista,
flauta e violão, ambos buscam uma abordagem
onde revezam o papel de solista e acompanhador,
dialogando todo o tempo através dos arranjos e
dos momentos de improvisação, permitindo assim
mais visibilidade às possibilidades dos seus instrumentos
e à notável afinidade artística e musical de
ambos, que possuem uma parceria que data mais
de 10 anos.
Autalmente finalistas da 6a edição do Prêmio Profissionais
da Música, os jovens baianos trazem
uma ampla bagagem ao longo de uma duradoura
parceria, passando por importantes palcos do Brasil,
Alemanha, Portugal, Espanha, França,
Suíça e Holanda como Bimhuis, Viva Brasil
Amsterdam, Breda Jazz Festival,Choro
Festival Rotterdam, Clube do Choro de
Brasília, etc. Em passagem pela Europa,
onde ambos viveram por 6 anos, gravaram
seu primeiro disco, também autoral, Miscellaneous
(2016), com a participação de
músicos europeus da cena do jazz e world
music.
OS ARTISTAS
Morgana Moreno
Natural de Salvador-Ba, desde cedo já se
21
destacava por sua autenticidade, linguagem própria
e som expressivo, resultados do contato com
diversos estilos musicais. Em sua trajetória inclui
o prêmio Melhor Música Instrumental com
sua composição "Baião" no Festival da Música
da Educadora 2014 (Bahia/BR) e a indicação ao
Künstlerinnenpreis NRW 2015 (Colônia/DE).
Morgana é Bacharel em Música (Instrumento)
pela UFBA e Mestra em Música (Flauta Jazz)
pela Hochschule fur Musik und Tanz Köln. Ensinou
no CODARTS -Universidade de Artes de
Roterdã e na EPM Holanda -Escola de Choro.
Atua como flautista e compositora e possui dois
discos gravados na Alemanha.
Marcelo Rosário
Extremamente versátil, o jovem Marcelo Rosário
também começou muito cedo como multi-instrumentista,
antes de decidir tocar violão. Ainda jovem,
mudou-se para Brasília e se especializou em
música brasileira com foco em samba, choro e o
típico violão de 7 cordas. Estudou World Music
na Codarts, Roterdã, na Holanda, onde obteve
bolsa integral e lecionou na Escola de Choro
"EPM Holanda". Ele tem trabalhado como violonista,
compositor, arranjador e educador.
Confira o vídeo da música "Terra Vermelha":
www.youtube.com/watch?v=Y-AmifReSlk
Conheça o trabalho do Duo e de Morgana Moreno
no youtube
https://url.gratis/Fbj5A
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
vi li ouvi
Emily Dickinson é uma jovem escritora em ascensão
que se sente deslocada em seu próprio tempo. Cheia
de ideias progressistas demais para o século XIX em
que ela nasceu, a poetisa vai ter que usar da sua vasta
imaginação para lidar com os obstáculos que sua família
e a sociedade colocam no seu caminho.
A serie usa a imagem de Emily Dickinson para observar
os dias atuais. Desde a primeira cena está claro
que não se trata de uma biografia comum, mas sim de
uma analogia fantasiosa.
Com capítulos que não passam dos 35 minutos, a série
cumpre a missão de entreter e de trazer ao público
um pouco da obra genial da autora.
A série está na segunda temporada e disponível na
Apple TV+.
Neste mês, não vamos falar de
um livro, mas do conjunto da
obra de um dos gênios da nossa
literatura. Dalton Trevisan produz
contos curtos, escritos em
linguagem tão concisa que muitas
vezes chega a ser elíptica: ele mesmo
declarou que seu caminho vai
"do conto para o soneto e dele
para o haicai". Seu estilo é direto
e ágil e suas narrativas apresentam
os dramas de pessoas que se
movem entre as expectativas de
felicidade e realização que aprenderam
a alimentar e a realidade crua e desumana, que as frustra
e aniquila. As relações humanas que apresenta comprovam que a
realidade é degradada e cruel: as pessoas se maltratam e se ferem
em vez de manterem no cotidiano vínculos de carinho e respeito.
Assim, marido e mulher estão sempre em conflito, pais e mães oprimem
os filhos, amigos se confrontam e disputam o poder... Nem
os animais de estimação escapam desse moinho de sentimentos:
sua ingênua dedicação recebe impaciência e indiferença como retribuição.
Sua escrita sintética e contundente pode ser considerada uma referência
constante no trabalho de muitos contistas recentemente
surgidos, como os da Geração de 90.
Tímido e arredio, o curitibano Dalton Trevisan foge do assédio dos
jornalistas e guarda sua vida pessoal a sete chaves. Não fornece
seu telefone, tem raros amigos nos círculos literários e por vezes
se recusa a receber pessoalmente os prêmios conquistados por seus
contos magníficos. Mas é possível imaginá-lo à noite, percorrendo
às escondidas as ruas da capital paranaense, escutando atrás das
portas as manifestações dos desejos escondidos da população, alimentando-se
deles, trazendo-os à superfície e incorporando-os a
seus escritos.
Não por acaso, o escritor que muitos consideram o maior contista
brasileiro contemporâneo costuma ser designado pelo título de um
de seus livros de histórias curtas: o Vampiro de Curitiba.
Fonte: https://novaescola.org.br/
22
Vanguart é uma banda de indie rock formada no ano
de 2002 em Cuiabá, Mato Grosso, pelo vocalista e
violonista Helio Flanders. O nome da banda foi retirado
de um vídeo sobre Andy Warhol. O Vanguart é
bastante influenciado por artistas de rock alternativo,
blues e rock clássico.
Apresentação feita, a banda tem um som marcante,
com letras carregadas de poesia. “Meu sol”, um dos
sucessos do Vanguart, é pura sensibilidade, daquelas
músicas para se ouvir de olhos fechados, com o vento
batendo no rosto. Destaque para o vocalista Hélio
Flanders, e para o violino marcante de Fernanda Kostchak.
Você encontra o trabalho da banda nas plataformas
de streaming e no youtube.
Depois de conhecer o trabalho deles, com certeza
você vai colocar o Vanguart na sua lista de favoritos.
Cartas de amor
são ridículas
Já disse Fernando Pessoa, nas tintas do seu heterônimo
Álvaro de Campos, que “Todas as cartas de
amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não
fossem ridículas.”. Pois bem, não precisamos daquele
blá-blá-blá sobre os males da modernidade, afinal
isto já está mais do que batido, rebatido, falado e refalado.
Quem tem mais de 30 ou 40 anos deve ter
tido a experiência de escrever cartas, seja para amigos,
para parentes, para um amor, para uma promoção
de alguma marca que realizava sorteios ao vivo
no Faustão, na Xuxa, no Gugu, no Sílvio Santos, no
Chacrinha. Mas como nossa revista é uma revista literária
que, apesar da modernidade do digital, é old
school, fizemos esta seção chamada Cartas de amor
são ridículas. O título é para homenagear o imortal,
eterno e atemporal Fernando Pessoa, que, com seus
fakes, maravilhava e continua maravilhando leitores
do mundo inteiro. O conteúdo é para reviver aquela
tradição e fazer com que nossos leitores e autores se
aventurem no mundo do “ridículo” e enviem cartas
de amor. Será publicada uma carta por edição. Quem
sabe a sua não será a que estará no próximo número?
Envie para o nosso e-mail. No assunto apenas
coloque Cartas de amor. Pode ser uma carta real ou
inventada, com nome verídico ou com personagens.
Pode ser romântica ou erótica. Melosa ou lasciva. Ou
tudo isso junto. O espaço é seu, a criatividade é sua.
Ah... a carta precisa ter no máximo 400 palavras, e
se você quiser dar mais um tchan pra sua carta, pode
mandar o texto manuscrito, digitalizado em pdf, se o
garrancho for legível, claro.
Nesta edição publicaremos, excepcionalmente, duas
cartas, a primeira de Neide Oliveira, a segunda de
Patricia de Campos Occhiucci.
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Como vai? Espero que você esteja bem.
De fato sei muito pouco da sua vida, superficialmente, através das redes sociais, vejo suas fotos e seus sorrisos, aliás
eles são mais lindos que qualquer paisagem.
Por aqui tudo vai indo.
Não estranhe essa carta, é que eu não sou tão bom com palavras ditas, por isso me apego à escrita. Posso lhe fazer
uma sugestão?
Leia-me como se eu fosse essa carta, não apenas palavras frias no monitor, sou mais do estilo retrô, de papéis enfeitados
e perfumados, escrita com canetas coloridas, às vezes com letras tão intensas, que escorrem a tinta, desfazendo-se
em um borrão.
Sabe ainda recordo aquele dia em que você me disse para “não se apaixonar”, infelizmente foi um pouco tarde...
Por isso resolvi lhe escrever esta carta, que talvez não seja enviada, talvez apenas fique guardada na minha própria
lembrança, como a atitude covarde de deixar você ir, sem lê-la.
Devo confessar que aceitar somente sua amizade foi como engolir uma enorme pílula quadrada, amarga e dolorosa,
meu peito por vezes arde, então tenho que me rasgar por dentro, para voltar a respirar, por isso lhe escrevo.
Não é nenhum tipo de cobrança, vida que segue, livre arbítrio, cada qual no seu próprio caminho, tantas vezes me
pergunto por que você cruzou o meu?
É incrível como você reside em meus pensamentos, a sua voz, o seu jeito, os seus olhos, ah, os seus olhos! Seus olhos
são o meu céu, onde meus dias se iluminam, e tantas vezes refletem estrelas noturnas, alimentando meus sonhos, esses
desejos que já não me cabem.
Se conselho fosse bom por hora não seriam os meus, pois no íntimo meu coração ainda é seu, talvez um dia eu consiga
esvaziar os escaninhos da minha memória, desocupando os espaços desse latifúndio que você tomou posse em mim.
Desculpa! Tento me corrigir e não lhe sentir assim, mas o que eu posso fazer?
Dizem que as pessoas são racionais e objetivas, parece que ser romântico é clichê, serve apenas para alimentar fantasias
e poesias, fazer o que se sou assim?
É brega, eu sei.
Quando há sentimentos não existem culpa ou culpados, pode-se considerar que foi uma paixão no momento errado,
um amor não correspondido, um tanto atrevido que sequer você teria imaginado, a vida nem sempre entrega aquilo
que se havia planejado.
Não quero lhe causar nenhum transtorno, falando assim pareço aquelas placas sinalizadoras, perdidas em alguma
curva, e que ninguém presta atenção, soam como mensagens jogadas ao vácuo.
Sobre esta carta?
Bem, agora que ela está em suas mãos esqueça se assim quiser, se preferir nem abra, deixe que essas palavras flutuem
sem destino, pode rasgar, apagar da sua caixa de e-mail, deixar perdida feito spam.
Agora tanto faz o destino que terá esta carta, não tenho pretensão nenhuma de que mude sua vida, apenas peço a
você que permita-se.
Permita-se ser feliz, experimentar, errar, ousar, e quem sabe amar.
Neide Oliveira
Vitória - ES
Cartas de amor
são ridículas
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Mogi Guaçu, 22 de abril de 2021.
Prezado Gael
Aqui quem lhe escreve é a Rafa. Tudo bem? Espero que sim. Imagino
sua cara de surpresa ao receber esse envelope pelos correios e ler o nome
da remetente. Bem, foi a maneira que escolhi para chegar até aí. Estou
com muitas saudades de você. Muitas mesmo. Queria saber por que você
deixou de falar comigo, de responder minhas mensagens. Essa não é uma
cobrança, e se parecer muito melosa, fazer o quê... Cartas de amor são
ridículas mesmo.
Talvez eu tenha sido um pouco inconveniente em minha abordagem,
peço desculpas se passei da conta ou o assustei. Não era a minha intenção
causar mal estar, ou fazer você se posicionar de alguma forma, menos
ainda provocar seu afastamento. Na verdade, eu só precisava falar o
que sentia, porque eu não conseguia mais fingir que só sua amizade me
bastava. Claro que era o que nos unia, um carinho muito grande, porém,
de minha parte essa ligação tomou outras proporções, maiores e mais
significativas.
Comecei a desejar ter você ao meu lado pra fazer companhia nas tardes
quentes de verão, em meio ao calor que faz nessa cidade e também nas
noites de frio, que não são tão intensas por aqui, mas o suficiente para
despertar a vontade de ter um abraço quente nas madrugadas sempre tão
solitárias. Gostaria de ter você nos bons e maus momentos, para tudo o
que viesse. Sei que nem sempre o amor é correspondido, às vezes, amamos
por dois, e uma hora isso acaba sendo insuficiente. Percebo que meu
querer anseia em ser recebido e retribuído. Parece que nunca dei muita
sorte nesse quesito.
Com você, imaginei que iria ser diferente. Não sei, acho que pelo seu
jeito de ver o mundo, de tratar as pessoas, sonhar, tão parecido com o
meu. Mas, pode ser que justamente nossas semelhanças tirem a graça da
tentativa. Você pensa que já sabe o que vai encontrar. Na verdade, já te
adianto que não. Muito pouca coisa você sabe sobre mim. Só teve tempo
de conhecer a superfície. Ainda tinha (ou tem) toda uma profundidade
para investigar. E esse negócio de que os opostos se atraem, sempre achei
a maior “furada”, pois alguém muito diferente pode até ser excitante no
começo, mas depois tanta discrepância pode se tornar um transtorno.
Sei lá quais argumentos eu poderia usar pra te chamar de volta. Se você
não gosta de mim dessa maneira, não tem como dar uma chance, sem
problemas, eu não vou ficar batendo na mesma tecla. Entretanto, eu sinto
falta da sua presença, mesmo que pela tecnologia, nas conversas de
final de tarde, e dos “bons dias” logo quando acordava. Gentilezas, num
contexto de tanto isolamento e esquecimento desses tempos de pandemia,
onde muitos amigos ficaram tão longe, não se comunicam, parecem
que nem se lembram. Parentes então, só os mais chegados mesmo, pais
e irmãos. Sinto saudade das suas mensagens no WhattSapp, por mais
simples que fossem, como uma piada ou um vídeo curioso. Se vinham de
você, eram importantes.
Essa carta é mais pra dizer o quanto você é especial. E também que não
precisava cortar nossos laços. Sei que cada um se apaixona por quem o
coração escolhe, e mal sabemos por onde essa estrada da vida vai nos
levar. Somos ainda jovens e, provavelmente, o futuro nos reserva pessoas
e acontecimentos que não fazemos nem sequer ideia.
Mas, confesso que viver um romance com você levaria minha inspiração
a mil, com mais poemas escritos que o normal e, aposto, várias outras
cartas de amor, junto com bombons e vinho. Se puder ao menos me chamar
mais uma vez pra trocarmos uma ideia, ficarei feliz. E se estiver disposto,
pense com carinho no que tenho pra oferecer, pois nesses tempos
onde tanta coisa é passageira, o meu amor vem mesmo pra ficar.
Um abraço apertado,
Rafa.
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Arte: João Alberto
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
HAICAI DE OUTONO
AGNES IZUMI
NAGASHIMA
Londrina - PR
Escreve contos e
poemas, publicou
em revistas
e coletâneas. É
acadêmica correspondente
da Academia
Internacional da União Cultural,
faz parte da UBT Londrina
e da Comissão de Autores
da WebTv.
Verde desbotou,
folhas caídas de outono.
Sopra o vento álgido.
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ALBERTO ARECCHI
Pavia – Itália
Arquiteto italiano,
mora em Pavia.
Presidente da Associação
Cultural
Liutprand, que edita estudos
sobre a história local e as
tradições (liutprand.it). Escreve
contos e poemas.
DIA DAS CORES
Um dia, ao acordar, cada cor tinha-se
transformada em sua
complementar. O céu estava
rosa e amarelo, as pessoas tinham
a pele cianótica, a grama tinha virado
vermelha.
Dois ratos olhavam-se assustados ao ver a
pele quase fluorescente um do outro. Eles
pareciam desenhados em néon. Uma abelha
listrada em branco e roxo ia voando
como louca. A água do arrozal refletia a
cor amarela do céu. Uma rã de cor vermelha
incendida olhou para um mosquito,
branco como a neve. Ela reagiu instintivamente,
estendeu sua língua e pegou. O
sabor era bom, como o de um bom mosquito.
O batráquio então soube que deveria
manter um olho sobre as pequenas
criaturas brancas esvoaçantes... Pouca a
semelhança com os insetos do dia anterior,
mas mexiam-se como eles e tinham
o mesmo sabor. Mesmo a rã, porém, que
ficava vermelha, também apareceu como
uma boa presa para o corvo branco, que
passou a devorá-la.
Nádia acordou com um susto. Um mês
antes, ela havia pintado seu quarto de
cor-de-rosa e agora aparecia esverdeado,
com um tom um pouco lívido, na luz da
manhã. Esfregou-se os olhos, mas o efeito
não foi alterado. Ela foi até a cozinha
para fazer café e descobriu que todas as
plantas ficavam vermelhas. O pote de
café era opaco, quase preto, enquanto o
pó de café aparecia azulado. O gato de
casa saltou de um móvel para outro em
um ambiente que via estranho, como uma
nave espacial. Em seguida, ele reconheceu
seu cheiro em um canto do tapete, e ele se
acalmou.
Começou a chuva. As gotas iridescentes
pareciam diamantes multifacetados. Onde
batiam, deixavam sua marca. Quebravam
as janelas, esburacavam os guarda-chuvas
e os telhados dos carros. Parecia ter chegado
o dia do fim do mundo.
Foi então que as águas do rio também
começaram a mudar sua cor. Depois de
tantas décadas de assédio, roubo de água
e sujeira de todos os tipos em suas águas,
ele decidiu se vingar, com a escolha de sua
cor. Um filete um pouco mais brincalhão
escolheu tornar-se amarelo, depois rosa,
depois vermelho, enquanto outros optaram
pela variedade dos verdes. As tranças
de água foram como um arco-íris colorido,
ou como esses fios de algodão, mexidos
de todas as cores, a partir dos quais
você pode escolher os tópicos para remendar.
As águas borbulhantes pareciam gozar de
um carnaval repentino de alegria. Então,
todos os córregos do rio remexeram-se
juntos e assumiram uma mesma cor azul,
como a tinta da caneta estilográfica. O
sol batia nas vagas e nos redemoinhos e
traia milhares de reflexões. Foram surpreendidos
os pescadores. Ainda mais foram
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Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ALBERTO ARECCHI
Pavia – Itália
DIA DAS CORES
surpreendidos os peixes. A notícia se espalhou
rapidamente. O rio de águas coloridas
batia contra os pilares da ponte, e
todos foram para vê-lo.
Os redemoinhos de água e os arabescos
traçados na areia das praias eram como
a escrita ágil de uma mão experiente. Os
marcos tomaram forma e tornaram-se
palavras. Os riachos delineavam mil, dez
mil, cem mil vezes, as mesmas palavras,
durante todo o curso do rio, “Basta! Chega!
Basta!” Basta com a poluição? Com
as guerras? Cada um interpretou a expressão
como ele desejava. Todo mundo
tinha alguma razão para dizer “basta” e,
portanto, quase todos concordaram com
o rio.
Apenas o aterro de resíduos, que manchava
o panorama e infetava a cidade, não
se virou. Enorme, inchado, fedendo como
sempre, o aterro resistiu e não mudar de
cor, ficando cinzento e sombrio. Suas exalações
mefíticas contaminavam o ar, as escórias
ficavam sem se rebaixar, no tempo,
como vestígios para toda geração futura.
Aqui irão se passar as escavações arqueológicas
da posteridade, para reconstruir a
cultura e a história da nossa civilização.
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ALESSANDRO JOSÉ
PADIN FERREIRA
Praia Grande - SP
STORIES
Uma fração de segundos
E um menino jaz com a cabeça esmigalhada
Em uma parte do mundo que não é o nosso
Mais perto, alguém sorri na praia
E outro faz pizzas na companhia amada
Uma fração de segundos
Choramos
Uma fração de segundos
Sorrimos
Uma fração de segundos
Esquecemos
Poeta, professor universitário
e jornalista.
Após anos dedicados
à atividade
jornalística e acadêmica,
retomou sua produção poética.
Está preparando o seu
primeiro livro.
https://medium.com/padin
30
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
QUINO
ALINE BISCHOFF
Osasco - São Paulo
Aline Bischoff é uma
artista paulista que
atua em diversas
linguagens artísticas,
tais como: música, literatura,
teatro, artes plásticas e
visuais.
31
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ANDERSON A.
DA C. ROBERTO
Belo Horizonte - MG
Natural de Belo
Horizonte. Leitor
assíduo de
livro e criando
coragem para publicar os
seus
O FIM DO MUNDO DE ALAOR
Faltavam cem segundos para o fim do
mundo...
Alaor leu a terrível notícia no jornal.
É um homem de meia-idade, reservado,
sem posição política definida, sem muitos
sonhos ainda a realizar, e historicamente
apegado às tradições, como gostar de ler o
jornal impresso no início da manhã e com o
rádio sintonizado em seu programa preferido.
Nunca tinha lido que existia o tal “Relógio
do Apocalipse”, era assim que o chamavam
na matéria. Descobriu que os ponteiros deste
relógio estavam há muito tempo estáticos, e
que o tempo é relativamente diferente neste
relógio, não se marca o fim ou o início do dia
e da noite como nós seres humanos estávamos
acostumados. Eles marcam o tempo que
a humanidade ainda tem como expectativa
de vida, e que o avançar ou o retroceder dos
ponteiros estavam ligados diretamente à imbecilidade
que os humanos tem para acabar
com tudo e de só pensar em riquezas. O autor
da matéria não havia escrito aquelas palavras,
a interpretação de Alaor havia pedido
até alguns palavrões para adjetivar o homo
sapiens, mas ele se conteve como sempre fez.
Sua esposa o chamou pelo nome, apesar de
saber onde ele nestes últimos anos, sempre
estaria de manhã. Trouxe-lhe o café preto e
sem açúcar por causa do diabetes e uma torrada
com manteiga dos dois lados. Ele sorriu
e ela depois de segundos intermináveis sorriu
de volta, estava embutido na troca de sorrisos
quase melancólicos o diálogo da manhã:
como passou a noite? Eu muito bem e você?
Já tomou os seus remédios? E você, já tomou
o seu? Não sei como você agüenta estas musicas!
E as notícias do jornal, continuam as
mesmas? O seu time ganhou? Me deixe acabar
de ler que daqui a pouco lhe conto... Não
teve coragem de dizer à mulher que o fim do
mundo estava próximo. Esqueceu um pouco
a leitura e a fitou voltando para a cozinha, o
vestido esgarçado e as pernas com algumas
veias salientes. Se contasse a ela, talvez pensasse
que tinha embirutado de vez, andava
reclamando a ela que ultimamente a memória
não andava lá essas coisas. E justamente
na hora em que todos os neurônios voltaram
para novamente pensar no fim do mundo, o
locutor anunciou a música de Cartola, “Preciso
me encontrar”.
Sentiu um baque ao escutar o inicio dedilhado
da música e depois a marcação dos instrumentos
ganhando corpo e volume e a voz
de Cartola a lhe chamar para dar o fora dali
e aproveitar seus últimos segundos de vida,
seus últimos cem segundos. Olhou em volta
e sentiu asco. Sentiu como se estivesse fora
da curva da vida, tantas coisas a aproveitar e
agora aquele mundo ou pelo menos a vida de
que todos tinham conhecimento, iria findar-se
em tão pouco tempo. As palavras e a melodia
entravam em seus ouvidos e também em seus
poros e ele ali, a olhar aquele café sem gosto
e a torrada com todas as suas restrições. Foi
uma retrospectiva bem rápida, exatos os três
minutos que durou a música: foi um bom marido
na medida do possível, bom pai na educação
dos filhos, que agora crescidos tinham
seus próprios problemas. Foi um bom funcionário
da empresa que trabalhou por mais de
trinta anos, mesmo que em alguns momentos
um soco bem dado no nariz diminuiria consideravelmente
os embates diários. Foi um bom
amigo, mesmo que agora a maioria de suas
amizades estava morta e os que ainda continuavam
vivos, Alaor evitava encontrá-los
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ANDERSON A.
DA C. ROBERTO
Belo Horizonte - MG
O FIM DO MUNDO DE ALAOR
por não suportar as suas eternas reclamações.
Foi um bom cristão, mesmo sabendo que em
alguns momentos ele poderia ter feito uma
oração e um pedido com mais fervor. Foi um
bom irmão, mesmo não suportando na maioria
das vezes as imperfeições do seu sangue.
Foi um bom filho, mesmo sabendo que poderia
ter dito aos pais que os amava mais do
que eles pensavam. E então como resultado
de suas avaliações, descobriu-se que era apenas
bom em tudo e com o fim do mundo mais
próximo a cada segundo, a sua chance de ser
ótimo em alguma coisa diminuía com um estalar
de dedos.
Cartola deu ainda mais ênfase no refrão.
“Deixe-me ir, preciso andar” ficou martelando
na cabeça de Alaor, os segundos para o fim
do mundo andando cada vez mais depressa e
ele a ponto de chorar sem saber o que fazer.
A mulher o tirou daquele transe, lhe perguntando
o que queria de almoço e como ele não
lhe respondeu, permanecendo com os olhos
esbugalhados e tristes, decidiu ela mesma, já
voltando para a cozinha, que seria bife de peito
de frango e salada de brócolis e tomate.
Foi neste momento que de dentro do peito de
Alaor surgiu um rompante que não surgia há
vários séculos. Olhou tudo em volta até que
os seus olhos encontraram a janela e dentro
dela o mundo, mesmo que por uma ironia
este fosse de forma quadrada. Esticou a vista
o máximo que pôde, mas não conseguiu
ir além de algumas quadras, porque os olhos
não funcionavam mais direito e os prédios a
toda volta limitavam a visão. Mas decidiu que
não queria mais aquele limite, queria como
na música ultrapassar aquela barreira e aproveitar
ao máximo aqueles segundos restantes.
O rompante ainda vociferava no peito e já se
espalhava por outros tecidos e órgãos: já que
os humanos estão acabando com o mundo,
que eles vão à merda e me deixem aproveitar
tudo o que eu puder.
O programa preferido acabou, várias músicas
foram tocadas depois de Cartola, os minutos
da manhã já haviam sido quase todos consumidos
e nada do fim do mundo iniciar. Coitado
de Alaor, levou a interpretação da notícia
ao pé da letra, que mesmo sendo este um
relógio, o do Apocalipse só movimentaria os
ponteiros se os humanos assim o quisessem.
A vida continuava da mesma forma, preservando
as suas esquisitices e idiossincrasias de
cada região do planeta. Não havia risco de asteróides,
terremotos, inundações ou qualquer
tipo de fim com interpretação religiosa. Pelo
menos por enquanto e a não ser nos filmes,
o mundo continuava inteiro e funcionando
normalmente, com uma indisposição aqui e
ali, mas nada que não pudesse ser recuperado.
Dona Ivana, a mulher de Alaor, veio contar-lhe
sobre uma fofoca e dizer que iria sair
para comprar o frango e terminar o almoço.
O encontrou estirado sobre o tapete com os
mesmos olhos esbugalhados e tristes. Deu um
grito de desespero ao perceber que o havia encontrado
já sem vida.
Não era rompante e nem um embate contra a
vida monótona que havia levado. Alaor teve
um infarto fulminante e que levou a sua vida
toda de uma vez.
O fim do mundo pode acontecer de várias
formas, o de Alaor começou no coração...
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ANTONIO GIL NETO
São Paulo - SP
CENÁRIO
Chuvinha miúda
incessante
A terra se achocolata e umidifica o que se olha
Os bois
o aroma do jasmim
os cavalos cor de canela
e o que alaranja cenários de nada
Aquarela
as cores sinalizam o que se vai vivendo
Os cafezais vão embranquecendo
antecipam o carmim
O infinito começa
assim
Reside em São Paulo.
Trabalhou em Educação,
na formação
de educadores
e obras didáticas. É autor de
literatura juvenil. Aposentado,
gosta de viajar, a ler e escrever
com renovada alegria.
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
REAPING LOVE
ARISSON TAVARES
Escritor, jornalista e
cartunista do portal
Só Notícia Boa,
sendo finalista na
52ª edição do Prêmio de Comunicação
da CNBB.
Saiba mais acessando:
https://arissontavares.wixsite.com/site
35
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
O PILAR DO MUNDO 1
ARTHUR SENRA
A
busca por conhecer
a singularidade
das pessoas marca
a trajetória dos trabalhos
de Senra. Utiliza várias
plataformas para apresentar
seus trabalhos, seja em documentários,
fotografia ou literatura.
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
BRANCA LESCHER
São Paulo - SP
Cantora, compositora
e poeta. Lançou
em 2016 o livro
de poesias “Fibromialgia”
e dois discos autorais
“Branca” e “Eu não Existo”
em 2017 e 2020. Participa do
coletivo “Senhoras Obscenas”.
SÓ TEM 39!
É
um acontecimento uma mulher calçar
40, 41. Parecido com ser canhoto. Todo
mundo sabe quando a gente é canhoto e
quando tem pés grandes. Canhoto tem um
certo glamour, tem aquela lenda que diz que os canhotos
são inteligentes, na escola recebem carteiras
especiais, mas ser canhoto e ser uma mulher com
pés grandes trazem consequências bem diferentes.
Sou uma canhota que calça 40, às vezes 41, e todo
mundo que me conhece sabe disso e lança sempre
a mesma pérola, ah nossa, seus pés são finos, nem
parece!
Sei que existem milhares de mulheres pelo mundo
que usam sapatos 40, 41, 42, até 43, mas parece
uma ofensa entrar em uma loja e perguntar
se aquele sapato ou sandália que você gostou está
disponível no número 40 (nem ouse dizer 41), é
sempre assim:
- Boa tarde, gostei daquele modelo, tem até que
número?
- Boa tarde, até 39, que número a senhora precisa?
aí eu digo, 40 mas, 39 não me serve, então pode
deixar, obrigada.
- Não, senhora, a forma é grande, vai servir.
Eu não gosto de experimentar a tal forma grande,
porque ela nunca me serve, mas vez ou outra me
deixo levar, ok, tudo bem, vamos ver, e aí como
sempre eu experimento aquela sensação, pela milionésima
vez, de ser uma das irmãs da Cinderela
que não cabiam no delicado e minúsculo sapatinho
de cristal da protagonista do conto de fadas.
É um inferno.
Quando eu tinha 14 anos e já calçava 40 ia com
a minha mãe na Cordobán, numa loja que ficava
no Shopping Iguatemi aqui em São Paulo em um
corredor que se chamava à época mini-shopping.
Lembrando da loja sinto até uma certa melancolia
pois era uma coisa bem sem graça, bege e marrom,
poucos produtos, mas era lá que eu ia com
a minha mãe para mandar fazer sapatos. Se hoje
é difícil achar meu número imagina há quarenta
anos? Nunca vou esquecer de uma mulher muito
alta que entrou na loja enquanto eu experimentava
o meu salto alto que enfim cabia em mim pois
tinham sido feitos sob medida e disse:
- Ah menina, não fique triste com os seus pés, eu
também calço 40, mas isso não me impediu de casar!
E você tem um rostinho lindo! Nunca esqueci
do que ela disse, só esqueci mesmo foi do modelo
do sapato.
Continua a ser um saco ir em loja de sapatos, mas
o pior são as lojas de tênis, pois os modelos femininos
vão até o número 39. Tenho que comprar os
modelos masculinos que são mais largos e não tem
aquelas cores fofas, rosinha, laranja. É muito chato,
muito difícil um que dê certo, mais complicado
ainda é levar o tênis na mala quando viajo, pois
ocupa metade do espaço e eu só uso em extrema
necessidade, basicamente para fazer caminhada.
Outro dia recebi um amigo em casa que perguntou
se eu era parente da Imelda Marcos, a tirana da
Filipinas, corrupta, que quando foi presa em 1986,
foram encontrados no seu closet mais de 1200 pares
de sapatos. Não gostei. Achei ele mal educado,
mas é verdade, basta eu achar um que me sirva que
compro logo de todas as cores e isso faz com que
eu tenha muitos pares mesmo.
Ter pés grandes é uma espécie de trauma, mas não
faço como muita gente que conheço que anda espremida,
com calos, para caber no 39, o maior número
que existe no mercado, com raras exceções.
Eu venho respeitando os meus pezinhos.
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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FAROL
somos todos faróis no meio do oceano.
alguns nos avistam e por eles se guiam.
CAMILA MAZI
Campinas - SP
somos todos faróis na encosta de alguma praia.
alguns barcos ali ancoram, mas logo partem.
somos todos faróis abandonados.
a luz que refletíamos parou de funcionar,
e ninguém veio conserta-la.
somos todos faróis envoltos de água.
ondas,
tempestades.
somos faróis,
e resistimos.
Matonense da
gema, queria
muito ser escritora,
mas
por enquanto sou só preguiçosa.
https://linktr.ee/camilamazi
38
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MOLOTOV
CHAI RODRIGUES
Atua nas artes visuais
e cênicas. Em
2019, a primeira
exposição individual
PALIMPSESTO. A vídeo
performance Papisa foi
selecionada pelo Prêmio Funarte
Respirarte, em 2021.
https://www.chairodrigues.
com
39
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
CLARA
GERHARDT DAVID
São Mateus - ES
Clara Gerhardt David,
21, é uma brasileira
por excelência
(e também por
nascimento). Apaixonada
por humanas, música, gatos
e cachorros. Ansiosa por
diagnóstico e agitada por natureza.
Uma sonhadora.
ANSIEDADE
Sabe aquela hora quase noite? Quando as luzes
da rua começam a se acender e o calor do
sol é apenas uma lembrança nos seus braços
que começam a ficar arrepiados. Eu caminhava,
em meio a pingos de chuva e a escuridão
que me abraçava. O céu, todo cheio de nuvens, parecia
até falar comigo, chamar-me para mais perto.
É que, entre o corpo e a mente, a terra e o céu, estou
mais lá que cá. Enquanto andava pelas ruas de
chão de terra, desviando das poças d’água, aproximava-me
mais do mar. Nesses dias, quase ninguém
sai à noite, por ser tão inconveniente. Mas são os
meus dias preferidos. Antes da beira da praia, tem
uma avenida e uma orla, onde as pessoas geralmente
se exercitam. E quanto mais se adentra as pontes
de madeira para o mar, mais escuro fica. E só se
vê o mar pela espuma branca. Eu pisei na areia e
me escondi de quem pudesse ir para lá. A restinga,
composta de cactos, de guriris (coqueiros pequenos)
e diversas outras espécies nativas, me protegia.
Enquanto eu olhava o mar, eu tinha medo e apreço.
Medo, porque sempre sonhei em estar na praia e
a maré, tão alta, me puxa e não me deixa sair da
praia. Enquanto a coluna de areia à minha frente
desmorona quando passo os meus dedos nela para
me agarrar. E eu nunca consigo sair de lá. E apreço,
porque, enquanto a maioria associa viagem a um
avião ou carro, eu penso em um navio. É a forma
mais simples de se viajar a outros continentes. A
mais primitiva. O mar nos conecta. É nossa primeira
forma de conexão. A mesma água salgada que
eu toco é a que alguém em Singapura toca. Mesmo
tão distantes, nos encostamos e nos conhecemos.
Sabe aquele barulho de mar? As ondas quebrando
e pouco a pouco se tranquilizando na beira da
praia. Indo e voltando. Enquanto chove, eu choro.
O mundo para. A noite cai. E as ondas quebram.
O vento gela meu corpo e eu tenho medo da tempestade.
Luzes, bem ao longe, indicam raios. Mas
não se ouve seu barulho. Você sente que não cabe
naquele lugar. Que tem de sair dali. Será que o mar
pode me levar? Se eu pegar um barco, eu consigo
fugir? Para onde eu vou? Como saio daqui? Será
40
que me entrego? Eu vou desaparecer se eu entrar
no mar. As ondas vão me levar. Se eu sair daqui,
será que chegarei a algum lugar? Eu não sei. Se eu
te chamar, você vem? Não. Nenhuma mensagem
ou chat em meu telefone vale a pena meu tempo
agora. A ansiedade em mim me faz imaginar meu
corpo ser engolido por diversas ondas e afundar.
Me faz ir de viagens de avião a conhecer pessoas,
a me machucar, a sofrer por não viver, por querer
viver e não saber como. A fala atropelada. É mais
comum do que se pensa. Mas eles não parecem entender
que eu tenho tanta raiva dentro de mim que
poderia explodir a qualquer momento. Eu quero
te machucar. Eu posso te machucar. SAI. Para. O
tempo não para. O mundo deveria parar. Para de
produzir, para de querer agradar. Para de escrever,
de querer fazer. Para de pensar. Eu não consigo. A
chuva cai. Ela me molha. E eu gosto. É aqui meu
lugar. Quieta, no escuro. No molhado. Onde ninguém
fica. Onde ninguém quer ficar. Deixe estar.
Deixe se envolver até implorar para ir embora. Eu
não sei se sou suficiente para eles, para você. Eu
sempre extrapolo. Eu sou fora do normal. Eu não
quero ser normal, eu quero ser algo que ninguém
é. Eu quero crescer, eu quero que vejam tudo o
que há em mim. Olhem como eu desenho, olhem
como eu falo inglês, espanhol, francês e mandarim.
Olhem para mim. Meu escritório. Minha casa.
Minhas viagens. Olhem. Prêmios. Dinheiro. Reconhecimento.
A melhor. Eu só serei alguém digno de
amor se eu conquistar algo. Até lá, eu vou recusar
seus carinhos, eu vou recusar ficar bem. Eu vou me
punir. Eu preciso sofrer para crescer. Como? Como
vou conquistar tudo? Como vou conquistar o mundo?
Quantas páginas preciso ler, quantas provas?
Quanto sacrifício? Quanto suplício? Para eu dar
orgulho, para eu merecer. Para lembrarem de mim
e me citarem como David. Para ter certeza de que
falarão de mim mesmo depois da minha partida.
Olha como a ansiedade é. Ela corrói. Ela destrói.
Ela me quebra, me dilacera e me dá energia para
me reconstruir do chão e me refazer maior, até cair
um raio e desmoronar o castelo. Como se não fos-
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
CLARA
GERHARDT DAVID
São Mateus - ES
ANSIEDADE
se nada. Apenas um milissegundo de uma energia
intensa que rompe minhas paredes. E, de repente,
tudo que eu fiz, todo o esforço para me manter bem
e prosseguir, tudo... Acabou. Mas ela não para. Ela
faz eu pensar em me apaixonar por alguém assim
que o primeiro ei vem. E estraga tudo por avançar
demais. Ela me faz sofrer pelo dito e pelo não
dito. Ela me deixa só. Ela me faz querer estar só,
porque eu sou ruim, eu incomodo. Olha como eles
me olham. Eles não gostam de mim. Será que eles
gostam? Ela me mantém viva. Ela me faz querer
morrer para parar. Até em meus sonhos, o mar me
agarra e não me deixa fugir. De quê? De mim. De
pensar, sem parar.
PULA PARA OUTRA CENA. Enquanto todos esses
pensamentos eram descritos, eu andava embora
para casa, porque é muito perigoso ficar na rua a
essa hora. Mas ninguém está na rua com esse tempo.
Então eu ando e pulo as poças. Eu chego em
casa. Vou ao meu quarto. Eu quero beber. Para me
sentir melhor. Eu me entendo melhor quando estou
anestesiada. Diferencio o certo do errado e escolho
o errado porque eu mereço o pior. Eu bebo até
dormir. Falo umas besteiras aqui e ali. Eu durmo.
Eu acordo. Tarde. Desregulado o sono. Eu durmo
tarde. Eu vivo à noite. Eu penso. Noite. Dia. Tempo.
Horas. Tic. Tac. Invenção humana? Registro.
Memória. Apago. Deletar. Pensar. Será? Deixe estar.
Deixe ser. Deixe-me ser. O quê? Não sei. Quem
sou eu? Eu realmente não sei. Eu apenas invento
historinhas que querem ouvir sobre mim para mostrar
como sou apta para aquela oportunidade. Eu
me inventei. Então eu posso ser o que eu quiser. E o
que eu quero ser? Não de profissão... Quero dizer,
como eu quero ser? Um rock ou uma mpb? Um
kpop ou um maculelê? Um violino ou um ukulelê?
Moderno, boho chic, diyzado, estilizado, paleta de
beges, marrons, verdes, vinhos, azuis e preto. Sacada
para a praia. Cortinas leves. Cidade. Carro.
Sofá. Eu sou o que eu tenho. Eu sou o que eu penso.
Eu sou capitalismo, exagerado, jogado aos teus
pés, com uma oferta irrecusável (que realmente não
se recusa – ou você trabalha, ou morre de fome). Eu
41
sou ecossocialismo, empático, renovável, envolvente
(até porque não se pode escapar dele, se não, o
mundo acaba e a gente acaba). Eu sou o mundo. Eu
sou China, Brasil, América Latina. Nosotros somos
la guerra, el escudo y la espada esperando matar
alguién a instancias de algo, para lograrmos éxito
en la vida. E só.
pedras, peixe-estranho como os que ganho. Vejo
mais. Murmurinhos sobre a diferença entre nós.
Em todo monte há tormenta. Nele veja se lamentas.
Veja seu pequeno mundo que te toca, o quanto ele
tem. Quantas pedras, coisas, emaranhado de travessos,
rebuliços, novos começos. Seguem tocadas
pelo oceano também? Superfícies transformadas,
desvaraidas, tresloucadas. Banhadas noite e dia pelas
águas atroz.
São pedras todas juntas na beira do cais. A saudade
aparta as ondas do pensamento. Entre elas um
vermelho invulgar, tão iguais aos seus olhos. Um
reflexo caótico de cores, tamanhos, pedras negras,
não pedras, peixe-estranho. Vejo mais. Em todo
monte lamentas. Quantas coisas seguem tocadas
pelo oceano. Superfícies transformadas. Voo pássaro
banhado noite e dia pelas águas atroz.
São pedras todas juntas na beira cais. Todos os
dias, são iguais aos seus olhos. Mas nelas vejo cores,
tamanhos, não pedras, peixe estranho. Vejo
mais, para além dos dias. Lembra do seu pequeno
mundo te toca? Que segue tocado pelo oceano.
Suas superfícies transformadas. Banhadas noite e
dia pelas águas que te traz.
São pedras todas juntas na beira cais. São iguais
aos seus olhos. Nelas vejo cores, tamanhos, não-
-pedras, peixe estranho. Vejo mais. Seguem tocadas
pelo oceano. Suas superfícies transformadas. Banhadas
noite e dia pelas águas que te traz.
São pedras todas juntas na beira cais. São iguais
aos seus olhos. Seguem tocadas pelo oceano. Banhadas
noite e dia pelas águas que te traz.
São pedras todas juntas na beira cais. Banhadas
noite e dia pelas águas que te traz.
São pedras todas juntas na beira do cais.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
CLARICE DE
ASSIS ROSA
Ituiutaba-MG
Professora de Língua
Portuguesa na Rede
Pública Estadual, em
Ituiutaba, MG, sua
cidade natal. Tem diversos
contos e crônicas em Antologias
digitais, e terá publicado
o primeiro livro de Contos.
ENCONTRO CONTURBADO
A
história dos dois mais se parecia com
alucinação, assim Magda enxergava,
desde o início, no entanto, gostava dos
prazeres sentidos em seus devaneios.
O encontro de Magda e Pedro aconteceu por mera
casualidade. Certo dia, ele estava na cidade em que
ela morava e, graças a um aplicativo de encontro,
que ambos utilizavam, puderam conhecer-se.
Magda não tinha o hábito de utilizar esses aplicativos
modernos, até porque a cidade em que
morava era muito pequena e corria-se o risco, facilmente,
de encontrar pessoas de seu convívio. A
intenção era conhecer pessoas nunca vistas, que
talvez pudessem instigar sua curiosidade e interesse
e, devido a essa falta de prática, quando percebeu
que a ocasião era propícia, hesitou, mas permitiu-se
deixar levar pelo acaso.
Pedro já tinha o hábito de utilizar aplicativos de
encontros, viajava muito e gostava de conhecer
pessoas por onde passava, não por libertinagem
ou desejo de iludir mulheres, mas sim por carência.
Apesar de ter vários encontros, sentia-se só, como
se tivesse receio de manter um relacionamento.
Nada fazia para mudar a situação, uma vez que
não conseguia compreender exatamente o que desejava.
Ora se sentia triste por estar sozinho, não
ter alguém com quem dividir suas experiências,
sonhos e conquistas, ora se sentia aliviado, por
não ter que explicar determinadas atitudes, nem
ter que compartilhar pensamentos e sentimentos.
Depois do impacto inicial, associado à timidez e
medo, Magda conseguiu relaxar e curtir a nova
experiência. Pedro era, sem esforço algum, carismático,
não foi difícil sentir-se à vontade em sua
presença. Ele soube conduzir a situação de tal
forma que foi muito além de um simples encontro,
ela teve a sensação de que o conhecia há anos.
Pedro não a tratou como se fosse mais uma, entre
as muitas que se encontrava, envolveu-a com
cuidado e, assim, toda a tensão foi dissipando-se.
Estavam bebendo, logo, qualquer percepção poderia
não ser real, mas ela conhecia sua capacidade
de análise. Ele cantava e tocava, lindamente,
e ela aproveitava para observá-lo; o sorriso era
extremamente atraente, o olhar um pouco triste,
as vezes parecia contrastar-se com as risadas emitidas.
Em momento algum, ela percebeu tensão.
Era um homem seguro de si e gentil demais para
simplesmente concluir o objetivo do encontro sem
uma prévia cautela.
Ambos sabiam o que queriam naquele momento,
porém, enquanto ela procurava embebedar-se
com rapidez para que conseguisse deixar fluir com
naturalidade, ele simplesmente se manteve alheio,
conhecedor do seu potencial e do seu encanto.
Por muito tempo ela o observou, admirada e estática,
sem saber o que pensar diante de tamanha
delicadeza e cuidado. As suas reflexões, em várias
ocasiões, eram negativas a respeito de si mesma,
indagando-se o que ele poderia estar pensando
pelo fato de ela estar ali, alimentando a cultura
de que ao homem é permitido determinadas atitudes,
mas às mulheres não, pois poderiam passar a
ideia de serem depravadas. Percebeu que ele não
demonstrava qualquer vestígio de julgamento e
tranquilizou-se.
Aos poucos, Magda foi ficando alterada, um pouco
em consequência do álcool e muito mais pelo
efeito inebriante da voz suave e, ao mesmo tempo,
potente, que difundia pelo ambiente.
Em pouco tempo estavam beijando-se e logo em
seguida concretizaram algo que, na verdade, era
o propósito do encontro, todavia, poderia não
ter dado certo se ele não tivesse tido o cuidado
de conduzir a situação da melhor forma possível,
desde o início.
Já em casa, absorta em seus pensamentos, buscava
esquecer o ocorrido. Talvez se não tivesse sido
muito agradável, ela procuraria lembrar-se, como
uma forma de aprendizado, no entanto, por ter
42
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
CLARICE DE
ASSIS ROSA
Ituiutaba-MG
ENCONTRO CONTURBADO
sido surpreendente, suas tentativas foram frustradas,
quanto mais tentava esquecer, mais era tomada,
subitamente, por lembranças detalhadas.
Continuaram conversando nos dias seguintes, perceberam
que tinham muitas coisas em comum e
isso favoreceu uma nova amizade.
A princípio, algumas situações pareciam diferentes,
até mesmo estranhas, para Magda. Em determinadas
situações, ele dizia algumas palavras em
tom áspero, pelo menos era o que poderia ser interpretado,
naquele momento, considerando que
o diálogo acontecia por meio de mensagens. Levava
algum tempo para assimilar, pois as circunstâncias
lhe eram atípicas. Sem que percebesse o
motivo, Pedro já a definia como agressiva, grossa
e sumia por algumas horas.
Ela nunca foi boa com reações súbitas, não sabia
lidar com imprevistos, pensava que poderia ofender
as pessoas se agisse com impulsividade, mas
tinha consciência de que nada fizera para ser considerada
como sendo uma pessoa agressiva. Não
naquela ocasião.
Voltavam sempre a conversar, apesar dos desentendimentos,
como se as discórdias jamais tivessem
existido, e talvez realmente não existiram. A
constância tornou-se incômoda, fugindo dos planos
que Magda tinha traçado para si ao buscar
encontros em aplicativos. Não gostava de lembrar
dele, perturbava lhe a sensação de estar sentindo
ainda o seu toque, suas carícias, lembrar da sua
voz, do seu olhar, do seu corpo. Sabia que não
podia imaginá-lo, além de um amigo, entendendo
que o que ocorreu anteriormente fora apenas um
encontro irrelevante. Sabia, mas não se convencia
disso.
Tampouco a amizade era para ter acontecido, uma
vez que, inevitavelmente, Magda buscava suas
redes sociais, relia suas mensagens, procurando
vestígio de algo que pudesse ser um motivo para
que ela conseguisse desprender-se. Ao fazer isso,
percebeu que ele fazia exatamente o mesmo, que
para ele era comum ter encontros e depois causar
situações que o permitisse padronizar essas mulheres,
mesmo que a partir de uma concepção que
poderia não ser verdadeira e, assim, afastar-se. Ela
procurava sentir raiva, buscava traços de personalidade
que pudessem facilitar seu esquecimento.
Não houve.
Não conseguia encontrar defeitos nele, apenas admirava-o
cada dia mais e sofria por ver a destreza
com que ele lidava com a situação de forma segura
e experiente. Observava-o, estudava-o, da forma
que a tecnologia permitia. Repelia a ideia de ser
invasiva, acreditando que essa era uma linha tênue
para a obstinação, no entanto, parecia assim
encontrar-se ao ultrapassar seus próprios limites
para invadir, não o espaço, mas a intimidade do
outro. Sofria calada, ciente de que não tinha o direito
de cobrar explicações.
Sentia-se sempre inferior, desde muito nova. Convivera
com agressões, abusos de pessoas muito
próximas que a fizeram acreditar que era merecedora
de tais situações. Com ele não fora diferente,
talvez tenha sido mais intenso, à medida em que
ela encontrava, em suas redes sociais, as mulheres
que ele se relacionava, com alto padrão de beleza
e cultura e à medida em que ela passou a idealizá-
-lo como um ser dotado de inúmeras virtudes, um
pouco enigmático, confuso, às vezes, mas repleto
de ações e características sublimes que o asseguravam
superioridade moral.
Enquanto Magda vivia um turbilhão de emoções,
foi chegando o dia em que Pedro terminaria a sua
estadia na cidade. Encontraram-se mais uma vez
e, no outro dia, Pedro partiu para o seu destino,
tão tranquilo, como o dia em que chegou.
Magda, após longos anos, até hoje ainda é vista,
constantemente, pelos arredores do hotel em que
Pedro ficava, algumas vezes sentada na calçada,
esperando-o chegar, outros vezes cantarolando
trechos de músicas que ele gostava de cantar para
ela.
43
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
CLEBER PROFETA
São Paulo - SP
IMPRESSÕES DO COTIDIANO
O movimento da rua segue o molejo desengonçado da menina
Vejo as casas empilhadas no morro sinuoso
Devagar, meu olhar analítico observa o senhor vigiando a mesma rua
O garoto vai atrás da pipa caindo vagarosamente, perto do campo de futebol.
Enquanto volto para casa, sigo o morro sinuoso
Crianças vigiam a pipa atrás do campo de futebol
As casas desengonçadas observam o molejo da menina
Meu olhar analítico vagarosamente cai no movimento da rua.
Tem crônicas e poesias
postadas no
Recanto das Letras,
poesia publicada na
Revista Capivara e LetraLivre,
crônicas publicadas no Jornal
Expresso - Camboriú- SC e poesias
em www.autores.com.br.
44
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
DARLENE HONÓRIO
MEDEIROS
Santiago - RS
Professora de História,
capoeira e violão,
especialista em
musicalização infantil,
artesã e apaixonada
por livros. Escreve poesias e
textos desde a infância.
www.instagram.com/darlaa_medeiros
SOBRE O QUE DEVEMOS NOS PERMITIR
Atesto, sem maiores ressalvas, que
amor em caminho inverso, ao invés
de amor in-verso, pode ser
amor real. Amarguras lapidam
seres cansados que se encontram em corpos
e almas magoadas, machucadas, desacreditadas.
Pouco esperam um do outro, mas com
que confiança o fazem. As noites vão tomando
natureza de inverno, mesmo não tendo o
outono fugido de suas mãos. Há dias em que
a chuva ligeira e gelada dá o ar de sua graça,
enquanto as respirações multiplicam o vapor
para dentro dos corpos, das almas e dos espelhos
em que o medo se reflete. Parece que
é tarde, mas é sempre cedo. O tempo escorre
apressado quan-do os abraços aquecem a pele
e confortam a alma disfarçadamente camuflados
de diversão. Não sabem ambos... Não
sabe ele, mal sabe ela. O amor em caminho
inverso é o mais perigoso. Nenhum dos dois
ama até ter perdido. Nenhum dos dois perde
até acostumar-se a não dar valor. Nenhum
dos dois quer usar palavras que interrompam
ciclos de movimento e iniciem ciclos de sentimento.
Nenhum dos dois percebe. Os dias
seguem sua conveniência. Eles falam sobre
qualquer tolice, assuntos densos, piadas, promessas
caladas, carícias ver-bais. Encontram-
-se diariamente mesmo não tocando com a
ponta dos dedos a face do outro. Não percebem
que quando começam a ter sonhos é
porque algo já não está como estava antes.
Eles não comem juntos, não ocupam sofás,
não vão ao cinema, não tem amigos em comum,
não dançam juntos. Eles apenas fogem
quando todos dormem, abraçam seus corpos
com urgência, conversam com certa cautela
e fazem perguntas com medo de ser invasivos.
Eles se parecem mais do que conseguem
admitir... Têm mais medo de amar do que
conse-guem esconder um do outro. Eles estão
brincando de amar ao contrário, enquanto
o outono não os faz amar lentamente, adormecer
um ao lado do outro, contar piadas e
comer batatas fritas, assistir filmes cujo final
passará sem que o conheçam... O começo foi
um engano ao contrário. Um aceitou o outro
pela nomenclatura, muito mais do que pela
segurança. As primeiras palavras foram a
porta aberta. Ambos sentiam uma necessidade.
Seja ela qual for ainda não conseguiram
catalogá-la. Eles se perdem e se encontram
todos os dias. Palavras não podem sanar tudo
aquilo que eles precisam para ser melhores.
Ainda sentem falta do aconchego da tarde de
domingo e corpos em posição fetal adormecidos,
um a proteger o outro enquanto a chuva
fina cai. Eles estão aprendendo a pisar nos caminhos
que levarão um ao outro. Demorarão
para admitir que podem estar se entregando
sem perceber. Mas ao fim dos dias se seguindo
e das palavras se acolhendo e dos corpos se
abraçando, perceberão... Amor que começa
ao contrário, não termina... Renova as palavras,
as frases, os dias, as necessidades... Dá a
mão ao que é novo e tem segurança... Mesmo
quando é veloz tende a trazer tranquilidade e
quando passa das portas pra dentro e enxerga
as paredes brancas tatuadas pela história de
cada um, aprende a decifrar as paixões mais
secretas, a aliviar as dores mais agudas e a
desprezar os minutos de ausência.
45
CORPOS CELESTES
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
DIANA MAGALHÃES
Bacharel em Cinema
e Graduanda em
Artes Visuais. Tem
experiência em diferentes
áreas do audiovisual,
escreve, é atriz, arte educadora
e apaixonada por
experimentações artísticas
de maneira geral.
Autoras
Diana Magalhães
Camilla Lima
Modelo
Liana Monteiro
46
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
EDGAR BORGES
Boa Vista – RR
FOTOPOEMA
Edgar Borges é escritor
e jornalista.
Lançou 2 livros de
microcontos e tem
textos de prosa e poesia em
publicações impressas e eletrônicas.
Articula o grupo
de autores roraimenses Coletivo
Caimbé.
47
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
EDUARDO RAMOS
Rio de Janeiro - RJ
Servidor da Justiça Federal
no Rio, descobriu
a poesia nas redes
sociais depois dos
50 anos, arte e linguagem pelas
quais se apaixonou e passou
a estudar, ler, pesquisar e
escrever há dez anos.
DOS DESABADOS QUE CHORAM
vi os homens nas ruas, sorrindo
e pareciam tão francos
aqueles sorrisos!...
eles,
tão felizes!
eu, chorando de dor
por mim e por eles
eu, no meio dos que sorriam,
queria urrar,
tamanha dor!
encontrei então, afastados, os que choravam
seus desesperos cruciais,
suas lacunas,
suas derrotas
e eram poucos, estes,
os homens que choram
e me sentei entre eles
e me senti homem
e me senti humano
entre os desesperados
entre os que choram
por suas verdades desabadas.....
48
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
1x1
ESCOBAR FRANELAS
São Paulo - SP
o mesmo sol brilha
o mesmo céu paira
a mesma chuva molha
o mesmo verme come
o joio e o trigo
Escobar Franelas é escritor,
historiador e cineasta.
Paulistano de Itaquera,
é co-gestor dos
coletivos A Casa Amarela - Espaço
Cultural, Lentes Periféricas e
Curta Suzano.
49
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
EVA VILMA
Campo Grande - MS
Eva Vilma é escritora,
mãe, capoeirista
e educadora. Autora
e coautora de
livros infantis e de poesia,
busca na palavra escrita, outros
mundos possíveis.
DEZESSETE, COMO NO FILME
“Saudade é um pedaço de pensamento
que a gente decora com lembranças.
Outdoor de sinestesia.”
Escrevi este poemeto em novembro de
2016 querendo dar vazão a alguma
saudade que apertava o peito.
Hoje, acordei pensando que saudade
é uma caixa mágica guardadora das preciosidades
daquilo, daquela, daquele que não está
perto dos olhos da gente, e no entanto, nunca
sai do coração.
Ele tinha dezessete anos, como Héctor, do filme
Dezessete da Netflix.
Vivia em estado permanente de revolta.
Transbordava carências. Trazia as mãos em
concha, derramando sentimento bom, dando
de beber às securas no deserto de sua caminhada.
Ia flores/sendo em vida.
Wallace… Boca minha dizia seu nome como
fosse um grande herói de filme épico. Era herói
da vida real.
“Era assim todo
dia de tarde / a
descoberta da
amizade…”
Tinha dezessete
anos, como Héctor
do filme Dezessete.
Eu, professora,
vinte e
dois. Descobrindo
a não existência
da docência
sem discência.
Aprendendo que
meu trabalho de
professora, não
era meu trabalho
de professora comigo mesma, mas de professora
com minhas/meus alunas/alunos. Bebendo
inesgotável das fontes de Paulo Freire.
Era assim toda quinta de tarde. Os processos
da cena. O conhecimento do corpo. O movimento.
Expressão. Experiências de vida em
cena. O laço estreitado. O respeito mútuo. A
amizade. O cuidado. O olhar.
Tinha dezessete anos, como Héctor, do filme.
E como Héctor era impulsivo. E como Héctor,
era interrogado por policiais. E como
Héctor, tinha dores desolhadas e deslizes evidenciados.
E como Héctor amava uma mulher,
de um amor transbordante. Não a avó,
como Héctor, mas a mãe. E neste amor todo
confuso, às vezes a odiava, quando pensava
que sabia o que era melhor para ela e as coisas
não saiam do seu jeito. E às vezes a odiava
por não saber onde estava o seu pai. Odiava,
porque a amava demais para vê-la assim se
virando sozinha com o filho.
Tinha dezessete anos e teve uma amiga de
50
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
EVA VILMA
Campo Grande - MS
DEZESSETE, COMO NO FILME
quatro patas, como Héctor. Diana, vira latinha,
mistura da minha poodle e algum cão
andejo das ruas. Tinha dezessete anos e, como
Héctor, perdeu sua amiga. Uma desavença e a
vingança numa bola de carne envenenada atirada
para seu quintal. Dezessete anos e chorou
como uma criança no portão da minha
casa. Nas mãos, um canivete.
— Eu vou matar, professora! Vou matar
quem fez isso.
Eu, professora, vinte e dois, na busca por entender
cadê sentido nas orientações de não
me envolver demais com as alunas e alunos
do projeto para além do espaço e do tempo
das aulas. Eu professora, vinte e dois anos,
abraçando forte e acolhendo aquele meninão
comprido, magro e molhado, suor e lágrimas.
“Era assim todo dia de tarde / a descoberta da
amizade…”
Eu professora, vinte e três anos, bebê na barriga,
risco de perda, proibida de pedalar. Ele,
quase dezoito, sua bike potente de garupeira,
e a carona fiel para o projeto.
Sexta-feira, dezembro de 2008, ele, quase dezoito,
um encontro no ginásio de esportes, o
abraço e as palavras trocadas:
— Que barrigão, professora!
Entre as novidades guardadas de três ou quatro
semanas longe:
— Eu tô mudando, professora. Parei de beber.
Parei com as brigas. Tô arrumando um
trampo. Vou começar a trabalhar. Cê ainda
vai ouvir falar muito de mim. Cê vai ver. Eu
tô numa fase muito boa.
Sexta-feira, dezembro de 2008, eu professora,
vinte e três anos, bebê na barriga, caminho
feliz para casa. Wallace está bem. Tomando
jeito na vida!
Sexta-feira, dezembro de 2008, ele, Héctor da
vida real, caminha de volta pra casa.
Muda sua rota e acompanha a garota que se
diz insegura para voltar sozinha.
Sexta-feira, dezembro de 2008, eu professora,
vinte e três anos, durmo tranquila, sem hora
para levantar.
Sexta-feira, dezembro de 2008, ele, Héctor da
vida real, não chega em casa.
Cilada de treta entre turmas!
O tiro da espingarda calibre 22 vai encontrar
seu umbigo enquanto pula muros tentando
fugir da emboscada.
Sábado, dezembro de 2008, eu professora,
vinte e três anos, aprendo uma dor que é nova
e o gosto amargo-fel sem descrição, de olhar
o ente querido na caixa que guarda corpos.
Camisa engomadinha, talvez nunca usada.
Terço entre as mãos. Sabia rezar? Só o boné
de aba reta honrando sua identidade.
“É tão estranho / os bons morrem jovens
[...]
Vai com os anjos / vai em paz.”
Saudade é uma caixa mágica guardadora de
preciosidades. Héctor do filme foi abrir minha
caixa lá dentrinho deste coração.
Chorei com o cheiro e as cores das preciosidades
dessa relação professora e aluno. Ou
professor e aluna?
Chorei com as preciosidades habitadas naquele
menino.
Chorei porque queria que o mundo todo tivesse
visto, como eu vi.
“Não é sempre mas eu sei / que você está bem
agora.
Até a próxima vez.”
Para Wallace, in memoriam.
51
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ÉVERLAN STUTZ
Belo Horizonte - MG
BATATAS
década por década é esperada a decadência
a flacidez da carne
a pele seca
década por década nos convertemos
em pequenas partículas de nada
década por década desaprendemos a amar
um retrocesso de quem pensa que vence
e perde
e se perde entre a poeira e as estrelas...
Éverlan Stutz é jornalista,
bacharel em
artes cênicas. Foi
um dos vencedores
do Quinto Concurso Literário
das Farmácias Pague
Menos, com o poema in(versão).
52
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FARLLEY DERZE
Brasília - DF
SILÊNCIOS
Eu tinha uma fogueira de
sentimentos. Hoje carrego
uma vela. Se o destino
nos deu uma xícara de chá,
guardo a fumaça da tua voz. Eu tenho
insônias de propósito. Te amo contra
tua vontade. Teu beijo invadiu meu
futuro. Abro minhas gavetas para
sentir o ar da tua varanda. Fecho os
olhos. Enxergo tudo que quero. Fiz
53
uma música pra você. Quisera herdar
o teu sorriso. Ver-te através de uma
taça. Merecer aquela embriaguez.
Quando o céu fica escuro, escuto o
trinco da tua porta. Minha esperança
é um milagre desperdiçado. Ouço o
que o passado consegue me dizer. Envelheço
junto com os teus silêncios.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FELIPE CHAGAS
LUTO PELOS VIVOS
Nascido em São Bernardo
do Campo, começou a estudar
violão aos 13 anos
de idade. Em seguida estudou
também violão erudito e guitarra,
se dedicando principalmente ao estudo
do blues. Também nesse período estudou
canto.
Aos 18 anos de idade começou a dar
aulas em um Conservatório e não parou
mais. Membro da banda Jazzmin
Blues Band, que já foi finalista em diversos
festivais e tem como objetivo
fazer novas leituras de grandes nomes
do blues.
Também faz parte da Rockin’1000,
um projeto internacional, onde são selecionados
músicos de mundo inteiro
para formar, a chamada ‘maior banda
de todas’ em número de integrantes.
No fim de 2018, lançou em todas as
plataformas digitais o álbum ‘Selva
Oscura: O Inferno De Dante’, baseado
na primeira parte da Divina Comédia
de Dante Alighieri, composto em parceria
com Douglas Sousa.
Em 2019 lançou o videoclipe de O Passado,
pela Prefeitura de São Bernardo
do Campo.
Participou de bandas de jazz, como a
ObamaSoul que teve como objetivo
dar uma linguagem jazzística de clássicos
de nossa música. Também participou
da Triton, um trio de jazz contemporâneo.
Em 2020, participou de projetos como
a Virtual Guitar Orchestra, que reúne
músicos do mundo inteiro e também
da Rockin' 1000, que rendeu uma
participação no Guinness Book of Records.
Em 2017 lançou um EP, onde tocou
todos os instrumentos, disponível em
todas as plataformas digitais, como
Spotify, AppleMusic, Google Play, entre
outros. O EP chegou em 1º lugar
pelo site Number One Music (N1M),
onde ficou por mais de 10 semanas entre
os mais ouvidos em jazz pelo site.
Em 2021 lançou o single autoral Luto
Pelos Vivos, produzido de forma independente,
em todas as plataformas
digitais.
Link para o single Luto Pelos Vivos:
https://ps.onerpm.com/4990136301
54
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FERNANDO PORTELA
Brasília - DF
PETRICOR
De tanto negligenciar
meus passos
minhas unhas
aram a terra
Prendo o cheiro
que se levanta
no peito-betoneira
de esperança e asco
O tempo nem sabe que veio
ele é ao ser
e demora ao se livrar
dessa mistura em mim
Mistura que extravasa:
furacão devasta
querendo abraçar
Fernando Portela é
publicitário, roteirista,
poeta e professor
universitário. Brasiliense,
explora os limites da
literatura, música e artes visuais.
Também é explorado
por eles.
55
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FLÁVIA REDMAN
Manaus - Amazonas
Flávia Redman de
Assis mora em Manaus.
Escreve textos
em diversos estilos
desde diários até poemas e
contos.
Os principais temas são a
melancolia, tristeza, decepção
e amor não correspondido.
O HOMEM VERMELHO
Vermelho de sangue
Vermelho de dor
Vermelho de vergonha
Vermelho de amor
O Homem Vermelho não pode falar
O Homem Vermelho não pode amar
O Homem Vermelho está em pedaços
O Homem Vermelho não é feliz
O Homem é vermelho
Vermelho cor do barro
É vermelho, vermelho
É da cor de grandes lábios
Esse Homem é vacilante
Ele ama sem recíproca
O Homem Vermelho não chora
Mas ora, veja, como ele se excita!
O Homem Vermelho é da cor do pecado
Tem em sua pele a maldade e a vingança
O Homem Vermelho tem a cor da paixão
O Homem Vermelho não tem esperança
O Homem Vermelho está entregue à loucura
Ele não sabe qual é o caminho certo
Então ele segue qualquer rumo
Um aconchego, um abraco, o Homem Vermelho não tem
Qualquer coisa serve para o Homem Vermelho
Ele não tem casa, não tem lar
O Homem Vermelho vive a vagar
Pelas estradas, pelas vielas, trilhas ou cavernas
O Homem cor de sangue
O Homem cor de barro
O Homem vermelho de vergonha
O Homem só quer ser amado
56
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FRAN PIGOSSO
Farroupilha – RS
Fran Pigosso é natural
de Farroupilha,
RS. Professora de
Língua Portuguesa e
escritora, em especial de contos
e minicontos. Também é
colaboradora de uma web
rádio com contos de terror.
@contos_e_contrapontos
ÓBVIO
- Como o ônibus está demorando para chegar…
- Que horas são?
- Deixe me ver…
Coloco a mão em meu bolso, tento pegar o
celular para ver a hora. Meu bolso é apertado
como o que sinto em meu coração neste momento.
Imerjo a mão no jeans da mesma forma
que, em pensamentos, invado a pele escondida
pela camiseta de botões, branca, de Lavínia
depois do expediente. E em minhas ilusões ela
sorri enquanto me enfeitiça com seus olhos.
Mas está difícil puxar meu eletrônico dentro o
tecido. No fundo não quero ver que está perto
da hora de chegar o ônibus. Não era para ser
assim.
- Mandou fazer o celular?
- Já vai. Que horas que o ônibus parte?
- Dezoito e dez.
...
Oito e dez, segunda-feira. Feriado. O Rio de
Janeiro inteiro comemorando o Carnaval e nós
dois, os escravos da vez, escolhidos para recebermos
reclamações das Rações Vitt. Porra, reclamamos
do trabalho o dia inteiro, mesclando
as queixas com comentários carnavalescos.
- Dérick, sabia que eu torço pra Beija-Flor?
Em silêncio grito que ela é delicada e linda
como um pequeno beija-flor. Ah se soubesse
como amo seus cabelos ruivos crespos, na altura
dos ombros. Ela tem um sorriso iluminado
e vulgar, ressaltado pelo batom marrom. Eu a
vejo andando pelo corredor da empresa, admiro
Lavínia sentando ao meu lado e colocando
sua maçã delicadamente ao lado da tela do
computador. Ela coloca seus fones e aproxima
o pequeno microfone de sua boca. Vejo a nós
dois, abraçados, nus, imergindo e voltando na
praia do Flamengo. Afundamos unidos pelos
lábios, salgando nossa saliva. Emergimos buscando
o mesmo oxigênio. O céu está escuro,
chove, ninguém nos vê.
- Dérick, hello? Você torce pra quem?
- Salgueiro.
Salgueiro, a árvore símbolo da imortalidade na
China, mas acho que não faz flor pra você, meu
beija-flor, sugar. Ah como ela me suga a cada
olhar.
- Ninguém liga pra reclamar de rações numa
segunda de Carnaval. Que empreguinho de
merda temos - disse Lavínia, realmente irritada.
- Melhor que nada.
- Sabe, acho que deveríamos montar nosso próprio
negócio, o que você gosta de fazer?
- Cozinhar. Me amarro em cozinhar.
- Hum, não conhecia esse seu dom. Eu também
gosto de cozinhar, mas sou péssima com sobremesas.
Quem sabe termos um foodtruck de cachorro-quente?
Deve ser fácil.
- Deve ser. Vamos conversando sobre isso.
Continuamos falando sobre diferentes opções
de cachorros-quentes, molhos, acompanhamentos,
condimentos até o final do expediente.
Rimos muito. Temos o mesmo canino torto do
lado esquerdo, e eu acho isso muito real.
Às dezessete e trinta nosso chefe chegou para
saber como foi o dia, bêbado, acompanhado
por uma moça que ficou no corredor vomitando
junto ao capacho na entrada. Mal Lavínia
começou a falar, ele gritou “tá bom, saiam pra
eu trancar essa senzala”.
Descemos as escadas, três lances, sem sabermos
o que falar, mas na calçada trocamos adjetivos
como “bizarro, ridículo, loucura, sem noção”
em diante.
Naquele dia esperei ela pegar o ônibus para
casa. Ele chegou, mas a gente não embarcou.
Fomos ver o pôr do sol na praia do Flamengo,
próxima ao escritório.
Sentado na areia, vimos todas as pessoas ao
nosso redor no ritmo da festa. Turistas lotavam
57
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FRAN PIGOSSO
Farroupilha – RS
ÓBVIO
a areia, mas conseguimos um pequeno lugar
para sentarmos. Eu, em pensamento, mergulhava
com ela no mar a minha frente. Ela se
molhava e suas roupas ficavam transparentes.
E nos agarrávamos. Eu podia sentir a pressão
de cada dedo dela nas minhas costas.
- Por que o que é óbvio não é fácil de ser dito?
- Lavínia, acho que temos medo que aquilo que
pareça óbvio pra nós seja um enigma para o
outro.
- Dérick, eu gosto de enigmas.
- É.
Um vendedor passa por nós oferecendo água,
cerveja ou guaraná. Compramos duas cervejas
e conversamos, embriagando-nos da presença
um do outro.
- Um foodtruck, Dérick. E nunca mais teremos
que atender a reclamações sobre ração de cachorro.
- E nem aturar um chefe bêbado gritando conosco.
Rimos. Nos olhamos. Ela larga o ar bem devagar
e fecha os olhos, depois volta sua cabeça
para o oceano e contempla. Eu a contemplo e
também volto meu olhar para o oceano. Para
nós no oceano.
- Sabe, Lavínia, sempre quis ter uma namorada
que topasse protagonizar cenas de amor no
mar.
- Hum, depravado. Eu já fiz isso.
Um silêncio momentâneo senta-se entre nós.
- Somos seres óbvios demais, Dérick. Nos conhecemos
e sabemos tanto sobre o outro, mas
não conseguimos nos mostrar plenamente. Metade
de nós permanecerá sempre presa dentro
da gente. E sabe o que nos mantém encarcerados
na gente mesmo? Medo e os outros. Não
somos quem realmente somos porque a cela é
feita de bocas e olhos dos outros.
- Você é muito inteligente, Lavínia.
- Obrigada. Eu nunca protagonizei cenas de
58
amor no mar...
...
-Dezoito horas. Agora são dezoito horas.
Lavínia está cheia de malas, sua viagem não parece
ter um retorno e eu tenho muito medo de
perguntar. Muito, porque a gente teme ouvir a
verdade às vezes, em especial quando você já
quase tem certeza qual é. Beija-flor, uma ave de
voo rápido e ágil, não pode se prender a uma
única flor. Ele semeia, fertiliza, mas vai embora.
Eu queria ter pego a mão de Lavínia na beira
da praia, e queria ter imerso minha mão sem
sua blusa branca de botões naquele dia de Carnaval.
Mas era óbvio, e esse foi um problema.
Não conseguimos falar nada um com o outro
naquela rodoviária cheia de gente. Ela olha fixamente
para a passagem. Não está sorrindo.
Eu não consigo ter a força das ondas do mar
que aquela boca desperta em mim ao falar no
microfone, ao morder sua maçã de forma irregular
ou afundar comigo no mar do Flamengo.
Por que é tão óbvio? Por que é difícil?
No mar, agarrados, eu seguro sua cintura e sua
nuca, prendo seus lábios nos meus e chove em
nós. Mas não a deixo ir. Não a deixo ir. Não
quero que ela vá.
- Chegou o ônibus. Obrigada por esses anos de
amizade. Obrigada.
- Lavínia, eu que agradeço.
E a gente só se olha, com o canto da boca descendo,
a mão suando, a perna mole e eu me
vendo naufragar sozinho nas ondas violentas
do mar. Ela segue, pela areia, e some ao entrar
no ônibus. Ela senta próximo à janela, me olha
e vejo que seus olhos se enchem de lágrimas. Lá
vai ela de volta para o interior de Goiás, com a
família que precisa dela.
Lavínia ergue uma folha de papel com duas palavras.
“Era óbvio.”
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FRANCIELI VAREIRA
Glorinha - RS
Francieli Vareira, de
27 anos, é estudante
de Jornalismo e
pretende, um dia,
publicar todos os seus pensamentos
e observações sobre
o mundo. Ainda hoje, mora
na cidade de Glorinha (RS),
onde nasceu.
BEM ACOMPANHADA DE SI MESMO
Um dia, em algum lugar, me
deparei com a seguinte frase:
"bem acompanhada de si mesma
a solidão passa a ser liberdade".
Frase essa um pouco intrigante,
assustadora, ao mesmo passo que libertadora,
ao menos para mim.
Nós, pessoinhas tão dependentes, costumamos
dar um certo ar de tristeza e pena
à nossa solidão, quando
poderíamos muito bem
substituí-la por um ato
de coragem e liberdade.
Parecemos ter medo da
nossa própria companhia,
esquecendo-nos
saudável.
que nós, e somente nós
mesmos, podemos nos cuidar e tratar melhor
do que ninguém. Poderíamos nos fazer
tão felizes, se quiséssemos... pena, por
vezes, não fazermos muita questão.
Poderíamos nos dar todo o amor e cuidado
de que necessitamos. Ser um pouco
autossuficiente não faz mal a ninguém, é
até saudável. O que não é saudável, meu
bem, é mendigar amor, compaixão, aceitar
dores e desamores. Mas, não adianta...
nos contentamos com tão pouco,
quando poderíamos nos dar tudo que, de
fato, merecemos. Afinal, quem nos conhece
melhor que nós mesmos?
Se você procurar sobre solidão, encon-
59
Ser um pouco autossuficiente
não faz
mal a ninguém, é até
trará algo como "estado de quem se acha
ou se sente desacompanhado ou só; isolamento".
Isso é ruim? Eu não acho! Todos
nós viemos ao mundo sós, apenas ao longo
do caminho vamos encontrando pessoas
para fazer parte do trajeto. Algumas
ficam, outras não, mas a verdade é que,
no final, somos nós e nossa própria companhia.
Não falo sobre não ter
amor pelas pessoas e não
precisar nunca de ninguém,
pois claramente
precisamos. Todo mundo
necessita de pessoas por
perto. Mas não o tempo
todo. E não deve ser o
fim do mundo estar sozinho. Precisamos
ter um momento de isolamento vez ou
outra, precisamos fazer coisas que só faríamos
com nós mesmos: dançar, cantar,
gritar, chorar, sentir. Se auto conhecer. Se
amar.
Podemos encontrar uns oito sentidos para
a palavra liberdade: independência, permissão,
direito, libertação, confiança, folga,
ousadia na forma de agir e ainda há
um que acho um tanto quanto admirável
e questionador: o "privilégio de alguns
grupos". Entendeu? Privilégio! Sinta-se
privilegiada! Você tem o direito de agir segundo
o seu livre arbítrio, de acordo com
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FRANCIELI VAREIRA
Glorinha - RS
BEM ACOMPANHADA DE SI MESMO
a sua própria vontade...
desde que não
prejudique outra pessoa,
é claro, já alerta
o dicionário. E, diz
ainda, que liberdade
é a sensação de estar
livre e não depender
de ninguém! Palmas!
Quer coisa mais libertadora
que isso?
Vai lá então, fica linda
para si mesmo.
Ou, só coloca aquele
jeans rasgado e uma
camiseta velha, senta no sofá, com uma
panela de brigadeiro (por favor!). Você é
sua companhia. Sua melhor companhia!
Leia. Veja todos os filmes que ainda não
viu. Viaje. Saia para dançar (aí pode chamar
mais gente, se quiser). Vá ao cinema
(quem disse que não se vai ao cinema sozinho?).
E, vai, vai... vai viver!!! É o que
já cantou Vinícius de Moraes, foi o que
Martha Medeiros me contou.
A verdade é que nem nós mesmos nos
permitimos "se conhecer por completo",
pois, se assim o fizéssemos, saberíamos
exatamente o que queremos e merecemos,
e correríamos atrás com determinação, em
hipótese alguma aceitaríamos o "menos".
Precisamos mesmo nos conhecer. Precisamos
nos moldar. Melhorar. Aperfeiçoar.
Vai aprender uma nova língua, vai mudar
o cabelo, vai fazer aula de ioga, vai se
descobrir, redescobrir, incrementar. Vai...
E então, mas só então, quando fores o
melhor para ti mesmo e já te amar o suficiente,
aí sim deves querer ter alguém por
perto, para te acompanhar. Não para te
completar, porque completa já serás. Mas
sim, e somente, se for para transbordar.
Enquanto isso, acompanhe-se bem.
60
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
GERALDO MAGELA
DE FARIA
Belo Horizonte - MG
Nascido em
Pará de Minas
(MG). Funcionário
aposentado
do Banco do Brasil
(1971-2001). Formado em
Letras pelo Centro Universitário
(UNI-BH). Revisor de
textos. Reside em Belo Horizonte
(MG).
O ESPELHO DE BRANCA
Muita coisa mudou em menos de
um ano. O falecimento do pai, a
mudança do Juninho para Nova
Zelândia e, depois, a morte da
mãe. Assim, Branca ficaria sozinha no apartamento
de quatro quartos e, por isso, resolveu
vendê-lo e adquirir um de dois, que, para ela,
divorciada e sem filhos, seria o ideal.
A venda para um casal vindo do interior foi feita
de porteira fechada, mas ela fez questão de
levar o espelho do quarto de sua mãe. Aquele
espelho, oval e revestido por madeira trabalhada
pintada de branco, causava-lhe certa
curiosidade. Ficava no quarto da mãe, que não
proibia, mas não gostava que ninguém nele se
espelhasse. Nunca explicou o motivo, nem este
lhe foi perguntado.
Depois de fechar negócio com os compradores,
despediu-se e foi descendo, carregando o espelho
com deselegância, tendo-o à frente de si, até
chegar à garagem, onde se escondeu atrás de
um carro para não se encontrar com a Sílvia,
do 502, que, ao saber da venda do imóvel com
tudo dentro, havia lhe pedido justamente o tal
espelho. Como a vizinha era muito ligada a esoterismos,
a curiosidade de Branca foi ainda mais
atiçada.
E lá se foi a caminho do novo destino. Tendo
morado a vida inteira naquele lugar, queria algo
novo, que representasse mudança em sua vida,
até mesmo radical, e, quem sabe, fazê-la encontrar
um grande amor que a tirasse da solidão em
que se encontrava.
Tudo novo, até o nome do bairro: Cidade Nova!
Ao passar pelo túnel, veio-lhe um momento de
angústia, sentimento que a vida, não raras vezes,
lhe trazia. Mas, ao sair, com o sol se derramando
sobre o carro, percebeu que algo de
muito bom a esperava.
Depois de tudo organizado no apartamento, teria
calma para procurar o espelho. Foi até ele.
61
Sentia-se como a criança que ouvia do pai a
história de Branca de Neve e os sete anões; ou
a adolescente ingênua e sonhadora de tempos
atrás; ou até a mulher a quem a solidão prolongada
trouxe um pouco de loucura. Mas estava
resolvida. Assim, meio envergonhada, perguntou-lhe
se era realmente bela, como todos diziam;
e, se for verdade, por que vivia tão só.
Sentiu um burburinho com vozes falando ao
mesmo tempo e, com certa dificuldade, obteve
as respostas. A primeira, a de que era, sem dúvida,
muito bonita. A outra se explicava pelo fato
de os homens terem medo de mulheres muito
bonitas e, se, aliada à beleza, estiver a inteligência,
aí o receio será maior. E ainda mais, era muito
seletiva e não sabia escolher o seu par. Dessa
forma, o espelho reproduzia o que a sociedade
pensava dela. Como estava muito cansada, foi
dormir. Demorou um pouco a conciliar o sono,
cansada e cismada com o tal espelho.
No outro dia, antes de preparar o café, caminhou
até a moldura novamente. Queria uma
resposta que lhe desse esperança. Foi aí que
notou, estupefata, que o espelho agora tinha a
figura de um pequeno homem, formado apenas
pelos traços do corpo, mas com um rosto contendo
nariz, boca e olhos. Lembrou-se do Bonequinho
de O Globo. E o hominho disse que não
o temesse e ficasse à vontade.
Branca insistia em duas respostas: o porquê de,
aos 53 anos, tão bonita, corpo esbelto, cabelos
louros e olhos verdes, viver tão só? O espelho
confirmou o que as vozes disseram na primeira
vez que o procurou: “Um dos motivos você
já sabe, mulher bonita e inteligente. Também é
muito seletiva e, embora a beleza inquestionável,
já estaria em idade que não permite muitas
escolhas. Um exemplo das opções erradas:
quando se casou com o Alcides, o outro pretendente
era o Rodrigo. Nem um dos dois a merecia,
nem dava a impressão de amor ‘infinito
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
GERALDO MAGELA
DE FARIA
Belo Horizonte - MG
O ESPELHO DE BRANCA
enquanto dure’. Assim, outros como Zé Humberto,
Moacir, Alfredo etc., e põe et cetera aí,
atestam o tal do ‘dedo podre’, como costumam
dizer”.
Branca ficou chateada até porque o espelho tinha
sido tão sincero a ponto de ser rude com
ela. Mas, depois do almoço, mais calma, voltou
até ele e disse: “Seu espelho”, sendo logo interrompida:
“Espelho não, meu nome é Nestor,
escolhido carinhosamente por sua mãe. Que, a
propósito, me procurava muito pouco. Fui seu
conselheiro. Por exemplo, quando ela quis se
se separar de seu pai, que a traiu com outra,
eu a convenci e as coisas se ajeitaram. Quando
o Juninho foi para o exterior, provei que era o
melhor para ele. Por ocasião do seu casamento,
com que ela não concordava, dei alguns conselhos,
usei palavras de estímulo. Não ficava bem
para um consulente do meu gabarito, mas” ...
Foi aí que ela notou que seu rosto havia mudado
e continha a figura de... um psiquiatra com
divã e tudo. Ante o susto de Branca, ele disse,
com voz grave e pausada, bem diferente da voz
caricata do bonequinho: “Vi que a amiga precisa
não de um conselheiro e, sim, de um especialista
na mente humana. Talvez agora possa ajudar
mais”. E Branca disse que queria saber se,
algum dia, encontraria um grande amor. Nestor
pediu para pensar e que o procurasse na manhã
seguinte.
E, de novo, lá estava Branca. Novo susto, quando
viu Nestor, agora com um turbante, um rosto
com barba e bigode com pontas. E ele disse,
com outro tipo de voz: “Cheguei à conclusão de
que você precisa é de um vidente, por isso trouxe
minha bola de cristal”. Em seguida, fez movimentos
com braços e mãos e, apontando para
Branca, asseverou: “Ainda hoje você conhecerá
o homem de sua vida”. Branca se assustou, disse
um obrigado nada convincente e ficou pensativa.
Se nem pensava em sair, como conheceria
um homem naquele mesmo dia?
Lá pelas duas da tarde, tocou a campainha; ela
atendeu e, surpresa, deparou com um homem
de cinquenta e poucos anos, alto, olhos azuis,
como se tivesse Sinatra à sua frente. Vendo sua
reação, ele disse: “Muitos me acham parecido
com ele. E meu nome ainda é Francis”.
Ela o convidou a entrar e ouviu sua história recente.
Veio de Porto Alegre, com a missão de
dirigir a área de negócios internacionais da multinacional
em que trabalhava. Passou a ocupar
o apartamento vizinho ao dela, já mobiliado,
reservado pela empresa. Desde que se separou
da esposa, pensava em mudar de cidade. Só que
não conhecia nada em Belo Horizonte e perguntou
se, no início, poderia ajudá-lo.
Claro que a resposta foi positiva. Primeiro, o
supermercado, depois o shopping, pois queria
comprar ternos para assumir o novo cargo na
empresa. Um jantar em um restaurante e, após,
ele, meio sem jeito, comentou que uma das músicas
mais famosas do Sinatra era Strangers in
the Night. Como na canção, os dois ainda eram
estranhos um ao outro, mas a noite estava linda,
convidativa... Ela entendeu, concordou e
foram a um motel. No dia seguinte, combinou
com ele de mostrar-lhe a cidade.
Antes de dormir, foi procurar o espelho. De
novo como Nestor, que, surpreendendo-a mais
uma vez, surgiu com uma trouxinha nas costas,
como quem estava indo embora, por já ter
cumprido sua missão com ela. Desapareceu, de
repente, e Branca não o encontrou mais.
Logo no início da manhã de domingo, Branca
tocou o interfone no prédio da Sílvia para entregar-lhe
o espelho. A ex-vizinha, cinquenta e
cinco anos, bonita, sozinha, inteligente, história
semelhante à dela. Só que, a partir de agora,
com o Nestor...
62
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
CORAÇÃO CIBORGUE
GUSTAVO FONTELE
DOURADO E
GABRIEL ROCHA
Distrito Federal
Gustavo trabalhou
em produções
que foram para a
Cannes Classics
2020, HQMIX 2019, CCXP
2019, Festival de Brasília,
Rio2C.
Gabriel é ilustrador digital.
Trabalhou em filmes e produtos.
63
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
HELLEN RODRIGUES
Itapoã-DF
Criada nas periferias
de Brasília,
sempre acreditei
que as palavras
têm poder, com o tempo
aprendi a importância da escrita
nas mãos de mulheres
que carregam consigo a potência
ancestral.
VISITA
Aguardo sua visita com cada vez
mais ansiedade, faz tempo que não
a vejo desde aquele dia que fugi
de casa, fugi daquela dor, daquelas
sensações horripilantes nunca mais a vi.
Quando decidi buscar o meu rumo contava
com apenas 11 anos, hoje conto com 17 lembro
que naquele dia aguardei sua ida ao trabalho
e o sumiço daquele traste para um bar
qualquer. Ainda lembro os poucos pertences
que levei comigo dentro de uma mochila de
estampa de flores que foram algumas roupas
velhas, um caderno de matérias, algumas canetas
e uma quantia em dinheiro de 2 reais.
Na minha inocência de criança-menina achava
que as coisas seriam menos piores no mundo
fora de casa. Aquilo que aguentamos naquele
barraco nas periferias de Brasília não
era vida, detestava aquele homem que vivia
com a gente lhe batia, minava nossa relação e
sempre que longe de seus olhos dava um jeito
se esgueirar igual a um
bicho peçonhento e mexer
comigo.
Nas ruas da capital do
país aprendi a ser grande
a lidar com as dores e as
saudades que sinto de seu
cheiro, tempero e mente
sonhadora, acredito que
a parte sonhadora puxei a
você, além da pele escura
e dos cabelos crespos. O
caderno que levei comigo
me ajudou a desabafar e
ser vista ao menos em folhas
de papel e não lhe esquecer,
pois sempre escrevo
lembranças que tenho
suas.
Como disse tive que aprender a ser grande,
aprendi que ser grande consiste em sobreviver
não tive muitas escolhas neste jogo roubar
junto com o tráfico era as poucas opções que
me restava, rodei várias vezes, porém esta última
vez que cai no sistema foi cruel, antes de
minha prisão uma de minhas parceiras foi assassinada
a sangue frio em minha frente, isso
me fez a nunca mais querer está aqui.
Querer mudar de vida há esta altura do campeonato
parece um sonho longínquo, mas
como você me ensinou sonhar é algo que
evita o enlouquecer, me apaguei há alguns livros
aqui na unidade de internação de Santa
Maria-DF, voltei a estudar de forma séria, fiz
a prova do ENCCEJA e agora estou regulada
com série que corresponde a minha idade.
Bota fé que irei fazer o ENEM? Estou com
medo, todos(as) aqui estão depositando suas
energias em mim, conforme o dia da prova se
64
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
HELLEN RODRIGUES
Itapoã-DF
VISITA
aproxima mais nervosa fico os(as) professores(as)
aqui da unidade me ajudam bastante
neste momento de tensão e na minha caminhada
para realização deste sonho de entrar
na Universidade.
Queria muito lhe ver, lhe dar um abraço. Os
dias de visitas são mais tristes que o normal,
ninguém vem ao meu encontro
isso junto com a
solidão diária deste lugar
me deixa ainda mais ansiosa.
Por estes dias uma luz
ao fim do túnel apareceu.
Rose, nossa antiga vizinha
trabalha aqui como
faxineira assim que me viu
me reconheceu e pedi a ela
que lhe entregasse o meu recado escrito com
minha melhor caligrafia, espero que o recado
chegue e que você venha ao meu encontro.
Tenho medo de sua recusa e a quase todo instante
fico a acreditar que fui injusta em lhe
deixar.
Mais um dia de visita e tá cada vez mais foda
acho que depois de anos tenho uma boa notícia
e ninguém para compartilhar. Estou em
meu barraco sozinha escrevendo mais algumas
bobagens, até que chamam pelo meu
nome, estranho, dizem que tem gente querendo
me vê. Será que é você? Meu coração
dispara não posso correr, mas minhas pernas
quase que em ímpeto que se movimentar mais
rápido tive que me controlar, minhas mãos
estão suando finalmente chegou ao pátio e
lá está você um pouco mais velha e cansada,
Agora minha vontade
é dizer que iremos
mudar de vida e que
sonhos é tudo que nos
resta para continuar.
mas ainda tão linda como me lembro.
Não sei em qual momento lhe abracei mãe,
só sei que de repente estava em seus braços
lembrando de seu cheiro. Você acariciando os
meus cabelos crespos me fez ser o que sou,
uma jovem menina que está a crescer. Sua voz
dizendo que tudo vai ficar bem que não está
mais com aquele homem
que lhe impediu de me procurar
e pedindo desculpas
foi intenso demais.
Mãe, não precisa pedir
desculpas depois de algum
tempo e com ajuda de alguns
livros descobri que
nós somos apenas mulheres
vítimas de um sistema
construído por algozes. Agora minha vontade
é dizer que iremos mudar de vida e que sonhos
é tudo que nos resta para continuar.
Mãe, eu passei no ENEM e irei cursar Letras
pela Universidade de Brasília (Unb), como
você bem sabe sempre quis ser escritora sei
que para isso não preciso necessariamente estar
na Universidade, porém saber sobre as palavras
é algo apaixonante para mim. Inclusive
preciso lhe dizer que alguns de meus textos
foram publicados por alguns concursos literários.
Sei que este caminho escolhido por mim
não será fácil, mas contigo ao meu lado novamente
forças são renovadas, pois além das
dores da vida, também aprendi que o meu axé
e coletivo herdado de um legado de mulheres
peles azeviches.
65
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
HERA DE JESUS
Maputo - Moçambique
Hera de Jesus poetisa
moçambicana.
Co-autora
de duas
antologias, Soletras Esse
Verso (2019) e, Fique Em
Casa(2020).
@hera.dejesus
MONOTONIA
Há uma canseira
nas coisas que se repetem
todos os dias
a rotina
Os mesmos sapatos
marchando passo á passo, as mesmas lutas
os relógios marcam as mesmas horas
os mesmos segundos,
sem margem de atraso
As mesmas pessoas
os mesmos caminhos
as mesmas notícias
os mesmos embalos
Dá uma canseira
das coisas
do mundo que não passa
dos beijos
dos mesmos amores
permutando de corpo a corpo
saboreando a mesmice
Há uma canseira
nesta vida que transportamos
de lá para cá
ás vezes desconhecendo como viver
Basta-nos acordar
e, ser
ser dono de uma vida cedida
sem saber que fazer dela
é como guiar uma bicicleta
sem antes ter andado nela
Há uma canseira nisto tudo
em todos
nos dizeres, na vivência
tudo decadente
e, de repente
Cansa-se.
66
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
IAN ANDERSON
GOMES DIAS
Manhuaçu - MG
POEMINHA ULTRABUROCRÁTICO
Aos interessados em ler esse poema:
Favor preencher três vias do formulário B
[anexado abaixo.
Depois disso, rolar um dado de 30 faces,
E o resultado será o prazo, em dias,
Para a entrega do requerimento,
Junto de uma taxa simbólica
De 37 vezes o número de letras
Do sobrenome da sua avó.
Em euros, logicamente,
Que o euro é moeda boa.
Recomendo também contratar um
[advogado para auxiliá-lo,
Pois apenas os conhecedores da lei
Saberão que, além de tudo isso,
Há também uma série de normas
De conduta e vestimenta para os
[interessados,
Veiculadas em três volumes,
Totalizando 7000 páginas
E mais de 100.000 regras diferentes.
O item 914, por exemplo, proíbe o uso
De gravatas laranjas às quartas-feiras,
Durante um ano antes e após o requerimento
Da leitura desse poema.
O 75.698, considerado um dos mais
[importantes pelos especialistas,
Diz que aqueles com pítons de estimação
Tem preferência nas filas para entregar a
[papelada.
Para calcular o tempo de espera
Pela liberação do protocolo,
Cabe ao interessado criar
A função cossenóide e gráfico
[correspondente.
Requer-se também uma via adicional
De todos os documentos
Em latim, para facilitar o entendimento
De imperadores romanos e demônios,
Que, como todo mundo sabe,
Só sabem tal língua.
Favor não ligar perguntando sobre o
[andamento do processo,
Salvo na ocorrência de invasões
[extraterrestres.
Aos interessados que sofram de anemia,
Difteria e licantropia,
Não haverá atendimento à lua cheia.
Nascido em 2002,
em Manhuaçu,
Minas Gerais,
Ian Anderson
Gomes Dias sempre foi apaixonado
pela leitura. Geralmente
um garoto taciturno
e solitário, ele escondia um
segredo: ele amava escrever.
67
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
IARA MARINA
DE SALES SANTOS
Francisco Santos - PI
Formada em Letras
Português, reside
em Francisco Santos
- Piauí. Tem 26
anos. Gosta de escrever crônicas
e poesias. Já participou
de concursos literários
e tem textos publicados em
algumas edições.
RUA DE LADRILHOS
Arrancaste-me a pele
dos joelhos e dos pés
arrancaste-me também
a solidão
quando, timidamente
mostrava-me os moleques
correndo sobre ti
e sendo
felizes!
“vá com eles. Há espaço pra você”
eu fui.
em ti corri
dancei
cantei
amei
compartilhei
aprendi.
explorar-te em chuva e sol
foi explorar a mim
conhecer-me.
E a ti que marcou-me
em cicatrizes
e saudades
para a vida toda
dedico a poesia aqui
que só reside em mim
porque antes
pude em ti
apreciá-la.
68
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
IZADORA LANER
AUTORRETRATO
Os cabelos brancos representam
As incontáveis batalhas perdidas;
Reaprendidas.
Manchinhas na pele
E cicatrizes para lembrar
Do inconstante processo “cair e levantar”.
A doçura nos olhos
Diz muito sobre o lugar de empatia,
Vida finita.
Cabelos desgrenhados
E unhas por fazer:
A separação entre autocuidado e estética.
Amo minha caminhada,
Ainda que não pareça bela.
Urbanista, Mestra
em História Urbana.
Uso as palavras
como meio
de sobrevivência entre o caos
que as emoções criam ao
nosso redor. Escrever é um
ato de resistência e resiliência.
@aposto_txt
69
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
JHULIA VITÓRIA
FERREIRA SALES
Jatobá - PE
Sou Jhulia Vitória Ferreira
Sales, nasci em
02/12/2005 em Natal,
RN. Aos 12 me
mudei para Jatobá, PE e aos
14 entrei para o clube do
conto, onde escrevemos histórias.
Meu gênero favorito
é conto.
VIZINHANÇA
Minha rua é bem pequena e se
tem algo de importante para
destacar nela é que qualquer
movimentação se torna imediatamente
de conhecimento geral. E foi assim
que um calmo dia de sábado virou euforia
com a chegada de um novo vizinho que se
mudou para a casa de n° 5.
O caminhão de mudança parou e por uma
mera coincidência, acreditem, todos os moradores
tinham alguma coisa para fazer em suas
respectivas portas.
E como de costume, os moradores começaram
a traçar os seus julgamentos sobre o novato
pelas características de seus móveis:
“Mulher, o que é que uma pessoa com um
sofá e uma geladeira tão bonita vem fazer
num bairro desse?”
“Mulher, sei não. Muito estranho.”
E lá pelas tantas, muitos se reuniram na porta
de dona Zefinha sob pretexto para tomar
um açaí que ela vendia. Foi quando entrou
pela rua um grande carro vermelho e parou
em frente à casa de n° 5. De dentro dele saiu
uma jovem mulher de cabelos de fogo que ao
avistar a vizinhança reunida deu um rápido
aceno com a mão e entrou casa adentro.
A porta mal fechou e os burburinhos já recomeçaram:
“Você viu que antipática!”
“Muito carinha de mimada”
Poucos minutos depois apareceu pela rua um
homem alto, de cabelos castanhos, vestindo
roupas simples e na sua companhia trazia um
enorme cachorro preto encoleirado. Parou
frente à calçada.
“Boa tarde, me disseram que aqui vende um
gostoso açaí. Está quanto? “
“Cinco reais, meu filho. Vai querer um?”
O homem só afirmou com a cabeça. E enquanto
dona Zefinha preparava o açaí daquele
cliente, o assunto da nova vizinha voltou à
tona:
“Achei muito enjoada”
“Você viu que cor de cabelo de tanto mau
gosto”
“Achei os móveis muito cafona”
“Ah, amanhã vou já fazer a minha visita”
“E virou fofoqueira, foi?”
“Fofoqueira, eu? Claro que não, só cuido do
bem da nossa vizinhança.”
A conversa continuou animada sobre a nova
moradora até que dona Zefinha entregou o
açaí. O homem que já tinha tirado o sorriso
do rosto, recebeu o sorvete, pagou e mal respondeu
ao agradecimento. Dirigiu-se à casa
de nº 05. Entrou. Bateu a porta!
Os vizinhos se entreolharam e a voz de um
deles confirmou o que todos estavam pensando:
“É outro mal-educado!”
70
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
JOÃO ROSA DE CASTRO
São Paulo - SP
Escreveu e traduziu
dezenas de livros
em prosa e poesia
em Língua Portuguesa
e Inglesa. Publicou
alguns deles no Clube de
Autores; participa de diversos
concursos literários no
Brasil.
DEPOIS DOS QUARENTA
O
que sobrou de mim
Dilacerado pelas vilas,
Paralelepípedos?
A chuva vespertina,
O céu ainda azul,
Ainda cinza salpicado de nuvens:
Ainda firmamento —
Ainda firme para conter os zilhões de
[alvoradas.
A mãe com a memória do pai no peito,
Seu andar sôfrego e ainda gracioso,
Suas maravilhas de amor e guerra,
Os vícios que se acumulam e comunicam
De si para si o meu corpo novo
De roupa nova,
Novas células que surgem surpresas
[com o meu mundo.
O olor da noite,
Lembranças de noites remotas no tempo.
Invenções saciando o acender e apagar
[de luzes,
Que, apagadas, buscam iluminar;
Acesas, querem escurecer.
O choque da visão.
As meninas sapecas,
A adolescente aterrada com a noite de debute
Tão deslumbrante e — mal planejada.
Luíza tão pequenina e distante.
Tudo isto me toma.
E os burgueses me fustigando
Com avidez por guloseimas.
Sedentos de cerveja e esporte.
A gente perdida a me saudar no recôndito.
A veste conforme o verão lusitano.
Que digo?
Que foi que sobrou de mim?
O caminhar vagaroso do amigo.
Sua risada espontânea,
O entrelaçar de ideias.
A vida aberta para muito,
Quase tudo.
Mas, não!
Sobrou também o presságio,
O suicídio das noites,
Consolo de palhaço que leva ao pranto.
A mulher platônica em temor,
Em terror fecha os olhos.
Tapa os ouvidos e não ouço bem
O que está dizendo.
A mulher biônica,
A mulher sistólica — diastólica.
A quem eu não dei criança,
Gerança,
Bonança,
Esperança,
Fiança,
Matança,
Cachaça —
E eu morro.
71
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
JOSÉ CARLOS VAZ
São Paulo - SP
Professor da Escola
de Artes, Ciências
e Humanidades da
Universidade de São
Paulo. Pesquisa esportes implausíveis
e atualmente prepara
livro sobre a obra do
escritor Breno Caldeira.
ESTÔMAGO
Traz um sanduíche para mim. Estou
meio mole. Acho que vou ficar gripada.
Veja o que achar mais gostoso.
Estômago está com fome.
O sanduíche veio logo. Do hotel até a praça
são cem metros, uns vinte minutos, tudo: o
ir, o pedir, o esperar a preparação, o pagar, o
trazer.
Quando voltei, parecia que ela estava febril.
Tossia. Pus as costas da mão em sua testa. Ao
tato, parecia quente. Um pouco de coriza e o
olhar caído. Estômago. Comeu o sanduíche
com gosto, mesmo adoentada.
Vendo que piorara, ofereci buscar um remédio.
Falou que não precisava, mas insisti. A
farmácia do outro lado da praça, quando
fui comprar o sanduíche vi que estava aberta.
Estômago. Pediu para trazer um sorvete,
também. Antes da minha expressão de espanto,
percebeu o que falou. Traz um docinho,
então. Sorvete nesta situação é demais, né?
Aquele né que costuma soltar no final das frases
tem uma graça muito própria. Estômago.
Comprei remédio, pastilhas para tosse, xarope.
Entrei no quarto sem bater. Ela podia
ter adormecido. Vi que dormia, mesmo. Hesitei.
Não sabia se devia acordá-la. Aproveitei
o tempo da dúvida para olhar. Continua
bonita, até quando a gripe a derruba. Deixei
passar uns dois ou três minutos, pus a mão
em seu ombro, sacudi levemente. Não acordou.
Curvei-me e falei seu nome, baixinho,
ao ouvido. Despertou, mas manteve os olhos
fechados ao sorrir preguiçosamente. Trouxe
meu docinho ou vai só me maltratar com remédio?
Estômago. Para não ter como errar,
eu havia comprado bomba de chocolate e torta
de morango.
Comeu tudo. Parcimônia não combina com
ela, nessas horas. Estômago. A boca lambuzada
de doce, os dedos lambuzados de doce.
Lambeu os dedos e os lábios, só então pediu
água para tomar o remédio. Acho que nem
preciso, curou-me com o doce, mas vou tomar
os comprimidos para não fazer desfeita a
tanta gentileza sua, obrigada.
Os doces fizeram bem, já se lhe via os olhos
mais acesos. Duas jabuticabas. Estava sentada
na cama, de frente para mim, as costas
apoiadas no travesseiro. Segurou minha mão
entre as suas, quentes. Poucas frases na conversa
que tivemos. Agradeceu novamente.
Você escolheu bem, esse xarope é gostoso.
Estômago. Avisei que mudara o horário da
reunião com o cliente. Seria após o almoço,
ela poderia dormir até mais tarde para se recuperar.
Vou descansar, então, mas tomamos
o café da manhã juntos, faço questão. E fica
comigo até eu dormir, vai ser rápido. Puxou
minha mão, para que eu sentasse na beirada
da cama, ao lado dela. Deitou-se e logo pegou
no sono. Estômago.
Ao ver que adormecera, levantei-me. Senti
uma espécie de pudor em continuar sentado
ao seu lado na cama, agora que dormia. Estômago.
Sobre a mesa de cabeceira, os remédios
e as embalagens dos doces, ao lado de seus
óculos.
Quando cheguei ao meu quarto, parei sob o
umbral, sem entrar. Nunca a tinha visto sem
óculos. O hotel não tem bar, hotel modesto
de cidade do interior. Saí para caminhar pela
praça. A noite está agradável, a temperatura
amena. Se ela não estivesse gripada, talvez tivéssemos
ido à pizzaria. Amanhã a reunião
promete ser rápida, encerramos o contrato.
Depois, pegaremos a estrada de volta. Estômago.
72
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
JÚLIO CÉSAR
São Luís - MA
Chamo-me Júlio,
sou um estudante
de 18 anos, moro
em São Luís do
Maranhão.
Instagram: @joootttaaaa
A VIDA DESABROCHOU EM UMA TELA DE CINEMA
Paulo, você fingia? Os holofotes,
os palcos, os aplausos valeram a
pena? Você guardado no segundo
todo, você desconhecido, você
subitamente sentido. Custaste caro, pouca
revolta, Paulo, pouca revolta. A que se
destinou teu dinheiro, a tua fortuna, a tua
paixão? A paixão, literalmente póstuma,
vai para onde, vai por quê? Só se pode fazer
perguntas frente à morte, são sempre
as mesmas: Como vai a família, quais as
últimas palavras, sentiu dor, estava triste,
talvez feliz, como passou, e agora? E agora,
Paulo, o que deixaste para o que sobrou?
Beber teu sobejo, chorar tua derrota,
pedir uma foto, um autógrafo? Paulo,
você pássaro, você livre, você completo
desconhecimento e conhecido. Ouviste de
um amigo que os olhos fechados enxergam
um pouco mais?
Abrir-te-ão todo, vasculharão tudo, remexerão
os teus segredos e pô-los-ão de
cabeça para baixo, teus órgãos que costumavam
funcionar, tua cabeça de fórmulas,
métodos, tanto conhecimento. Paulo,
de que serviu tua gramática, teus chapéus,
olhos de furadeira, agendas de compromissos,
a trigonometria, os artigos da filosofia,
aquele espelho laranja que tu não
largavas... de que serviu tanto, muitíssimo,
esses castelos, quando nasceu teu último
suspiro?
Como crescerão teus filhos? teu casamento
definhará? tua luz se apagará? para
73
onde levarão teu corpo, teu sangue, tua
embolia, tua morte, teu sorriso e fazer
sorrir, tua resistência, tua gentileza, tua
interrogação?
O artista é tão carente, fechado, envelopado,
não tem com quem conversar, o bate-papo
dos finados é a boca dos outros,
deixando-os frescos na lembrança. E se te
esquecem, que resta de ti? uma fala, uma
fotografia, um botão?
Não consigo formular muito mais que
essas perguntas irrespondíveis, pesadas.
E essa seriedade, olhar confuso, cabelo –
pouco cabelo –, perna pendendo no chão
em que te deitas. Paulo, a vida é curta demais,
cortina que se fecha e deixa saudade,
um gesto perdido no ar, um quadro
irreversível, dificuldade de despedir-se, de
entender, de desintegrar o futuro. Paulo,
passou um filme seu, um pouco tarde da
noite, e todos os que estavam dormindo,
levados pelo transporte do mundo, acordaram
sobressaltados como se tivessem
um compromisso com sabe-se lá o quê,
abriram a porta do quarto, juntou-se a
família toda, em silêncio, pretendendo
guardar um segredo, pé ante pé, coração
ante coração, os olhos encheram-se de
lágrimas e ficaram todos a te assistirem,
perplexos, admirados, risonhos, carentes
e tão magnificamente corajosos, como se
assistissem a própria vida que ressurgia
vagarosamente de tua eternidade.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
KIKA SOUZA
Nova Iguaçu - RJ
Artista Afroindigena.
Cria de Manaus
da comunidade do
Mauazinho. Autora dos
zines "Totalmente Aleatório"
e "Auto Irreverência".
Premiada com Medalha de
melhor poema pelo SENAI-
-AM.
@kikaoficiall
NEM PENSE EM ME MATAR
Segunda, Dona Maria
Terça, a Isabela
Quarta, a Zumira
Quinta Dona Eva
Sexta, a Daiana
Sábado, Dona Ana
No Domingo é sua vez
Em minutos Dona Vanda
No próximo segundo dessa fala
Uma Mulher indígena
Preta
Trans
Lésbica
Quilombola
Mãe de Santo
Será assassinada
Estrangulada
Decapitada
Esfaqueada
Esquartejada
Na rua, nas favelas
No beco, nas vielas
Na vala
Dentro da sua própria casa
Pari
Limpa
Lava
Passa
Deixa isso no passado
Nós não vamos mais carregar no colo
O peso do seu patriarcado
Deixa nosso corpo
Solto
Livre
Exposto
Se expressar
Tira sua mão suja da minha boca
Porque agora eu vou gritar
E não é "para" quando você tentar me
[estuprar
Me assediar
74
Meu coquetel de palavras seu macho
[escroto
Cê vai ter que aguentar
Diz que feminismo é mimimi
Vai pro puto que te abortou com seu
[BLA BLA BLA
Acha que tô sempre sozinha?
Melhor se readaptar
Nada vai nos deixar inerte
Somos sementes Marielle
Somos filhas de Dandara
Do dialeto yorubá
Dendezera de Aruanda
Filhas de Iansã, Oxum e Oxalá
A primavera há de chegar
Pra ecoar o nosso grito feminista
Ainda que muitas das nossas desista
E pra soprar o vento desses novos ares
Eu invoco aqui Elza Soares:
"a mulher de dentro de mim prendeu
[seu carrasco
Eu não vou sucumbir. Eu não vou
[sucumbir".
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
LAMARIS
SOU TUA AGORA
Se chega, me escondo.
Se me olha, finjo não ver.
se toca a minha mão, eu me
[derreto,
Mas não te deixo perceber
Se me chama, não respondo.
Se não me liga, me desespero.
Se me pede para sair, eu digo não.
Te enfeitiçar é o que eu mais quero.
Quero te enlouquecer
Até que você admita
Que sem mim já
Não consegue mais viver.
Fala da lua, e eu do sol.
Se me sonda, faço mistério.
Se perde a paciência, então eu
[choro.
Vou tirar você do sério.
Fala de amor, eu de carinho.
Fala de paz, e eu de guerra.
Se diz que vai embora,
Eu só posso te dizer, sou tua agora.
SOU TUA AGORA
Nunca quis ser cantora, porém
vivo a cantar. Ouvi muitas canções,
muitas passaram pelo
tempo comigo. Algumas vezes
escrevia o que sentia, mas nunca pensei em
transformar em melodias. Entretanto as melodias
surgiam e, para que não se perdessem,
corria gravá-las. Lá ficavam no meu
gravador até que as letras chegassem na forma
de poesia, ou não. Sempre há uma melodia
para uma letra. Basta encaixá-las e a
magia acontece. Nesse universo de “tecer” e
“arrematar”, nasceram mais de 90 canções,
entre sambas, canções da terra, românticas
e pops. Assim surgiu o Eclético I. Assim surgiu a cantora e compositora LaMaris.
Doze canções cuja finalidade é a obra pela obra. Sem pretensões. Apenas a de tocar o
coração das pessoas despertando paixões, trazendo calmaria e paz.
Por causa das canções e da explosão da escrita, nasceu também a escritora Amanda
Kraft. Engatinhando na arte de transformar estórias em palavras. Mas adorando tudo
isso. Participo com vários contos em diversas antologias da Elemental Editoração,
Psiu Editora, EHS Edições, Solar dos Livros, DarkBooks, Cyberus Editora, Boneless
Editora como colaboradora na sessão Contos Desossados, WebTV e Arte Impressa
com um e-book solo: “A Escolhida”.
Acredito que tudo o que fazemos, não fazemos sozinhos. Somos fortes quando nos
encontramos unidos. O que seria disso tudo se não houvesse pessoas dispostas a escrever,
fazer canções, esculpir, desenhar, pintar; se não houvesse quem se abrisse a essas
obras, a ponto de admirá-las? Sendo assim, convido-os a conhecer meus trabalhos
que se encontram na Amazon ou nos sites das editoras, bem como minhas canções no
Youtube, Spotify, CD Baby e outros.
https://www.instagram.com/amandakraft2015/
https://www.facebook.com/amanda.kraft.7777
75
Ouça "Sou tua agora" clicando no link:
https://www.youtube.com/watch?v=cyGxVU9NGL4
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
LETICIA BAHRBOSA
Rio de Janeiro - RJ
ALÉM DO PACÍFICO
E, em ondas,
Quando a maré deixa,
Eu sei que sou amor
E quando
A tormenta me pune,
Transbordo pulsante.
Já não mais serei baú,
Naufragado.
Refém de mim.
Que os ventos do Norte,
Me arrebatem.
Eu sucumbirei.
Na família dos
20 e tantos sonhos.
Alma infinita,
cabelos
coloridos como meu discurso
a vida. Meu prazer é ter
e dar prazer. Acadêmica em
Psicologia, Professora de Inglês
e sonhadora.
76
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
LIMA JÚNIOR
Maranhão
SEJA VOCÊ
LIMA JÚNIOR é músico, cantor e
compositor maranhense, vocalista
das bandas Dizneilandia Dandi e
LiverPaul. Atuante também como
músico Solo. Possui trabalhos autorais lançados
nas plataformas digitais, tanto com suas
bandas como solo. Iniciou uma carreia musical
com a banda "IDP" em 1995, com a qual
começou a compor suas primeiras canções,
dentre elas a música FORA DO AR (gravada
e lançada pela banda THE MADS). Em
1998, entrou para a faculdade de Arquitetura
e Urbanismo, onde conheceu Armando Eugênio
(PANDHA) e Marco Moraes (Parceiro de
composições). Em 2009, iniciou uma parceria
com LUCAS SOBRINHO (Filho do compositor
JOSIAS SOBRINHO), juntos formaram a
banda LIVERPAUL. Em 2013, paralelamente
aos trabalhos da Liverpaul, com o Marco
Moraes e Ramon
Ferreira,
formou a banda
Dizneilandia
Dandi. Em
2020, durante a
Pandemia CO-
VID-19, lançou,
nas plataformas
digitais, sua primeira
canção solo: “Agora Já É Zero Hora”,
em 23 de Novembro de 2020, lançou o EP
Solo "Algo Mais" Volume 1 (Acústico), com
5 faixas, e no dia 25 de janeiro de 2021, lançou
o EP Solo "Algo Mais" Volume 2 (Acústico).
Clique no link e escute a música "Seja você"
www.youtube.com/watch?v=nVAl2y9LdV8
SEJA VOCÊ
Sob o céu existe alguém
Que leva a vida sempre zen
Acima do chão uma multidão
Incomoda com este cidadão
Mas esse cara só quer ser feliz
Hoje quer sair com a namorada
Amanhã um Prime, um Netflix
Ou então ficar sem fazer nada
Sexta-feira quer tocar um blues
Lado A ou lado B, não importa
Ele vai de rosa e ela azul
Que se exploda tanta cara torta
Vive nas nuvens sem saber voar
Um viajante, um trovador
Enquanto os demais
Querem fazê-lo parar
Pra não ser mais
Tão sonhador
Este cara só quer ser feliz
Hoje quer sair com a namorada
Amanhã um Prime, um Netflix
E depois ficar sem fazer nada
Sexta-feira quer tocar um blues
Autoral ou lado B, não importa
Ele vai de Pink e ela Blue
Que se exploda tanta cara torta
Pois não há nada de mal em ser estranho
Pois não há ninguém normal, ninguém medonho
Seja você
77
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
A IMAGEM DESSAS REFLEXÕES
LORENZA GIOPPO
Sou curitibana e formada
em cinema.
Como artista visual
exploro materiais e
suportes diversos e os aspectos
e alcances da autobiografia
na produção artística.
78
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
LUISA GARBAZZA
Bom Despacho – MG
Nascida em Bom
Despacho, MG.
Escritora e professora
de Língua
Portuguesa.
Publicou livros de crônicas,
contos e infantis. Também
participa de algumas antologias.
OUTONO DA VIDA
Das lembranças, nostalgia,
vai real, vem poesia:
tardes amenas de abril.
Instantes, frações de vida,
frio corpo, alma aquecida,
pedaços do que sentiu.
Nas esquinas da existência,
em frascos traz a essência
do que pôde ou não viver:
Muito amor ficou guardado,
outro tanto esperdiçado
sem a quem oferecer.
Na garganta, sufocada,
a palavra não falada
num fio de arrependimento.
Quisera ser passarinho,
alçar voo, montar ninho,
aproveitar o momento.
No rosto, um meio sorriso,
no fundo d’alma, um aviso
quebrando encanto e magia.
Sente a face umedecida
pela lágrima sentida,
misto de dor e alegria.
Sem deixar se amedrontar,
constata, com o olhar,
quase vazia a ampulheta.
Suspira, agradecida,
pois, na aquarela da vida,
hoje é mera silhueta.
79
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MAJU ASSIS
São Paulo - SP
BLASÉ
Todo dia, ela faz sempre tudo
igual, parece que Chico Buarque
cantava a trilha sonora
para o cotidiano dela. A rotina
maçante, os olhares perdidos e distantes
diante do ritmo frenético que toma conta,
mesmo quando não há por quê. Corre
para garantir a comida na mesa, para fugir
do frio e para suportar a dor de existir.
O som ensurdecedor, a fumaça e a neblina
encobrindo o céu e fazendo o olho
lacrimejar. As pernas bambas depois de
percorrer quase uma maratona no trabalho
fitam os vagões repletos de gente vazia
e na volta para casa começa uma disputa
pelos tão desejados e escassos assentos no
metrô. Maria e Joana ou Ana, tanto faz,
ela só é mais uma no meio da multidão,
pequena demais para ser vista, gritando
até a exaustão para ser escutada.
No caminho até à estação contou, um
dois, três, quatro...vinte e nove pessoas
pedindo esmola, um pedaço da maçã
já consumida, um pacote de bolacha ou
qualquer migalha suficiente para forrar o
estômago. Na manhã seguinte, foi a mesma
coisa, a súplica de quem não tem pão,
as queixas daqueles que não conseguem
encontrar conforto e abrigo sob um teto.
As ruas a cada entardecer tornam-se mais
hostis. O trago e o gole na cachaça conquistada
a duras penas agora são indispensáveis.
Os desejos vão se tornando
paulatinamente menos exigentes e sonhar
vira um quadro distante fixado na lembrança.
Pontes, passarelas e passos acelerados
nas vilas e vielas, eles fogem para
evitar o atroz espetáculo da realidade da
metrópole. É difícil de engolir; se eles não
vestissem a capa da indiferença, não suportariam
o cenário e teriam que lidar
com o incessante nó na garganta, dar espaço
para angústia e vazão para tristeza
que não é permitida nos dias de hoje.
Tudo que a gente precisa é ser feliz, esquecer
da negatividade e se abastecer de
boas vibrações. A vida é bela, não há com
o que se preocupar e os desafios tornam
as conquistas mais prazerosas. Procuro o
melhor ângulo, escolho a luz estratégica,
coloco a roupa mais bonita, sorrio para
foto, abro o programa de edição, faço alguns
retoques, escondo as últimas imperfeições,
abro o Instagram e posto. Essa sou
eu na minha essência, prazer! Finalmente
o primeiro like, confiro o número de visualizações
de novo, de novo e de novo.
Nossa! A tarde passou e eu nem percebi.
Curti a decoração da casa da Ma, a festa
da Ju e o yoga da Fe. Na tela, a versão
80
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MAJU ASSIS
São Paulo - SP
BLASÉ
perfeita de mim para você e por trás dela,
receba a minha atitude blasé.
Não tenho tempo para pensar na vida.
O trabalho dignifica mesmo o homem ou
será que desumaniza? Tropeço na miséria
e não me compadeço e se por um instante
lastimo, logo me esqueço. Percorro a
grande avenida e fito uma mansão, jardins,
quadra de tênis e piscina de natação
e um breve devaneio insisto em desejar
tudo aquilo que eu sei que nunca vou ter.
Vem a frustração, mas a vista dá para
marginal, contraste evidente e desigualdade
sem igual.
Um homem espia do alto do morro, o
palacete luxuoso com admiração. De perto,
mas tão longe para quem um dia edificou
aquela construção. Sessenta mil tijolos
levantados, mil e quinhentos metros
de azulejo rejuntado. Foi se aproximando
para poder ver o resultado de tanto tempo
de trabalho, mas o segurança escorraçou
sem dó, nem piedade. Quanto mais casas
como aquela fazia, mais pequeno ele se
sentia, porque a cidade engolia.
Mesmo acuado, o moço tentava escalar
os muros intransponíveis e depois de ter
sido colocado no devido lugar, respirou
e tentou retornar ao seu pedaço com o
arroz para as crianças. De repente, o pacote
estava esfacelado na ladeira, veio a
agonia de nos últimos momentos, empenhar-se
em resgatar a embalagem, sem sucesso.
Morte violenta vira estatística e me
deparo com a manchete no Facebook. A
respiração fica ofegante e procuro o Mindfulness
da moda para acalmar. Entro no
Instagram e vejo as aulas de yoga da Fe, já
me livrei do incômodo.
81
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
VORAZ
MALÚ BORTOLETTO
São Paulo - SP
Apaixonada por todas
as artes, escreve
desde menina,
completamente
apaixonada por música, cinema,
arte, poesia, literatura
e livros com ilustrações bem
editorados - forma e conteúdo
se complementam
82
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PAISAGEM FANTASMAGÓRICA VI
MARCO BULHÕES
Mestre em Artes
Visuais
pela Escola
de Belas Artes.
Participação em exposições
individuais, coletivas
e Salões de Arte. Ganhador
de quatro prêmios. Criou o
“Memorial das Máscaras”
de Maragojipe/BA.
83
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARCOS NUNES LOIOLA
Botuporã-BA
Sou advogado. Apaixonado
por literatura
desde criança, escrevo
contos e poemas desde
2019.
MISE EN ABYME
No espelho desta longeva cristaleira,
eu, espelho, me vejo em abismo...
Minha face desvela-se embaciada
por frágeis taças de cristal
feito uma pintura surreal...
Vejo-me entre antigas xícaras empoeiradas
que ainda conservam de outrora
o suave cheiro do café...
Reconheço-me em múltiplos planos:
meu eu maior guardando cópias
dos meus eus menores e esses
- ainda inalcançáveis pela retina -
guardando mistérios...
No espelho da cristaleira,
eu, espelho, me vejo em vertigem.
Queda livre ao (in)finito...
84
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARI BRITO
Porto Alegre - RS
Mari Brito dá
aulas de música,
anda de
bici e cuida
de plantas. Gosta de tarô, livros,
abraços, banho de rio e
açaí. É pianista, nortista, feminista
e escritora amadora.
Curiosa e intensa de nascença.
SOFIA
Desabotoou o casaco e sentiu as
meias se agarrarem ao tapete da
sala, como se celebrassem a liberdade
após um sufocante dia dentro
das botas quase surradas. A lenta coreografia
de suas mãos enquanto desenrolava o cachecol
do pescoço conduzia também o desenrolar
dos pensamentos sobre todas as coisas que
ainda precisava fazer naquele dia. Sofia fixava
o olhar num ponto do sofá enquanto sua
mente revia item por item não resolvido de
sua checklist. Ao fim do gesto que desnudou
seu pescoço, ela já havia lembrado de tudo.
Pendurou as roupas na entrada, jogou a bolsa
no sofá, virou à direita na cozinha, encheu
a chaleira, acendeu uma das bocas do fogão.
Esse ano o frio resolveu fazer birra, teimoso
até outubro, e como não tinha muito o que
fazer, Sofia simplesmente aceitou a mãe natureza
temperamental e nos últimos dias virou
adepta dos chás. Precisava se sentir aquecida
para trabalhar. Ágil, apanhou papel e caneta e
anotou as obrigações daquela noite.
“Tanta coisa, meu deus, e hoje é só segunda-
-feira” comentou para sua fiel companheira
dos últimos meses naquele apartamento: ela
mesma. De volta na sala, se estirou no tapete
colorido que ganhou de presente da mãe em
agosto daquele ano. Era um bom presente de
aniversário para quem passava horas na frente
do computador pesquisando bibliografia,
escrevendo artigo e revisando trabalho dos
orientandos — durante as raras pausas, ela
podia fugir e se jogar no chão e rolar, esticar,
deitar, como uma criança livre de obrigações.
E sim, um tapete de pano colorido devia ser
mesmo um presente incomum para quem faz
trinta e cinco anos, mas devia existir ali alguma
sabedoria materna que Sofia ainda não
compreendia.
Ela olhou para o teto. Fechou os olhos e viu
a lista “email pro Rodrigo pra Carla pra Sandra
revisar o capítulo do Diego responder o
coordenador agendar as salas com datashow
escrever o referencial teórico do projeto”,
abriu os olhos antes que a lista acabasse. Sentiu
em seus músculos a exaustão do primeiro
dia da semana e ouvindo o inabalável silêncio
daquele condomínio suburbano depois das
nove, sentiu vontade de estar cansada com
alguém.
A rotina na universidade era bem corrida e
ela estava sempre envolvida em alguma atividade,
evento, organização, planejamento, em
consonância com seu marte em virgem. Sempre
havia algo a ser feito, e devaneios eram
luxos que ela normalmente não se permitia
ter. Entretanto, no calor daquele tapete de
pano, algo que ela não sabia nomear começou
a surgir de dentro, lentamente encharcando
seu peito, até umedecer seus olhos.
Como uma menina desamparada, foi tomada
por um choro quieto, soluçando em silêncio.
Abraçava a si mesma, buscando um consolo
no próprio toque. Sofia se sentia profundamente
sozinha.
Feito um alarme, a chaleira apitou. Ela se
levantou num sobressalto, voltando à superfície.
E, ríspida, repreendeu a si mesma por
esse momento de fraqueza. Recompôs-se e de
pé, carregou seu corpo exaurido em direção
à bebida quente que regaria o trabalho que a
esperava naquela madrugada.
85
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARIA CATARINA
São Paulo - SP
CORRESPONDÊNCIA
Recebi seus envelopes vazios e queria agradecer a falta de
tinta, de novo.
Eu escrevo curto: um confesso, uma piada, duas perguntas.
Mas só recebo de você o embrulho, e ainda rezo pra que essa falta
de reação seja autêntica. Isso Importa porque eu odeio as mentiras
que as vezes te ocorrem.
Maria Catarina
nasceu em
fevereiro de
1999 na cidade
de São Paulo. Apaixonada
por literatura e arte, além
de escrever, trabalha como
tradutora e professora de
idiomas.
Não tenho pena de mim. Só da letrinha que fica ali, cintilando expectativa.
Soa uma criança perdida na correnteza de um rio meio
turvo.
Mania de achar que nós e nossas crianças somos coisas diferentes.
Encho o peito de ar pra escrever, mas só me vem água e lama.
A caneta estoura em cima da escrivaninha.
86
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARIA GABRIELA
CARDOSO
Porto Belo - SC
VERBORRAGIA
É nos confins das mentes silenciosas
Que adormecem os verbos pungentes
Inflamados por salivas raivosas
São ricos em sentimentos latentes
Os sons que os ouvidos guardam
Reverberam pelos séculos encerrados
Emergem em meio a noites nubladas
E transbordam nos travesseiros
As noites longínquas agonizam em meio às luzes oscilantes da lua cheia
Solitária e flutuante
Despede-se no raiar do dia enquanto deixa seus apaixonados carentes
Maria Gabriela
Cardoso, 23
anos, nascida
no Rio Grande
do Sul, atualmente morando
em Santa Catarina. Apaixonada
por todas as formas
de arte, mas principalmente
as que envolvem letras.
No embalar da melancolia
Em meio aos minutos escorridos
Com a cabeça latejando o vácuo
O grito se torna inaudível
O peito refreia todas aquelas emoções
Adormecidas
Mas os ouvidos inocentes
Não possuem proteção contra os sentimentos penetrados
E no epílogo do corpo
Eles são apenas a porta de entrada das emoções
Não são eles que sentem
Os sons são carregados pela veias que os levam até o coração
87
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARIA GABRIELA
CARDOSO
Porto Belo - SC
VERBORRAGIA
Esse quieto e dormente
Sente mesmo com sua derme grossa
Roupa que o veste
E sua clava de ossos na frente
Sua eclosão se dá para o corpo inteiro
Da ponta dos dedos
Percorrendo pela pele
Passa pelo rosto
Chega até a cabeça
Assim seus circuitos são acionados
Suas sinapses erram os trajetos corriqueiros
Uma tropa de pensamentos de berço
Voltam a sibilar raivosas na mente
As letras liquidificam-se
Perdem-se entre as vísceras
Preenchem os espaços
Até não mais caber e sair pelas chuvas torrenciais do corpo
A alma não escuta, não fala,
Pois quem sente é a carne
Que se desmancha em gotas pela face
Quando as palavras perversas,
Deveras diretas, a fazem pingar.
88
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARIA JORGETE
TEIXEIRA
Portugal
Maria Jorgete
Teixeira
nasceu em
Angola. Vive
em Portugal.
Obras: O coração é puta
sempre à espera; Mulher
à beira de uma largada de
pombos, à volta das canções
de José Afonso; A Solidão
das Dunas.
NATAL
89
Uma jovem mulher pariu um filho
numa rua de Lisboa
Isso se sabe.
Abriu as pernas e deixou passar
o filho como um rio
Na madrugada fria
Nada mais aconteceu.
Nenhum grito furou os vidros duplos das janelas
ninguém se inquietou
a colher não se deteve antes de chegar à boca
o açúcar do café não amargou
nem os lábios ficaram a meio do beijo
Toda a gente dormiu em paz!
Uma jovem mulher pariu um filho
numa rua de Lisboa
Mas não lhe contou os dedos,
não viu a cor do cabelo
não soube o cheiro da pele
não o aconchegou ao seio.
No dia seguinte acordaram
as vozes dos que nada tinham visto
nem ouvido nessa noite ácida.
Era preciso indignarem-se
para continuarem a dormir sossegados.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARIA PIA MONDA
Belo Horizonte - MG
TRÊS DEGRAUS
Três degraus. O suficiente para ir
longe e fingir que eu e ele nunca
fomos próximos.
Da cidade, de seus rios ocultos e
dos cantos dispostos a nos acolher e nos cobrir
com sombras, dando aos nossos olhos a
ilusão de ser invisível para os olhos dos outros,
eu reconhecia apenas algumas formas.
Aquelas que, enquanto ele misturava sua res-
Entreguei o dinheiro para a trocadora, que
provavelmente sorriu para mim, provavelmente
não.
Estava me concentrando no disfarce, em não
mostrar como me machucaria considerar o
momento um prazo, um fracasso, um fim.
Já não era mais dia, ainda não era noite. Era
a hora de voltar para o tempo.
Empurrei a catraca. Antes que ele fizesse a
piração com a minha, se embaralharam em
mesma coisa, enquanto eu estava num canto e
maneiras absurdas, me mostrando o quanto
ele ainda no outro, a percepção da facilidade
meu mundo poderia ser mais bonito, se ele
com que pudéssemos nos separar prenuncia-
me quisesse mais do que eu estava disposta a
va a dificuldade que eu teria em acreditar que,
admitir de querê-lo.
mesmo que apenas por um instante, apenas
Três degraus. Três passos.
numa dimensão imaginária e distorcida, nós
A luz, de repente forte, tirou a magia e come-
dois tínhamos realmente nos reconhecidos.
cei a sentir-me bem triste, impedindo-me de
Fiquei imóvel, esperando que a mulher me en-
me perguntar se aquela tristeza estava ferindo
tregasse o troco. Mas ela entregou o dinheiro
ele também, com uma força igual ou superior.
para ele. Pensou que fossemos um casal.
Italiana de Napoli e,
desde 2015, reside em
BH, é autora de poemas
e contos, publicados em
revistas italianas e brasileiras.
Menor.
Como a tonalidade de uma música que eu
não queria ouvir, um acordo que discordava
com o pensamento absurdo de que eu poderia
considerá-lo um desejo e nada mais.
Porque os meus desejos nunca são disjuntos
do amor.
A naturalidade daquele mal-entendido abalava
a minha intenção de não tentar, nem
mesmo por engano, de sentir um sentimento
de pertença mútuo e mudo. Decidi abandonar-me
ao ruído do tráfego, a estrada fora da
janela de vidro chamava minha atenção, me
afastando do lugar que eu acabei de deixar
Três passos e os gestos retornando triviais.
e me empurrando para o lugar para onde eu
- Vou pagar por ambos- eu disse, mexendo
estava voltando.
a cabeça apenas para que o seu "obrigado"
Que eu não quisesse voltar, o que importava?
roçasse no meu rosto.
Contei três filas e escolhi os nossos assentos.
O ônibus estava quase vazio.
90
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARIA
MARIA STRUDUTH
Bahia
Ilustradora, artesã, compositora,
dentre outras
coisas que a arte lhe
possibilita transmitir.
Aborda em seu trabalho a
importância do amor próprio,
representatividade, capoeira
e espiritualidade.
91
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
Mariana Brecht
São Roque - SP
UM PEDAÇO DE MIM
Prometeu trabalhador
deixa o fígado ser comido
mas faz tudo para
proteger o coração
Amarrado ao prédio da Faria Lima
ao trem da CPTM
ao quartinho de empregada
ao escritório improvisado na cozinha
já não sente mais suas
nem o tempo nem as ideias
nem as partes que se vão.
Prometeu trabalhador
não sabe que deus traiu
nem pra que deus rezar
pra fechar o mês
Dá um salve pra Sísifo
mas diz hoje está sem tempo
que passe tomar algo
quando bater o cartão
ou o cartão virar
Já em casa
ao zapear o celular
e tomar um gole do chá ou
da cachaça
cai no sono
e reconstitui-se
apenas o suficiente para ser comido amanhã.
92
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARIANA SPERANDIO
Santo André - SP
PROCESSOS
Fotógrafa brasileira
que atualmente
mora em Santo André.
Depois de se
formar em Engenharia em
São Paulo, deixou o país
para viajar pelo mundo,
quando iniciou seus estudos
de fotografia no Equador.
93
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARIH DÜTRIEN
Curitiba-PR
Estudante, apaixonada
por escrever,
sendo a escrita o
motivo de sua sanidade
mental. Aspirante a
escritora desde os 12 anos
de idade, tem 17 anos. Sonha
em fazer da escrita sua
razão de viver.
DIÁLOGO
Apesar de termos feito tudo que fizemos,
ainda somos os mesmos?
Estou sozinha nessa. Você se foi,
contrariando as promessas veladas
que um dia me fizera. Talvez você também
esteja sozinho agora, e talvez, sozinhos,
nós dois ainda estejamos juntos. Talvez você
não se reconheça mais, assim como eu. Talvez
você ainda olhe para as memórias em um pêsame
saudoso. Não em uma esperança, claro,
essa ficou para trás no momento em que descobrimos,
sem querer, que fora tudo um acordo
unilateral. Sim, eu sabia que pontos de
vista são diferentes por natureza e conceito,
mas não sabia que olharia para o que já não
é mais com tanta distância e desestima. Eu,
perdida em devaneios como sempre sou, me
encontro em minha clausura, sufocada entre
o que passou e está por vir, interpelando-me
se foi tudo um delírio romantizado de minha
mente, se ela continua a romancear, se algum
dia irá parar, e assim faço-me vítima e autora
própria de meu sequestro.
E por onde começar a partir? Não diria luto,
pois há mais gratidão que arrependimento,
e menos saudade que um trêmulo desejo de
volta, ilegítimo nos momentos de sanidade.
Tem razão, sanidade nunca foi uma palavra
em nosso vocabulário, menos ainda agora em
desterro. Sei que tenho que escapar, de alguma
maneira, mas pelas razões certas, não por
desejo de distinções alheias. Não por vencimento,
ou validação, mesmo que esses infortúnios
desvirtuosos pertençam a mim, pois
duvido da veracidade que seguro há algum
tempo. Desde quando? Poderia dizer-te datas
exatas, com todos os segundos; porém, creio
que uma frase seria a mais exata maneira de
especificar o momento: quando minha orientação
se tornou meu destino.
Como você fazia para me segurar? Não se
preocupe, prometo que não te copiarei: não
pretendo desertar. Empurro-me, é verdade.
Mas não correrei. É a única certeza que tenho:
não pela impossibilidade, mas por uma
escolha forçada pelo resto de razão que me
resta. Aspiro conseguir ser minha própria fortaleza,
sem deixar que meus sentimentos me
afoguem ou que me falte água.
Só quero respirar novamente. Sentir-me em
casa, da mesma maneira que me enganava e
atribuía a sensação a você, não ao retrato que
externalizava constante e fluidamente quando
estava com você. Desta vez não irei me trapacear,
e escolherei não fazer de braços ou ouvidos
- muito bem seletores, por sinal - meu lar.
Agora, meu único objetivo é a subversão. Revolucionar-me.
Negar-me a tudo que não me
faça sentir intrínseca a minha essência. Qual
é ela? Respondo à sua pergunta com o questionamento
que me fez redigir e dirigir-me a
você: (Apesar de termos feito tudo o que fizemos)
ainda somos os mesmos?
94
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARINA P. P. OLIVEIRA
Brasília - DF
Nascida em
terras geladas
e
distantes,
encontrou
seu lugar quando deitou raízes
no Cerrado de Brasília,
onde seus avós plantaram os
sonhos de uma vida melhor
para todos os seus descendentes.
A ESTRELA E O ELEFANTE
Parada no meio do terreiro de festa,
Lilica ouvia, de um lado, o som da
zabumba e da sanfona ensaiando e,
do outro, um vento forte de manhã
de inverno no sertão, tocando poeira fina em
todas as direções. De repente, sente alguma
coisa pregada na testa. Passa o dedo e vem
junto uma estrelinha azul de papel brilhoso
que nem sol de meio-dia.
Imediatamente, passa tudo de novo. Noite da
lua cheia mais enxerida da sua vida. Daquelas
que chegam tão perto da gente para espiar
que dá vontade de pedir licença. Lilica até falou
com ela, mas não adiantou, a danada continuou
seguindo a menina. Esperou as seis irmãs,
mais pai e mãe dormirem, e desceu pela
árvore, que cresce junto à janela do quarto.
Tudo com a lua espiando, interessadíssima!
Chegou pisando macio, igual ladrão profissional
de galinha, que passa a mão e leva
embora sem arrancar um pio das bichinhas.
Procurou no pé da lona um buraco grande o
suficiente para passar o corpo e entrou. Não
calculou que ia adentrar justo atrás do picadeiro.
Pior. O moço, motivo da aventura, estava
justamente ali treinando. Pode?
“Pelo menos aqui dentro a lua não pode espiar”,
pensou, tentando se acalmar e se vingando
da enxerida.
Há uma semana não se falava em outra coisa
na cidade. Em todas as bocas só tinha um
nome: Vikruuuum, ou Víííkrum, dependendo.
Mas era ele! O indiano que tinha vindo
do outro lado do mundo montado num elefante,
atravessado o sertão todinho atrás do
pife perfeito para fazer parelha com sua cítara.
Ou será citáara?! Lilica não estava bem
certa. Aliás, tinha certeza de estar era muito
errada, sem juízo, sem noção.
E antes que pudesse dar meia volta e sair por
onde entrou, deu de cara com ele.
“Vixe, Maria! Só pode ser assombração!
Bonito desse jeito!”, pensou Lilica, fazendo
o sinal da cruz. E ele riu ao ver a menina se
benzendo. E o
som que
saiu
daquela
boca desenhada
e cheia
de carne, fez cócegas
dentro da
orelha de Lilica e
aumentou a confusão.
Quando deu por si,
Lilica estava lá em
cima, perto do céu
de estrelas coloridas
da lona do circo. O
indiano era trapezista.
O ombro forte e
as faixas amarradas
no punho não enganavam.
Parecia
saído de livro.
95
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARINA P. P. OLIVEIRA
Brasília - DF
A ESTRELA E O ELEFANTE
Pulou no trapézio e começou a voar para cá e
para lá, hipnotizando a menina. Aí, do nada,
voltou para onde Lilica estava, mostrou o trapézio
e ofereceu uma carona, apontando com
o queixo para aquele graveto voador, no qual
se agarrou e foi voar.
V-E-R-T-I-G-E-M.
“Só pode ser ela”, pensou Lilica. “Ou será
o P-R-E-C-I-P-Í-C-I-O da vovó, toda vez que
passa numa ribanceira?” O indiano não é
Vikruuum, nem Víííkrum, é Vertíiigeeem ou
Precipíciiiiiioooooooooo. Não deu tempo
de saber. O moço da pele maravilhosamente
encardida, não dava tempo de pensar. Pegou
firme na cintura de Lilica e a levantou até o
trapézio. O calor das mãos coladas no vestido
fazia mais cócegas que o macio da voz. Mas
não deu para se benzer e o jeito foi agarrar
firme no trapézio e, assim, voou com ele, no
meio das estrelas.
“Agora queria ver a lua enxerida espiando!
Até que ia compor bem o cenário”, diverte-se
Lilica, entregando-se completamente à sensação
de vertigem, cada vez mais gostosa.
“Ô menina! Tá fazendo o quê com essa cara
de abestada no meio do terreiro?!”, grita a
mãe. “Tá na hora de se arrumar!”
Lilica guarda depressa a estrelinha e se recompõe.
Os convidados estão chegando, o som da
zabumba e da sanfona se aproximando junto
com um triângulo rápido que só. Ou será a
batida do seu coração?!
Chegou a sua vez! Depois de esperar as seis
irmãs mais velhas serem o centro da festa,
finalmente seria ela a estrela, sim, a caçula,
a cabeça-de-vento, mas ainda assim E-S-T-R-
-E-L-A. Corre para dentro e entra no vestido
branco rendado por toda parte, a coisa mais
linda do mundo. Põe o véu e pega o buquê.
Vai começar o casamento na roça! Olha o
noivo. Zizinho bem podia ser um indiano
montado no elefante, trapezista, tocador de
cítara. Pensando bem, podia ser muito mais,
ensaia, rindo, depois de notar uma estrelinha
azul se divertindo pregada no meio da testa
dele.
96
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MAURÍCIO SIMIONATO
Campinas - SP
Poeta e jornalista.
Lançou os livros
de poesias Impermanência
(2012,
selecionado pela Secretaria
de Cult. de Campinas), Sobre
Auroras e Crepúsculos
(2017, Multifoco) e O AradO
de OdarA (2021, Patuá).
CAVALO SELVAGEM NA NOITE
A primeira estrela da noite
chega entre nuvens
que já se foram.
O primeiro pássaro da noite
revoa do Leste imaginário
rumo ao Oeste solitário.
O primeiro cavalo selvagem
da noite sequer existiu.
Mesmo assim
partiu agalopado.
As primeiras pedras da noite,
daqui a pouco, se tornam frias.
E tornam-se uma ameaça
aos primeiros passos
da noite, com seus subângulos salientes
feito os primeiros dentes
da noite, que remoem a lâmina cega da imensidão.
A noite, em seu desjejum, nos engole.
E o faz apenas para poder raiar
no primeiro amor do dia.
97
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MILLA TRIGO
Curitiba-PR
FUMAÇAS DE REBOUÇAS
Trago no peito contestáveis diálogos entre sístole e diástole.
Trago de forma emancipatória, em cordilheiras ao norte
[e oceanos ao sul.
Trago no peito essa dor amarga, compartilhada por onde passei.
Na janela, a neblina ofusca o tempo aberto.
Abro o peito para o mundo, talhando novamente feridas em avesso.
Trago a fumaça apartada de um só, em samba melancólico
[engatilhado na ponta dos dedos — souvenir de outros instantes.
Trago a fumaça empilhada no olhar,codificada em poesias
[existenciais.
Trago novamente a lembrança, distante e vivaz.
Trago rotineiramente o vão, o escape, o chão.
Dialogo em silêncio as pulsações, dissolvo o momento,
[acalmo a pressão.
Trago comigo tudo aquilo que não entendi e talvez,
[incontestavelmente, nunca entenda.
Curitibana com coração
baiano, é
redatora, escritora
e roteirista. Processo
é a palavra de (des)ordem.
Permeia entre a escrita
e a imagem desde sempre, ou
quase isso.
98
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MOZÃO MUNIZ
CASUALIDADE
“Estamos precisando de palavras amigas,
que proporcionem um melhor caminho
para nossa evolução!” (Mozão Muniz)
Artista mineiro, graduado em Música, cantor, compositor e intérprete - Mozão Muniz
possui uma bagagem profissional bem diversificada interpretando sucessos nacionais e
internacionais da música pop, rock, MPB, samba e forró há mais de 15 anos. Participou
de bandas com reconhecimento nacional (“Suor e Ritmo” e o grupo de forró, pé de serra,
“Chama Chuva”) realizando shows em todo o Brasil e gravou quatro discos e um DVD.
Mas em 2019, o artista começou sua carreira solo, com apresentações mais intimistas (SHOW
MOTIVOS). Sentindo um despertar e um chamado para colocar a sua arte mais conectada com
seu lado poético e espiritual.
Suas inspirações ganham vida através de suas canções. As letras falam de otimismo, esperança,
boa conduta, alegria, amor, respeito e, em geral, o artista preza pela reflexão, pela ativação da
Consciência.
Mozão Muniz é com certeza um grande artista, que, no momento, busca se alinhar com lugares
e pessoas afins, que proporcione um canal para que a música seja um instrumento de alegria e
despertar.
Casualidade
É essa luz,
Por causa dessa brilhante luz azul,
que me enche de vontade em desvendar,
o que nem sei o quê.
Que me mantém acordado imaginando,
[imaginando ...
Por trás dos teus cabelos há um mundo
[que eu quero descobrir.
Por trás do teu sorriso um beijo intenso
[que me faz viajar!
Ao longo dessa estrada um conto mágico,
[pra gente ir.
Nas entrelinhas desse texto o meu pretexto
[é para te amar.
Há uma luz em teu semblante, que brilha
[feito pedra rara.
Eu acho boa essa ideia de você me iluminar.
Por trás dos teus cabelos há um mundo que eu
quero descobrir.
Por trás do teu sorriso um beijo intenso que
[me faz viajar!
Casualidade pode ser, tudo bem, mas não
[acredito.
No meu coração bate a certeza que tudo
[estava escrito.
A gente casa muito bem um com o outro
[não podemos negar!
Onde você esteve o tempo todo?
Onde você esteve esse tempo todo?
Graças a Deus, pude te encontrar.
Emergido do lago azul dos teus olhos, é que irei
[repousar para um novo amanhecer.
Onde você esteve o tempo todo?
Onde você esteve esse tempo todo?
Onde você esteve o tempo todo?
Graças a Deus, pude te encontrar!
99
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
NILZA VERÔNICA AMARAL
Palmas - TO
Nilza Verônica
Amaral é Arquiteta
e Urbanista,
Mestre
em Ciências do Ambiente e
Sustentabilidade na Amazônia,
pela UFAM. Seu hobby
é escrever crônicas e poesias,
além de fotografar.
O CAFÉ QUE NOS UNIU
— Eu só tive um namorado...
Virei-me e fitei aquela mulher marcada
pelas rugas do tempo. Falara muito baixo,
quase ensimesmada. Achei que falara
com suas lembranças. Mas mesmo que
não tivéssemos intimidade, baixei minha
prancheta de campo e dei-lhe minha atenção.
Convidou-me para tomar um café e voltamos
do roçado caminhando em silêncio
até sua casa, moradia simples de assentamento
rural
na Amazônia,
onde eu levantava
dados de
campo para
meu mestrado.
Chegamos
e, enquanto
aguardava o
café, observei
os pertences
daquele cômodo:
uma mesa com meia dúzia de banquinhos
gastos pelo tempo e enegrecidos pela
fuligem expelida pelo fogão à lenha; num
canto, sobre uma mesinha, um filtro de
barro, umas poucas vasilhas e uns copos
de alumínio caprichosamente areados.
Mexia-se devagarzinho talvez para escolher
as palavras certas que reiniciariam a
conversa. Coou o café e me serviu, junto
com um pedaço de macaxeira recém-cozida.
- Você disse que só teve um namorado na
vida?
Olhou pra fora de casa com o olhar perdido,
decerto buscando esclarecer.
- Quis dizer que só tive um amor de verdade,
aquele que dói no peito. Mas tive
que casar com outro.
Supondo que seria uma história de amor,
redobrei minha atenção porque histórias
de amor precisam
ser ouvidas
com o
coração.
- Estudei pra
ser professora
e ele, pra
ser agricultor;
mas não era
dotô, não. Conheci
ele quando
fui ajudar
meus irmãos na limpeza da roça. Ele trabalhava
lá, suado, bonito, cabelo preso
debaixo do chapéu; me olhava de longe.
Era homem da cidade e eu não olhava,
não. Dias depois, quando acabou o trabalho,
nós já tava namorando. A gente se
via escondido, sempre espreitava um local
diferente. Interior sabe como é... não tem
nada pra gente fazer. Ele me queria e eu
100
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
NILZA VERÔNICA AMARAL
Palmas - TO
O CAFÉ QUE NOS UNIU
também queria ele. Então deitamos umas
vezes e eu emprenhei; meus irmãos descobriram,
me bateram disseram eu era uma
desavergonhada e me expulsaram de casa.
Uma senhora que me conhecia me levou
pra casa dela, na cidade, e cuidou de mim.
Meus irmãos queriam matar ele, mas ele
fugiu. Nunca mais nos vimos.
Seguiu com a voz embargada.
- O filho dela morava neste assentamento
e queria que eu viesse pra cá, com ele.
Meus irmãos me obrigaram a casar e então
aceitei. Se não fosse assim acho que
morreria de fome; emprenhei mais umas
cinco vezes. Meus filhos cresceram, foram
estudar na cidade e eu fiquei aqui,
com meu marido. Trabalhamos a semana
toda, na roça, numa lida muito dura; no
domingo vamos à missa, na cidade. Num
domingo, vi ele de longe; ainda usava o
cabelo preso debaixo do chapéu e continuava
bonito. Senti uma dor no peito,
quase morri. Voltei pra casa e chorei, mas
a dor nunca passou.
Com uma voz bem baixinha, continuou.
- Sabe, não casei por amor, casei por precisão;
não reclamo da vida, mas queria ter
casado com ele, ser professora, ensinar
meus alunos a ler e escrever. Não pude escolher.
Ler é a única coisa que faço à noite,
depois que faço a janta e limpo tudo.
Minha filha compra pra mim, na cidade,
livros usados e divido eles com a comadre,
que também gosta de ler. Meu marido não
gosta que eu leia, diz que livro só ensina
o que não presta. Mas leio mesmo assim e
ele finge que não sabe!
Nosso café esfriara; dei um último gole,
ela colocou a louça suja no jirau e saímos.
Retornamos em silêncio. No fim da tarde,
enquanto voltava pra casa dirigindo pelos
ramais esburacados, matutava no que
ouvira... Nos meses seguintes continuei
entrevistando outras famílias, mas procurava
encontrá-la sempre que possível,
porque seu café quentinho juntava muitas
histórias. Entretanto nunca mais, a partir
daquele dia, ouvi histórias de amor. Presumo
que, além de mim, somente a comadre
ouviu aquele relato; porque naquela
lonjura toda, ter uma amiga confidente e
fiel é igual a ter um paneiro cheio da melhor
farinha.
Aquela mulher me ensinou que o amor
é universal e cabe em qualquer coração,
em qualquer lugar e em qualquer tempo.
Lembro-me sempre dela, do café que nos
uniu e do amor que guarda consigo todos
esses anos.
101
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PAULA SCOFANO
Rio de Janeiro - RJ
Graduanda em
História no Instituto
de História
da UFRJ, cursando
bacharelado e licenciatura,
Paula Scofano de Almeida
atualmente é Educadora
do Setor Educativo do Theatro
Municipal do Rio de
Janeiro.
O CALOR DO MOMENTO
Sempre gostei de comida em temperatura
ambiente, tinha pavor de
comida quente. Quando preparava
um pão na chapa com manteiga,
deixava-o descansando por uns vinte
minutos para comê-lo. Pão de queijo era
sempre mais gostoso no dia seguinte,
quando borrachudo. O sabor fica mais
intenso, afirmava.
Todo o ritual do preparo da refeição era
muito bem pensado: enquanto o ovo mexido
esfriava, comia a maçã -alimento que
abre o dejejum; o café perdia um pouco de
seu calor a cada movimento da colher que
inicialmente colocou o açúcar na xícara;
para finalizar, uma banana em temperatura
ambiente. Assim seguia meu método
planejado com toda cautela. Muitos me
criticavam, pois era a última a terminar a
refeição e sempre me atrasava.
Nunca tinha parado
para pensar nisso
tudo até um médico
me recomendar incluir
o chá mate em
minha rotina, alegando
que faz muito
bem para o colesterol,
além de aumentar a
energia e o foco mental.
Retruquei dizendo
que é dose bebê-lo
sem açúcar; ele, com
sua autoridade de doutor, propõe que eu
tente tomá-lo quente, visto que, quando
se consome algo em alta temperatura, o
gosto amargo é menos sentido. Chego em
casa e, ao invés de consumir o chá gelado,
o bebo quente sem adoçante. Tudo
fez sentido. O morno disfarçou o gosto
desagradável de antes, fazendo o líquido
bebível e, com o tempo, o negócio virou
um hábito indispensável; afinal, um exame
de sangue de acordo com os padrões
me agrada.
Minha teoria culinária defensora da comida
em temperatura ambiente pouco resistiu.
Ao longo do tempo, comecei a tolerar
a mistura das condições térmicas. O
que antes era uma situação fixa da minha
rotina, tornou a conversar com outros
tipos de costumes anteriormente inad-
102
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PAULA SCOFANO
Rio de Janeiro - RJ
O CALOR DO MOMENTO
missíveis. Desde então, bebo o café não
adoçado, fazendo questão que tenha que
estar quente; alguns me julgam, mas alego
que desce melhor, tenho a ciência ao meu
lado. Beber um cafezinho pelando com
um bolo morno tomou parte dos meus
lanches, os quais se tornaram muito mais
rápidos; não perdia mais tempo esperando
as coisas esfriarem um pouco.
Acontece que, com o tempo, os benefícios
rápidos da coisa quente tomaram
conta de mim. O mundo apressado entrou
na minha vida, fazendo com que eu
comesse as coisas assim que saíssem do
forno, bebendo o chá mate a todo vapor!
A facilidade me acalentou assim como
uma lareira ligada em uma noite fria: o
clima que me cercava começou a ser ignorado
por meio da chama tão logo aderida.
Esse caminho é extremamente seduzente;
ser rigorosa com os métodos era coisa do
passado!
Um dia, atrasada para um compromisso,
fiz tudo correndo, sabendo que daria tudo
certo: eu como comida quente agora! Nessa
rapidez dos movimentos, tomei uma
chuveirada, comi minha fruta, coloquei o
café num copo e saí de casa. Finalmente
entrei para esse mundo moderno. Piso
na rua, tropeço, e o líquido escaldante cai
todo em mim: o café -sem açúcar- ultrapassa
a camada grossa da roupa, me queimando
levemente. Tudo aconteceu muito
rápido, no calor do momento. A rotina
da rapidez me causou isso; a facilidade
de não aguardar me traiu; o golpe quente
veio com tudo. A desilusão da minha
breve jornada não será vista futuramente
com teor revolucionário, mas sim como
uma fase oportunista.
Mesmo com a dor sentida, tenho que
aparecer no compromisso. Ando pela rua
com a mancha marrom em minha camisa,
denunciando o acontecimento anterior.
Agilizo então meu passo, misturando
a vergonha do descuido com a pressa de
cumprir horário. Apareço no local marcado;
apresento meus documentos; aguardo
ser chamada. Chega a minha vez e, apesar
do médico me parabenizar pelos exames,
exijo: quero que o senhor me recomende
outro alimento para melhorar o colesterol!
103
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ESPINHOS DA CAATINGA
PAULO ESDRAS
Brumado - BA
Professor, escritor e
poeta. Membro da
Academia de Letras
de Brumado, foi
contemplado em prêmios
estaduais e nacionais. Publicou
em 2020 seu primeiro
romance "Sadres: o Sábio, o
Louco, o Poeta".
104
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PEDRO ANTÔNIO
LIMA PEREIRA
Guarulhos – SP
Paulista de 19 anos,
graduando em design
de interiores e
design de produtos,
na Belas Artes, com grande
amor na ilustração e pintura.
@adeia.lima
PLEXO PERPLEXO
Caminharíamos por dias, vejo outros fazendo o que fazíamos; forças
ela não teve, abraçou o nada e mentiu; acreditada em que eu desenhasse
problemas em seus traços. Foca agora no que vaza e me deixe
para mim; não fui eu quem desperdiçou tempo pensando noutro,
se iludiu e, preocupou o mundo, mas, sem ou com você, já bastava, da mesma
forma que, comigo ou sem, daria falta ao seu abraço.
Tempo de sentimentos,
por conta de movimentos
cansativos, ações e
reações, opacidades e
reflexões, tudo numa
textura que se cobria
como pele, e só a tirou
para mim quando não
via mais motivo para
casar-te.
Me capacito de mil entendimentos
e com isso, me disponho a calá-la estando quieto; mesmo que um
dia eu pare, espero que tenha entendido o que eu quis dizer, mesmo que nem
sempre desse para escutar.
105
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
RESPIRA
PEDRO GONÇALVES
Tauá - CE
Quando explodimos
Os primeiros
A serem atingidos
Por estilhaços
São as pessoas que amamos.
Respira!
Um acanhado entre
discos e livros
que durante o
dia entrega cartas
para sobreviver e a noite
cursa Licenciatura em Letras
com dupla habilitação
(POR/ING) no Instituto Federal
do Ceará (IFCE).
106
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PEDRO GUERRA
DEMINGOS
Porto Alegre - RS
INSÔNIA
O
sono purga um som para fora dos meus olhos.
Meus tímpanos só fazem concordar.
Meus olhos escoam, minha testa
se abre para aplaudir.
Os acordes são a madrugada, a madrugada
é hipertensão. Não sei se é ansiedade ou arritmia
a matar-me esta noite, no silêncio dos
acordes, os acordes, os acordes.
Miopia, astigmatismo, estrabismo me explodem.
À otite sobrou uma mosca.
Tudo se move, o mundo
faz negar a si próprio.
O tambor, ao longe,
longe ecoa. Nada é suficiente
para libertar-me e, enfim,
acabar – começar – acabar.
Pedro Guerra Demingos
é colaborador
oficial do blog Escrita
Cafeína. Ele
dedica uma fração insalubre
da sua energia à escrita
criativa, pois acredita que a
ficção ergue pontes entre as
pessoas.
@pgdemingos
107
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PRICILA MARCHESE
São Paulo - SP
Os cinquenta anos
trouxeram coragem
para eu
publicar meus
textos. Escrever é magico,
transformador, empolgante,
terapêutico…
Fiz cursos de escrita criativa
na Metamorfose e com Renato
Modesto.
“TODO DIA ELA FAZ TUDO SEMPRE IGUAL”
Salta da cama muito cedo para ir ao trabalho.
Toma banho e encharca-se de
colônia, come pão francês com manteiga
e café forte.
Espera o ônibus perto da sua casa. Pontualmente
às 7:30h, o transporte passa, ela entra
na lotação ainda vazia. Senta-se sempre no
mesmo lugar ao lado da janela. Pega o celular
e tira uma dezena de selfies. Faz caras e
bocas. Usa a tela como espelho. Desembarca
às 8:10h.
É a primeira a chegar ao escritório. Pega um
grande e pesado molho de chaves e escolhe
a que está envolta num elástico amarelo e
grudento, marcando aquela que abrirá a porta.
Ao entrar, coloca a bolsa debaixo da sua
mesa. Vai ao banheiro, retoca o lápis de olho,
a sombra e o batom vermelho cintilante.
Senta-se em sua cadeira.
Sobre a mesa, um monitor com teclado encardido.
Do lado direito, uma rosa de plástico
fincada num vasinho empoeirado. Do lado
esquerdo, um porta-lápis com canetas hidrográficas
coloridas.
Cabelo repartido ao meio, preto e muito liso.
Desliza os dedos a todo momento, impedindo
que eles caiam sobre seus olhos, deixando-os
com aspecto ensebado.
Liga o obsoleto computador, dando início ao
seu dia de trabalho numa repartição pública
no centro da capital paulista.
A mesmice de sua função ganha emoção
quando Paulo aparece. Ele passa todos os
dias no mesmo horário para entregar as correspondências
do enorme prédio comercial.
Ao vê-lo entrar, ela sorri, deixando à mostra
seus dentes tortos. O brilho nos olhos é
tamanho que sua arcada dentária passa despercebida.
Corada, agradece no momento em
que enrola entre os dedos uma mecha do seu
cabelo. Vez ou outra ela morde a ponta da
caneta e pisca o olho direito, exibindo seus
cílios postiços.
Cartas entregues. Ele finge não perceber a sedução
da colega.
Ela fixa o olhar em Paulo enquanto ele desaparece
descendo a escada.
Hora do almoço. Vai ao refeitório, esquenta
a marmita em banho-maria. Posta sua rotina
entediante no Instagram em fotos coloridas.
Volta. Digita centenas de palavras até que a
tendinite a pega de jeito.
Hora do encerramento.
Vai ao banheiro e retoca a maquiagem. Capricha
na colônia barata. Passa pela recepção.
- Até amanhã, Paulo. - diz ela com fala atraente.
Ele sorri desconcertado.
Vai à lanchonete em frente ao ponto de ônibus.
Entra. Pede café forte e pão francês. Às
19:30h, pega a condução lotada. Chega em
casa às 20:30h. Toma banho. Faz uma hora
em frente à TV ao mesmo tempo em que segue
os passos de Paulo numa rede social. Ela
sabe tudo sobre ele. Paulo é a obsessão de Joana.
Desliga tudo às 22h. Tem sonhos eróticos
com o rapaz. Ao acordar, sua cama está
encharcada de suor. Ela vai direto pro chuveiro
livrar-se dos sonhos perturbadores.
Não tem coragem de se declarar. Teme dar
fim à fantasia idealizada por ela. Prefere ficar
nas conjecturas do cotidiano sonso.
Salta da cama muito cedo para ir ao trabalho.
Toma banho e encharca-se de colônia, come
pão francês com manteiga e café forte.
Espera o ônibus perto da sua casa…
108
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PRISCILA DE BOM
Poços de Caldas - MG
Mineira amante
das palavras.
Graduada
em
Direito, pós-graduada em
Língua Portuguesa e Direito
Público. Servidora do
TJMG. Escrevendo palavras
e vivendo histórias. De lutas
e de glórias.
MANDINGA
Eis que a cidadã queria receber por
seu trabalho, posto que, segundo ela,
muito bem realizado.
O que o cliente almejava? O amor!
Sim. O amor, acredite. Nutria por aquela jovem
da qual falara um amor imenso. Tudo o
que precisava era que ela o enxergasse, que
ela o amasse, desejava ser correspondido, esperava
que se olhassem, se entrelaçassem, namorassem,
que fossem felizes para sempre, ou
...até que a vida os separe!
Mas o amor se compra ou só se encontra?
Bem... não vem ao caso. O caso era que a cidadã
era profissional no assunto. Intitulava-se
vidente e capacitada pra trazer ao ser humano
seu projeto de felicidade. Era o amor que ele
queria? Pois era o amor que ela venderia.
E como tudo na vida tem um preço, esse
“trabalho” além do preço, tinha um contrato.
Devidamente assinado, mas, é claro, sem
testemunhas. O amor da jovem a florescer,
retribuído a seu cliente em apenas algumas
semanas. Primeira parcela na assinatura do
contrato, restante quando do início do namoro.
Fico pensando o que passa na cabeça
de uma pessoa para assinar tal coisa.
Ou o desespero é imenso ou a falta de
discernimento, muito grande. Enfim...
o amor.
Eis que do serviço prestado: meia suja,
fio de cabelo, muitas velas acesas e outros
tantos ‘trabalhos’ na encruzilhada
(ela não disse que tinha um caldeirão,
embora eu esperasse ansiosa por essa
notícia!) o amor nasceu. Pareceu realmente
um bom ‘serviço’ prestado pela
cidadã. Não foi realmente fácil, tarefa
árdua, dias e noites de trabalho intenso. Mas,
enfim a garota amada o olhou, um belo dia se
encantou, semanas depois o namoro começou
e pasmem: estavam noivos!
Mas o restante do pagamento para a cidadã?
Nada.
Ainda pasma com o caso recebido, subi as escadas
até a sala do juiz:
— Dr.! Eis que alguém vende o amor. E nada
verbal, pois que há até contrato assinado.
Atônito, me olhou. Gargalhadas e mais gargalhadas.
Objeto ilícito ou impossível?
A cidadã nunca recebeu, ainda que a contragosto
desta que vos conta, a ação tenha sido
proposta com riqueza de detalhes que lhe
coube nos fatos, mesmo que falhos os fundamentos
jurídicos. E, é claro, extinta por quem
de direito, MM. Sr. Dr. Juiz. do Juizado Especial
da Comarca.
Pois foi que mais uma vez o amor venceu. E
apenas com o pagamento da entrada, diga-se
de passagem.
109
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PRISCILA LIMA
Onde é que vai dar
Quero correr rever a lua
Sem tempo nublado
Nem carro parado
Ninguém disfarçado
Olhando pros lados
Estou bem certo dessa curva
Eu vi você naquela rua
Aquele abraço envolvente
Então está tudo bem com a gente
Onde é que vai dar 2x
Eu pago pra ver
Onde é que vai dar 2x
Eu pago pra ver
ONDE É QUE VAI DAR
Priscila Lima é cantora, compositora, arranjadora
vocal, professora de canto, terapeuta
vocal e produtora cultural. Atuando
desde 1998 no cenário artístico do DF,
pôde vivenciar ambientes do reggae, soul, funk e
jazz, que se somaram à sua formação desde criança
na Igreja Batista, onde conheceu o gospel Rhythm
and blues e iniciou seus estudos de canto e
piano. Com mais de 20 anos de carreira, Priscila
já formou diversos alunos, sendo grande representante
da arte e cultura de Sobradinho, já tendo
sido Conselheira de Cultura, além de grande
militante e ativista, integrando coletivos diversos.
Mais tarde já participante ativa do movimento
cultural de Brasília, atuou por 8 anos como uma
das vocalistas da banda Fora de Si, onde aperfeiçoou
seus conhecimentos vocais, estudando arranjos
de voz e harmonia. Participou como backing
vocal de vários grupos da cidade de Brasília. Em
2011 passou a desenvolver seu trabalho solo autoral
e apresenta hoje um repertório sofisticado e de
muita qualidade sonora, com influências do Funk
(gênero musical derivado do Jazz, RAP, Soul Music
e gospel Rhythm and blues) somadas a nossa
Música Popular Brasileira de cada dia”. Esta mistura
de ritmos apresentada pela cantora Priscila
Lima, desperta de forma singular a percepção da
identidade étnica negra, que fortalece o princípio
da diversidade cultural. O universo musical, no
que concerne à produção, tem sido, uma prerrogativa
predominantemente masculina, o que traz a
questão de gênero à tona, pois a cantora delineia
esses traços em sua concepção musical valorizando,
desta forma a força da mulher na produção
cultural brasileira. Moradora da periferia, Priscila
encontra na Arte uma vasta possibilidade de
inserção social, tomando a arte e cultura como
instrumentos de transformação pessoal e coletiva;
uma juventude que se reconhece enquanto
agente cultural é consciente de suas raízes e busca
novos horizontes. Priscila Lançou seu primeiro
álbum em todas as plataformas digitais em abril
de 2019, com a participação de várias vozes da
periferia, e com participação de grandes nomes do
cenário musical, como o baixista renomado Marcelo
Mariano, Felipe Viegas e Wilson Bebel. Hoje
Priscila Lima, acompanhada por Diogo Nicoloff,
produtor e guitarrista Pernambucano do épico
disco “Imorrivel” de Di melo que chega somando
com muito groove e suingue, no novo trabalho da
cantora que vem sendo desenvolvido nesse ano de
2021, com lançamento previsto para o fim do ano.
Priscila Lima, traz ao público o resultado desses
20 anos de estrada, com um som dançante, grooves
e poesias, atingindo a várias faixas etárias e
socioeconômicas.
Para ouvir a música, clique no link:
encurtador.com.br/rxALV
Se você se sente cheio
Mesmo que haja um bloqueio
Não, não perca esse passeio
Se você estiver aberto
Vou estar sempre por perto
Ser feliz é papo reto
O trem sai às onze horas
Eu te espero, não demora
Vem viver a nossa história
110
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PROJETO
VERMELHO CANDIRU
Rio de Janeiro - RJ
VERMELHO CANDIRU
Autoras
Bárbara Amádio
Diana Magalhães
Camilla Rodrigues
Jéssica Paola
Liana Monteiro
Lorena Lima
Stephanie Oliveira
Stephanny Menezes
@vermelhocandiru
111
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
REGILENE MARTINS
Fortaleza - CE
Professora da Rede
Municipal de Fortaleza.
Aprecia a
cultura oriental. É
apaixonada por livros e nas
horas livres escreve cartas.
Gosta de trabalhos manuais
e de fazer coleções peculiares.
AMIGO DE MEU PAI
Um dos grandes amigos de meu
pai, conhecido como Mola, começou
a praticar atos imprudentes
nesses últimos meses.
Papai não sabia da mudança de comportamento
dele, o considerava um verdadeiro
companheiro por sempre ajudá-lo,
principalmente em momentos de sufoco
no trabalho.
Como de costume, Mola marcou na última
sexta-feira daquele mês ajudar o papai
no trabalho. Naquele dia, meu pai não
esperava que ele fosse furtá-lo, pois tirou
uma ferramenta e foi embora. Passou dias
sem dar notícias e ir à oficina.
Dentre todos os equipamentos de lá, ele
pegara logo a que meu pai mais usava
e estimava: uma chave-estrela especial.
Mas a ferramenta não era importante, necessária
era a amizade entre eles. Papai
sabia que tinha sido ele quem praticou o
ato. Não falava nada, no entanto, depois
de dois meses, meu pai se manifestou.
Dizia coisas como: “-Mola,
você me paga”.
Tempo foi passando e o papai
continuava murmurando.
Também ficava se perguntando
por que o amigo
não pediu emprestada a ferramenta.
Precisava mesmo
pegar sem permissão?Talvez
nem fizesse diferença. Já que
fez o ato, duvidamos se ele
iria devolver.
112
No fim daqueles dois meses, meu pai foi
novamente enganado. Desta vez não foi
por um amigo próximo. Um cliente pegou
uma nova ferramenta da oficina, chave
de boca, que tinha um isolamento de
uma marca um tanto atrativa. Sabe quem
apareceu nesse momento para ajudar? O
Mola. Ele saiu correndo atrás do freguês
que havia pegado a ferramenta do papai.
Meu pai ficava só olhando a cena: o freguês
correndo na Avenida Principal com
medo do Mola, pois o amigo de meu pai
estava indo atrás dele para recuperar a
ferramenta roubada.
No final, papai agradeceu o amigo por
ajudar a recuperar o acessório precioso.
Também gostou de ter resgatado sua
amizade com o Mola. O amigo de meu
pai não disse nada e nem devolveu a ferramenta
que havia pegado nos últimos
meses. E ficamos nos perguntando o que
de fato foi primordial para eles nessa amizade.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
REGINA BORGES
Jatobá - PE
Sou Regina Borges,
graduada em Letras,
professora da rede
pública estadual de
Pernambuco, produtora
cultural e coordenadora do
Clube do Conto.
MEU CANINO TORTO
Meus caninos nasceram na mesma
época que a minha mãe já tinha
perdido os incisivos centrais e laterais
e praticamente todos os pré-
-molares e molares. Das gargalhadas e risos frouxos
havia poucos vestígios, agora a sua alegria se
apresentava com timidez, mão na boca, e eu que
adorava gargalhar com ela me sentia num ato solitário,
e por isso rezada para que Deus também lhe
fizesse nascer dentes novos.
Deus nunca atendeu. E com o tempo me acostumei
com o seu sorriso acanhado banguela.
No dia da vacina de pistola lá no postinho, aquele
alvoroço todo, criança chorando, gritando, desmaiando
e a mulher dizia: “num dói nada”, “é um
ato cívico”, não era o braço dela! E minha mãe
depois ganhou três escovas, foi o que realmente
consolou, porque eu já estava com muita raiva daquela
senhora gorda, sardenta e que sorria toda se
mostrando com os seus dentes brancos enquanto
eu chorava desesperadamente.
“A enfermeira mandou escovar três vez por dia!”,
repetia minha mãe na volta pra casa, “senão os
dente fica tudo pôde”. Ela parecia contente com
o nosso futuro com dentes. Já eu e meus irmãos,
ainda aos soluços pela dor da vacina, só balançávamos
a cabeça, confirmando as importantes
recomendações. Recomendações essas que foram
esquecidas depois de uma semana por eles, preferiam
mesmo era usar pela manhã as folhas de juá,
isso quando nossa mãe ficava brigando.
Eu me mantinha firme com a minha escovinha
branca de cerdas rosas e quando faltava pasta eu
passava sabonete mesmo, até sabão amarelo, era
horrível! Também gostava muito de mastigar as
folhinhas verdes, e tudo valia para não ficar com
dente podre, ou chorando com dor de dente por
dias como meu irmão João, que mal tinha começado
a nascer o bigodinho já estava praticamente
banguela como nossos pais.
Foi nessa ocasião que comecei a separar as pessoas:
A senhora que trabalhava na prefeitura era
uma mulher bonita e sempre quando ia lá com minha
mãe não sei pra quê, ela me recebia com todos
os dentes sorrindo. Dona Margarida que lavava
as roupas com a minha mãe também era uma mulher
bonita, mas não tinha dentes sorrindo. Nem
ela, nem dona Cícera, nem dona Betina, aliás nenhuma
das lavadeiras tinham dentes felizes. Assim
como seu Manoel, seu Joaquim, seu Damião,
que trabalhavam com meu pai também já estavam
acostumados com sorriso desdentado.
Na igreja, o padre tinha dentes, minha madrinha
tinha dentes, o Dr. do postinho que cumprimentava
sempre minha mãe tinha dentes e as senhoras
que cantavam todas tinham dentes.
Para conclusão de minha investigação, confesso
que comecei a chegar mais perto dos adultos lá
de minha escola: diretora, inspetora, professores,
e percebi que todos também tinham dentes. É verdade
que tinha uns professores com alguns dentes
meio tortos, mas eles estavam lá. Mas seu Marcolino
que cuidava dos jardins só tinha alguns lá no
fundo que só dava pra ver porque ele arreganhava
toda a boca quando gargalhava. E soube que dona
Irene, a faxineira, e dona Josefa, a merendeira,
usavam chapa. No início não entendi do que se
tratava, só depois que minha mãe explicou o que
era. E naquela conversa aproveitei para contar-lhe
sobre as minhas descobertas, então vi que ela se
entristeceu. Será por que eu também ficaria banguela
como ela? Será que eu também ficaria sem
sorrir? Eu não queria deixar de sorrir...
E mais do que de repente ela me puxou daquele
assombroso desespero. Acolheu-me entre os seus
braços e baixinho me segredou que se eu estudasse
muito, eu teria dentes sorrindo. E soltou uma
daquelas gargalhadas do passado, senti-me feliz
e respondi com todos os meus dentes em ordem,
exceto um canino que já nascia torto.
113
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
REGINA RUTH
RINCON CAIRES
DRIBLES DO PASSADO
A
igreja era modesta, miúda, suficiente
para abrigar os fiéis. Uma
capelinha. O restante da praça,
área imensa, servia a todos os
moradores. Ali se juntavam, aproveitando
o sol da manhã, colocavam a conversa em
dia, faziam pequenos negócios, e, na parte
da tarde, aquela terra batida, com pouca
areia solta, pertencia aos moleques. As peladas
aconteciam.
Todas as crianças da vila frequentavam a
escola de manhã. Depois da aula, bastava
o tempo de
tirar uniforme
e engolir
o almoço,
os pequenos
iam brotando
feito
pipoca nas
ruas, nas esquinas,
num
converseiro
danado.
O bando,
adensado,
discutia os times, reclamava da pegada do
dia anterior, traquinava novas jogadas. Levava
um bom tempo até tudo se ajeitar.
Todos descalços, as botinas só eram usadas
na escola. Os times dividiam-se: de camisa,
sem camisa. E eram camisas de botão. Não
existiam camisetas para crianças, apenas os
adultos as usavam sob as camisas. Cavadas.
O espaço da trave, que geralmente era medido
por cinco passos, motivo de muita briga,
ficava delimitado por botinas regaçadas
recolhidas do lixo. O gol já havia sido balizado
por tijolos, paus, pedras. Depois de
muitas cabeças de dedo esmigalhadas, optaram
pelas velhas botinas. As passadas eram
motivo de muita discórdia. O goleiro reclamava
que a perna do contador era grande
demais, o artilheiro queria que o mais alto
da turma fizesse a marcação. Era um tal de
puxar o sapatão para lá e para cá...
A bola era de
meia. Bola
de capotão
era artigo
de luxo que
só aparecia
quando chegava
algum
primo distante.
Assim
mesmo,
só podia ser
usada se o
primo escolhesse
o time, o que não agradava a molecada.
Os meninos da cidade grande eram sem
ginga, sem malemolência, sem contar que
as chuteiras espantavam os pés dribladores
dos moleques da vila.
A cada semana, a bola era revestida com velhas
meias, catadas nas casas. Material cada
vez mais escasso.
114
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
REGINA RUTH
RINCON CAIRES
DRIBLES DO PASSADO
E, sob o sol escaldante ou chuva mansa, as
peladas eram sem fim. Interrompidas apenas
quando os raios cortavam o céu e os
trovões pareciam tremer a terra. Aí, a correria
era tanta que nem os sapatões das traves
eram recolhidos. E quantas camisas ficavam
para trás! Ai! E quantos puxões de orelha...
As crianças nem percebiam o tempo passar,
os meses, os anos. Tudo tão simples e bastava.
Satisfazia, era prazeroso.
De repente, um novo pároco chegou. Por
inúmeras vezes, as crianças o avistavam na
porta da igreja, com as mãos em conchas
protegendo a vista do sol, olhando de um
lado, olhando de outro... Nem imaginavam
as caraminholas que estavam sendo urdidas
dentro daquela cabeça.
Não demorou muito e a notícia se espalhou.
O padre decidira fazer uma igreja do
tamanho da praça. De ponta a ponta!
Os meninos, de início, ficaram assustados,
mas esqueceram. As peladas continuaram.
Continuaram até que um dia, ao chegarem
na praça, a escavação estava iniciada. Muitos
pedreiros, munidos de pás, trenas, estacas,
ocupavam a área do campinho. Dois
caminhões carregados de tijolos estavam
alinhados na beirada do terreno.
Desapontados, os meninos foram se esgueirando
pela velha igreja, calados. Caminhavam
e olhavam, com tristeza, a terra vermelha
sendo retirada das valas. O padre, na
porta da igreja, nem percebeu a decepção
das crianças.
Naquela tarde, tudo ficou estranho. Nem
havia burburinho, silêncio cavernoso. Não
houve escolha de time, não houve onde
colocar os sapatões, não houve medição...
Tudo quieto.
Passados alguns dias, outro canto foi arranjado
para as peladas. Ficava na baixada,
um descampado de capim verde. Sem a
menor graça.
E a igreja?! Durante quatro anos, com muitas
festas, quermesses, leilões, os fiéis buscavam
recursos para erguer a igreja do pároco
megalômano. E ainda bem que a capelinha
foi mantida dentro do esqueleto suntuoso
da construção. As paredes começaram a ser
erguidas em toda a volta do quarteirão, descomunal,
um colosso. Não havia material
que bastasse para a construção, um despropósito.
Talvez pela visão fantasiosa, pela ambição
exacerbada e majestosa do pároco, o bispado
entendeu certa patologia naquele empreendimento.
Então, o padre foi substituído.
Na vila, como herança, restou o esqueleto
vermelho, inacabado e inconcebível, da catedral
que nunca foi.
Os meninos poderiam ter o campinho de
volta. Não quiseram. O encanto, para eles,
havia passado. Estavam crescidos.
115
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
RICARDO MAINIERI
CANTURBANO
urbanidade
arde
na manhã
de segunda-feira
incêndio efêmero
em corpo & alma
eletrizados
o ruído da cidade
& seus dejetos
povoam os espaços
a peste
esconde-se
sorrateira
Poeta e prosador gaúcho.
Nascido nos loucos
anos sessenta.
Autor do livro-solo "A travessia
dos espelhos"
Owner do blog "mainieri's"
numa curva
do caminho
nenhuma calma
paira no ar.
anoiteço.
116
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ROBERTA RAMOS
Sintra - PT
Fluminense, professora
de português,
gosta de escrever sobre
as coisas simples
da vida. Vive em Sintra, Portugal,
país que a adotou com
carinho.
NA PENUMBRA
As ave-marias começam a ser entoadas
nas casinhas da aldeia.
Não entendo essa necessidade
do homem querer se conectar
com algo supremo. Sinto-me maior do
que tudo e todos, vejo-os tão ínfimos.
Trago em mim uma imensidão que eles
jamais terão.
Todo dia, quando os vermelhos e amarelos
começam a pincelar o céu, eu venho.
O vento ronrona, por vezes esfriando o
tempo, tirando dos armários gorros e cachecóis
escaldantes. Deles não preciso,
nem tenho medo de água fria. Visto-me
de breu, e isso me basta.
Estendo meu manto negro pelo muro.
Veja como é macio, como forra os tijolos
quebrados e as folhas da trepadeira. Sei
que você o inveja.
Deslizo meu corpo com cuidado, como se
evitasse os espinhos. Não os temo, sequer
preciso olhar para eles.
Do muro ao chão, não demoro. Começo a
me estender pelo piso.
Duas luzes amarelas acendem-se na minha
escuridão. Espreito o gramado, estrelado
de vaga-lumes, emplastrado de caramujos.
Brinco de seguir um dos insetos, logo
me canso. Efemeridade demais, prefiro o
que se prolonga, sete vidas, ou mil.
Começa a orquestra de cigarras e grilos.
Não há ensaios, maestro, nem palco, e os
instrumentos são timbaus e guiros. Faltam
os violinos dos mosquitos, que preferiram
tocar para os humanos. Desprezo
esse som histérico.
Espreguiço-me, e neste espreguiçar deitam-se
os moradores da casa. Precisam
repousar seus cansaços nos travesseiros.
Eu, não. Eu me deito no mundo inteiro.
Cada quintal, cada telhado é meu lar.
Acelero o passo, minhas patas de azeviche
já alcançam a igreja vizinha, com o cemitério
ao fundo. Ouço guinchos, fogem
ratazanas gordas. Eu as alcanço, deixo-as
prosseguirem caminho atrás de carnes putrefatas
como as que jazem ali, sob arranjos
de flores prostradas.
O sino majestoso já se calou. E de sua torre
jorram morcegos bêbados, tateando o
ar, emitindo os guinchos que são sua bússola.
Não passam de ratazanas, mas magras,
aladas, ambos temidos por sua má
fama.
Olho para trás, pouca coisa se vê agora.
Lâmpadas que espreitam pelas cortinas,
candeeiros tímidos nas varandas, postes
altivos guardando as ruas.
Eu impero. E foi assim, desde o começo
dos tempos. Por isso me descrevem em
poemas, músicas, quadros. O piano de
Pessoa, calado no terceiro andar; Chopin,
com seu conjunto de noturnos; e meu preferido,
de Van Gogh, onde apareço plena,
soberana da criação.
Estrelada.
117
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
RONALDO MAGALHÃES
Salvador-Bahia
Mestre dramaturgia
(UFBA). Escreve
poesias,
artigos, ensaios, contos, roteiros.
Participou de várias
antologias. Colabora: Jornal
Fuxico-UEFS; Soteroprosa
Olhares Contemporâneos;
SG Magazine-Portugal.
CAFÉ MÜLLER
Na cidade nua |o café vazio| submerge na penumbra.
Há cadeiras, mesas. Cadeiras e mesas. Há cadeiramesas desordenadas no caos.
Caosss completamente árido e despovoado, onde o silêncio e a solidão reinam.
De súbito, tateando as paredes cinzentas, ela titubeia contida.
A outra em constante movimento rumo ao desconhecido, dá volteios na escuridão. Se desprende
e se esbarra.
Ele a protege.
Ela e seu duplo, no fluxo cadenciado, se projeta no espaço e, desbrava os limites do instante
numa relação solene de embalo sonoro, trágico e intenso-profundo.
O moço gentilmente segue a rearranjar o espaço como num preâmbulo amoroso para o reencontro
ad infinitum.
Ela se aventura no vácuo.
No
encontro
moldam-se
movimentos.
Eles se encontram todos os dias, no mesmo lugar, na mesma hora.
Eles se encontram, todos os dias, no mesmo lugar, na mesma hora.
Eles, se encontram todos os dias no mesmo lugar na mesma hora
Eles se encontram...
Marionetes do desejo.
Ele quer partir. Ela, perdida, atravessa o real e com pressa, não flui a vida.
Ele pede o café para dois.
As portas do tempo giram vertiginosamente e corroem, corroem, corroem...
Dor e solidão.
Corpos moventes fluem, volitam, extenuam-se em espasmos profundos no cumprimento do
dever cotidiano. São tormentos em tempos de sonhos.
Respiram num átimo o princípio do prazer.
Provocam, atiçam, insistem e suportam [a vã tentativa de serem imortais].
Os corpos mergulham numa catarse de gestos divinos, porém óbvios. Corpos vagabundos que
se entregam ao acaso, frenéticos, numa confusa fronteira do devir, plasmada no aqui e agora
de uma existência.
Passagem dilacerante que asfixia mais do mesmo entre confrontos e ardis.
Limite entre o jogo e o não-jogo que é espelho do real imaginado.
Metas, fases, metamorfoses.
Eles, porém, impávidos, seguem a caminho do fim.
118
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ROSE BARBOZA
Psicóloga e investigadora.
Em sua trajetória
está atenta aos
movimentos de expansão
nas margens da vida,
sobretudo às narrativas que
reexistem, teimosas e íntegras,
nas vozes das mulheres.
VALE DO ANHANGABAÚ
Para Tula Pilar
Eu sabia que você chegaria tarde. Afinal você
vinha do Taboão. Precavida, retirei o livro
amarrotado da mochila e, sem muita atenção
deslizei para o chão da estação. Essa mania de
ler de cócoras. Em qualquer lugar. Acomodei-
-me, não na leitura que tinha nas mãos, mas
naquele mundo, cheio de volume e velocidade
que fluía e estancava entre as escadarias
da estação Anhangabaú. Aquele mar de gente
aflita. Aquela eterna passagem entre mundos
que se contorcem nas vísceras da locomotiva.
Aquele não-estar que, no entanto, arranca
vida, morte e impermanência da tragédia,
como se fosse possível, no atropelo dos dias,
expiar o trabalho e as manchas das noites
profundas. Aquela gente cansada a fazer do
incansável um dia a mais, tomando a sério a
exigência de sobreviver, teimosamente, sem
negociação.
Há quem possa chegar ao Anhangabaú e se
deter em letras, em mensagens frenéticas trocadas
nos celulares sempre em riste. Mas há
muito absorvendo-nos naqueles vãos intensos:
beijos trocados entre um sem número de
casais, jovens, idosos e recém-conhecidos, um
carteado à dinheiro deslocado à esquerda dos
olhares indiscretos dos urubus (funcionários
de uniforme preto responsáveis pela repressão
que pune e esculacha, sem dó e sem regras),
alguém que grita desafinado uma canção de
Adoniran, competindo sem chance de vitória
com o hip-hop metálico dos alto-falantes.
As veias abertas da cidade, diria um escritor
uruguaio parafraseando a si próprio. Sua
pulsação, eu diria. Se a cidade respira ou se
move em sua deriva frenética depende desse
pulso que se contrai e dilata em gestos descompassados
entre um Repente de Caruaru
e um Slam das Minas que joga a real por um
punhado de moedas. O pulso poético da cidade,
tão visceral quanto as entranhas que,
reviradas pela barrigudinha barata, despejam
um vômito honesto nas imediações. Sim, porquê
o pulso dessa metrópole cheira a suor,
urina, vômito e porra. Fluídos que registram
a espessura das emoções que empurram esses
corpos: para seguir, seguir, seguir, seguir.
Alguém disse algum dia que São Paulo é uma
cidade que nunca para. E eu me perguntava
qual era o combustível que alimentava a besta.
Sangue, suor, urina, vômito e porra. Muita
ureia para manter em constante fluxo o sistema,
para sustentar o movimento desejante de
vida que resiste e não se entrega.
Ali, deslizada e acomodada de cócoras, deixava-me
absorver pelas coordenadas da metrópole,
seus pulmões inebriados de fumaça e
desvario. Numa cumplicidade silenciosa com
aquela gente que, sem saber, fazia parte dessa
que eu era também por teimosia, por não
saber ser de outro modo. Sempre agarrada
ao solo hostil de estações, sempre alinhada à
pulsação da vida ali onde ela é quase suspiro,
equívoco, aglomeração. Uma náufraga, encharcada
em ureia dos pés à cabeça. Mas sem
saber muito bem o quê fazer com o incômodo
sob a pele, com as vísceras reviradas, com os
cacos de poemas dispersos.
Eram quase 16h30 quando você chegou: cartazes
e um tumulto todo seu a gritar da ca-
119
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ROSE BARBOZA
VALE DO ANHANGABAÚ
traca algo que tinha a ver com povo, trem e
distância. Esbaforida, largou a bolsa enorme
no chão. Limpou o suor da testa e sem cerimônia
decretou: “– Vamos, o tempo urge”.
Ele urgia. Porquê nunca há nada que não seja
urgente em São Paulo. Nunca há nada que se
possa deixar para amanhã sem consequências
nessa cidade que tem como designío se voltar
contra si mesma.
São Paulo tem como profissão de fé o atraso.
Estamos sempre a um passo, mas nunca
somos pontuais. O centro do nosso mundo
urgia a cada manhã e a cada final de tarde, no
vagão lotado e na fila do Self, o kilão obsoleto
enxotado para fora do novo normal. Ah, se
você soubesse! Mas, naquele dia de atrasos e
urgências, paradoxalmente esse nosso futuro
era ainda impensável.
Saímos com passos rápidos, como quem busca
respirar retendo ar suficiente nos pulmões.
Havia a rua, o mar de gente, um dia atípico de
sol no inverno rabugento e, a distância a ser
percorrida. Havia a pressa porquê também é
o quê somos. E enquanto avançávamos, eu
me deixava extraviar impregnada na paisagem
difícil: o Municipal, o entramado de ferro
e concreto imponente do viaduto, aquele
shopping Light que nunca decifrei e, xs habitantes
daquele mundo, insistentes em desacomodar
certezas de nossos olhos e mãos.
À frente você era só sorrisos. Plena nessa realização
urbana que te fazia fazer casa de tantas
avenidas. Lembro-me de que você chegou
e, sob a marquise, uma aclamação afetiva te
recebeu como quem acolhe um orixá. Ali, reconhecida
e recebida, você era um dos gestos
mais fortes que testemunhara nesse dia: uma
mistura de respeito e dignidade a reivindicar
vida com a cabeça no filho Pedro, um corpo
negro exposto às duras da periferia; na filha
jovem, Samantha, cobiçada por uma pá de
malandro; com Dandara, a caçula e xodó.
Enquanto sorria e distribuía cumprimentos
foi operando no centro da marquise a transmutação,
ou melhor, a tua conversão em Carolina
Maria de Jesus. Cabelos sob um lenço,
vestido branco e, nas mãos, esse gesto que era
o teu tudo: cadernos de infância metamorfoseados
em diários. Tu, Carolina. Carolina
que era tu. Em poucos minutos, a personagem
que você encarnava fazia reverências,
enquanto você cuidava da mágica. Na tarde
de hálito quente que o pulso da cidade resfolegava,
curiosas e demais foram formando
a audiência atenta que decifrava nos teus dizeres,
os dizeres de Carolina. Da artéria da
metrópole para a fome amarela. Da frente do
edifício Matarazzo para o quarto de despejo.
Você, nossa griot urbana a desfiar com magia a
miséria que nos consome, para além da fome,
dos tiros, do suor e do sangue. A questionar
a lida, a ureia e as veias abertas. O aplauso
e a celebração ainda te interrompiam, quando
você retornava à transmutação. Carolina
que você era, Tula Pilar. O tempo urgia. “–
Vamos!”. Também estávamos ali para uma
marcha, a poucos passos da concentração, no
dia 25 de Julho, dia de Teresa de Benguela, a
nossa marcha, das mulheres negras. A última
marcha que estive ao seu lado.
120
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ROSILENE SOUZA
Belo Horizonte - MG
AINDA TEMOS TEMPO!
Mineira, atualmente
vive
em Belo Horizonte.
Graduanda
Licenciatura em
Artes Plásticas e graduada
Comunicação Social. Participou
de exposições, feiras e
mostras de artes.
121
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SABINA SABINO
São Paulo - SP
Moça trans,
faz filosofia,
escreve, ri,
existe, desiste,
desatina-se, de São Paulo
Capital, pobre, e até agora
odeia o estereótipo danoso,
manifesto e vivido, da artista
faminta.
NINGUÉM
Estão todos bem acordados, o
Starbucks deu conta disso. Ninguém
está fora do lugar, ninguém
que a palavra não coloca
nome, nem deixa de dar qualidade ou defeito.
Sempre tem ninguém fora do lugar.
Simetricamente falando, para cada lugar
deve existir, por lei última da natureza, o
não-lugar. Simetria assimétrica, porque
para cada lugar existem milhares de não-
-lugares. E como os lugares são habitados
por pessoas, os não lugares são, portanto,
habitados por não-pessoas. Assim como
as pessoas compram suas necessidades,
as não-pessoas não compram suas necessidades,
como as pessoas andam de carro,
as não-pessoas não andam de carro,
as pessoas vivem suas vidas, enquanto as
não-pessoas frequentemente não vivem
suas não vidas -- permanecem fantasmas
sonâmbulos. Estão todos bem acordados,
mas é um grande sono. Tão grande que
nossa matéria de sonhos foi sufocada em
seu invólucro. O sonho é como o ar, toma
a forma do espaço que lhe foi dado, do
lugar e do não-lugar, do mundo fechado e
aberto em contradição. A geometria onírica
que se forma desse modo de existência,
no entanto, não aguenta sonhos, só
aguenta espectros. E eis aqui um sonho
que eu tive quando desmaiei bêbado num
shopping uma vez:
"Chamo-me NINGUÉM; meu pai e minha
mãe chamavam-me assim, e todos os
meus companheiros me chamam NIN-
GUÉM." - Odisseia, de Homero.
Ninguém é velho, deve ter uns cinquenta
pra uns sessenta anos e trabalha desde
os nove. Pardo, do interior, cansado,
sobretudo cansado. Não é aposentado, é
desempregado, sua mulher, a Lurdes, ainda
trabalha, como empregada de alguma
casa perto do shopping. Tem filhos e filhas,
uma delas entrou em Direito numa
federal, seu nome ele nunca contou, um
filho seu morreu menino, afogou-se num
riacho. E sua vida em anedota bem que
podia terminar em um parágrafo, mas só
porque o que carrega alguém pelo mundo,
sua história, é um texto muito maior
que todas as páginas já impressas, de todos
os livros, de todos os tempos. Não
existe maior fraude que um biógrafo.
Ninguém está no Shopping. Não sabe
porque está ali, mas está. Acordou com
vontade de chorar naquele dia, procurou
a cidade inteira por um lugar para chorar.
Foi ver Lurdes no serviço, não conseguiu
falar, as palavras não saiam da boca. Pediu
desculpas por atrapalhar o serviço,
saiu pelas ruas e, sem pensar, acabou na
marginal, acabou onde agora está, no
shopping. Ele para, na entrada, pelo que
parece ser muito tempo, seus olhos acima
122
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SABINA SABINO
São Paulo - SP
NINGUÉM
da fachada, tentando enxergar o sol. Ele
se move. Algo o move, uma força primeva
e imemorial, que seria descrita por um
poeta como o peso da história, da história
de Ninguém. Ele anda com propósito, determinado,
bravo, com cães do inferno no
seu encalço, ele anda por bem e por mal,
entre os corredores. Chega ao seu destino,
uma loja de sapatos chiques. Ninguém
foi sapateiro, fez muitos sapatos.
Ele entra, com ele, uma rajada de vento,
uma rajada grande demais, que derruba
um atendente e bagunça a peruca de uma
senhora. O mundo cintila, olhos piscam
como faróis vermelhos. A velocidade se
torna lenta. O tempo se afogou no vento.
Ninguém se aproxima de um par de sapatos,
apenas um, um específico no fundo
da loja, sem marca, num canto. Ele os
pega na mão, os sente, a textura do couro
nos dedos, os laços cuidadosos, os minúsculos
relevos de cola. Um par de sapatos
de sua confecção nunca estaria em uma
loja como essa, nunca estaria, em nenhum
mundo estaria, mas estava. Ninguém os
abraça, abraça com todo seu ser, para arrebentar
os próprios braços. Eram seus,
completamente seus, ele os fez. Ele sai da
loja, diante do atordoamento geral, ninguém
nota Ninguém. No corredor, senta
no chão e abraça mais forte os sapatos,
começa a chorar. Chorar como ninguém
nunca chorou e como Ninguém jamais
chorará. Ninguém chora alto, um choro
ranhento e feio, um choro de mãe recentemente
orfanada de seus filhos, desesperado
e sozinho. Sentado de índio, abraçado
com seus sapatos, no corredor estéril, de
mármore e granito, com suas luzes frias,
o choro faz eco. Primeiro foi uma criança,
um menino, loiro, olhos azuis, com
um balão e um sorvete de bolas, sabor
morango, que logo se espatifam sobre o
chão quando o garoto começa a chorar. É
o choro de alguém prestes a ser enterrado
vivo. Depois foram outras crianças, uma
menina ali, mais um menino aqui, mas
logo começaram os velhos. Uma senhora,
a da peruca, começou a espernear, a
prantear, a bater com os punhos no chão,
quebrando as unhas postiças. Um por
um, os habitantes do shopping começam
a chorar. Os pais do menino seguiram o
coro, ajoelhando e rogando. O atendente
que caíra no chão ficou por lá, rolando no
frio, choramingando consigo. O shopping
inteiro lacrimejava sua dor, que não era
nova, nem poderia ser chamada de velha,
porque o seu princípio era o princípio de
tudo que lá foi feito e de tudo que lá seria
feito. Estão todos acordados. O sono
se desfez, restou apenas o que um poeta
chamaria do peso da história. O lugar encontrava
o não lugar, o fantasma tomou
123
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SABINA SABINO
São Paulo - SP
NINGUÉM
forma humana, a ausência reparada, fundida
com o mundo que não a aceita. O
não se tornou sim, mas o pecado era infinito,
a dor insólita. Os chorões foram se
congregando, andando aos poucos, cambaleando.
Pais de família que nunca viam
seus filhos, esposas entediadas, adolescentes
bêbados, crianças velhas, seguranças
e faxineiras, indo em direção a Ninguém.
Ninguém, como bom profeta os acolheu,
acolheu-os em sua dor, em sua angústia
excruciante que torturava os tímpanos e
as pupilas. Deu-lhes o apocalipse de todos
os dias, a revelação suprema do cotidiano,
o que um poeta chamaria do peso da
história. Os chorões fizeram uma roda em
sua volta, Ninguém, ainda abraçado com
seus sapatos, levantou-se. Eles foram para
cima dele, o invadiram, quase o fizeram
em pedaços, mas não. Levantaram-no
ainda mais, como fazem os fãs com um
rockstar que se joga na plateia, boiando
num mar de gente, começou a procissão.
A procissão foi pelos corredores, singelamente,
em marcha fúnebre. Um adolescente,
com uma garrafa aberta de sei-lá-
-o-que na mão, os acompanhava de longe,
tinha uns dezesseis anos, cabelos longos
e mal cuidados. Gritava até os pulmões
arderem: "Joga ele no rio! O que foi achado,
deve ficar perdido, o que foi feito errado,
deve ficar certo!!! Chama-me de João
Batista e joga ele no rio! Joga ele no rio!".
A procissão continuou, imperturbada,
para fora do shopping. Ninguém em cima,
ainda chorando seu choro feio e remelento.
Os chorões levam-no pela passarela,
descem a rampa de entrada e atravessam
a marginal, onde todos os carros param
em fila, dando passagem, os motoristas
todos chorando. A cidade toda chorava,
o estado e logo a nação, uma realidade inteira
chorava um choro feio e remelento,
um lamento duma condição ignóbil, um
lamento pelo próprio sonho.
Os chorões descem às margens concretadas
do Pinheiros.
Quando eu cheguei, eles já tinham ido
embora, voltaram aos seus afazeres. Voltaram
aos seus trabalhos, lojas e quaisquer
distrações da dor do tempo, do peso
da história, a terrível simetria assimétrica
uma vez quebrada, agora restabelecida.
Estão todos acordados. O sol se esconde
atrás dos prédios na outra margem, erguendo
uma enorme sombra que engolfa
o mundo e foi lá, naquela escuridão pontual,
onde eu me sentei para observar o
corpo de Ninguém boiando no rio.
124
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SAM MOURA
Rio de Janeiro - RJ
Sam Moura é PhD em
Direito, mãe da Dalila,
e psicanalista em
formação. Se achou
quando aceitou que adora se
perder, e que palavras são a
melhor forma de se deixar ir.
@dumbigopralem
CREME DE PAPAIA
Eu tenho que ir.
Foi o que pensei enquanto olhava o
meu guarda-roupa sem ver as roupas
diante de mim. Fazia um mês que tinha
retornado da Inglaterra e não tinha mais
motivos para não encontrar Diana. A Diana era
a minha melhor amiga. Era tão minha amiga,
que eu pude contar quando vi na noitada o seu
namorado que lhe havia dito que estava doente.
Tão amiga que pude fazer isso a uma semana de
me mudar para a Inglaterra. Tão amiga que por
muito tempo me preocupei com ela e me questionei
se havia feito a coisa certa. Não acharia
sempre motivos para não ir, e não poderia não
ir sem motivos. Isso seria acabar com a amizade
e amizades não se terminam. Peguei o vestido
marrom, prendi o cabelo em coque, calcei as
havaianas e fui.
Quando cheguei ao café, logo a avistei. Não por
mérito meu. Todos a avistavam. Ela, mais loira
do que nunca, estava de pé, pulando, e acenando
me chamava com uma euforia destoante. O
lugar era pequeno demais para ela. Aliás, era
comum ela exceder os espaços. Os olhares se
voltavam para mim e de repente pensei que talvez
eu também tivesse diminuído e me tornado
pequena demais para ela. Encolhida, segui firme
ao encontro da minha amiga. Ela me recebeu
com um abraço tão forte que uma pontada de
esperança invadiu o meu coração e eu acreditei
que talvez a distância pudesse ter sido só física
mesmo.
Sentei e ela já discursava sobre o creme de papaia,
que era a melhor coisa daquele lugar. Eu
tinha que pedir. Ela duvidava que na Inglaterra
houvesse creme de papaia. Eu devia ter sentido
falta. Emendou dizendo como era bom uma
amizade como a nossa. Depois de tantos anos
podíamos nos encontrar e falar sobre creme de
papaia. Isso era intimidade.
Eu sorri pensando que não gostava de creme de
papaia e não lembrava de um dia ter gostado.
Mas não tinha certeza. Talvez tivesse gostado,
talvez costumasse comer e não lembrava. Pedi
uma água e um café e ela não pareceu notar que
eu não (mais) me entusiasmava com o creme.
Desandou a falar. Seu monólogo girou em torno
da sogra, que se dedicava a infernizar a sua
vida; da cunhada, que vivia para competir com
ela; e do irmão, que por ser super dotado, não
se interessava pelas coisas da família.
Tudo dela me constrangia: a aparência, o tom,
os gestos expansivos, o conteúdo da conversa.
Ela. Toda.
Envolvida por sua própria voz, continuava.
Agora reclamava de como era duro passar o
tempo a ensinar ao novo parceiro como um relacionamento
deve ser.
Pelo menos ele se esforça. Não é como o outro.
Mas a última briga havia sido desgastante demais.
Ela teve que argumentar que ele não podia
largar tudo e virar piloto do nada. Que ele
tinha que agir com ela como gostaria que ela
agisse com ele. Como ele se sentiria se ela resolvesse
largar tudo e virar cantora?
Entende?
Ela me perguntava, como se perguntasse para
todo o café. Todos os pares de olhos em mim.
E eu não entendia. Não entendia nada daquilo.
Para mim, ela estava falando outra língua.
Nada daquilo me interessava. Ao mesmo tempo,
não me animava a mudar o rumo da conversa,
contar sobre mim, sobre a minha vida e
os meus pensamentos. Não conseguia encontrar
nenhum gancho, nada que me fizesse supor
que ela se interessaria por qualquer coisa que
eu pudesse dizer. Não entendia como havíamos
sido tão próximas e não sabia dizer o que ti-
125
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SAM MOURA
Rio de Janeiro - RJ
CREME DE PAPAIA
nha acontecido comigo. A voz dela animada me
soava como algo incompreensível, no melhor
estilo blablabla. Seus olhos carinhosos ficavam
distantes e desfocados e eu só pensava em sair
dali. Queria sumir.
De repente, senti um aperto no peito, como se
alguém esmagasse o meu coração. Era culpa.
Ela não tinha mudado nada. Eu que tinha. Eu
que a abandonara. Não apenas no momento em
que fui embora, mas para sempre.
Eu não era mais
a amiga dela.
Que bom que você voltou. Se bem que não entendo
porque você voltou. Jamais trocaria a Inglaterra
por isso daqui.
Não era a primeira vez que ouvia isso. Normalmente
explicava que as pessoas idealizam morar
fora, que na Inglaterra os ônibus param do
nada e todo mundo tem que descer na chuva
sem reclamar, que fica escuro às quatro horas,
que não é fácil ser estrangeiro lá em tempos de
Brexit e que… A faca da saudade corta mais no
frio.
É. Não sei explicar.
Respondi. Não a ela, mas aos meus pensamentos.
Ela continuou, dizendo que quem sabe um dia
eu poderia voltar. Quando eu fosse ter filho, eu
deveria voltar. Para ter a educação da Europa,
ter mais oportunidades, falar outras línguas.
Ela, com certeza, colocaria os filhos na British.
Sabia que lá as crianças ganham uma placa de
distinção por entenderem que as ações tem consequências
e se comportarem da forma certa?
Eu não sabia.
Enfadada, percebi que a culpa dava lugar a um
outro sentimento. Um do qual eu não me orgulhava,
mas também não podia negar. Um sentimento
de superioridade. Eu me achava melhor
que ela.
126
A minha amiga era um clichê.
A minha culpa por deixá-la era quase pena,
como se ela precisasse da minha amizade.
Como se eu tivesse a responsabilidade de ser
amiga dela.
Já nos despedíamos na porta do Café, quando
vi um garoto preto de uns seis anos se aproximar.
Ele pediu dinheiro. Fui abrir a bolsa, e ela
segurou o meu braço cochichando que não se
devia dar dinheiro para essas crianças.
Elas se acostumam e depois não vão querer fazer
mais nada da vida.
Passando os dedos por dentro da bolsa, constatei
o que já temia: só tinha o cartão comigo.
Nenhuma nota. A culpa cresceu. Pedi desculpa
à criança e envergonhada por tudo, dei um
abraço endurecido na amiga.
Precisamos marcar outro dia com mais calma.
Lá em casa. Para você conhecer a casa e o João.
Ele aprendeu a fazer um creme de abacate especial.
Quase bom como o de papaia.
É, de abacate eu gostava.
Vamos combinar.
Fomos cada uma para um lado. Ela entrou no
carro e eu segui andando pela rua. Um pequeno
ateliê me chamou atenção. Entrei atraída por
um quadro que retratava a profundidade de
uma floresta tropical. Pensei em comprar. Arte é
sempre um bom investimento. Pela janela atrás
do quadro, voltei a ver a criança que pedia dinheiro.
Senti um tranco, como se ela tivesse atirado
uma maçã na minha cabeça.
Tanto quanto a minha amiga, eu também era
um belo de um clichê.
Todo o peso desapareceu.
Não conheceria João.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SAMMIS REACHERS
São Gonçalo - RJ
INTROEJETADOS
Nascido em Niterói,
mas desde
sempre morador
de São Gonçalo.
É escritor e editor, autor
de nove livros de poesia e
dois de contos e professor de
Geografia no tempo que lhe
resta.
127
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SANDRA DE CASTRO
Brasília - DF
Sandra de Castro nasceu
em Curitiba/PR
e vive em Brasília há
quase 20 anos. Publicou
pela e-galáxia os livros
Entre o Frango e a Crônica
e A Prosa do Desconforto-
-Contos de Desamor e Outros
Escritos.
PASSARINHO
Hoje salvei um passarinho. Tinha peito branco, corpinho
preto e pouca malícia. Deixou-se iludir pela
água no balde do cachorro. Tchéc, tchéc, tchéc. De
tanto lutar ia morrendo esgotado, provando que uma
escolha equivocada, em qualquer espécie, pode mesmo ser fatal.
Alguém ouviu seu debater desesperado e o alguém era eu, que nunca
salvara um bicho sequer.
Sentindo-me especial por ter sido designada para aquela missão,
levei-o com cuidado até a grama e enquanto boiava assustado,
inclinei o balde para que a água escoasse na velocidade certa: nem
tão rápido que terminasse de ensopá-lo e lhe pesasse mais as asas;
nem tão lento que a demora do gesto terminasse por afogá-lo. A
meio caminho da operação, o passarinho voou, repentino. Tão repentino,
para mostrar que sua intimidade com o ar era tanta que
bastava encontrá-lo, por pouco que fosse. Não me disse bom dia,
nem disse obrigado. Mas não foi por falta de polidez, foi apenas
excesso de instinto. Voou longe
me deixando certa inveja. Em algum
lugar daquela sua alma sem
conflito de pássaro, a lição do dia
estaria armazenada para sempre.
128
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SARA BINATTI
DOS ANJOS
Porto Alegre - RS
OS RIOS SOB A MINHA PELE
Neste meu banheiro minúsculo
não cabe toda a minha ansiedade
da manhã. A minha
cara assustada no espelho
não ajuda e eu fico aqui pensando, me
analisando, me criticando. O que são estas
olheiras e estas rugas e estes cabelos
sem brilho e estes poros abertos e estes
pelos de bigode?
Maldita descendência portuguesa!
E estes rios sob a minha pele?
Hem?! O que?!
Olho mais de perto todas as veias azuis
esturricadas sob a pele branquinha do
pescoço, do colo. Das mãos também! E
das pernas, percebo quando me curvo à
procura de provas! Mas o que é isto?!
Me tornei transparente de repente?! Meu
Deus, estou ficando invisível?!
Também pudera, você queria o
quê? Passou dos sessenta, minha filha, vai
te acostumando! Estes rios sempre estiveram
aí, desde a tua infância. Talvez fossem
só riachinhos, sim senhora e você deixou
que eles fossem se enchendo, se enchendo.
Quem mandou não ter paciência e ficar aí
se irritando por coisas bobas?
O mapa repleto de caminhos azuis está
me assombrando, socorro!
Está demorando muito para sair
do banheiro, está fazendo o número dois?
A pergunta que sai da minha cabeça me
faz resmungar e achar graça.
Está falando sozinha, coitada, se
vê que está velha!
129
Sim, estou velha, mas não sou velha.
Que diferença faz?
Estes rios que pensam em transbordar estão
aí mesmo. O que é que eu faço, meu
Deus?
Toma um remédio para a circulação,
minha filha!
Que remédio! O negócio é conviver com
mais isto. Saio do banheiro deprimida,
cansada, triste.
O que? Nem pensar! Trata de sacudir
a poeira dar a volta por cima! Já!
Evito o espelho do quarto porque já vi de
tudo por ali. Me visto com pressa, quero
cobrir com urgência todos os rios, antes
que se transformem em oceano e me afoguem
em sal. Calças compridas, mangas
compridas, gola alta.
Calorão!
Acaba se afogando em sol, minha
filha! Tira tudo, fica nua, vai!
Mas de que foram feitos estes rios? Das
minhas lágrimas?
Deixa de ser boba, você nem chorou
tanto assim!
É, teve aquela vez que... e aquela outra
vez... E no funeral da mãe?
Ok, ok, todos estes momentos foram
sofridos, mas... e daí? Tem mãe que
perde filho, isto sim é que é dor!
Deixo os rios seguirem seu curso sob a
minha pele e saio de casa pensando na dor
de uma mãe que perdeu o filho.
Coitada!
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SHIRLEI PINHEIRO
Teresópolis - RJ
Nascida em Teresópolis
RJ é
cronista e poetisa,
atualmente
é editora do jornal cultural
Escritores da Serra, estudante
de Bacharelado em História
e criadora do Blog Paixão
Crônica.
A BENDITA TIMIDEZ
Recentemente estava conversando
com um amigo sobre timidez e
comecei a lembrar de como isso
afetou minha vida. A timidez me
acompanha desde a infância e tenho vasto conhecimento
de causa sobre o assunto e uma
coisa que sempre me deixou desconfortável é
falar em público, acredito que isso incomode
quase a totalidade dos introvertidos (só de
pensar nisso já começo a sentir os sintomas),
lembro que quando era adolescente e essa sem
dúvida é a pior época na vida dos tímidos, de
ser a primeira a entrar na sala de aula para
assim evitar que ao entrar os que estivessem
lá ficassem olhando para mim. Quantas vezes
ao chegar em um ambiente cheio de gente já
imaginei todos os olhos em minha direção,
claro que a maioria nem estava olhando, mas
vai explicar isso para um tímido.
Quando criança lembro que corria para o
meu quarto sempre que chegava visita e só
saia quando ela ia embora, tamanho era o nível
de vergonha, minha irmã sempre me chamou
de antissocial, mas nunca liguei, li uma
vez em um artigo que existem três tipos de
timidez: situacional, crônica e proposital, nomenclaturas
é o que não faltam para definir.
Tímidos introvertidos, tímidos extrovertidos,
só tímido, só introvertido e por aí vai, acho
que me encaixo na situacional que são situações
específicas, pois interajo bem com quem
conheço. Geralmente é fácil identificar uma
pessoa tímida e acho até engraçado quando
vejo alguns artistas que dizem ser, mas cada
um sabe onde o calo aperta afinal acho que
todo mundo em algum momento da vida já
sentiu as mãos suarem por mais despachados
que sejam. Suor excessivo, taquicardia, coração
acelerado…sintomas bem conhecidos
e recorrentes na nossa vida. Timidez não é
medo, não é transtorno mental nem fobia, mas
inibição em certos momentos. Com o passar
do tempo vamos evitando algumas situações
para facilitar nossa vida, evito aglomerações
— isso a pandemia até facilitou — evito entrar
sozinha em lugares onde não conheço as
pessoas, nem sempre consigo, mas nem tudo
são flores. Várias vezes me peguei na Internet
pesquisando sobre fórmulas e truques milagrosos
para perder a timidez. Mas também
nem tudo é ruim, aprendi a tirar benefícios da
parte boa, trabalhar minha observação, aproveitar
meu ,tempo sozinha, fora que dizem
que é charmoso, também nos blinda de situações
desagradáveis e constrangedoras como
falar o que não deve ou na hora errada, cair
na pilha do tio do pavê e fazer alguma dancinha
ridícula na ceia de Natal, enfim tudo na
vida tem seu lado bom e estou aprendendo a
perceber isso.
Trabalhar com o público me ajudou muito,
com o tempo fui ganhando confiança, desencanando
e vamos combinar que ninguém precisa
saber da minha inibição até por que não
está escrito no meu rosto a não ser quando
fico vermelha.
130
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SIMONE MAGALHÃES
DA SILVA
Brasília - DF
FOTOPOEMA
Jornalista formada, trabalho
atualmente na EBC.
Desde os 8 já escrevia poemas.
Agora durante a pandemia,
resolvi resgatar um
pouco da minha história e
ver que nunca é tarde para
tentar mais uma vez.
131
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
STERESA NERY
Rio de Janeiro - RJ
BOCA SECRETA
Dolores, a vizinha
de nome invernal,
colecionava
batons
lacrados
e
beijos
sonegados.
A
Medicina é meu
ofício. Nos ruídos
e desvios das
palavras seguem
as buscas criativas no campo
da Arte.
132
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
FRAGMENTO
TÉO SENNA
Brasília - DF
Artista visual carioca,
arte educador,
parecerista cultural,
graduado pelas
Escolas de Artes Visuais
(Parque Lage/EAV) e de Belas
Artes (EBA/UFRJ). Desde
2000 trabalha com o tema
do graffiti.
133
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
TERESA BARRANHA
Portugal
UM FIO DE VOZ
Quando me restar apenas
um fio de voz
não me peças para falar.
Permite-me levar essas palavras
no bolso direito das minhas histórias.
Essa será a minha bagagem.
Palavras só minhas, como chaves,
para abrir o caminho escancarado
e cheio de melodia.
As minhas derradeiras palavras
acabarão de abrir o meu coração.
Vá para onde for,
terá de ser assim,
de alma à mostra e palavras guardadas
como pedras que pisamos
para atravessar o rio.
Com elas atravessarei
o poema que nunca escreverei.
134
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
THOMAS BRENNER
Curitiba - Pr
Thomas Rodolfo
Brenner. Curitibano
nascido em
1982. Autor do
livro “Desaforos, aforismos
& outros foras” (Editora
Penalux, 2013) e da plaquete
“Ressurreição” (Editora
Primata, 2021) – ambos de
poesia.
SÍSIFO ENCLAUSURADO
déspota de duas faces
- sístole e diástole -
trancado em meu tórax
perseguindo ritmos
e algoritmos
encarando desde sempre
a pedra do repente
de repente é a vida
morro abaixo, morro acima
morro enfim
o coração continua
depois de mim?
135
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
UIRÁ RAUAN
Brasília - DF
SONÂMBULO AMOR
Sonhei que o amor apascentava
Meu coração.
Escorreguei e caí n'outro sonho.
Mais realidade.
O sonho dentro de outro sonho,
Tudo azul!
Minh'alma inquieta te buscava;
Peito nu.
Cruzei a enseada e ardeu-me o olhar;
Te avistei longínqua, difícil de impetrar.
De assombro, voltei-me a mim retratado...
E não dei conta das contas de dores...
Embora acordado tenha tantos amores,
Certamente dormindo é que tenho amado!
Músico, escritor
e estudante.
Morador da
periferia de
Brasília e amante desmedido
da arte literária, venceu - em
2020 - o concurso de poesia
promovido pelo grupo de
pesquisa Mayombe, da UnB.
@uira.rauan
136
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
VERÔNICA AMARAL-
DÉLLIO REIS
FOTOPOEMA
Fotografias de Verônica
Amaral. Natural
de Óbidos Pará, reside
atualmente em
Palmas Tocantins
Textos de Déllio Reis MM
Aquino. Natural de Óbidos
Pará, reside atualmente em
Belém Pará
137
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SIMBIOSE
VERÔNICA SPNELA
São Paulo - SP
Bacharel em Artes Visuais
(gravura) pela
USP (2016) e mestra
em Museologia
(2018) pela mesma instituição.
Desenvolvo o projeto
“Bestiário Peregrino" onde
investigo a estética dos mecanismos
naturais.
138
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
WALNEANE MORAES
Caxias - Maranhão
Formada em Letras
Literatura pela Universidade
Estadual
do Maranhão, com
pós-graduação em Ensino de
Língua Portuguesa e Literatura.
Tenho na leitura e na
escrita meu prazer e conforto
diários.
CÁRCERE DA ALMA
Na noite veloz
Mãos surgem trépidas
Voz que rasga o carrossel
Uma flor murcha rompe o asfalto.
Na solidão do quarto
Um choro abafado
O lençol vermelho rasgado ao meio
E a pulsação constante dos ponteiros do relógio
Como únicas companhias.
A névoa começa a cair
O carnaval de sentimentos,
que chacoalham o coração dormente
Uma angústia, um apelo, um pedido:
Chora não! coração, mesmo ferido.
Ameaçada, amordaçada,
Corre, menina mulher, foge sem dizer nada
Tormentos que devem cessar
Uma andorinha branca voa no céu
Liberdade, onde estás?
139
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
WILLIAM TRAPO
Goiânia – GO
Desde 1992 pulando
dos prédios,
pixando os prédios
e rolando na
grama.
@guerrilhamor
williamtrapo.blogspot.com
SEIOS
Eram 7 e 15 da manhã
acionei o soneca algumas vezes
o espelho do R$ 1,99 me custou mais que isso
e ele está sujo
acionei o soneca algumas vezes antes de levantar
Antes de sair ainda troquei a areia da gata
troquei a água, coloquei ração
Minha vida é muito corrida
muito mais que a da gata
Queria ter a vida da gata
ela me segue, me vê banhar
vamos pro quarto, me troco
recebe meu carinho
brinca e caça enquanto estou fora
Queria a vida da gata
usufrui da organização que mantenho com as coisas dela
queria a vida da gata
Ninguém limpa o meu espelho
como eu limpo os potes da gata
Poderia acionar o soneca por três dias seguidos
seria uma maravilha
Mas gatos não reclamam, não o tempo todo
e eu gosto de reclamar
tenho dor nas costas, hérnia de disco
Nesse ritmo terei três aos 69 anos
vou poder reclamar mais
mais e mais
Queria a vida da gata
a minha é uma bosta
queria a do vizinho também
mas preferia a da vizinha
queria ter seios e tudo mais
mas queria ser eu
só que naquele corpo
não sei se ela quer ser ela
então se eu fosse ela, poderia querer ser outra pessoa
Quero ser eu, mas queria ser ela
A vida da gata é muito melhor que a minha
a vida da vizinha é muito melhor que a minha
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