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Traços 3

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

Ano 1

nº 3

agosto/set.

2021

Qual a musa que te inspira?

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

Ano 1 - número 3 - Agosto/Setembro - 2021

Paranaguá - Pr - Brasil

Nº SNIIC (Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais): AG-206110

Publicação Bimestral

Distribuição Gratuita on-line

Idealização: Paulo Ras

Editoria: Paulo Ras

Realização: Editora Cultural Traços

citada a fonte e que a utilização seja sem fins lucrativos.

• A responsabilidade pelo conteúdo de cada texto ou imagem e dos textos das

colunas assinadas é exclusiva de seus autores e tal conteúdo não reflete necessariamente

a opinião da revista.

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Todos os textos foram revisados por seus autores e não sofreram nenhuma alteração

por parte da revista, respeitando assim a gramática, o estilo e o país de origem

de cada autor.

As imagens não creditadas foram retiradas da internet e têm licença gratuita de

uso.

Capa: pixabay

Site da revista: www.revistatracos.art.br

Contato: culturaltracos@gmail.com

Facebook: https://www.facebook.com/culturaltracos

A Cultural Traços foi criada para unir escritores, fotógrafos, músicos e artistas

de Língua Portuguesa, publicados ou não, de todos os lugares do mundo. Toda a

participação na revista é gratuita, com publicação em PDF e distribuição on-line.

Política de direitos autorais

Autores que publicam na Cultural Traços concordam com os seguintes termos:

• Os textos e imagens aqui publicados podem ser reproduzidos em quaisquer mídias,

desde que sejam preservados os nomes de seus respectivos autores, que seja

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EDITORIAL

Clio, Euterpe, Talia, Melpômene, Terpsícore,

Érato, Polímnia, Urânia, Calíope.

Se você acredita em inspiração deve

conhecer a mitologia grega e de onde

vem o mito das musas das artes.

As musas eram as responsáveis por

inspirar tanto as áreas artísticas como

as científicas na Grécia antiga e, segundo

a mitologia, elas foram criadas

por Zeus para exaltar as vitórias dos

olimpianos sobre os Titãs, na Titanomaquia.

Com o passar do tempo as

musas se tornaram imagens ligadas

às artes. Elas viviam em um templo

que se chamava Museion, que deu origem

à palavra Museu. Eram elas que

traziam dos deuses as obras criadas

pelas divindades, ou seja, as musas

inspiravam, “levavam para dentro” dos

artistas as criações dos moradores do

Olimpo. Ora, ora, isso interessava aos

artistas, afinal dava a eles uma aura

de arautos das histórias dos moradores

do Olimpo, tipo um amigo íntimo

de Zeus, Atena, Hera e companhia. O

tempo passou. A religião grega virou

mitologia, mas jamais se fecharam as

portas para a ideia dos helênicos. Isso

se tornou mais patente na época do

romantismo, e, mais de três mil anos

depois ainda é um mito sustentado

por muitos artistas. Isso não significa

que a inspiração não exista, ela é apenas

o ponto de partida para as obras

dos artistas, principalmente escritores,

mas a supervalorização da inspiração

deixa em segundo plano fatores

importantes, como estudo, leitura,

erros e acertos. Um artista não se faz

em um dia, nem em um ano. Escrever

ficção, por exemplo, é um trabalho

árduo, desgastante, que precisa de

tempo, técnica, conhecimento, foco,

concentração. A aura do artista, tão

carregada de magia, é apenas a casca,

nos bastidores a conversa é diferente.

Porém é mais bonito e poético dizer

que o autor foi atingido por uma inspiração

trazida do Olimpo, pelas mãos

de uma das musas da arte. Na verdade,

é a velha fórmula, 10% inspiração e

90% transpiração. Mas se este esforço

hercúleo é tão pouco valorizado, por

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que nós, artistas, ainda insistimos neste

trabalho de Sísifo que é a criação?

Talvez a resposta esteja na nossa porção

apaixonada, nessa composição

metade sábia, metade insana que nos

impele, que nos faz balançar, sem jamais

cair. O artista é o ser que mergulha

para dentro de si, luta contra seus

fantasmas, medos e monstros, para

emergir vivo, ofegante, trazendo entre

as mãos tesouros únicos, que vão virar

arte. E jornada diária atrás do equilíbrio

perfeito, há muito de poesia, de

anima, de alma, de paixão.

Então, arregacemos aos mangas.

Aprender, estudar, sentir, evoluir e fazer

do mundo um grande espaço de

arte de qualidade.

Cultural Traços

Por amor à cultura. Para um mundo

que sempre precisa de arte.


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AGOSTO/SET.

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Colaboradores

• Jô Diniz 7

• Marga Cendón 8

• Paulo Ras 9

• Penélope Jones 10

Seções

• A casa é sua 12

• Dicas joinhas 14

• Pretéritos 15

• Prazer em conhecer 16

• Coisas que... 18

• Cartas de amor são ridículas 19

• Espaço SerEsta 21

Autores Classificados

Adílio Teixeira Marques 23

Adriana Manduco 24

Agnes Izumi Nagashima 26

Alberto Arecchi 27

Alessandro Padin 29

Amanda Coelho 30

Amilton de Araújo Cavalcante 31

Ana Laura Jalles 32

André Nóbrega Novis de Oliveira 33

Andréa Carvalho 34

Andressa Galvão 35

Antonio Gil Neto 36

Arisson Tavares 37

Belise Campos 38

Bernardo A. Carvalho 39

Camila Lopes 41

Carlos Vilarinho 42

Carou Araújo 44

Cesar Casella 45

Cristiane Cardoso 46

D. Akokán 47

Dadá 48

Daiana Franco Nogueira 50

Danízio Dorneles 52

4

David Leite 53

Déllio Reis MM Aquino 54

Diana Magalhães 55

Edgar Borges 56

Edna Domenica 57

Eileen Wolff 58

Evandro Valentim de Melo 59

Fabiana Kretzer 61

Fábio Gomes 62

Falavinha 63

Fernanda Lucena 64

Fernanda Nara Mauricio 65

Flávia Redman 66

Geislane Lopes 67

Geraldo Magela de Faria 68

Geraldo Ramiere 69

Gil Tobias 70

Gleidston Alis 72

Gustavo Abreu 73

Helmo da Gama Santos 74


Hera de Jesus 75

Herculano Flores 77

Hitallo Dalsoto 78

Ian Anderson Gomes Dias 79

Iraci José Marin 80

Ita Yanara Karajá 82

Jaiane Alves 83

Janildes Almeida Chagas Magno 84

Jeferson Lorenzato 85

João Pedro Campos 86

João Ricardo Dias 87

Jonatan Magella 88

Juliana Moroni 89

Júlio Oliveira Neto 90

Kátia Surreal 91

Lua Pinkhasovna 92

Luciano Reis 94

Malvina de Castro Rosa 96

Mana Moa Mc 98

Marcel Luiz 100

Marcos Antonio Campos 101

Marcos Nunes Loiola 102

Maria Clara Lima 103

Maria Pia Monda 105

Marina Monteiro 106

Marina P. P. Oliveira 107

Milton Rezende 108

Nara Assis 109

Neide Oliveira 111

Patrícia Morais 112

Pedro Antônio Lima Pereira 113

Perpétua Amorim 114

Rafael Caputo 115

Regina Ruth Rincon Caires 118

Renata Vivacqua 121

Ricardo Mainieri 122

Roberta Ramos 123

Roque Aloisio Weschenfelder 124

Rosângela do Carmo 126

Sartre 127

Saul Cabral Gomes Júnior 128

Shirlei Honorato 130

Silva de Oliveira 131

Teresa Barranha 132

Tiago Teixeira Oliveira 133

Valéria Paz 134

Valéria Pisauro 135

Wellington Amancio da Silva 136

Werverton S. Santos 138

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Yasmeen Pereira da Cunha 139

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DESEJOS

JÔ DINIZ

BELO HORIZONTE - MG

Me ensina a preguiça,

O ronronar na rede,

Dormir o dia,

Acordar a noite,

Meias verdades,

Vontades inteiras.

Andar de bailarina,

olhos de não ver o

que se subentende

pulsando no peito,

foge da própria natureza,

mas a arte, sempre ela, a

encontra na esquina, oferece

mil promessas e a tira pra

dançar.

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MARGA CENDÓN

URUGUAIANA - RS

Marga Cendón é artista

plástica, fotógrafa

amadora

e escritora com

dois livros publicados - Lonjuras,

2013 e Sal e Trigo, 2014, ambos

pela Editora Viapampa. Integra

oito coletâneas, dentre elas, Os

Cem Melhores poemas do Twitter,

2013 e Contos de Pampa e Fronteira,

2019.

www.margacendon.com.br

Ausências postas à mesa

Impregnam de

Memória a última hora

Do dia.

Há um resto de beleza

Na saudade

E um recitar de silêncios

No poema.

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PAULO RAS

PARANAGUÁ - PR

O SEGREDO

Ela fazia esguicho de mangueira para desenhar parábolas

em dias de sol. Era a deusa dos arco-íris

que caçava tesouros deixados pelos duendes. Já

achara dois faróis de pirilampo, três pares de asas

de besouros furta-cor e seis patas de louva-deus. Guardou

tudo em uma caixa de música escondida no quarto, junto

com trapos mágicos coloridos e papéis rabiscados pelo

nada. Revia todos os dias aquelas riquezas únicas, que

contavam pormenores dos seus sonhos de menina.

Utópico, tem certeza

de que a arte salva,

a literatura liberta

e a cultura oferece

meios para que cada pessoa

se entenda, para que cada um

ouça e decifre o grito contido

na própria voz.

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PENELOPE JONES

PASÁRGADA

CALENDÁRIO

Não me refiz não me desfiz não limpei minhas

roupas não lavei meu corpo não te esqueci

não voltei a te amar não me explique não te

entendo não chorei não calei não retoquei a

maquiagem não toquei o meu corpo não amanheci calada

não me calei na madrugada não sou mais menina não quero

ser tão mulher não me toque não me deixe desprotegida não

me julgue não me condene não fique não parta não me entenda

não me leia sou sem ponto sem vírgula mulher para ser

lida sem pausa nem regras

Sonhadora por parte

de pai, mãe e orixás.

Ariana por capricho

do cosmos e de algum

alinhamento aleatório dos

astros. Personalidade forte,

loucura decidida e cortante

feito os raios de Iansã.

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A cultura de um país, de um povo, vai muito além da

literatura, da música, da dança, da pintura. Ela passa

pela linguagem e pela moda. Por isso, a entrevista da

“Casa é sua” deste mês será com Victória Correia, da

Ankara Turbantes, que tenta resgatar e valorizar as

raízes das mulheres negras com uma peça tradicional

do continente africano: o turbante. Moda, cultura,

valorização, voz, poder. Tudo junto e misturado.

Abra a porta, entre, leia a entrevista da Victória. A

casa é sempre sua.

De onde surgiu o seu interesse em turbantes?

Nasci no oeste do Paraná onde minhas

amigas e conhecidos eram todas brancas.

Então mesmo sendo negra nunca tive

muito acesso à cultura afro-brasileira. Ao

entrar na adolescência comecei a estudar

mais sobre as minhas origens. Quando

conheci e vi o significado que o turbante

carrega, me apaixonei e quis tornar disse

meu negócio. Incentivar outras meninas

como eu a usar o turbante

No Brasil ainda há o estereótipo de turbante

como vestuário religioso, principalmente

o candomblé. Qual o significado

do turbante na cultura africana?

O turbante é a coroa da mulher negra. O

turbante além de ser um elemento para

algumas religiões, ele é usado

com apoio ao carregar

lenha, mantimentos e seus

filhos. Cada nó e amarração

tem um significado que

varia de região para região

e tribo para tribo. Podendo

passar mensagem sobre seu

estado civil ou sobre seu humor

entre outros. No Brasil

usamos o turbante como

forma de resistência e luta

contra o racismo e preconceito.

Ao vestir um turbante

você estará honrando nos-

12

sos ancestrais que lutaram por nós durante

a escravidão.

Qual o significado dos grafismos e das

cores nos turbantes?

Os tecidos carregam uma rica simbologia,

capaz de decifrar a alma de povos

ancestrais. Só de olhar já sabem de qual

tribo você e qual mensagem quer passar

. Entre eles destacam-se:

• Adrinkra: tecidos estampados a mão

do reino Ashanti, em Gana.

• Bogolan: tecidos pintados a mão, de

Mali.

• Adire: tecidos de algodão dos Iorubas,

na Nigéria.

Em relação às cores para algumas tribos,


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por exemplo, o vermelho usado pode estar

relacionado ao perigo e às guerras,

enquanto em outras pode estar associado

ao sucesso e às grandes realizações.

O amarelo pode representar a fartura e

riqueza.

Como nasceu a ideia e como você definiria

a Ankara Turbantes?

Eu, como mãe, encontrei muita dificuldade

em me recolocar no mercado de

trabalho CLT. Após muita pesquisa sobre

minhas origens, conheci o turbante.

Percebi que é um mercado pouco explorado.

Então resolvi me arriscar

e aqui estamos. Ankara é

o nome dado aos tecidos vindo

da Nigéria. Por ser algo

“novo” estamos numa fase

de educar a sociedade, quebrando

todos os estereótipos

que o turbante carregou.

Nosso objetivo é que as mulheres

afro brasileiras usem o

turbante como forma de honrar a

nossa história.

De onde vem os tecidos e as estampas

dos turbantes?

São Paulo é um dos locais com o

maior número de imigrantes e refugiados

do continente africano no

Brasil.

Nossa marca apoia a causa dos refugiados

e compra todos os tecidos

como forma de respeito e incentivo.

Tecido africano falso é muito

fácil de achar na internet. Qualquer

plataforma chinesa vende. Mas nós

valorizamos qualidade e acima de

13

tudo a história de vida de cada colaborador.

Nossos tecidos são 100% originais.

Quais os modelos de turbantes

que a Ankara cria?

Atualmente trabalhamos

com 3 modelos

- Turbante fechado (50 cm

x 150 cm) que cobre todo o

cabelo

- Turbante aberto (25cm x

100 cm) onde metade do cabelo

ficar exposto

- Turbante fixo, um turbante com elástico.

Fácil e prático, para as meninas que

tem mais dificuldade em amarrar seu

turbante.

Para fechar, como as pessoas fazem para

encontrar a Ankara?

Nossas redes sociais são no Instagram

e Facebook @ankara_turbantes. Nós

temos nosso WhatsApp 11 964818161

e nosso canal no YouTube Ankara turbantes

onde postamos nossos tutoriais e

assuntos relacionado ao mundo dos turbantes.


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A Revista SerEsta é uma criação de um

grupo de professores e ex-alunos apaixonados

pela arte e tem a finalidade de

homenagear figuras proeminentes da literatura.

Acesse, leia, baixe, participe.

https://revistaseresta.blogspot.com/

A Revista LiteraLivre é uma publicação brasileira

de periodicidade bimestral, com distribuição

eletrônica em PDF e totalmente gratuita.

A missão principal é dar espaço aos escritores

e artistas de todos os lugares, amadores ou

profissionais, publicados ou não, que desejam

divulgar seus escritos e mostrar seu talento de

forma independente e livre.

https://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/inicio

Você escreve e quer ficar por dentro dos melhores

concursos literários do país? Acesse

uma das referências do país e não perca nada.

Esse é super indicado.

https://concursos-literarios.blogspot.com/

O site Razões para acreditar tem como

lema a frase “Não é que o mundo esteja

pior, você que não fica sabendo das

coisas boas que acontecem.”. Ali você

encontra todas as novidades que vão te

deixar mais otimista e o seu dia mais

leve. Vai uma notícia boa aí?

https://razoesparaacreditar.com/

Sabe aquele livro que você leu e está jogado

em um canto, servindo de criadouro de poeira?

Aquele que você não leva para o sebo

porque eles vão de pagar uma merreca por

ele? Seus problemas acabaram. O livralivro

é um site de troca de livros. A ideia é simples:

Um livro por um ponto, um ponto por

um livro.

https://livralivro.com.br/

14

Hypeness é um site que, como diz o

próprio slogan, oferece inovação e

criatividade para todos. Com reportagens

abordando estes temas, dá

uma visão mais ampla e criativa sobre

os mais diversos assuntos.

Confira. Vale a visita.

https://www.hypeness.com.br/


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AGOSTO/SET.

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A revista Marinha foi

uma publicação de Paranaguá,

e era voltada

à cultura, o IHGP

- Instituto Histórico e

Geográfico de Paranaguá

- tem esta e outras

edições digitalizadas em

seus arquivos.

As páginas da Marinha

eram recheadas de poesia,

crônicas, contos e

anúncios publicitários

que marcam uma época

em que havia produção

e consumo de cultura.

Essa edição é de 1937,

ou seja, quase 84 anos

a separam dos tempos

atuais, e vendo a

quantidade de autores

e artistas desfilando por

suas páginas, fica uma

pergunta: será mesmo

que evoluímos?

Paulo Ras

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Gilmar Ávila de Almeida,

nascido em 15 de junho de

1962, é empresário e natural

de Santa Maria. Desde

criança demonstrou habilidades para o

desenho livre e trabalhos manuais. Recentemente,

como atividade de lazer, começou

a criar quadros utilizando materiais

como botões, tampas de garrafas,

parafusos e areia colorida. Os desenhos

são retirados do Pinterest, ampliados e

transferidos para a madeira.

Instagram: gaquadros_sm

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Selo Cultural Traços

lança primeiro e-book

O primeiro e-book editado pelo selo

Cultural Traços já está na Amazon.

Trata-se do livro "Memórias de um

temporal", a reunião de 16 contos

curtos da escritora gaúcha Marga

Cendón. Os textos foram escritos

entre 2015 e 2020, e a maioria já

foi publicada em jornais, revistas e

antologias. Nos textos Marga desfila

um rol de personagens marcantes,

em histórias profundas, carregadas

de lembranças e reflexões,

que exploram e trazem à tona os

mais complexos sentimentos humanos.

A delicadeza das imagens criadas,

com influência dos Pampas gaúchos,

é marca registrada da autora,

como no conto que dá nome ao livro.

“As nuvens apagavam a tarde

e o céu parecia uma imensa chapa

sobre o quintal. Pelo desenho dos

dedos na vidraça embaçada, espiava

o balanço girando sozinho e

vento brincando nos cinamomos.

Impossível andar lá fora.”.

Marga carrega em seu DNA artístico

toda a força característica da literatura

gaúcha e faz de “Memória

de um temporal” um passeio leve e

marcante pelas histórias da autora;

O e-book já está à venda na Amazon

por apenas R$ 5,99 e tem leitura

gratuita para quem assina o

kindle unlimited.

Acesse e confira mais esta novidade

da Cultural Traços.

https://url.gratis/i5bIhn

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vi li ouvi

Em Entre Facas e Segredos, após comemorar 85 anos

de idade, o famoso escritor de histórias policiais Harlan

Thrombey (Christopher Plummer) é encontrado morto

dentro de sua propriedade. Logo, o detetive Benoit Blanc

(Daniel Craig) é contratado para investigar o caso e descobre

que, entre os funcionários misteriosos e a família conflituosa

de Harlan, todos podem ser considerados suspeitos

do crime.

O filme presta claramente uma homenagem a Agatha

Christie, a mestre do suspense. Se você gosta de filmes

cheio de reviravoltas, com vários suspeitos, e um grande

enigma, Entre facas e segredos é um ótimo filme para assistir

com aquele balde de pipoca, olhos vidrados e uma

boa coberta, pois o frio, pelo menos aqui pelas bandas do

Paraná, está de amargar. Vale à pena? Sim. Filme presente

no catálogo do Prime Vídeo, da Amazon.

Ser presenteado com um livro é ótimo, ainda

mais quando o livro vem autografado e com o

carinho do autor. Foi assim que recebi o livro

infantil “O sonho da Girafa Zeni”, da Sigridi

Borges. Mania de leitor de carteirinha, abri o

exemplar e li com um sorriso no rosto. As ilustrações

estão impecáveis e a edição, belíssima,

porém a melhor parte e a história delicada e

bem escrita de uma girafa muito decidida, que

queria aprender a nadar. Se vale a pena? Vale

cada minuto de leitura. E sem spoiler... o que

você está esperando para comprar o livro e saber

se a girafa Zeni realizou seu sonho?

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Cocteau Twins foi uma banda escocesa de rock formada

em Grangemouth, Escócia, em 1979. Os seus membros

eram Elizabeth Fraser (vocais), Robin Guthrie (guitarra),

Will Heggie (baixo), Simon Raymonde (baixo, em 1983,

com a saída de Heggie). O CT tinha influências no pós-

-punk, com tons góticos e psicodelicos que marcaram os

anos 80, com o seu som melancólico, doce e sombrio. Ao

lado de Dead Can Dance e This Mortal Coil, são aclamados

como os precursores do estilo ethereal e dream pop. A

banda terminou em 1998. (Wikipedia)

Mas para fãs feito eu, o Cocteau é muito mais. Companheira

em todos os tempos, em várias escritas, o som da

banda sempre me levou para lugares que só músicas tão

diferentes e criativas poderiam levar. O vocal sempre cheio

de pesar e de doçura de Elizabeth Fraser sempre foi algo à

parte. Como proibir a mente de viajar com músicas como

Ivo, Heaven or Las Vegas, Cherry-coloured funk e tantas

outras? Impossível. Não conhece? Então dê uma chance

para o Cocteau Twins e deixe a sua alma flutuar por aí.


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Cartas de amor

são ridículas

Leitores, leitoras, artistas... esta é

a última edição em que teremos a

seção "Cartas de amor são ridículas".

Muito material chega para

a revista como se fosse para a seção

e na verdade é material para o

restante da revista, além do mais

muitos acabam fugindo do formato

"carta", o que acaba dificultando

a separação do material e posterior

análise.

Mas nem tudo é tristeza. Por ser

a última edição com a seção, publicaremos

três cartas, a primeira

de Amanda Balbão, de São Paulo,

a segunda de David Ehrlich, de

Curitiba e terceira de Rozimar Gomes

da Silva Ferreira, de Viçosa.

Querida Bruna,

Hesitei em te chamar de querida, mas a formalidade venceu o desafeto. Leia em tom

neutro, não tenha esperanças de que ainda te quero. Escrevo porque seria dramático demais

bater no seu portão às três da madrugada, bêbada, para dizer que não te quero. Seria

um excesso enviar mensagens de números pré-pagos para o seu celular para implorar que

não me procure. E não lhe daria o prazer de me ver nos arredores da casa dos seus pais

tentando, inutilmente, insistir para que não volte a me ver.

Evito o ridículo, como pode ver. Gostaria apenas de saber como estão os cachorros

e se posso visita-los. Comprei roupinhas novas que combinam e acho que poderiam passar

um tempo comigo. Ando afagando cachorros de outros donos nas ruas, por vezes deitamos

no chão. Faço para eles vozinhas de criança que gostaria de fazer aos cãezinhos por

quem realmente sinto afeição. Há momentos em que choro, quando derrubo um pedaço de

pão no azulejo da cozinha e recordo que preciso catar eu mesma. É por essa saudade dos

cães que te escrevo.

Também não entendo seu exagero. Não esperava o drama do seu silêncio quando te

pedi em casamento no parque temático. Os rapazes da banda não sabiam para onde olhar,

nossos pais se constrangeram. Por que isso? Poderia ter dispensado o chilique na frente de

todos os nossos amigos. Veja, gastei muito dinheiro com os cartazes, os balões e a reserva

da roda-gigante. Tudo isso para ter que aturar um circo. Não entendo.

Saiba que não mais considero nossa casa como nossa. Preciso te lembrar de que

paguei a entrada e sigo pagando o financiamento. Gostaria também de utilizar o carro de

vez em quando. Dos demais presentes, faça bom proveito. Na verdade, as flores já devem

estar murchas e os chocolates sendo digeridos enquanto redijo essa carta. Se bobear, foram

usufruídos com um outro alguém, tamanho o seu apetite por fazer uma cena. Pois bem,

saiba que não me importo.

Não responda. Saberei se o fizer, pois continuo no mesmo endereço. Não fale com

meu irmão quando o encontrar no bar às quintas-feiras. E definitivamente não se dê ao

trabalho de me procurar no escritório. Todos lá estão cientes do seu descontrole.

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Adeus,

Júlia


Cartas de amor

são ridículas

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Meu amor,

Lembro-me quando eu tinha oito ou nove anos e meu pai apontou-me

para uma estrela bastante específica no céu noturno, brilhando intensamente. Disse-me

que aquilo não era uma estrela, mas sim o planeta Vênus. Fiquei tão encantado

de estar enfim vendo um planeta que a todos que eu encontrava e estivesse de

noite eu apontava para o céu e mostrava-lhes Vênus. Faz já muito tempo que não

a procuro, na verdade faz muito tempo que não paro para olhar as estrelas. Será

que, se um dia eu voltar a levantar os olhos para o céu estrelado, reencontrarei

aquele planeta brilhante em meio às estrelas?

Se tenho um grande medo, é de que um dia isso aconteça conosco. Pois

entre tantas estrelas que andam pelas ruas, você é a que mais brilha. E isso porque

você não é uma estrela: é um planeta cheio de vida, cheio de beleza. Um ponto

onde posso firmar meus pés e sentir-me estável, em paz. E assim como meu entusiasmo

de criança por um ponto brilhando no céu, a todos que vejo aponto para

você e falo: este é meu amor, esta é minha paixão, esta é a estrela que norteia

minha vida.

Mas por quanto tempo será isso? Será que um dia não serei mais capaz de

apontar para você, assim como não consigo mais apontar para Vênus? Meu Deus,

quantas coisas de lá para cá aprendi a esquecer! De estrelas no céu a fórmulas

matemáticas, às vezes penso que não ficamos mais sábios com a idade, apenas

mais ocupados. E eu certamente não quero te esquecer. Não quero deixar de te

reconhecer. Não quero um dia ouvir perguntas às quais não saberei responder.

Quero sempre poder dizer sobre o brilho de seus olhos, as covinhas de seu sorriso,

o conforto de seu abraço.

Peço-te então apenas uma única coisa: que nunca me deixe olhar para o

chão. Que nunca me deixe perder você de vista. Quero sempre olhar para você,

apontar para você, falar de você para o mundo inteiro te reconhecer. Dizem que

as estrelas estão tão distantes que o que vemos é apenas o passado dela, devido à

demora que leva para sua luz nos alcançar. Pois então, que da mesma forma eu te

olhe e veja apenas aquele encanto de quando sua luz me atingiu pela primeira vez.

Do seu maior admirador.

David Ehrlich

Curitiba/PR

Nossocanto, 08 de julho 2021

Amor,

É, amor, difícil não acreditar na pessoa do Pessoa, quando permitiu Álvaro de Campos

caracterizar as cartas de amor... Pensasse um pouquinho, entenderia o ridículo

das cartas...

Quanto ridículo se enraizou em minha memória e, com um punhadinho de fertilizante,

fiz desabrochar quadrinhas de paixões, roxas, contundentes, rubis..., algumas

murcharam, perderam folhas, cores e até alguns versos. Entanto, mesmo tolhidas,

continuaram entoando notas de amor... formando sonetos multicoloridos.

Os pombos passaram levando mais cartinhas, ridículas como o amor solitário desses

anos todos. Amor de algodão, de cristal, de prata que se transforma em ouro, em

breve, diamante.

Quanto mais sonhos, surpresas, tilintar de taças, vinhos e comida boa, mais reciprocidade,

bilhetinhos, maior respeito às amplas jornadas de trabalho, menos memorandos

e mais epopeias. Longa estrada, quase verdadeiro amor, igualzinho ao das

novelas e da música brega que dizia: "A gente morou e cresceu na mesma rua, como

se fosse o sol e a lua, dividindo o mesmo céu (...) o tempo passou e eu sofri calada...

num cantinho rabiscado do verso, (...), estou casando, mas o grande amor da minha

vida é você..."

Às vezes, sinto a fria parede erguida entre nossos corações. Ardentemente faço crescer

o meu desejo de apertá-lo em meus braços, de abraçá-lo mais e mais.

Meu Deus! Que pieguice... E mais piegas as lembranças se formam diante dos cabelos

brancos que insistem em mostrar uma velhice que tende a ser tão dócil, irresponsável,

vaidosa...

Ah, o amor, o amor não é só tolo, imbecil e intenso, o amor é mais ridículo, quanto

mais se propõe ao enlace, ao amanhecer abraçadinhos, ao gosto de mel e à fragrância

das rosas e de flores perfumosas.

Ainda me lembro daquelas histórias do amor de Peri por Ceci; de Iracema por Martim;

de Romeu por Julieta; de Otelo por Desdêmona. Meu Deus! Sei que o nosso

amor é assim! Que até seríamos capazes de morrer por ele...

Entre altos e baixos, encontro um bom motivo para lhe escrever mais uma cartinha

de amor... é tão doce praticar esse ridículo, mas poucos são capazes de fazê-lo depois

de 40 e uns anos de convivência e de amor... ainda que por todo esse tempo, a cada

vez que abro os olhos, vejo outro em seu lugar, e sinto mais forte a sua falta. Te amo

nesta vida para estarmos juntinhos na outra.

20


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

Apaixonados pelas letras, pelos traços e por serestas.

Vamos falar de Costelas Felinas?

A editora Costelas Felinas

foi criada em 1998 pela

escritora Cláudia Brino ao

decidir editar seus próprios

livros. A partir da parceria

com Vieira Vivo, em 2008,

a editora foi ampliada para

atender aos amigos, aos conhecidos

e ao público em

geral. O percurso e o trabalho

da editora podem ser conferidos no curta-metragem

documental “Pescadores de Palavras”, lançado

em 2018 e editado pela produtora audiovisual Signos

Possíveis com direção de Madeleine Alves, e também

nas entrevistas concedidas a diferentes meios de comunicação,

dentre as quais destacamos “Entrevista

Diário do Grande ABC TV” e “TV Guará Record

News”.

Cláudia Brino e Vieira Vivo trabalham no ateliê da

Editora Costelas Felinas, da qual são proprietários,

supervisionados pela gatinha Noia, também logotipo

da editora, utilizando principalmente ferramentas

manuais na confecção dos livros e

das revistas. As páginas são dobradas

individualmente. A furação, a costura,

a encadernação e a prensagem são

realizadas de forma artesanal. A tecnologia

digital utilizada resume-se a

um computador e a uma impressora

doméstica.

Tudo começa com o envio dos textos

a serem publicados, juntamente

com uma imagem de capa. A partir

daí, é feita a diagramação e a edição de

um volume da obra, de forma gratuita e

sem compromisso. É possível ao escritor

solicitar de 1 a 100 exemplares da obra

toda vez que assim desejar e por um valor

acessível. O autor tem a opção de

escolher entre capa dura ou não, papel

reciclado ou papel pólen, além de contar

com o registro ISBN e com a divulgação

nas redes sociais.

A Costelas Felinas representa uma oportunidade

para que os autores tirem seus

textos das gavetas a fim de publicá-los.

A proposta é alternativa e o interessante é destacar livros,

que concorreram com obras editadas de forma

comercial, premiados, como é o caso de “Adágio Ensolarado”

de Cris Dakinis (Menção Honrosa UBE-RJ),

“Canção do Andarilho” com haicais elaborados por

moradores de rua e organização de Mahelen Madureira

(Prêmio Bunkyo de Literatura), “Centelha Insana”

de Vieira Vivo (Melhor Livro de Poesias pela IWA -

International Writers Association), “Encantamento”

de Geraldo José Sant’Anna (Prêmio Luso-

-Brasileiro de Poesia) e “Safra

Velha” de Cláudia Brino

(incluso em lista indicada ao

Nobel/2018 pela Edizioni

Universum da Itália).

A Costelas Felinas edita também,

desde 2008, a revista

temática Cabeça Ativa, de

periodicidade trimestral e impressa

em papel reciclado. A

partir da escolha do tema da

21

edição, são abertas convocatórias e pesquisas a fim

de publicar ao final do processo em torno de sessenta

poetas, consagrados e anônimos, de diferentes estilos.

A revista da editora recebeu o certificado de “Melhor

Revista Poética Temática/2017” concedido

pela IWA (International Writers

Association). Vale ressaltar que a convocatória

da revista é apenas um dos

concursos promovidos pela editora.

Convidamos aos leitores da Revista

Cultural Traços a conhecer mais sobre

a editora Costelas Felinas e sobre a Revista

Cabeça Ativa através dos seguintes

endereços:

@costelasfelinaseditora

https://artesanallivros.blogspot.com

https://www.facebook.com/artesanal.

livros

https://www.youtube.com/channel/UCcBriefjAH6Re-

GY2T8pGyNg

Daniela Genaro e Sigridi Borges (Revista SerEsta)

"Traços traçados através da arte, assim é a Revista

TRAÇOS; traçando olhares.”

Costelas Felinas Editora


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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ADÍLIO TEIXEIRA

MARQUES

Manaus - AM

Autor, Estudante de

Geografia e Aspirante

a poeta, escreve

o torto por

linhas retas desde a mocidade,

com influência de seu pai, que

sempre o contou histórias de

vida, através de seus versos.

UM MERO DEVANEIO DE VERÃO

A

vida é uma fração do infinito

Disse-lhe distante

Ao som do próprio grito

Como se trouxesse à tona

Seus tolos sentimentos aflitos

Não era possível prever

Que à noite ela fosse reler

As frases escritas à mão

Nas folhas singelas de um simples cartão

Suas fortes histórias vividas

Que sempre, à sua amada fascina

Em breves ondas arredias

Tão cálidas, pálidas, salinas

E nessas mensagens lidas

Percebeu que a sorte

Ainda lhe era bem vinda

Em cada traço mal alinhado

Descobriu então, extasiada

Que todas as palavras

Se permitem ser rimadas.

Nesses devaneios de verão

Que fogem à mente

Em consoante questão

Elevam sua sombra

Ao mais alto dos céus

Num simples rabisco

Em um pedaço de papel.

23


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ADRIANA MANDUCO

Brasília - DF

Adriana Manduco,

nascida em Brasília

- DF (Brasil),

casada e mãe de

três filhos, gestora de Administração

e Consultora Financeira,

escritora romancista.

adrianamanduco.wixsite.

com/escritora

EU, MULHERES... MARIANA CRIOULA

Novembro, 1838 - Rio de Janeiro - Brasil

A economia cafeeira desponta na região

fluminense, Vale do Rio Paraíba.

A mão de obra escrava corresponde a maioria da

população da região.

Grandes fazendas crescem e se multiplicam às

custas do trabalho forçado de negros e negras,

comprados no mercado de escravos, trazidos em

navios negreiros sob condições totalmente desumanas.

O crescimento financeiro deslumbra os grandes

produtores de café que exigem cada vez mais de

seus serviçais.

Constantes e impiedosos castigos eram imputados

aos serviçais, muitas vezes sem motivo algum.

Grandes troncos, estrategicamente colocados no

pátio das fazendas, serviam como mastro onde

escravos eram amarrados e açoitados com um

instrumento feito com tiras de couro, até quase a

morte. O número de chicotadas eram definidas de

24

acordo com o “delito” do homem ou mulher castigado.

Quando uma das mucamas cozinheiras errava o

tempero da comida de seus senhores era castigada

com bolo, uma espécie de palmatória de madeira,

simplesmente com o objetivo de aleijar as mãos

das escravas.

Caso um escravo se rebelasse ou negligenciasse

uma de suas tarefas no plantio do café, era colocado

em seu pescoço um colar de metal com pontas

salientes, que dificultavam o seu descanso durante

a noite.

Para o escravo fujão, ou que tentava roubar comida,

era imposto o castigo da máscara de ferro

que o impedia de se alimentar. Com isso, muitos

morriam subnutridos.

Em alguns casos, mesmo após os castigos, escravos

eram colocados no vira-mundo: espécie de algemas

de ferro que prendiam suas mãos e pés.

Dia 05 de Novembro - Vila de Vassouras – Brasil

Preocupados com as revoltas de Palmares, Haiti

e Malês, os escravagistas tratavam seus escravos

com muito mais rigor.

Nas fazendas do capitão-mor, Manuel Francisco

Xavier, não era diferente.

No salão da casa grande, Francisca Xavier, sua

esposa, conversa tranquila com Mariana Crioula,

sua mucama.

Mariana era considerada uma escrava dócil e gentil,

por isso, era admirada e protegida por sua senhora.

No cafezal e sob um sol escaldante, negros fortes

carregam sacas de café recém-colhidos dos inúmeros

pés espalhados pela verde montanha.

Da cozinha, um delicioso cheiro de broa de milho

se espalha por todo o casarão.

No galpão, Manuel Gongo, o escravo ferreiro,

trabalha com outros seis escravos.

No cair da tarde a frágil calmaria é interrompida

após um alto barulho de tiros vindos da senzala.

Assustada, a senhora Francisca pergunta ao jardineiro:

- O que houve? Esses barulhos foram tiros?


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ADRIANA MANDUCO

Brasília - DF

EU, MULHERES... MARIANA CRIOULA

Também temeroso o velho responde:

- Sim, minha senhora! O capataz acaba de matar o

escravo Camilo Sapateiro.

- Mas, o que fez ele para merecer a morte?

- Senhora, pelo que ouvi de um outro capataz, o

escravo foi morto sem nenhum motivo aparente.

Atenta, Mariana ouve o diálogo de sua senhora.

A morte do pobre rapaz causou uma enorme revolta

nos escravos da fazenda, crescendo o clima

de ódio, sendo este o estopim para um grande levante.

Por volta da meia-noite, um grupo de escravos,

liderados por Manuel Congo, matam o capataz e

arrombam as portas da senzala. Mucamas se juntam

a eles, inclusive Mariana.

Antes do dia nascer a rebelião se espalhou pelas

outras fazendas de Francisco Xavier: São Luis da

Boa Vista, Cachoeira, Santa Tereza e Monte Alegre.

Cerca de quatrocentos escravos, entre homens

e mulheres, embrenharam-se na Serra da Estrela

planejando a formação de um novo Quilombo.

Manuel e Mariana logo tornam-se os líderes do

levante e foram intitulados pelos outros escravos

como rei e rainha. Mais que um casal, eles eram

guerreiros natos. Juntos, lutavam pela liberdade!

Quem poderia imaginar que uma escrava de aparência

tão frágil e delicada fosse na verdade uma

grande e visionária mulher?!

Fixaram-se nas matas da Serra da Mantiqueira e

iniciaram a montagem de um Quilombo.

Com as ferramentas saqueadas das fazendas de

Manuel Francisco Xavier, os escravos planejavam

iniciar uma plantação para o sustento de todos.

As armas serviriam para a proteção do Quilombo.

Inconformados, os fazendeiros da região solicitaram

à Guarda Nacional que partisse em busca dos

fugitivos.

Sob o comando de Luís Alves de Lima e Silva, o

futuro Duque de Caxias, os soldados localizaram

o grupo de escravos.

25

Após a troca de tiros entre a Guarda Nacional e

os rebelados, onde dois guardas morreram e outros

dois caíram feridos, desencadeou um intenso

massacre.

Todos os escravos recusavam a se entregarem, desobedecendo

a ordem do comandante da Guarda.

Cerca de vinte deles são mortos e outros tantos

são alvejados por espingarda nas pernas para impedir

a fuga.

O restante dos escravos largaram suas armas e saíram

correndo, desesperados.

Manuel e Mariana mantiveram-se firmes.

Aos gritos, ela declarava:

- Morrer sim… Se entregar jamais!

Levados prisioneiros, somente dezesseis negros foram

julgados: Manuel Congo, Pedro Dias, Vicente

Moçambique, Antônio Magro, Justino Bengala,

Belarmino, Miguel Crioulo, Canuto Moçambique,

Afonso Angola, Adão Bengala, Mariana Crioula,

Rita Crioula, Lourença Crioula, Joanna Mofumbe,

Josefa Angola e Emília Conga.

Mesmo após a tentativa de linchamento pela população,

Mariana e todas as mulheres do grupo

foram absolvidas, a pedido de sua dona, Francisca

Xavier.

Porém, como forma de castigo, ela foi obrigada

a assistir a execução pública de seu companheiro,

Manuel Congo, o único sentenciado a pena de

morte em 04 de setembro de 1839.

Manuel subiu ao cadafalso no Largo da Forca e

foi enterrado como indigente.

Outros sete homens receberam seiscentos e cinquenta

açoites e passaram três anos com um gonzo

de ferro no pescoço.

Entretanto, o Quilombo de Manoel Congo e Mariana

Crioula era a evidência de que os escravos

continuariam sua luta contra a escravidão.

Mariana é lembrada por seu legado de garra e revolta

contra a política de maus tratos, usada pelos

Barões do Café.

Somente em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel

assinou a Lei Áurea, sendo o Brasil o último país

do continente americano a abolir a escravidão.

Com isso, cerca de setecentos mil escravos foram

libertos de sua humilhante condição.


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

AGNES IZUMI

NAGASHIMA

Londrina - PR

HAICAIS DE INVERNO

Outono findou

e as folhas secas despertam

mais um frio de inverno.

No amanhecer álgido,

gotas de orvalho congelam,

café pra aquecer.

Em um dia frio,

caminhada sob o sol,

flor de cerejeira.

Silêncio na rua.

Sol aquece pela fresta

o gato encolhido.

Vento congelante,

permanecem abraçados

à luz do luar.

Escreve contos e

poemas, publicou

em revistas

e coletâneas. É

acadêmica correspondente

da Academia

Internacional da União Cultural,

faz parte da UBT Londrina

e da Comissão de Autores

da WebTv.

26


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ALBERTO ARECCHI

Pavia – Itália

Arquiteto italiano,

mora em Pavia.

Presidente da Associação

Cultural

Liutprand, que edita estudos

sobre a história local e as

tradições (liutprand.it). Escreve

contos e poemas.

O DIABO DA NUMÍDIA

Estou disposto a apostar que nenhum de

vocês já conheceu o diabo na Numídia.

Acredito que eu o vi, há muitos anos,

durante uma viagem de carro para atravessar

as montanhas da Medjerda, entre a Tunísia

e a Argélia. Era uma noite muito chuvosa e o

caminho, estreito e cheio de curvas fechadas, não

estava equipado com proteções adequadas para

garantir que o viajante não voe para a direita na

próxima ravina. Eu havia embarcado em Gênova,

debaixo da chuva. Após o desembarque na

Goulette, estava chovendo. Vinte e quatro horas

de água por cima do ombro, a água dos lagos em

Tunis de um lado e do outro, a água do céu. Realmente

demasiado: tentem vocês dizer isto àqueles

que estão convencidos de que na África nunca

chove. Abandonei a intenção original de passar

um dia inteiro em Tunis e decidi não parar. Ao

longo da estrada costeira eu podia chegar em volta

da noite em Annaba, mas a cidade era famosa

por seus ladrões, capazes de cortar vossos pneus

nos cruzamentos para forçá-los a ir para baixo e

roubar tudo... Então, aventurei-me na outra estrada,

que no papel não parecia muito desconfortável,

a convicção de chegar antes de escurecer em

Souk Ahras, a antiga Tagaste, lugar natal de Santo

Agostinho, uma tranqüila vila de montanha, do

outro lado da fronteira argelina. A chuva e as terríveis

curvas daquela estrada de montanha me dariam

uma noite de horda.

Em aquelas montanhas, anos antes, tinham lutado

os fellagha (rebeldes argelinos em revolta contra

a França). As tropas coloniais tentaram construir

uma linha “impenetrável” de fortes e arame farpado,

para impedir o fornecimento dos rebeldes. Os

sinais eram escassos, ao longo do caminho, mas eu

não estava com medo de me perder: a estrada de

asfalto estreita, toda de voltas e reviravoltas, continuava

subindo para o céu, sem desvios, embora

invisível na noite negra.

Nas curvas fechadas mais expostas, a chuva parecia

abrir o caminho sob as rodas. Eu tentava não

pensar sobre o que eu poderia esperar após a próxima

curva, cantarolando entre os dentes alguma

canção esquecida. Após cerca de dez minutos, no

entanto, a tensão renovava-se. Além da chuva,

das curvas, da escuridão, dos relâmpagos repentinos

que iluminavam a noite, eu tinha medo que

uns animais selvagens, atravessassem de repente

o meu caminho: um javali, um macaco, um cão

vadio, uma raposa ou qualquer outro ser vivo. Na

noite escura o carro poderia ter sido parado e não

encaminhar-se mais.

Isto pode explicar por que não parei, mesmo hesitando

um momento, quando, no meio de uma

curva, na escuridão diante de mim, uma silhueta

branca apareceu de repente. Uma grande sombra

pálida, com as asas abertas: tinha de ser uma ave

de rapina noturna na caça, talvez uma coruja de

celeiro. Parou por um momento no ar, na luz amarela

dos faróis, e desapareceu, em quanto meus

olhos tentavam reconhecer a estrada.

Um instante - ou um século - mais tarde, retornei

a mim de um breve desmaio, a testa coberta de

suor frio. Apito de morteiros. Eu estava sempre

na estrada, na noite de tempestade, mas estava

conduzindo um veículo blindado. De dois miradouros,

colocados em penhascos com vista para o

caminho, os raios de luz passavam na montanha

em busca dos rebeldes. Rajadas longas de metralhadora

cortavam a noite. Como sombras que desapareciam

na escuridão, os fellagha não se viam.

Meu carro passou no fogo cruzado de balas traçadoras

e vi diante de mim, claramente, uma máscara

sorridente: uma espécie de harpia, empoleirada

sobre o capô do meu caminhão. Como se fosse de

27


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ALBERTO ARECCHI

Pavia – Itália

O DIABO DA NUMÍDIA

fósforo, a larva brilhava de luz própria, pairando

e mexendo, aqui e ali.

Sentia-me em perigo imediato, o fantasma bailarino

me assustava mais que as rajadas e a tempestade.

Tinha que me forçar a ficar firme, os olhos bem

abertos na noite, tinha que não distrair-me. Sabia

instintivamente que, se seguir com os olhos os movimentos

da aparição, escaparia para fora da estrada,

descendo a ravina íngreme. O vento trazia

rajadas violentas de chuva. O confronto armado

parecia ter acabado, mas alguns tiroteios isolados

ainda ecoavam na escuridão. Os olhos corriam entre

as sombras de tuias e carvalhos, procurando o

brilho de uma arma ou o movimento das capas

dos rebeldes. Em vez disso, só via redemoinhos e

ramos, balançando nas rajadas do vento; mas no

jogo de luz e sombras, às vezes, até mesmo transparecia

o sorriso atroz da visão. A máscara me

convidava para acompanhá-la. Girou e veio descansar

em uma clareira, a cerca de cinqüenta metros

da estrada.

Então, a face do sorriso satânico explodiu em mil

fragmentos: estilhaços de luz, madeira, metal e

terra úmida. Um morteiro atingira uma barraca,

um pequeno depósito de munições. Longos minutos

de fogos de artifício. Parei, sai do veículo e me

aproximei cautelosamente à clareira. Deitado em

seu próprio sangue, um jovem soldado camuflado,

com o rosto desfigurado pela explosão, engasgava

e morreu em meus braços. Eu nunca vou saber

se era um francês, um mercenário da Legião ou

um rebelde. Nenhum sinal o identificava, e face

da morte os jovens são todos iguais. Ao longo

dos últimos suspiros, ele tirou do bolso o retrato

de uma menina apertando-o convulsivamente na

mão, como se estivesse tentando se agarrar àquela

última esperança, última memória. Deixei-o lá, na

chuva, na escuridão e no silêncio que se tornaram

absolutos. Na estrada, com os faróis acesos, meu

28

carro estava esperando.

Durante essa viagem, cheguei em Souk Ahras que

já era noite avançada e encontrei dificuldades para

achar um quarto para descansar. Tive a sorte de

ver nas ruas desertas um funcionário público, que

se ofereceu para chamar os poucos hotéis na cidade,

e me arranjar uma cama. Ainda me lembro

da estalagem esquálida, cujos lenços tinham definitivamente

perdido sua inocência e foram tão

endurecidos para ficar contra a parede, na posição

vertical, sem cair. Fiquei completamente vestido

na cama, grato à noite fria. Dormi muito pouco,

ainda abalado pela viagem na tempestade, pela

visão, os tiros, a imagem daquele jovem morrendo.

Acordei e retomei o sono, pelo menos, quatro

ou cinco vezes: a noite nunca passava. No dia seguinte,

a tempestade se acalmara e o céu estava se

abrindo, o vento não trazia mais nuvens. Assim

como não havia luz suficiente, eu continuei a viagem

para Argel.

Na minha longa estadia nesses países fui capaz de

descobrir, a partir de livros e conversas, as lendas

que são contadas, sobre aparências semelhantes

ao fantasma que eu tinha visto naquela noite.

O “diabo da Numídia” materializa-se como uma

larva ou um fantasma, em ocasiões especiais, para

prever - ou evocar - eventos desfavoráveis, em certos

vales as montanhas entre a Tunísia e a Argélia.

A gente diz que o diabo aparece na Numídia

quando alguém tem que morrer de uma morte violenta,

mas também para abrir brechas temporais,

aberturas que permitem conhecer o passado ou o

futuro.

Nessa noite de tempestade, a larva não tinha vindo

para me levar, ou talvez... Quem sabe? O que

é certo, é que a morte tomou uma vida naquele

lugar, naquela hora - mas em que ano, em qual dos

muitos mundos paralelos?

O diabo da Numídia lá estava.


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ALESSANDRO JOSÉ

PADIN FERREIRA

Praia Grande - SP

Poeta, professor universitário

e jornalista.

Após anos dedicados

à atividade

jornalística e acadêmica,

retomou sua produção poética.

Está preparando o seu

primeiro livro.

https://medium.com/padin

UMA CARTA PARA MANOEL DE BARROS

A maior riqueza

do homem

é sua incompletude.

(Manoel de Barros)

Não reli nenhum dos seus poemas ontem, quando fui dormir pensando em você.

Só lembro, nesta minha memória falha que erra até o Hino Nacional, que você

entende o canto dos passarinhos, o dançar da terra sob os pés e a beleza de folha

balançando em frente à janela, mesmo que não haja flores.

Os passarinhos daqui foram embora lá pra floresta. Aquele vermelhinho, então, nunca mais

vi. A terra, coberta pelo concreto, e as flores são, como sempre, resistência. O dia não começa

com o som da brisa que vem do mar, tentando acalmar as urgências da rotina. É com o som

tonitruante das estacas que lembro onde estou e que tudo pode ser mais duro.

Quando escrevo, mais um caminhão dá uma freada violenta e o rugir do motor reforça minha

impotência. Devo ir embora? Não sei. Estou tão cansado e andar por aí pode ser perigoso.

Até o sorriso gratuito, que gosto de dar para desconhecidos embrutecidos, é censurado pela

máscara que raspa minha barba e me faz sentir pequeno diante de tudo.

Deu uma vontade danada de ler um poema seu agora, para lembrar da minha humanidade e

de que nem tudo são ambição e cifras. Deu uma vontade danada de dançar sob a terra, imitar

os passarinhos, distribuir flores para os funcionários da obra levarem, com um pouco de ternura,

para as suas amadas nos barracos da vida.

Deu uma vontade imensa de ser ridículo aos

olhos de quem se acha normal, pois, nesta

etapa da vida, concluo que são os ridículos

que fazem tudo valer a pena. Aqueles que riem

de si mesmos, que não usam guarda-chuva,

que tomam café sem açúcar e que param na

esquina para ver a goiabeira da infância.

Manoel, hoje é quinta-feira, dia dos Caboclos. É dia

de tomar banho de ervas. Alecrim, Aniz Estrelado e

outras que preciso ver lá na lista, pois sou

esquecido. Acho que vou fazer isso no jardim,

para não sujar muito o banheiro.

Fica bem, amigo. Prometo que hoje vou dormir

lendo algum poema seu.

Um beijo.

29


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

AMANDA COELHO

Petrolina - PE

Amanda Barbosa

Coelho, 25 anos,

atualmente graduada

em Direito Pela

Facape. Trabalha com performances

de intervenção urbana

e literárias desde 2017. E, desde

de 2019, também com audiovisual.

ELIZABETH

A

oeste o céu estava iluminado pela derradeira luz do poente.

O pôr do sol banhava a fragilidade daqueles minutos.

Os melhores momentos, eu acho, são aqueles que, quando revisitados na memória,

a gente sabe que, enquanto os viveu, não os reconheceu como momento. E é talvez

por isso que sejam especiais: não foram estragados pelo desejo de perpetuar cada instante de

saciedade.

Minha pupila dilata.

A vontade do abraço aumenta.

Permaneço segurando a grade do píer; a água abaixo bate calma e silenciosa contra as pedras

nuas que evidenciavam o inicio da seca.

Sentia o tempo esticado e preguiçoso como um gato que dorme.

- A água costumava bater ali naquela marca mais escura. Tá vendo? – debruçou-se ousadamente

por cima das grades.

- Tô sim – projetei a cabeça timidamente. Um arrepio me percorreu a espinha.

Um passo pra trás. O vinho derrama. Risos.

Olhares que se encontram e fogem outra vez

Foi como num piscar de olhos, o tempo passou. Como o virar de uma página, tanto tempo

passou.

O píer hoje estava vazio.

O céu estampava o mesmo tom de rosa alaranjado daquela data.

O crepúsculo vindo do leste investia impiedoso contra o adeus singelo de luz do sol. Absorta

eu observava a batalha silenciosa sendo travada na abóbada do céu.

Era possível ouvir o farfalhar de asas e a sinfonia desarmoniosa dos pardais que se acomodavam

nos galhos de árvore. Como se só o sono dos passarinhos inaugurasse oficialmente a

noite.

- Vê, Liz? o mundo é tão lindo, mas você se matou no inicio daquele novembro.

É estranho pensar na comunhão da vida que o universo rege lá fora. Nada mudou desde que

você se foi. E nada vai mudar!

Não lá fora, eu sei...

Amanhã é o primeiro dia do outono. Depois vem o verão. O inverno. A primavera e então

outono outro vez. O ciclo se completa e se perpetua. O mundo existe independentemente de

mim ou de você.

Essa indiferença do universo em relação a nossa insignificância é o que me conforma e me

conforta. O movimento continua. É assim que tem que ser.

No céu, a lua iluminava a escuridão com uma luz branca em um halo perfeitamente anelar.

Amanhã não estarei mais aqui. Não sei se no amanhã que se anuncia ou um outro maior ainda,

mas amanhã, eu sei, poderemos andar de mão dadas novamente, com nossos corpos de

memória, que já nem projetam sombra no chão.

30


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

AMILTON DE ARAÚJO

CAVALCANTE

São Luís - MA

Originário de Barra

do Corda (MA),

onde passou a infância

e a adolescência.

Mudou-se para Teresina

no ano de 2011. Formado

em Filosofia, escreve desde os

14 anos. Atualmente reside em

São Luís (MA).

AGONIAS SILENCIOSAS

Assenta a luz do dia, dissipando-se...

Sobre as nuvens roseadas no horizonte

Assenta-se a beleza rara e momentânea

Por sobre um chão enlameado e agonizante

Esta é a hora mais vaga, mas o momento da certeza

Entre a multidão e a escassez

A ponte insegura dos suspiros, dos olhares

Vomitando a andança que ata o medo à necessidade

Rosários de lamentos obscuros

Adoçando as orações do sol poente

A terra seca estende nervos rachando a ansiosidade da chuva

Na alma do entardecer que se assenta meditante

Engolindo as sensações selvagens ao esquecimento

Agonias silenciosas se desdobram no bordado

Cristalizando o lago turvo da memória

Fio por fio no tecido raso das horas

Ponto por ponto de consciência lógica

Traçado o plano, resta o peso do fato

A sede é que gera o medo

Mas a sua busca é a coragem do ato

Que toda a tentação exige o seu tentador

Que eu fiz em mim mesmo, em meu desejo

O tentador que, nas entranhas, a mim mesmo tentarei

Fumaça, fumaça e fumo...

Exala para as nuvens um sossego

O sossego do mundo...

E eis o sono perdido que encontrei

E o som, e a sombra e o homem

Entre as coisas de que nunca falei.

31


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ANA LAURA JALLES

Natal - RN

BEM ME QUER

Em 2010, Ana publica "A menina

da bola Rosa, Ed.Ata, Natal-RN";

2013: voz e violão na TV TCM,

Mossoró-RN; 2015: voz e violão

na Casa do Brasil, Madri: 2016

em diante: voz e violão em restaurantes;

2019: Lança Get High

(Spotify).

Assista o vídeo da música "Bem

me quer"no YouTube

https://www.youtube.com/watch?-

v=IdPQEaJhUZg

"Bem-me-quer"

de Ana Laura Jalles

Vento leva

nem sei,

tudo que vai também vem,

tudo que vem também vai.

Calma que passa, rapaz.

Que é que isso?

Tá perdendo o juízo, rapaz.

Calmaria, cê que sabe.

Se quiser pode ficar a vontade.

Bem-me-quer.

Mal-me-quer.

Mas eu me quero

bem mais.

Mal-me-quer.

Mas eu me quero

bem mais, rapaz.

Universo inconsequente

entorpece a mente.

Verdades, mentiras

iludem quem sente.

Uma vez

no abismo eu pensei:

era uma vez.

Uh, uh, u, oh, oh, oh

Bem-me-quer.

Mal-me-quer.

Mas eu me quero

bem mais, rapaz.

Bem-me-quer.

32


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ANDRÉ NÓBREGA

NOVIS DE OLIVEIRA

Rio de Janeiro - RJ

PARADISE CITY

Corte seco. Sua pronúncia

precisa da língua francesa,

tal qual uma

nativa. Literatura romanesca,

manteiga de cacau, restinga

ainda conservada,

não me constrange,

nem me restringe.

Tacar uma pedra

por cima do lago da infância

com raiva, mágoa,

estilingue

calcinha muito grande,

abocanha, do nada,

a minha cabeça.

apontado para o flagrante

surgido. Sorriso possível

no silêncio.

Formado em cinema,

em breve lançarei

meu primeiro livro,

de poemas. Mais do

que nunca creio no poder da

arte como cura, eixo de construção

e alimento, diante de

uma realidade cada vez mais

complexa.

Façamos um minuto

de silêncio, pelas

vítimas

da Covid. Façanhas,

o risco de assumir

a postura

de esfinge, com

as coxas na

caixa de Pandora

Coitos, adereços ridículos,

discussões sem sentido.

São sempre os mesmos

caminhos. Desconfio

já ter lubrificado

contigo,

todas as voltas

feitas, pela concepção

terrena de paraíso.

33


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ANDRÉA CARVALHO

Rio de Janeiro - RJ

Carioca, professora

de Língua Portuguesa

e Inglesa,

formada pela

UFRJ.

Por meio das publicações

"50 Dias Letivos" e "Falas

Brasileiras" conto capítulos

da história de muitos educadores

desse país.

UM DEDINHO DE PROSA

Consta em muitas gramáticas e livros

didáticos, de maneira muito discreta

e sem riqueza de exemplos, que

o sufixo –inho/a não serve só para

formar o diminutivo das palavras em português,

ou seja, indicar o tamanho dos seres ou

das coisas, percebe-se facilmente que, quando

se diz “fulano está vivinho da silva”, “aquela

mulherzinha fez um escândalo” ou “você é o

meu benzinho”, não nos referimos ao tamanho

ou à proporção do adjetivo/substantivo,

estamos sim acrescentando a ideia de intensificação,

pejoratividade e afetividade aos vocábulos

vivo, mulher e bem. Estar vivinho não

é simplesmente estar vivo, é estar surpreendentemente

vivo. Aquela mulherzinha é uma

pessoa desqualificada por algum motivo. E o

benzinho, se trocado por “meu bem”, pode

até ganhar uma conotação irônica, dependendo

da intencionalidade envolvida na escolha

de uma ou outra palavra.

Se você já desconfiava que, quando um atendente

lhe pede que aguarde “só um minutinho,

senhor”, é porque a espera será longa;

que o “jeitinho brasileiro” não se trata apenas

de uma pequena característica da nossa

cultura, mas quase uma regra de comportamento,

ou que um “rapaz bonitinho” pode

ser feio, mas arrumadinho, você está rondando

o âmago da questão. Certamente já usou

no seu cotidiano o grau diminutivo para atenuar

uma mentirinha, desprestigiar alguma

coisa ou até ironizar alguém. Isso porque as

possibilidades de emprego são inúmeras, estão

muito presentes nos nossos hábitos linguísticos

e variam de acordo com a intenção,

o efeito desejado ou a manifestação de uma

emoção do falante.

Esse poderoso recurso de linguagem está intimamente

ligado ao contexto. Por isso, cuidado

ao inserir o –inho/a deliberadamente no

final de uma palavra, pois você pode provocar

confusão ou ser mal interpretado. Se espera

ganhar um automóvel novinho, não diga

que vai ficar feliz com um carrinho novo, pois

pode ser que se decepcione com o presente.

Se vai se ausentar do trabalho, não fale que

vai dar só uma saidinha rapidinha. Seu chefe

pode ficar bravo. Ao sair para fazer umas

comprinhas, não retorne com dez sacolas, a

menos que seja você o titular do cartão de

crédito.

Esse emprego corriqueiro, esse modo de falar,

já provou que não tem muito compromisso

com a realidade dos fatos, mas ainda assim

pode produzir um efeito de sentido diverso do

pretendido e deixar o seu interlocutor, no mínimo,

descontente, mas só um bocadinho, ou

cadinho, à moda lusitana. O ideal é saber manejar

mais esse fantástico mecanismo da língua

portuguesa a seu favor e de acordo com a

intenção pretendida. E caso você perceba que

está usando pombinhos, vaquinha e peixinho

sem significar animais de tamanho pequeno,

é porque há ainda outros valores atribuídos

ao sufixo –inho/a, diferentes do que tratamos

até aqui. Mas isso fica para um próximo textinho…

34


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ANDRESSA GALVÃO

Londrina - PR

Professora de Língua

Portuguesa na Rede

Pública Estadual, em

Ituiutaba, MG, sua

cidade natal. Tem diversos

contos e crônicas em Antologias

digitais, e terá publicado

o primeiro livro de Contos.

ONDE ESTÁ A LITERATURA?

a literatura surge das latas de lixo fétidas e lotadas

de rosas cheirosas

e espinhosas

de mentes apaixonadas

obcecadas

inevitavelmente ególatras

embriagadas

a literatura está nos fios que levam energia para as casas

nas luzes que brilham em noites caladas

na consciência pesada

cheia de pesares

na alma rasgada

nos bebês paridos dos ventres de mães cansadas

olhos recém abertos

deparam-se com os horrores deste mundo

com a fome e a desnutrição

as grandes fortunas e a sonegação

descobrem que precisarão lutar por suas vidas

se forem vidas periféricas

precisarão lutar mais ainda

são vidas que mal começaram e já estão perdidas

afogadas em latas amassadas

copos de bebida

a efervescência intelectual dos pobres humanos

não parece ser suficiente para os intelectuais desumanos

muitos morreram

que pena

precisamos seguir

esquecer

vender nosso tempo

perder tempo para as competições acirradas

estar no topo

ao lado de almas desalmadas

meritocratas

a literatura está no mundo

em miudezas e grandezas

em seres individuais

que precisarão aprender a lutar juntos

35


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ANTONIO GIL NETO

São Paulo - SP

Nasceu em Taiaçu.

Graduou-se

em Letras e Pedagogia.

Reside

em São Paulo desde 1978.

Trabalhou em Educação, na

formação de educadores e

na criação obras didáticas. É

autor de literatura juvenil.

O AZUL DO AR

O que dizia este sol

sua voz

serenando os ventos?

Apontando andanças

de buscar orvalhos

sua direção, manancial.

De longe um olhar espreita

vocifera

e lambe o mato.

O que acua,

subverte

sempre

adverte às coragens mais fáceis.

Os raios não aquecem o inesperado

esse instante de estouro e movimento

a romper os ares.

Há a arte

e caudaloso

que alimenta a sermos ainda mais humanos

que tornam poéticos todos

os cantos

os brados

asas

que incendeiam todos os prantos.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

E O VENTO LEVOU

ARISSON TAVARES

Escritor, jornalista e

cartunista do portal

Só Notícia Boa,

sendo finalista na

52ª edição do Prêmio de Comunicação

da CNBB.

Saiba mais acessando:

https://arissontavares.wixsite.com/site

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

BELISE CAMPOS

Curitiba - Pr

Belise Campos [Curitiba/Paraná]

nasceu

em 91. É contista,

mas também se arrisca

na poesia. Publicou nas

Revistas LiteraLivre e Toma

Aí Um Poema. Leitora ávida

dos autores russos e poetas

românticos.

HÁ NOITES QUE PALAVRAS SÃO COMO PROSTITUTAS BARATAS

à você

palavras se entregam

como amantes

apaixonadas

no entanto

à mim

chegam como

prostitutas

mal pagas

a contragosto.

38


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

BERNARDO A.

CARVALHO

Brasília - DF

Mora em Brasília.

Jornalista

e escritor,

autor de

Aventuras de um Ariano

Taurino e de A Globalização

em Xeque.

A POLCA FINLANDESA

Meados da década de 1980, tínhamos

formado uma turma de

amigos numa viagem de barco

descendo o rio São Francisco.

Havia gente de Belo Horizonte, Rio de Janeiro,

São Paulo, Ubatuba e outras cidades.

Éramos jovens que gostávamos de conhecer

as diferentes regiões do Brasil, seus costumes,

viajar do jeito que fosse dormir onde desse,

curtindo o rock rural de Sá, Rodrix e Guarabira

(sem contar Alceu Valença, Geraldo Azevedo,

Clube da Esquina, 14-Bis...).

Marcamos vários encontros depois da viagem

pelo Velho Chico. E um deles foi no Parque

Nacional de Itatiaia, na junção dos estados do

Rio, Minas e São Paulo.

Éramos

umas trinta pessoas, equipadas com barracas,

dispostas a explorar as belezas daquele

local. Para nossa surpresa, descobrimos que

ali já havia nevado, na década de 60. Fazia

um frio danado, mas isso não impediu vários

de nós de pularmos nas águas geladas de uma

cachoeira. Procurar as cachoeiras - e mergulhar

nelas -, era um imperativo em todas as

nossas viagens.

Na quinta-feira, início de um feriado estendido

de Sete de Setembro, alguém comentou

que, no sábado, haveria uma festa na cidade

vizinha de Penedo. E que ali se dançava uma

polca finlandesa...

Aquilo captou minha atenção imediatamente.

Eu adorava exotismos e nunca tinha dançado

uma polca, muito menos uma polca finlandesa...Era

algo que teria que fazer.

Conversando daqui e dali, ficamos sabendo

que, no início do século XX, um grupo de finlandeses

amantes da natureza comprou uma

antiga fazenda de café na região, mudou-se

para lá, iniciou uma comunidade vegetariana

e construiu Penedo (não confundir com a

Penedo de Alagoas), que hoje é um bairro do

município de Itatiaia. A comunidade cresceu,

alguns filhos foram estudar e/ou trabalhar no

Rio de Janeiro, mas aos sábados sempre havia

uma festa que a reunia. E nós estávamos

prestes a conhecer essa coisa original, diferente,

encontrada sem querer.

De quinta a sábado eu dizia: “Quero dançar a

polca finlandesa”. Vários integrantes do nosso

grupo se entusiasmaram também e acertamos

a viagem a Penedo.

No sábado à noite, enchemos uns cinco ou

seis carros e nos embrenhamos pelas montanhas.

Chegamos a Penedo e encontramos

muito movimento. Praças e bares cheios, soubemos

que havia saunas na cidade (claro!),

um grupo grande dos nossos já parou num

bar, começou a tomar umas e outras e ficou

ouvindo uns músicos.

Eu só queria chegar ao clube onde a festa estava

acontecendo, bar eu tinha aos milhares

em Belo Horizonte, queria mesmo era a polca

finlandesa...Fui direto para o local, com a minha

irmã Jacqueline e um amigo “mineirim”,

José do Rosário.

Na porta do clube, fomos informados de que

era preciso comprar um convite. Pagamos e

entramos. Algum tempo depois o Márcio Faria,

líder do nosso grupo, chegou e disse ao

porteiro que estava com mais vinte pessoas.

“Qual é o desconto que vocês dão?”, perguntou

espertamente. A resposta foi seca: “Não

fazemos questão de grupos aqui”. Já era um

sinal...O restante da nossa turma – pão duro

ou mão de vaca – preferiu ficar bebendo na

praça.

No clube, estava tocando uma música tradicional

finlandesa. Se era polca, não sei. Para

39


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

BERNARDO A.

CARVALHO

Brasília - DF

A POLCA FINLANDESA

nós, ficou sendo, já que alguém nos tinha dito

que era (olhando na internet, vejo que eles

curtem polcas, mazurcas e até um “tango finlandês”...).

O fato é que havia um grupo de

pessoas fazendo uma exibição, vestida com

roupas tradicionais da Finlândia. A grande

maioria era de louros, com aquela pele quase

transparente e muitos olhos azuis. Mas havia

um rapaz mulato, mostrando que alguém da

comunidade não resistiu aos encantos tropicais

e rompeu as barreiras étnicas do lugar...

E ele dançava bem, misturando a ginga brasileira

às evoluções escandinavas.

Assistimos ao show, aguardando o momento

de poder participar.

Lá pelas tantas os “astros” se retiraram e o

salão foi tomado pelo público, com a “polca”

prosseguindo. Era chegada a tão esperada

hora. Enchi o peito de coragem, escolhi uma

garota atraente, me aproximei e perguntei:

“Vamos dançar?”. E a resposta foi curta:

“Não”.

“Levar uma tábua”, como se diz em Minas,

era parte do métier de um candidato a dançarino.

Escolhi outra garota, repeti a pergunta e

recebi a mesma resposta: “Não”.

Disposto a não sair dali sem dançar, aproximei-me

de uma terceira e o ritual foi o mesmo:

“Não”.

“Tenho que mudar de tática”, pensei. Na

quarta tentativa, eu disse: “Você me ensina

a dançar essa música?”. Quem sabe ela tinha

uma certa vocação para professora, e gostaria

de compartilhar sua cultura comigo? Mas a

resposta não variou: “Não”.

Encontrei o José do Rosário e perguntei se ele

tinha tido sucesso. Ele disse que tinha feito

várias tentativas, infrutíferas.

Aos poucos me dei conta de que aquela era

uma comunidade fechada, que via a festa dos

sábados como uma reunião de família. Estranhos

não eram bem-vindos...

Sem saber o que fazer, ficamos os dois parados,

olhando a turma se divertir. Foi quando

vi duas garotas dançando juntas. Aí me veio

uma ideia pouco ortodoxa: “Zé, eu não vou

embora sem dançar esse diabo dessa polca.

Vamos dançar nós dois? Olha ali, duas mulheres

podem, então dois homens também

podem...”

Ele tomou um susto, mas logo abriu um sorriso

e disse: “Vamos”.

Entramos no salão e começamos a deslizar

para lá e para cá, imitando os passos dos outros

pares. Era muito divertido, as pessoas

fingiam que não estavam olhando, mas dava

para ver um rabo de olho quando elas passavam

ao nosso lado. Minha irmã acompanhava

tudo, incrédula.

Dançamos dolentemente, percorrendo todo

o salão, olhando diretamente nos olhos das

pessoas. Mas, como costuma acontecer em

Minas Gerais, ninguém passou recibo de que

estava interessado em olhar.

Muitas voltas depois, agradeci ao Zé pela

dança e exclamei: “Pronto, agora podemos ir

embora. Já dancei a polca finlandesa”.

40


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

A VISITA

CAMILA LOPES

Santa Cruz

do Rio Pardo - SP

Depois de anos, fui visitar minha tia que sempre

morou sozinha em um sítio. Aproveitando

a oportunidade, decidi sanar uma

curiosidade:

— Tia, por que você sempre guardava o espantalho

no meu quarto à noite depois que eu adormecia?

Minha tia me olhou assustada e respondeu:

— Mas eu nunca guardava!

Camila Lopes é

historiadora e

amante de contos

de terror.

Escritora amadora empenhando-se

em pôr medo em

pessoas desavisadas.

41


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

CARLOS VILARINHO

Palmeira

das Missões – RS

LOGO AO SAIR DO SOL

Deixou o menino dormindo

trancou a porta e saiu ainda

era cedo da manhã o sol mal

despontava atravessou a cidade

evitando os pensamentos sem escolher

as ruas as esquinas seguiu sem pestanejar

cega sem considerar as consequências

do que faria sabendo-as seguiu maquinal

sem escolher aclives declives ofegando pelas

calçadas trocando passos apressados

sem olhar para os lados sem perceber as

pessoas a paisagem invisível inviável improvável

na pressa de resolver a vida de

estancar aquela dor de tratar a ferida na

pressa de começar de novo de afastar os

entraves de resolver de resolver de resolver

no último recurso com o último recurso

na derradeira loucura na insanidade

programada e alimentada pelo desespero

aniquilador e frutífero como foi a vida até

ali e caminhou cem mil passos sem saber

quase a correr até chegar até chegar na

hora no momento chegar pela última vez

chegar para sempre sem esperar sem mais

demora sem ajustes e chegar bater na porta

insistir à porta ver a porta entreabrir-

-se e escancarar tantas dores escancarar o

abandono a violência o medo o descaso

a solidão olhou no olho aflito da mulher

desconhecida da mulher que nunca havia

visto pela porta entreaberta e o olho arregalado

da mulher desconhecida já traduzia

a tragédia a mulher desconhecida que

estava à porta à porta de seu desatino à

porta de seu passado à porta de sua dor

incomensurável aquela mulher viu uma

vida se esvair em seu olhar e gritou clamou

pelo homem o homem sem sangue

sem cor sem energia que veio o homem

já morto já entregue à sorte às agruras à

vida sem norte com os olhos de morto que

ainda olhava que ainda flamava sua ira

sua repulsa à vida a vida que não era mais

vida que já fora mas ele nem percebeu que

já estava morto morrera a tempos no tempo

que escapa da percepção na hora da

morte em que se sela a passagem em que

se abre a fenda na sua formalidade na sua

mesura e o tanto de ódio e o tanto de mágoa

e o tanto de dor que trazia a lâmina

afiada na vida ao seu lado tão pesada o

fardo tão duro o dardo a farpa a falha a

feia ferida feita a feitio daquele homenzarrão

que lhe apontou o caminho da morte

que lhe atravessou o caminho da vida e

agora no acerto de contas da mulher ultrajada

da amante esquecida da mãe desprezada

ignota sem face sem nome sem

luz sem lume só fome só medo no meio

do destino no meio do pensamento ele

veio outra vez o desatino a faca amolada

a mola propulsora aguçada que devolve

e fica calada calcada no ventre no ventre

que espirra e afrouxa na hora da morte

42


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

CARLOS VILARINHO

Palmeira

das Missões – RS

LOGO AO SAIR DO SOL

como o tempo demora como demora a

hora e atravessa a vida na travessia da cidade

que a devora e a leva à morte certa a

morte do homenzarrão do varão que não

viu do varão que não vê do varão vazio

no vazio do varão vil a lâmina vaza vaga

e o drama escolhe acolhe a longa espera a

longa sofreguidão a ânsia a razão lacerada

o homem cai encolhido é o começo é

o fim o que era o que será o ato o crime a

ação a defesa a verdade a luz a certeza se

esvai sem vida se vai o corpo que ainda cai

pesado pesando no solo pesado encolhido

ao sol da manhã ao sol escolhido e recém

saído espalhado no sangue da manhã no

sangue da vingança da desforra da demora

o sangue da última hora do último

olhar do único olhar sem medo do horror

no abdômen contraído na lâmina fria o

sangue esquenta escorre e flui do que era

vida do que era dor do que era violência

na palma da mão da mulher que corre outra

vez pelas ruas pelas ruas sem esquinas

sem escolhas sem obstáculos a mulher livre

corre com o sangue nas mãos as vísceras

na visão na versão de que a morte

era a salvação a morte a arte de tornar

definitiva e aplacar a dor sem saída sem

alternativa sem via a mulher corre para o

começo para longe daquele fim para perto

do filho para abraço silencioso do filho

com o sangue na ponta dos dedos aponta

para a vida aponta que a vida tem preço

um preço medonho um preço injusto a

vida é o medo a vida é a eterna solidão é

o peso da lâmina na mão chega corre até

o quarto o menino dorme plácido.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

CAROU ARAÚJO

Belo Horizonte - MG

COMPLEMENTARES

o vermelho brigou com o verde

foi coisa séria, mal do coração

era respingo pra cá, espirro pra lá

quizumba da braba, uma comoção

então o amarelo se cansou

do azul se separou

pediu o desquite

vermelho glorioso comemorou

porém logo a vista se ofuscou

não foi conjuntivite

O que passa é que o pé de limão

Razão dos recentes dissabores

Calhou de daltonismo sofrer

Nada sabia das as cores

Entre primárias e complementares

O grande amor lhe foi dedicado

Se tornou pó que mora no ar

Uma trama triste de escrever

Fratura de coração, mais uma para o dia de hoje.

44


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

CESAR CASELLA

Inhumas - GO

EM CÍRCULOS

Uma bailarina no trapézio

que pisca e sorri para o palhaço.

Um mágico no picadeiro

que olha e acena ao palhaço.

Uma criança na plateia

que gargalha e gargalha do palhaço.

E, ao palhaço,

só resta o suicídio.

Lona verde,

luzes vermelhas e azuis,

piscando,

revezando-se,

a corda, firme,

forma a forca.

Viver é circular em um labirinto.

Cesar Augusto de

Oliveira Casella é

professor na Universidade

Estadual

de Goiás (UEG/Campus Cora

Coralina) e doutorando em

Estudos da Literatura na Universidade

do Estado do Rio de

Janeiro (PPGL/UERJ)

45


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

CRISTIANE CARDOSO

São Paulo - SP

GIRA-GIRA

Rodando sem parar

No gira-gira de mil cores

Do prédio da avó

Olhava para o alto

E as nuvens e aquele azul

E as tantas janelinhas

Deixavam-me tonta, tão tonta...

Sem parar gira a vida

Avós se foram

Pais avós

Irmãos quarentões

Filha que também girou colorida, adulta

E eu... Ainda ando meio tonta

Sei e dói um pouco saber

Que não cresci o tanto

Para ser adulta de verdade.

46


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

UMA COMPANHEIRA ATEMPORAL

D. AKOKÁN

Rio de Janeiro - RJ

D. Akokán é artista

visual e graduanda

em Pintura pela

EBA – UFRJ, desde

2020. Mora no Rio de Janeiro,

RJ desde 2006.

www.instagram.com/dianaisabellopezbotero/

47


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

DADÁ

São José

do Rio Preto - SP

Maria Eduarda

(Dadá) nasceu

em Votuporanga,

interior paulista, em 2003.

Atualmente, reside em São

José do Rio Preto. Fundadora

da Academia Internacional

de Mulheres das Letras e

admin do @abookpercup.

DA LETARGIA ROMÂNTICA

Clarice viria para um café. Antonella

sacudia os pés, cruzados um

sobre o outro no sofá, enquanto

aguardava. O relógio acabara de

anunciar as dez horas, o cheiro de pão de

queijo contagiava toda a casa.Talvez houvesse

algum acidente na pista, causando o

atraso da convidada. Talvez um cachorro

tivesse sido atropelado e todos estivessem

reduzindo a velocidade para olhar.

Lá fora, o vento gelado anunciava a chegada

do outono. A moça estava vestida em

um moletom velho, o cabelo castanho num

rabo de cavalo alto. Bufou, levantando-se.

Parada por um momento, encarou a estante

que cobria a parede da sala. Foi até ela,

passando o indicador pelas lombadas dos

livros, as unhas esmaltadas em azul. A parca

luz matutina, vindo do céu nublado lá

fora, derramava-se pelas capas preguiçosamente;

nuances de sábado. Ela procurava

por Romeu e Julieta, mas contentou-se com

Memórias Póstumas.

A campainha irrompeu pelo cômodo, alegre.

Já não era sem tempo! Apressou-se em

meio à mobília, por medo de deixar a visitante

congelando na soleira. Clarice vestia

jeans e sobretudo. Sua pele de porcelana

estava vermelha nas bochechas e ponta do

nariz; batia os dentes. Vem, menina, entra

logo! Que demora, minha amiga.

Abraçaram-se. Se demoro mais um pouco, a

“A: amor é suspensão (recusas);

MOR: amoooooor é expansãoooooooo

(pooooooooossibilidades).”

— Valdivino Pina da Silva

chuva me pega! Desculpa, deixei você com

fome? A loja... Meu Deus! Não consigo parar

nem para esticar as pernas. Desviou o

olhar para os sapatos, tímida das reclamações.

Mas nunca estive mais feliz! Sorriu.

Está perdoada, está perdoada. Mas acho

bom você ganhar muito dinheiro para me

compensar isso no futuro. Vem, que o café

já deve estar gelado.

A pequena mesa redonda da cozinha, já

acostumada com sua segunda função, servia-lhes

muito bem enquanto bistrô de um

café francês. Aos sábados de manhã, ambas

se transformavam, por algumas horas, em

importantes intelectuais do subúrbio, desvendando

juntas os mistérios da confusão

de viver. O móvel, na verdade, aceitara sua

nova missão a ponto de assumi-la como

primordial, cada semana inspirando-lhes

debates mais profundos.

Bom, no fim eles não ficam juntos, mas

admiro sua coragem. Antonella fechava o

livro, passando os olhos pelos dizerem da

capa. Está elogiando uma traição, Neia?

Não lhe reconheço! Cadê a minha moralista

favorita? Riram.

Eu tenho pensado sobre os limites da moral

no amor...Já ouviu que amar é como estar a

bordo de uma locomotiva desgovernada? E

pior, temo ser o maquinista. Antonella declarou,

baixando sua xícara. É o que vem

ecoando aqui. Levou o indicador à têmpo-

48


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

DADÁ

São José

do Rio Preto - SP

DA LETARGIA ROMÂNTICA

ra. Sabe, não adianta entregar os controles

nas mãos do seu parceiro enquanto grita

histericamente. Nem recorrer ao manual ou

a algum passageiro intrometido. A responsabilidade

é sua, para o bem e para o mal.

Clarice tomou algum tempo para considerar

as palavras da amiga, os olhos amendoados

voltados para cima em sua típica

careta pensativa. Não sei se é a visão ideal,

foi sua resposta. Assim você toma toda a

responsabilidade para você e todas as consequências

são culpa sua. Não parece saudável.

Os dois precisam colaborar para a

coisa fluir, eu acho. Quando eu estava com

o Marcos, tinha um pensamento mais ou

menos assim, e veja aonde isso me levou!

Acabamos ambos em uma delegacia e talvez

as feridas nunca se curem totalmente.

Jamais se esforce por um egoísta! Não seja

cega como eu.

Ah, claro, isso não significa rastejar por ninguém.

Não me entenda mal. Antonella arregalou

os olhos, sinalizando negativamente

com a cabeça. Estou falando de esforços

mútuos para driblar problemas externos,

não de implorar por amor. Acho que, num

geral, as pessoas levam a ideia de alma gêmea

tão a sério que não estão dispostas a

contrariar nada por uma relação. São românticos

preguiçosos, desistem quando algum

mexeriqueiro desaprova a união.

Talvez eu entenda o seu ponto, sim, Clarice

anuiu. Se ambas as partes pensassem assim,

certamente teríamos um relacionamento

utópico. Mas acho improvável. Por aí afora,

é difícil construir uma relação sólida o

suficiente para se acreditar tanto no valor

dela.

Antonella retomou a palavra com um sorriso

sarcástico: É curioso ver tanta gente chorando

quando Brás e Virgília fazem tudo

do mais sórdido para estarem juntos. Para

esses leitores, contrariar convenções sociais

por amor é algo incomum e digno de lágrimas.

Mas não é raro um romance ser reprovado

por terceiros. E aí, você faz o quê?

Desiste da pessoa que ama?

Clarice riu, metade do pão de queijo entre

os dedos finos. Não é raro?! A sociedade

tem alguma outra função senão julgar os

passos alheios? E como assuntos do coração

atiçam-na! São seus favoritos; ela os

devora! Sim, estou com você nessa.

É nesse ponto onde esbarro na moral. O ser

humano precisa ser mais que moral. Precisa

ser sincero e intenso. Não enganar a ninguém,

nem a si mesmo. Especialmente sobre

o amor. Fez uma pausa. Enfim, a culpa

não é só das circunstâncias, é das pessoas

também. Se decidem ou não lutar contra

elas. Por favor, amemos os lutadores, só e

sempre os lutadores.

Clarice ergueu sua xícara, risonha. A vocês,

hipócritas de coração partido, meus sinceros

pêsames por tudo que estão perdendo!

É mais divertido desse lado. E a nós, para

sermos sempre maquinistas tresloucadas!

Amar intensamente ou não amar.

49


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

DAIANA FRANCO

NOGUEIRA

Santa Catarina

SINAL

Era meu último dia de férias e eu

estava decidido a aproveitá-lo

intensamente.

Nem bem o sol despontara e eu

já me preparava para uma vigorosa caminhada,

obedecendo a recomendações

médicas. Vinha cumprindo fielmente esta

rotina de exercícios durante todos os dias

de descanso, com a satisfação redobrada

de passear pelo bairro enquanto tudo ainda

era orvalho e sono. Gostava especialmente

de me demorar explorando um pequeno

parque, diminuindo o passo para

examinar as plantas, as árvores, as tocas

de animais desconhecidos e, sobretudo, as

trilhas que levavam à paisagem deslumbrante

de uma pequena praia escondida

ao fundo da vegetação. Era ali que me

recompensava ao final do esforço diário.

No caminho, encontrava resquícios da civilização

recente – tocos de cigarro, papeis

de bala, preservativos, seringas –, sempre

me surpreendendo com a capacidade destrutiva

dos homens e com a paciência resignada

da natureza de tudo absorver e

transformar.

Cheguei ao parque naquela hora preciosa

em que o céu muda de tom, despindo azul

para vestir amarelo. Não havia ninguém

além de mim e da revoada de pássaros

madrugadores que anunciavam, com estridência,

o início do novo dia. Fazia frio,

mas sabia que em poucos minutos, energizado

pelas passadas rápidas e pelo jorro

de endorfina, eu recobraria o calor. Dei

uma, duas, três voltas em torno da pista

de jogging e então enxerguei, embrenhado

no mato, ao fim de uma passagem de

difícil acesso, um cobertor puído e amarfanhado,

largado de qualquer jeito, que

com absoluta certeza não estava ali no dia

anterior.

Curioso que sou, desviei da rota e me

aproximei. Para a minha surpresa, o pano

se mexia discretamente. Imaginei logo: é

bicho. Alguém prendeu um bicho neste

trapo. Procurei no entorno uma varinha,

um pedaço de madeira, e encontrei um galho

longo o suficiente para erguer o tecido

com segurança. Cuidadosamente, espetei

uma ponta e a levantei, a tempo de ver

que não havia animal algum ali dentro,

mas sim uma criança recém-nascida, fraca,

suja e coberta de formigas.

Levei um susto e derrubei desajeitadamente

a coberta. Meu Deus, um bebê,

largado ali sozinho, no sereno, sabe lá há

quantas horas! Olhei ao redor, desesperado,

mas não havia ainda gente acordada

ou carros passando, nada nem ninguém a

quem gritar por socorro. Lancei-me sobre

o embrulho, abri, examinei rapidamente

e vi que o tempo era pouco. A criança,

uma menina, gemia baixo, sofrendo. Res-

50


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

DAIANA FRANCO

NOGUEIRA

Santa Catarina

SINAL

piração curta, pele gelada, muitas picadas

espalhadas. Peguei-a no colo, correndo

em disparada para casa, já antecipando

os próximos movimentos (chave do carro,

hospital), mas a certa altura, quando

parei para vê-la mais uma vez, encontrei

seus olhos vidrados, a boca aberta paralisando

o último balido.

Agora sou eu quem está gemendo e chorando,

sacudindo de leve o pequeno pacote.

Choro mais alto, mas me sinto empurrado

e não entendo o que está acontecendo.

Desperto, puxando o ar com força: era

um pesadelo. Minha esposa delicadamente

chama meu nome. Acorde, já passou.

Foi só um sonho ruim.

Fico o dia inteiro me sentindo mal, assaltado

por lembranças turvas. Desisto da

caminhada por uns dias, até que a memória

faça sua parte e engavete o assunto.

Apenas uma semana depois, já de imerso

na rotina intensa de trabalho e com

a má impressão sepultada pelo peso dos

dias, crio coragem para voltar a andar na

rua. Meus passos me levam novamente

ao parque, mas agora o sol vai alto e a

grama floresce de gente; não vejo perigo.

Caminho com receio, espreitando os

cantos, mas nem sinal do cobertor. Vou

ganhando confiança e, por fim, estou convencido

de que tudo não passou de um

delírio. “Como sou besta! Quanto tempo

perdido!”, penso, enquanto acho graça

do meu medo supersticioso. Quando,

porém, estou prestes a ir embora, avisto

uma pessoa maltrapilha – uma mulher –

se arrastando com dificuldade justamente

para a entrada da trilha do sonho. Sem

pensar, corro até lá. Toco seu ombro e ela

se vira para mim. Vejo que está grávida

e ofegante, imunda e coberta de escaras.

Segura com as duas mãos a barriga imensa

e me observa com atenção. De repente,

abre um sorriso de reconhecimento. Quase

sem forças, me diz:

– Você veio mesmo...

51


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

DANÍZIO DORNELES

Canguçu - RS

PESCA À DOR

Pedro era peixe com nome de pedra. Devoto dos remos e igarapés, rezava em

silêncio a prece das águas. O ruído da areia riscando caminhos no casco do

barco. Partia e ficava. O curso do rio e o caminho do rancho, dois mundos

distintos de suor e promessa.

Seguia com légua de sol e um aceno de olhos miúdos por trás da janela. Não enxergava

as mãos enrugadas apertando o terço contra o peito vazio. Um suspiro inerte, um

beijo suspenso, os lábios ariscos — lambaris ligeiros — que mal se tocavam. Vida seca

na correnteza do tempo, a esperança do pão às voltas do estio.

Irmão dos cardumes, sabia os mistérios de luas e ventos. As linhas de espera, tarrafas

singelas, a dança certeira no sol dos pesqueiros. Pedro luzia aos raios da tarde. Queimavam

fogueiras, singravam anzóis na margem de pedra que a água esculpia.

O peixe mordia a isca. Vida em escamas que antecede a morte. Morte que sacia a vida.

Nos lábios sentia o gosto de ferro, a astúcia da fisga, a luta incessante, um corpo prateado

se debatendo em redemoinho. O destino na linha estendida, no rito final.

Pedro era peixe que bebia lágrima. Puxava das águas a si mesmo quando o caniço

vergava, quando a boia corria, quando a lua era boa, quando o barco pesava, quando

a noite sorria — e no rancho outros olhos se enchiam de rio.

Habitante do espaço

fluido das

fronteiras, viveu

até hoje entre o

RS e o Uruguay, entre o campo

e a vila, entre o Pampa e a

Mata Atlântica, entre o português

e o español. Estuda

Letras na UNILA.

52


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

DAVID LEITE

Jandira – SP

ALICE

Fazia 20 anos que deixou aquele lugar. No entanto, ainda queimado em sua retina

estava a imagem de Alice, sempre antes quieta, de dedo em riste apontando a porta,

em um primeiro ultimato. Tua princesa havia se tornado, ali, um monstro das mágoas

reunidas do casal. Sem o que fazer, tomou o pouco que tinha e caiu no mundo. Desde

então jamais retornou, sequer procurou saber daquela casa e de quem restou ali. Quando a

idade avançou, achou que seria tempo o suficiente para remir aquela culpa. Queria ao menos

rever sua filha. Certamente crescida e bem sucedida, quem sabe casada e com filhos, e ainda

menos certo, perdoando o pai alcóolatra. Chegou na soleira da casa, em evidente sinal de

abandono. A porta continuava sendo a mesma, mas a tinta estava gasta. Janelas quebradas.

Ninguém deveria morar ali. Bateu a porta. Esperou. A ansiedade cresceu com a espera. Se elas

tivessem se mudado, jamais as encontraria de novo. Novo bater na porta. Ninguém responde.

Esses anos todos tentando trabalhar a culpa, esses anos todos ansioso para, ao menos, entrar

em contato e saber como iam, caíram em suas costas como uma bomba. Você reencontra o

que perde, não o que abandona, dizia uma frase em algum lugar. Mas não era um abandono

covarde. Era um abandono necessário, pensava consigo, para liberta-las dele mesmo. Se justificava

desse modo, ao menos.

A ansiedade toma pontas de desespero. Teria que lidar com isso o resto de sua vida. Jamais

reencontraria a sua filha.

Pega o primeiro ônibus para ir embora. Senta-se no fundo dele, no fundo dele próprio, no

fundo de tudo. Amaldiçoou sua abstemia naquele momento. Precisava de um trago para

amainar a angústia como em muito tempo não queria. Olhando para o seu redor, repentinamente,

reconhece um semblante. A mesma cara séria da última vez. Era ela. Era Alice. Embevecido

pela emoção, sentindo-se salvo de seu crime, salta do assento e explode para a moça.

- Alice!! Minha filha – lágrimas rolam de seus olhos – Não acredito que lhe encontrei....

A moça retorna a manifestação do homem com surpresa e medo. Não o conhecia, não conhecia

Alice.

- Filha....perdão...me perdoe, por favor...

A moça fica cada vez mais constrangida e sem reação. O cobrador, percebendo a situação e o

estado alterado do homem, se adianta. Pega-o pelo braço e começa a empurra-lo para a saída,

enquanto o motorista para o ônibus.

- Não!! Espere...eu preciso que ela me desculpe...

- Senhor, está atrapalhando a viagem...saia.... – O cobrador o joga para fora, ainda que ele

tentasse retornar.

O ônibus segue viagem. O homem, cansado e aflito, se joga em um banco. Com a cabeça

baixa...derrotado.

Uma moça senta-se ao seu lado, aguardando o ônibus seguinte. O homem ergue um pouco o

olhar e, confuso, nota repentinamente. A mesma cara séria de antes. Era ela....

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

FOTOPOEMA

DÉLLIO REIS

MM AQUINO

Belém - PA

Fotografia

João Canto

Natural de Óbidos, Pará

Reside em Belém, Pará

Professor e fotógrafo

Texto

Déllio Reis MM Aquino'

Natural de Óbidos

Reside em Belém

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

CONHECER-ME MAR

DIANA MAGALHÃES

Bacharel em Cinema

e Graduanda em

Artes Visuais. Tem

experiência em diferentes

áreas do audiovisual,

escreve, é atriz, arte educadora

e apaixonada por experimentações

artísticas de

maneira geral.

55


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

EDGAR BORGES

Boa Vista – RR

Edgar Borges é escritor

e jornalista.

Lançou 2 livros de

microcontos e tem

textos de prosa e poesia em

publicações impressas e eletrônicas.

Articula o grupo de

autores roraimenses Coletivo

Caimbé.

ORGANIZADO, ORGANIZADINHO

“Minha ambição é prejudicada pela

preguiça”, disse Bukowski. A minha

também. Pela preguiça e pela

desorganização. Melhor, pela não

organização (que pode vir a ser o mesmo

ou talvez não). É que sempre fui de ir

adiando ao máximo a resolução das coisas

que davam ou dariam dor de cabeça.

Em certa época da vida lembro que meu

orgulho era afirmar ter a tranquilidade

das pessoas sem um pinto para dar água.

Olhando em retrospecto, vejo que só me

enganava, mas era boa essa ilusão.

Depois de certa idade e acontecimentos,

não deu mais para ficar adiando tudo e

esperando que o novo dia resolvesse por

mim as questões da vida, sobretudo por

elas irem se acumulando. Decidi então,

sem expor os detalhes de quanto sofri

até chegar neste ato, começar a anotar as

pendências.

Em papéis soltos, agendas físicas ou blocos

digitais de anotação comecei a registrar

as demandas e a estabelecer prazos.

Virei o pseudo-organizadozinho.

Muitas demandas continuam sendo anotadas

e reanotadas semana após semana

(algumas têm mais de ano à espera de um

milagre, para ser franco).

De outras dou conta logo. Quer dizer, não

assim, logo, logo...mas fecho o débito e

consigo passar para outras.

Neste momento, no qual escrevo sobre

preguiça, demandas, prazos e anotações,

estou com vários papéis ao meu lado esquerdo,

na minha mesa de trabalho. Tem

lembretes da pesquisa que devo fazer para

encaminhar um doutorado ao calendário

de exercícios em família que montei para

tirar meu povo do sedentarismo abusivo.

Há rabiscos (não queiram ver minha letra.

Podem assustar-se.) sobre metas como escritor,

projetos culturais, atos prosaicos

como lembrar de limpar os vidros do

carro antes que a poeira os faça ceder e

várias lembranças sobre as reformas das

reformas que fizemos na casa.

Contei aqui e são mais de 20 linhas de

lembretes. A meta é me livrar de pelo menos

70% dessas demandas nos próximos

quatro dias, antes de chegar o domingo.

O problema é que a preguiça prejudica

minhas ambições, o calor ajuda nisso e

nem sempre tenho energia para lembrar

de avançar sobre as fileiras inimigas das

coisas atrasadas.

Ainda bem que anoto quase tudo o que

tenho para fazer. Só devo começar a lembrar-me

mais de agir ao ver essas anotações.

56


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

EDNA DOMENICA

Florianópolis - SC

Edna Domenica é

bacharel em Letras,

Pedagogia e Psicologia,

psicodramatista,

mestre em Educação.

Autora de crônicas, poemas

e contos.

ANTÍFONA, DE SÓCRATES

Esse discurso das redes sociais durante a pandemia precisa urgente de vacina! Está

infectado!

Veja bem: fiz um teste! Perguntei se alguém já tinha lido a Antífona, de Sócrates,

porque queria mensurar quão xingada eu seria. E também a presença de robôs (que

são cruéis, mas com nível superior nas funções concentração e informação).

Mas me decepcionei muito! Os robôs a serviço de um dos dois (céu e inferno do ângulo do

usuário) não estavam concentrados em detectar ironias.

Mas coloquei-me uma máxima de sobrevivência: “se não rende pra pesquisa tem que render

pro riso”.

Alguém respondeu:

– Antífona é aquele diálogo cantado que tem na missa!

Daí postei:

– Quando a missa era em latim o celebrante dizia “Vacinares Covides!”. E os fiéis respondiam:

“Amém!”. Tinha também: “conhecetis a ti mesmus/ amém”.

– As missas em latim eram lindas! – disse Alguém Um. Lembro bem dessa “conhece-te a ti

mesmo/ amém”. Mas não lembro do “Vacinares...”. Vou perguntar pro meu primo que era

coroinha. Ele é muito bom nisso ...

– O Sócrates é o jogador de futebol. Quem não conhece? – disse Alguém Dois.

– Orra meu! Isso de “conhece-te a ti mesmo” parece coisa de boiola... Daqueles que ficam se

apalpando... É pecado de gente que não lê Bíblia! ⸺ disse Alguém Três.

– Pronto! Postei o link pra vocês lerem sobre o Sócrates, filósofo de tal importância que seu

pensamento é o marco divisório entre os que vieram antes dele – os pré socráticos – e os que

vieram depois – os socráticos, a exemplo de Platão. ⸺ disse Alguém Quatro.

– Num falei? Sempre quem faz bandalheira acaba ficando famoso! Aposto que ele vai acabar

sendo chamado pra ir no Big Brother Brasil! – retornou Alguém Três.

Percebendo que o picadeiro estava quente e que era hora de iniciar a função, retornei à inicial:

– E então moçada, alguém já leu a Antífona, de Sócrates?

– Li sim! Inclusive tem um filme na plataforma televisiva A Tal que está passando o documentário

O Jovem Sócrates – disse Alguém Três.

– Já é quase meia noite, vou desligar para o necessário repouso. Mas antes quero lhes dizer

que caíram numa fake. Não existe nenhuma Antífona escrita por Sócrates. Existe a Antígona,

de Sófocles. Se tivessem lido, compreenderiam o lado trágico de perder um ente querido e

não poder proporcionar-lhe as devidas homenagens na sua despedida. O culto à memória de

alguém que amo é necessário para minha sobrevivência. Vocês não conseguem avaliar isso!?

– Adeus Polinice, meu amado companheiro: marido, pai e irmão.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

EILEEN WOLFF

Novo Hamburgo - RS

NO FIM DAS HISTÓRIAS, O OCEANO

a garota fez uma canoa.

ela ouviu dizer que a distância era apenas um estado mental.

ela remou e ouviu a canção das ondas do outro lado,

viu a tênue linha dividindo o céu azul e o mar.

a garota olhou para as nuvens e viu um desenho novo,

ela ouviu dizer que a solidão era apenas um estado mental.

ela deitou e ouviu a canção das sereias já próximas,

viu a tênue linha entre o aqui e o futuro.

a garota ergueu o corpo e viu o mar calmo,

ela ouviu dizer que às vezes nem tudo se encaixa,

ela fechou os olhos e ouviu a canção do vento,

viu novamente o sorriso que tanto procurava.

a garota deu de ombros e viu a tempestade chegar,

ela ouviu dizer que havia dois silêncios, um antes e o outro depois,

ela pôs uma mensagem numa garrafa e ouviu o

[som do seu próprio lamento,

sentiu pela única e última vez a paz de existir e logo após desaparecer.

"ouvi dizer que as estrelas-do-mar se regeneram, eu espero

[conseguir também."

58


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

EVANDRO VALENTIM

DE MELO

Brasília - DF

Evandro Valentim.

Escritor brasiliense,

detém prêmios

nas categorias: micro

conto, crônica, conto e

livro. Seu mais recente livro

de literatura infanto-juvenil

chama-se Caapuã (Telucazu,

2021).

REFLEXÕES E OS TÊNIS BRANCOS

“Meu salário não permite luxos”, dizia

Ernesto à filharada. Naquele ano,

contudo, pela primeira vez, o caçula

Epaminondas ganhou um par novo de

tênis. Brancos. Emocionado, o menino experimentou

os tênis e, ao mesmo tempo, imensa

alegria, pois até então, só herdava calçados de

segunda mão, que já não mais cabiam nos pés

dos irmãos mais velhos.

Sempre que caminhava, Epaminondas percorria

o trajeto cabisbaixo. Humildade? Não,

observava a alvura dos novos tênis. Graças ao

luzidio calçado, nasceu-lhe consciência cívica,

passou a reclamar da falta de calçamento que

prestasse nas ruas.

De manhã cedo, quando o pai o acordava

para comprar pão, ele nem mais achava ruim.

Levantava-se e calçava os imaculados tênis.

Ia à padaria e, rápido como quem furta, estava

de volta. Caso pudesse, flutuaria, para não

obscurecer o brilho de seu tesouro. Como não

detinha tal poder, tão logo chegava em casa,

ia ao tanque e os limpava para retirar quaisquer

resquícios de poeira.

Sábado. Dormir até mais tarde é quase tradição.

Enquanto muitos permaneciam na cama

para se recuperar do cansaço semanal acumulado,

Ernesto e Epaminondas, bem cedo, já

haviam ido à feira fazer o milagre da multiplicação

do salário paterno, a fim de preencher o

vazio da geladeira e da despensa. Em seguida,

foram a uma loja de molduras, Ernesto necessitava

alguns produtos ali comercializados.

Voltaram para casa. Epaminondas ajudou a

guardar as compras. Depois, foi ‘lagartear’

ao sol, em frente de sua casa. Sentou-se em

um toco. Não havia sombra, era a sobra da

59

árvore cortada. Ela não o protegia dos raios

solares do astro-rei. Nem achou ruim, os tênis

novos refletiam a luz e até tornavam a manhã

mais clara.

Enquanto Epaminondas se regozijava com o

efeito da bela luminosidade, rememorava o

desconfortável episódio há pouco presenciado

na loja de molduras. Uma das vendedoras

atendia elegante senhora, já idosa, que parecia

bastante insatisfeita.

Ao mesmo tempo que Ernesto conversava

com vendedores, a certa distância, seu filho

observava a senhora tão bem vestida já àquela

hora da manhã, a manifestar crescente

indignação. Reclamava e ameaçava a jovem

de procurar, pessoalmente, o proprietário da

loja, seu conhecido. A jovem atendente se esforçava

para respeitar a tirânica regra de que

o cliente sempre tem razão.

Depois de uma eternidade, a cliente sentenciou:

— Darei apenas mais uma chance, caso o serviço

não fique bom, esperem pelas consequências,

não serão nada agradáveis. Eu prometo!

— Tenho certeza que a senhora ficará satisfei-


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

EVANDRO VALENTIM

DE MELO

Brasília - DF

REFLEXÕES E OS TÊNIS BRANCOS

ta – disse a repreendida vendedora.

Um terceiro cliente, que também acompanhava

a cena, comentou em voz alta para que a

senhora escutasse, antes de sair:

— São Jorge nos proteja! A casa grande acordou

de mau humor hoje!

Bastou a senhora se retirar da loja, a jovem

vendedora caiu em pranto. Mesmo se afastando

da área de atendimento, todos lhe ouviram

os soluços até então contidos sob hercúleo

esforço.

Solidários, clientes e demais vendedores procuraram

consolá-la, mas a enxurrada de lágrimas

se prolongou ainda por muito tempo.

Epaminondas misturava a ingênua e infantil

compreensão de seus verdes anos com um quê

de raiva daquela senhora. Para ele, fora fácil,

só de olhar as roupas, o penteado e as joias,

saber que a irritada senhora devia ter bastante

dinheiro. Pensava ele: “como uma pessoa

rica pode ser assim? Deve morar ‘num’ baita

casarão, viajar ‘pro’ estrangeiro sempre que

quer, comer do bom e do melhor...”.

O brilho fulgurante do novo calçado atraiu a

atenção do filósofo mirim, que concluiu: “a

vida é muito é boa, isso sim! Quando eu for

adulto, não serei como aquela senhora. Serei

uma pessoa ‘do bem’. Se alguém me fizer raiva,

serei compreensivo, perdoarei”.

Dois ‘amigos’ aproximaram-se de Epaminondas.

Dissimulada, de longe a dupla fora atraída

pelo ofuscante esplendor aos pés do menino.

Era costume entre a molecada ‘batizar’

novos calçados como aquele.

Antes que pudesse evitar, os tênis de Epaminondas,

outrora brancos, foram pisoteados e

perderam a lividez. Ele partiu para a briga.

60

Os dois ‘malfeitores’ também partiram, mas

em grande velocidade para escapar da vítima,

agora transformada em algoz.

Brusca freada evitou o atropelamento dos

moleques endiabrados que, repentina e irresponsavelmente,

atravessaram a via, quando

um carrão importado por lá trafegava. Ao

volante, o chofer contou até dez para não

abrir o vidro e xingá-los. Não ousaria fazê-lo

por saber que sua patroa, no banco de trás, o

demitiria. Educada na Suíça, ela não tolerava

palavrões.

Pudesse ver o interior do veículo, Epaminondas

reconheceria a distinta e mau humorada

senhora, que há pouco torturara a jovem vendedora

da loja de molduras, a ponto de a fazer

chorar.

Os tênis, imundos pelo ‘batismo’, clamavam

vingança. Epaminondas atirava pedras enquanto

corria. Errou os alvos todas as vezes.

Mesmo fracos de tanto gargalhar, os meninos

conseguiram escapar da ira desproporcional

do dono dos tênis.

Frustrado, Epaminondas voltou para casa.

Esvaíra-se o encantoa pela brancura dos tênis.

Nem mesmo procurou limpar o par de

tênis depois do ocorrido.

Dias depois, os três meninos e muitos outros,

riam juntos do batismo e da raiva desmedida

de Epaminondas. Encontravam-se prestes a

iniciar a partida de futebol no campinho de

barro batido. O primeiro duelo em que Epaminondas

entraria calçado com seus ex-tênis

brancos. O desejo dele, agora, era marcar um

golaço e oferecer à torcida imaginária de seu

time de coração.

Foi dada a partida...


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

EXISTO

Amo

logo existo

com minha fé e

com meu rito

com a bênção das águas

e com meu grito

FABIANA KRETZER

Penso

logo insisto

no beijo,

no beijo

na vibração cósmica

dos nossos átomos

Ata-me

com teu abraço

e com teu tempo

Penso

logo insisto

no beijo,

no beijo

na vibração cósmica

dos nossos átomos

Ata-me

em teus versos lascivos

cheios de vírgulas e

agoras

61

Amo

logo existo...


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

DOMINGO

O domingo era meu abrigo no inverno frio.

Você me olhou e sorriu,

você me beijou e sumiu.

Tarde solitária em um domingo cheio,

o bolo

o prato

a fatia

e o recheio.

FÁBIO GOMES

Ferraz de Vasconcelos - SP

Era sobremesa, Prado.

Chocolate e morango.

Era sobremesa.

Fechos os olhos e enxergo,

eu viajo em lembranças que não quero recordar.

Teu lábio, beijo e boca.

Vento e praia,

alto mar.

Poeta de tuas coxas, poucas

gordas pernas, ternura e paixão.

Ah se eu pudesse eu mudaria o tempo

e que o tempo mudaria meu destino.

Prender-te

ou perder-me.

Ator e produtor Teatral

em formação

pela CIA das

Artes e estudante

de Letras pela Universidade

de Mogi das Cruzes. Paulistano,

hoje com 24 anos e escrevendo

desde os 16.

Giro em vão desses ponteiros

música, susto e violino.

O som do apito e o menino que canta.

meu retorno,

esperança.

Não queria sobrevoar sem chão.

Me apavorei,

te assustei.

Abri a porta da casa e não via ninguém.

Tira a mão daqui eu quero que durma bem.

O sábado já foi embora,

o domingo vem.

O sábado já foi embora,

e o domingo vem.

62


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

SOM

FALAVINHA

Piraquara - Pr

A escuridão

O frio e a umidade

A solidão

Que tudo isto causa

Quando a voz se cala

Resta-lhe apenas

Ouvir o som

Em apenas uma escala

Nascido em Piraquara,

região

metropolitana

de Curitiba, foi

pequeno morar na capital,

cresceu e se tornou professor,

e através de sua prática

busca trazer aos alunos uma

formação ampla e integral.

63


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

FERNANDA LUCENA

Mãe. Multiartista.

Bacharela

Interdisciplinar

em

Ciência e Tecnologia. Pós

graduada em Marketing Digital.

Estudante de Lic. em

Geografia. Cria do Território

de Identidade Bacia do

Rio Grande, Bahia.

SONHOCÍDIO

Outro dia matei um sonho

Na minha cabeça era um caminho aberto

Uma possibilidade encantadora

Parecendo fácil de dar certo

Já tinha porquê, o que, como e pra quem

Mas eu dei a quem não merecia

E matei porque ouvi que já não me pertencia.

Meu sonho fênix renasceu das cinzas

E achei que precisava de orientação

Então, eu dei a quem não quis ouvir

Depois matei, por achar que recebi um não.

Das mesmas cinzas o sonho ressurgiu

Como estava lindo!

Vi alguém precisando de um

Então, eu dei.

Mas meu sonho não interessou

E ali mesmo eu lhe matei.

Parece que cheguei na terra

De finalmente plantar meu sonho

Pego a semente e ponho ali

Mas já que falei, vou ter que ouvir.

Que ele é pequeno, insignificante,

Que em um ano já terá morrido

Tem nem porque, então, ter renascido.

Miro certa na testa dele

Prestes a matar mais uma vez

Mas percebo que sou a mão,

Sou a testa, sou o sonho

E sou a arma.

Então, componho

Esses versos pra me enxergar.

Um pedaço de mim morreu no samba

Cada vez que um sonho meu morreu

O presente é a chave

O passado é a porta

Quando abri vi meus pedaços

Estava em mim, mas já estava morta.

Cantarei esperança sobre os meus ossos.

64


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

FERNANDA NARA

MAURICIO

São Paulo - SP

AS OPERÁRIAS

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

FLÁVIA REDMAN

Manaus - AM

POEMA DA REJEIÇÃO

Pobre mulher

Tenho pena de ti

Não te cansas de tentar

Esse amor me dar?

Teus lamentos, não aguento

Não vê que tuas lágrimas não me convencem?

Não vou ceder aos teus anseios

O teu amor, pobre mulher

É um presente que eu não quero receber

E essas cartas mal escritas,

De rimas mal feitas

E estrofes desalinhadas

Um tédio sem fim!

Quer saber, mulher

Esqueçe-te de mim!

Esse amor que no peito carregas

Amor ilimitado

Exacerbado

Incalculado

Mulher, leva pra longe!

Pra um lugar onde eu não possa encontrar

Mesmo que um dia, porventura, eu volte a amar

Pelo estrôgeno

Que carregas de um fogo que não se apaga

O leito de morte será teu companheiro

E essa esperança insistente, mata mulher!

Sofre calada e espera o indigno

Essa paixão em teu peito, mulher

É um espírito maligno

Teu amor é um passaro agoureiro

Cantando lamúrias em minha janela

Afoga esse delírio de paixão

Engole a decepção

Te lanças nessa sorte

E aceita o teu destino

Pelo sangue antagônico que corre em tuas veias

Rejeição amarga

Que fere, maltrata

Aceita mulher

Aceita o teu mal

Crônico

Daltônico

Esquisofrênico

Patogênico

Não quero nada contigo

Que história é essa de eu ser teu abrigo?

Escrava és desse amor platônico

Que não tem fim e não encontra começo

Como idiota

É assim que te comporta

Criança mimada

Infantil, debil mental

À beira da morte

Teus ovários se contorcem

A paixão é uma dádiva

Uma pluma suave

Que acalma, afaga

Abraça, dilata

Mas tem um preço

De amar e ser rejeitada

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

INSTANTE SECRETO DE UMA CHEGADA

GEISLANE LOPES

Ouricuri - PE

Geislane Lopes é

natural de Ouricuri

PE, estudante

de artes visuais

desde 2018. Interessa-se pelas

diferentes possibilidades

de leituras sobre a vida que

a arte propicia.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

GERALDO MAGELA

DE FARIA

Belo Horizonte - MG

INDECISÃO

Comprou formicida e guaraná, balas

para o revólver. Ligar o gás e

fechar a casa, outra opção. Resolveu

pelo tiro. Faltava escolher

o dia. Hesitava. Avocando para si o direito,

o destino interveio. Em uma manhã, o infarto.

Fulminante como o tiro que não houve.

Aposentado, formado

em Letras,

reside em Belo

Horizonte (MG).

68


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

GERALDO RAMIERE

Planaltina - DF

TÃO LEVE QUE CORTA

I

Ao entrar na barbearia

Fui logo dizendo

Apare os sentimentos

Mas não muito

E tenha cuidado

Eles estão bem afiados

II

Amolei a saudade na dureza da insônia

Para assassinar seu cheiro

Só que ele não morre, não morre

Não importa quantas vezes o golpeie

Assim, resta-me apenas

Retalhar este olhar sucessivamente

Em pedaços cada vez menores

Até que eu não consiga vê-lo

III

O toque ferido fere

IV

Para abrir os dias

É preciso lâminas usadas

E de certa prática

Não adquirida

Sexta, sábado e feriados

São bem fáceis

Pela moleza das carnes

Quartas e quintas

Com suas partes rígidas

Já são mais difíceis

Segundas e terças

Para seus corpos duros

É necessário violência

Os domingos são os piores

Cascudos por fora e por dentro

São quase impossíveis

De se abrir

V

Guarde o álbum de cicatrizes

Elas não interessam mais

Mesmo que talhemos os caminhos

Nós não chegaremos antes

VI

Voou com suas asas de vidro

E antes que chegasse às alturas

Em queda decaiu

No chão e sobre o corpo

Cacos pareciam estrelas

E de algum modo sentiu

Ter encontrado, enfim, o céu

Que tanto procurou

VII

Cortes sempre apareceram em mim

A maioria nunca consegui fechar

Antes escondia, até que aprendi

A usar o sangue que escorre

Para preencher páginas brancas

Paredes limpas e outros vazios

Engraçado é perceber que existem

Aqueles que ainda me aplaudem

Pelo meu simples ato de sangrar

VIII

O amor também troca de pele

Não por natureza ou escolha

E sim quando é rasgado

O que fica para trás

É apenas pele morta

Que não merece lamento algum.

69


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

GIL TOBIAS

GBILÉ

Em uma terra distante

do além mar existia um

vilarejo de agricultores

chamado Ireti onde vivia

uma linda e esperta menina

chamada Gbilé.

Ela morava com o seu pai Omi

em um pequeno sítio, na qual

eles cultivavam inhame, batata-doce,

criavam um pequeno

rebanho de cabras e algumas

galinhas.

Todas as amanhã ela ajudava o

seu pai na plantação e no cuidar

dos animais da propriedade.

Nos finais de semana iam à

feira vender os produtos que

produziam no sítio como: queijo e leite

de cabra, inhame, batata-doce e ovos de

galinha.

Gbilé estava feliz com a sua vida, mas, ela

tinha um sonho em era aprender a dançar

o “Ijó Idan”, uma dança que acontecia

durante do Ikore nla o festival das boas

colheitas que acontecia no seu vilarejo.

A festança começava próximo ao final

da época das colheitas durando três dias

onde todos dançam, comem e se divertem.

A fogueira é acesa no centro do vilarejo,

os moradores e visitantes festejam

a fatura daquele ano, se caso as colheitas

não tivessem sido tão boas comemorava

mesmo assim na intenção de trazer mais

prosperidade no próximo ano.

Era uma festança com muita fartura e animação.

70

Quando a festa chegava no auge os adultos

e principalmente os mais velhos se

preparavam para dançar o Ijó Idan. Escutavam-se

o toque dos tambores e uma

grande roda era formada próximo à fogueira.

Batiam-se palmas e cantavam as

cantigas ao som dos tambores que ficavam

cada vez mais vibrantes.

No centro da roda, casais dançavam e giravam,

sob a luz da lua seus olhos brilhavam

o bem viver de estar ali. O chão tremia

no som das pisadas na terra batida.

A energia do Ijó Idan emanava na terra

e nas pessoas subindo ao céu, formando

uma de arco íris que se espalhava por todos

os lugares por todos os cantos.

Os jovens ficaram sentados de longe observando,

mas, Gbilé tinha certeza que

um dia seria ela naquela roda.


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

GIL TOBIAS

GBILÉ

Ao final do ano a anciã do vilarejo de

Gbilé escolhiam jovens que tivessem para

aprender o Ijó Idan podendo um dia chegar

a se tornar anciã ou ancião detector

dos ensinamentos do Ijó Idan. Quando

chegou o grande dia, vinham jovens de

vários vilarejos vizinhos se reunindo na

grande tenda onde morava a anciã e cada

um tinha que mostrar as suas habilidades

para dançar.

Gbilé estava se preparando para ir na casa

da anciã quando seu pai correu para dentro

de casa trazendo consigo uma caixa de

madeira toda decorada com a descrição:

“Fun omobinrin mi”. A caixa era um presente

que a mãe de Gbilé havia deixado,

nesse momento ela se lembrou da história

de como seus pais haviam se apaixonado.

Aiyé, a mãe de Gilé, era uma das melhores

dançarinas do vilarejo Ireti. Ela tinha

muitos pretendentes, porém Omi nunca

desistiu de conquistá-la. E em uma bela

noite de festança ele criou coragem se

aproximando dela, daí então desde aquele

dia Omi e Aiyé nunca mais se separaram,

nascendo desse amor a pequena Gbilé.

Ao abrir a caixa viu uma linda Capulana

que pertencia a sua mãe para dançar o Ijo

Idan.

Pai e filha se abraçaram emocionados.

Chegando na tenda da anciã um por um

os jovens iam se apresentando e finalmente

chegou a vez de Gbilé. sua forma

de dançar amor, força e beleza. Os seus

braços se moviam leves como o bater de

asas de uma borboleta, seus pés batiam na

terra como a força de um pilão captando

a energia da natureza e a sua voz soava

como o vento soprando nas folhas de um

Baobá. Seu pai viu em sua filha o reflexo

da sua amada esposa Aiyé. Era tão lindo

ouvi-la e vê-la que anciã se encantou. Gbilé

fora escolhida.

Emocionada, ela correu para abraçar o

pai e a felicidade tomou conta do coração

dos dois.

E assim Gbilé pode realizar seu sonho de

participar todos os anos da Festança Ikore

nla o festival das boas colheitas. E com

o passar dos anos Gbilé se tornou anciã

do conhecimento da dança Ijó Idan.

E esse conhecimento foi se passando, passando,

passando, até chegar aqui no Brasil.

Mas isso é uma outra história.

71


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

GLEIDSTON ALIS

Betim - MG

Gleidston Alis é

doutor em estudos

literários

pela UFMG, professor,

escritor e cantautor,

com algumas obras literárias

e musicais publicadas e premiadas,

além de publicações

no âmbito acadêmico.

É HORA DE ACORDAR

Os primeiros raios de um sol que aconchega a carne ainda a descolar-se

de um sonho úmido começam a surgir, pintando a noite

com as manias coloridas da manhã...

É hora de acordar.

Os pássaros trinam sobre as árvores...

É hora de acordar.

O galo já cantou faz tempo, nos campos onde ainda galos há...

É hora de acordar.

O cheiro de café fresco escapole pelas frestas de janelas e portas mal cerradas...

É hora de acordar.

O cobertor se descuidou ao chão enquanto tu dormias...

É hora de acordar.

Nos tantos lares, as donas de casa se reiteram na cotidiana faina...

É hora de acordar.

Nas fábricas, os operários reiniciam o que nunca terminaram nem jamais

terminarão, suas ações-sempre-meio...

É hora de acordar.

Nos supermercados, padarias, bares e até nos bancos logo mais, os cidadãos

de bens gozam a cortesia tão simpática dos sorrisos que os recepcionam,

tendo espantado em árdua luta a inconveniência dos bocejos ainda

de madrugadinha...

É hora de acordar.

Nos escritórios como públicos e tão privados, nos quais se decide um por

todos, todos comuns, segue o trabalho como de costume, o de sempre...

É hora de acordar.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

GUSTAVO ABREU

Porto Velho-RO

Gustavo Abreu é

doutor em Geografia

pela

UFPR, tendo

feito estágio de doutorado

na França. Mora na região

Norte do país e é autor do

livro “Na Beira das Matas:

poemas diversos” disponível

na Amazon.

SEMENTES

Eu sou um rio de águas frias

Olho de jacaré

Mata fechada,

rapé

Somos índios da mesma aldeia

História de sereia

Iansã na areia

Menino na beira do rio

Eu sou dor de amigo

Flechada no inimigo

Estrada que vai ao longe

Somos monges

Viagens,

do extremo Oriente

às matas do Sul.

Ayahuasca e a onça pintada

no verde das folhas

no brilho da lua.

Nas meninas tomando banho

ao luar...

Somos sementes de árvores gigantes

Incendiadas,

e perseguidas

Estamos sempre prontas a brotar.

73


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

OUITÊ

HELMO DA

GAMA SANTOS

Inventei a mim mesmo

enquanto artista há 4

anos, deixando para

trás uma vida que não

me cabia. Comecei a viajar e

viver como nômade, aprendendo

aquarela e vendendo

minhas pinturas.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

HERA DE JESUS

Maputo - Moçambique

MAFALALA IN SOLO

Caminho silenciosa pelas artérias da Mafalala,

um mundo submerso na miséria

um subúrbio no coração urbano

Me perco nos rostos felizes

e ingênuos de cada infante

Pouco compreendo a esperança que ainda reluz

naqueles rostos cravados de rugas pousados na varanda

esmigalhando o tempo na sua lerda cachimbada

Amanhã...

teremos uma Mafalala melhor

sobrevoa esta nuvenzinha

em algumas mentes brilhantes

Involuntariamente minha retina cansada,

em flash's rápidos, memórias para a vida toda

vai captando pouco daquele chão imundo, e inundado

das casas de lata, e dos rostos serenos na sua plena felicidade

Hera de Jesus poetisa

moçambicana.

Coautora de

duas antologias,

Soletras Esse Verso (2019) e

“Fique Em Casa” (2020).

Facebook: Hera de Jesus

Instagram: @hera.dejesus

Onde se foram os filhos da Mafalala?

Deixando-a só

Numa solidão profunda, dorida e secular

Celebramos-te Mafalala

coração suburbano

onde o mundo vem beijar-te

sem olhar as tuas feridas

Há vida naquela Mafalala

no crepitar da lenha ardendo

em cada quintal improvisado

nas capulanas garridas

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

HERA DE JESUS

Maputo - Moçambique

MAFALALA IN SOLO

abraçadas aos corpos das mulheres

Nos rostos alegres das crianças

saltitando, alvoroçadas

Nos rostos enrugados

dos anciãos

sentados à varanda

rencontando as tramóias e sortes da vida

Há vida

há esperança

nos inúmeros rostos

num só coração

in solo

Glossário:

Mafalala = bairro da cidade de Maputo; o nome surge provavelmente de uma dança de origem macua

que se chama M’falala, praticada outrora por gente vinda da Ilha de Moçambique. E as pessoas quando

se queriam referir a este local, em Ronga, a língua de Maputo, diziam Ka Mafalala (lugar onde se dança

M’falala).

Foram oriundas deste lugar grandes figuras como Fany Mpfumo, José Craveirinha, o futebolista Eusébio

e os presidentes Samora Machel e Joaquim Chissano, bem como Noémia de Sousa. Aliás, o bairro

de Mafalala esteve na génese do movimento que apadrinhou o folclore e os ritmos tradicionais originando

a “marrabenta”, dança de origens urbanas. Actualmente este bairro continua a ser viveiro de

jovens promessas.

No tempo colonial, a Mafalala representava a linha fronteiriça entre a cidade “de cimento” e a de

“madeira e zinco”, onde viviam quer os “assimilados” quer o povo comum. Os seus moradores eram

interditos de construir casas de alvenaria, de maneira que eles construíam as suas residências em madeira

e zinco, o que as tornava extremamente quentes no verão. Quando as suas condições económicas o

permitiam, os moradores da Mafalala erguiam paredes de tijolos por dentro das suas residências, assim

não podiam ser vistos pelos portugueses, o que tornava as suas casas mais acolhedoras, mais frias e,

naturalmente, mais sólidas.] Matteo Angius

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

HAIKAI

HERCULANO FLORES

Belém - PA

Rompa urbes da mente

sinta a essência avó da flora

Qual nexo dos bens?

Natural de Óbidos,

Pará, residente

em Belém,

escreve em

verso e prosa, admirador de

vários poetas e compositores

brasileiros e estrangeiros

e agora ganha coragem para

apresentar seus escritos.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

HITALLO DALSOTO

Porto Alegre - RS

Hitallo queria ser

astronauta, mas

se tornou escritor,

além de preguiçoso

assumido e apaixonado

por pizza. É autor do

romance "Essa Visita Está

Adiantada” e do conto "A

Maravilhosa Feira Universal".

O PROFETA DO FIM DA RUA

Me disse certa vez que dinheiro

entraria na minha casa. Não só

fiquei feliz por receber tal profecia,

como me veio a alegria

de encontrar a nota de dez reais na grama do

meu quintal. Ignorei o fato de ter ouvido ruídos

durante a noite, pois sabendo de quem se

tratava, não pude deixar de sorrir diante da

nota encontrada.

Também contou para Suzana que um gato entraria

em sua vida. Ela passou desodorante,

escovou os dentes e tomou um banho decente

para esperar. Então, numa quarta-feira, o

profeta em pessoa a entregou um filhote de

gato abandonado que precisava urgente de

cuidados. Suzana, desolada e ao mesmo tempo

bem-humorada por ter caído na pegadinha,

aceitou seu destino como mãe do felino.

Aquele que recebeu a sorte que Suzana ansiava

foi o Antônio do mercadinho. Há alguns

anos, ele ouviu do profeta que o amor

que tanto esperou logo cruzaria sua porta. A

cada cliente que atendia soltava um gracejo

diferente, na esperança de que fosse a amada

prometida. E olha, quem diria, aquele que

apresentou a moça da profecia foi o próprio

profeta, com os cumprimentos de “vocês

muito combinam”. Assim teve início o romance,

resultando em três filhos e no empate

de infidelidade ¬– dois pontos para cada. De

todo modo, ficaram juntos, pois assim fora

profetizado.

Certa vez, em plena praça e a todo pulmão,

o profeta gritou para multidão que a morte

espreitava o bairro. Alguém que lá morava

não veria o nascer de maio. Profecia essa feita

na segunda semana de abril. As palavras ditas

abertamente instalaram o terror nos corações

de todos nós.

Não havia manhã que não acordássemos com

receio de colocar os pés para fora de casa. O

perigo podia estar a dois passos depois do

portão, ou talvez no expediente do trabalho.

Quem sabe no caminho para padaria, ou no

abraço de alguém que se confia?

Os amigos que saiam toda noite cantando

cantigas boêmias, se trancavam em casa na

segurança da solidão. Os amantes que ansiavam

pelas noites de carícia, se resguardavam

para o mês das noivas. As senhoras que tudo

sabiam do cotidiano, não cumpriram mais

sua função de bisbilhotar a rotina alheia. O

bairro, tão agitado, jazia em tal estado que a

morte desafiava cada um que tentasse a sorte.

Foram duas semanas de clausura, medo e tortura.

Ninguém nunca viu tamanho recolhimento.

O silêncio massacrava dia e noite, até

os pássaros debochavam dos humanos amedrontados.

Na última manhã de abril, o sol iluminou

todo o bairro. Mesmo assim, ninguém saiu

de casa. Embora o dia brilhasse tão belo, a

escuridão que assombrava o pensamento de

todos não podia ser mais densa. Uma alma

corajosa caminhou lá para fora e gritou que

tudo estava bem. Estavam todos a salvo, pois

a vítima da profecia fora o próprio profeta. O

alívio foi doloroso, pois todos nós profetizamos

que, com a morte de figura tão querida,

o bairro não teria mais emoções intensas e o

futuro passaria a ser um mistério na neblina.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

IAN ANDERSON

GOMES DIAS

Manhuaçu - MG

Nascido em 2002

em Manhuaçu,

Minas Gerais,

Ian Anderson

Gomes Dias sempre foi apaixonado

pela leitura. Geralmente

um garoto taciturno

e solitário, ele escondia um

segredo: ele amava escrever.

O GALO QUE CANTAVA À MEIA-NOITE

À meia-noite, cantava um galo.

Se estava perto, ou longe, da minha casa,

Eu não sabia.

Só sabia que conseguia ouvir seu canto,

Tal qual a mesmérica canção das sereias.

Só que, ao invés de doce, amargava.

Era como arranhar quadro negro com as

[unhas,

Choro de criança, violino desafinado.

Não suportava ouvir aquele horror

[cacofônico.

Tremia, os calafrios servindo de aviso tardio

Da chegada daquele som angustiante.

Não cante, galo da meia-noite!

Eu imploro, eu choro, eu grito,

Ouço-lhe o quanto quiser, ao meio-dia, às

[três da tarde, às cinco da manhã,

Mas agora não.

Agora, à meia-noite que você tanto gosta,

Causa-me asco seu cantar, ojeriza,

Nojo, agonia, raiva, fúria, medo, melancolia,

Tudo que há de ruim no mundo,

Desperta com seus cacarejos horrendos!

Sempre que ouvia, e eu sempre ouvia,

Se por azar ou muito boa audição, não sei,

Jogava-me na cama, querendo dormir,

Talvez para fugir,

Da inevitável chegada da manhã,

E

Do

A

Ma

Nhã.

Pois você, galo maléfico,

É um arauto

Do fim das festas do pijama,

Da aproximação das aulas,

Do fechamento dos bares,

Da morte das estrelas,

E de tantos outros auspícios malignos.

Cale-se, profeta profano,

Que sua canção pertence ao raiar do dia,

À chegada da inimiga,

E não à meia-noite,

Pois nela, ainda não estou pronto.

79


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

IRACI JOSÉ MARIN

Caxias do Sul - RS

INFÂNCIA

Pedro falou para sua mãe:

- Vou buscar jabuticabas lá no morro.

- Tenha cuidado.

Ele fez ‘sim’ com a cabeça e foi.

Uns dias antes tinha ido com o Onofre, mas

as frutas ainda não estavam maduras.

- Tem que vir outro dia – falou Onofre.

- Está bem – respondeu o menino.

Aprendera o caminho e agora estava ali de

novo.

Parado no alto do morro, olhou a paisagem

colonial. Sentiu o imenso silêncio do dia. Lá

embaixo, o grande rio parecia imóvel. Olhar

o rio lhe dava um prazer gostoso. Aquela

imensidão de água entre as duas tiras de mato

das margens parecia se esconder atrás de outro

morro, no fim do horizonte. Mas o rio seguia,

rasgando a terra, costurando enorme e

infindável linha.

As águas do rio enchiam os olhos do menino.

Passado um instante neste olhar distante, se

pôs a procurar a jabuticabeira, caminhando

pela plantação de milho do pai. Devia estar

por ali, na entrada do mato.

Finalmente encontrou-a e leve alegria bateu

em seu peito. Olhou o tronco e os galhos carregados

de frutas pretas e a imaginação levou-

-o a compará-las com a cor da pele do amigo.

Experimentou algumas, antes de colher e colocar

na sacola listrada que levara. Rasgava

com os dentes a casca macia das frutas e a

polpa enchia sua boca de prazer. Estavam maduras,

gostosas, suculentas.

Nisto, ouviu o trinado de um pássaro. Olhou

80

para o alto e não o encontrou.

Passou a colher as frutinhas com enorme satisfação.

Em seguida, o trinado recomeçou

e se tornou insistente. O menino parou de

colher e respondeu com um assobio fraco.

Fez-se completo silêncio. Parecia um mundo

vazio. Mas não. Era o mundo da sua vida enfeitada

de imaginação.

Pedro continuou a procurar o pássaro por entre

os galhos da árvore, esquecido de repente

das jabuticabas. Saiu de debaixo dela e foi

para o

meio do

milharal. Então pode

vê-lo no galho mais alto.

Era pequeno e colorido.

Assobiou de novo.

O pássaro respondeu:

- Olá!

Surpreso, o menino silenciou. Sem ação

ou pensamentos, ficou olhando para o

pássaro empoleirado na jabuticabeira.

- Eu vi você por aqui estes dias...

- Você é um pássaro... mas fala?

- Sim.

- Como pode?

- Eu sou assim. Não sei como foi... talvez

uma fada... não sei... acho nasci assim.


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

IRACI JOSÉ MARIN

Caxias do Sul - RS

INFÂNCIA

- Minha mãe não vai acreditar.

- Não faz mal. Importa você acreditar.

Agora Pedro apenas olhava. Não tinha o que

dizer. O pássaro deu um pequeno voo e pousou

num galho mais próximo do menino.

- Eu vi você aqui outro dia. Mas não estava

sozinho.

O menino ouvia, sem acreditar.

- Você deve vir aqui mais vezes...

O menino ouvia e continuava sem acreditar.

O pássaro trinou novamente e, antes de voar,

falou:

- Não demora pra voltar.

Pedro ficou a observar o gorjeio dele por sobre

o milharal. Depois, ele voou para o interior

da mata.

O menino se pôs a colher as frutas.

Quando chegou em casa com as jabuticabas,

os irmãos fizeram festa. A mãe também apareceu.

- Mãe, eu vi um pássaro lá no morro e conversei

com ele.

- O quê?

- Isto. Eu conversei com um passarinho pequeno

e todo colorido que estava lá no pé de

jabuticaba.

- Que invenção é esta agora, meu filho?!

- É verdade, mãe. Ele até disse que me viu

quando fui lá com o Onofre.

- Isto é só imaginação tua. Dias atrás falou

que tinha ouvido um cachorro cantar... O que

mais vai inventar? – disse, retornando para a

cozinha.

O menino olhou ao seu redor e tudo estava

igual.

Então pensou que a palavra ‘imaginação’

existia para explicar o mundo das crianças.

Montou em seu cavalo de pau e saiu a galope

estrada afora.

81


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ITA YANARA KARAJÁ

Aldeia Pankararu - PE

Sou Ita Yanara Karajá,

tenho 18 anos, nasci

em Brasília, e vivo em

Pernambuco desde

os 7 anos na Aldeia Pankararu.

Sou indígena, também

descendente dos Kamaiurá

do Xingu e dos Karajás, do

Mato Grosso.

MINHA RUA SEM CALÇADA

Vive um cotidiano rotineiro

Simples e verdadeiro

Rua pacata e encantada

Sem qualquer preocupação

Crianças brincam de pés no chão

No horizonte da estrada

Ao soar o meio-dia

A rua fica vazia

Tem sabor de feijoada

Quando o sol beija a serra

A pequena rua deserta

Volta a ficar lotada

Com conversas do dia a dia

As resenhas das senhorinhas

A pequena rua fica badalada

Na escuridão da madrugada

onde barulho é quase nada

A pequena rua dorme sossegada

E ao raiar do dia

Volta toda a alegria

Na minha rua sem calçada.

82


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

JAIANE ALVES

Iguatu - CE

TRAVESSIA

Transbordo vazios.

Nesse desaguar

faço enchente de vários nadas.

Talvez “Nada!” seja mesmo um bom conselho, Lygia!

Um descaminho líquido

a me arrastar de volta à casa...

Água a marulhar

me convidando à sua dança,

água a ser meu leito

a esperar que eu me derrame

abrindo-me um

braço

d’água

para

um

rio

Yanomami.

Maria Gabriela

Cardoso, 23

anos, nascida

no Rio Grande

do Sul, atualmente morando

em Santa Catarina. Apaixonada

por todas as formas

de arte, mas principalmente

as que envolvem letras.

83


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

RUBRO

JANILDES ALMEIDA

CHAGAS MAGNO

Bahia

84


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

JEFERSON LORENZATO

São Paulo - SP

LIBERDADE DO CORPO

Jeferson Lorenzato é quadrinista

e ilustrador, publica na

mídia brasileira e europeia,

atualiza semanalmente blog

Ilustrea e tem publicado HQ

de estreia 'Como Existências'

pela Chiado Books.

85


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

JOÃO PEDRO CAMPOS

Belo Horizonte - MG

TORRENTE

A

fumaça da exaustão do ônibus metropolitano se confunde

com a fumaça exaurida por meu peito exausto.

Exausto de solidão.

De buscar a todo momento por um motivo.

De me manter. De me manter buscando.

Não deveria ser necessário um motivo para se buscar. Nem uma busca

por um motivo.

Mas cá estou eu. Lamuriando. Lamuriado.

Na infinda concessão da busca por motivos para me manter.

Como um graveto em uma torrente, apenas sigo.

Ignorante ao destino. Ignorado pelos deuses.

Apenas sigo.

Sou o João Pedro. Estudo

engenharia, mas

mesmo tendendo

para as áreas exatas,

ainda sou apaixonado por

poesia. De todos os tipos.

Músico e poeta nas horas

vagas, tenho como hobby o

violão e a pena.

86


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

JOÃO RICARDO DIAS

São Paulo - SP

Escritor, jornalista,

diretor de vídeos

e palestrante, são

algumas das personas

de João Ricardo Dias.

Nascido em São Paulo, em

1981, o autor tem 4 livros

publicados, sendo 3 de poesia

e 1 de ficção

O FOGO EM MEUS DEDOS

O

fogo em meus dedos

como um cigarro, prestes a se apagar,

queima – vorazmente – a lembrança que tenho de ti

alimento meus sonhos com as raízes

de mil céus envelhecidos na madeira febril

que constrói, sem refinamento algum, minha máscara de tristeza

penso – como nunca antes em minha vida

ousei pensar – nos degraus aviltados da escuridão

que me toma o corpo

e

na rigidez de meus lábios pronunciando palavras ao vazio

– uma música toca em algum lugar do universo

despejando em meu corpo

um rio triste feito da matéria escura das sombras –

a quietude incerta da sua voz

ainda reina na melancolia quebrada de meu olhar

sua presença já tomou de todo a substância fria

de minhas desilusões

recuo ao uísque,

mas nem o álcool pode me atender

nessa prisão de euforia

sobreposta ao jejum indiferente à alma

levanto-me perante meus sonhos

e os aprisiono

as palavras que teria dito a ti

tranco-as atrás dos dentes

e só um vento de hesitação e desespero

sopra em minha boca

mas se um dia a indiferença dos astros

a trouxer para mim

me fecharei em ti e serei você

em seu ventre em seu beijo em sua pele

serei único

eu e ti

serei você em minhas mãos em meu colo

serei você

perdida no interior profundo de mim.

87


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

JONATAN MAGELLA

Nova Iguaçu - RJ

Nasceu em Paracambi/RJ

em

1990. É professor

de História

e escreve ficção.

PARA CALAR PERSONAGENS ESCANDALOSOS

No princípio era o verbo. Mentira.

No princípio eram grunhidos,

sussurros; mas, principalmente...

gritos. [...] Na pré-história, o grito

era uma arma, uma estratégia de sobrevivência:

quem elevava sua voz a tons altos

amedrontava predadores. [...] Hoje, quem

grita, é chamado de louco. Principalmente as

mulheres. Se você for um roteirista da novela

das sete da Globo e quiser retratar uma mulher

irritada, coloque uns gritos na boca dela.

O público curte. O primeiro problema do seu

roteiro é que as mulheres não são histéricas

na vida real; o segundo problema é que você

não escreve pra Globo. [...] Gritar, hoje, não

soa bem - literalmente. [...] A história da civilização

humana é a história da domesticação

do grito. [...] Bem, agora estou aqui em minha

casa (silenciosa) tentando escrever. Odeio

gritos, mas não sou o centro do mundo, então

não posso dizer que meu ódio deva ser o

padrão (embora eu possa odiar, porque odiar

de maneira direcionada me faz muito bem).

Escrevo a partir de um ambiente silencioso,

isso não pode ser desprezado. Mas o que vocês

não sabem é que, dentro da minha cabeça,

tem sempre uma gritaria danada. [...] Acho

que a pré-história, quando acabou, se mudou

para a minha cabeça. [...] Meus personagens,

quando ainda estão na imaginação, parecem

viver no Paleolítico: querem ganhar a vez no

grito. [...] Mas a história que eu gostaria de

contar é a seguinte: Com a crise, uma madame

precisou ir ao Mercadão de Madureira

e andou de trem pela primeira vez na vida.

Chocou-a, para além da sujeira e da falta de

conforto dos vagões, a pobreza dos vendedores

ambulantes. Uma velhinha, um cego

e uma criança, aos berros, tentando vender

produtos infinitamente variados. Alho. Pilha.

Pente fino. Fone de ouvido. Cotonete. Eles

gritavam! Mas, com o passar das estações,

a madame notou que os vendedores conseguiam

ganhar algum dinheiro. Ainda assim

compadeceu-se das pobres criaturinhas. Até

que um rapaz de vinte e poucos anos entrou

no vagão carregando um isopor enorme. Dos

idosos, das crianças e dos cegos, tudo bem, vá

lá sentir pena, mas desse aí não, é um homem

na flor da idade, pensou a madame. Contudo,

ao tentar anunciar seus picolés, saiu da

boca do homem na flor da idade apenas um

sussurro. Ele, por mais que se esforçasse, que

sua artéria da garganta quase explodisse, não

era ouvido. Estava rouco. E sem voz e sem

grito, nosso jovem ambulante era presa fácil

aos outros vendedores ambulantes do trem.

Fim. [...] Gostaria que os pré-históricos da

minha mente pegassem uma rinite e perdessem

a voz, feito o ambulante, mas os meus

personagens são incaláveis e nunca adoecem.

[...] Nesses casos, existem duas saídas para o

problema. A primeira é um pouco mais fácil:

chama-se escrever; a segunda coisa que você

pode fazer para calar seus personagens - e que

envolve maior complexidade - seria morrer.

Referência bibliográfica:

MAGELLA, Jonatan. Para calar personagens

escandalosos. Editora Rouco. Rio de Janeiro,

2021.

88


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

JULIANA MORONI

Ibaté - SP

Bacharela, mestra

(UNESP) e doutora

(UERJ) em filosofia.

Interessada em

filosofia, psicologia, pintura

abstrata e Folk art, fotografias

em preto e branco, poesia

intimista e ideias não

dogmáticas.

NORMALIDADE AINDA NÃO RESTAURADA

Caminho pela cidade de ruas vazias,

céu noturno,

a lua vigia o silêncio de vidas trancadas

em redomas de tijolos

com medo do dia seguinte.

Percorro casas abandonadas

por antigos moradores esgotados do nada,

foram embora levando os sonhos

e os pesadelos de perdas em tempos

de reinados de poderes sórdidos.

Olho para trás,

um cão perdido,

caminha devagar,

atento aos meus passos,

desejando abrigo,

receando o ataque do suposto humano inimigo.

Faço um sinal amistoso,

ele caminha e para,

ainda receoso,

prefere seguir por outra rua,

escolhendo a solidão

ao invés de apostar na sorte

de ir na direção de um humano

que poderia ser igual a tantos outros: impiedoso.

Sinto pena do animal solitário,

dentro das casas há lobos aprisionados,

desejando a liberdade,

alguns arriscam,

brincam com a morte,

desprezam os enlutados,

desafiam a sorte.

Econtro um grupo de pessoas,

bêbadas e sorridentes,

vieram de outro mundo,

paralelo ao atual presente.

Escolho outra rua,

a manhã se aproxima,

na padaria da esquina,

o cheiro de pão aquece a esperança

de uma normalidade ainda não restaurada,

de um cotidiano perdido em outra época,

onde tínhamos o futuro,

os apertos de mãos

e os sorrisos,

em um tempo em que viver era óbvio.

89


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

JÚLIO OLIVEIRA NETO

Passo Fundo - RS

PRÁ NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DA FLOR

E

por falar em COVID, a coqueluche

que andava na dela, meio sumida,

resolveu ser solidária à velha insônia

de Dalton Trevisan e deu as caras

num acesso às três da madrugada. Suspendeu

o netinho magriço de um solavanco só, botando

a avó para correr porta afora.

Em meio à ventania da rua, a velha bem que

tentou, mas só conseguiu abaixar a saia depois

de revelar que o fogo selvagem continua

se alastrando por debaixo dos panos. Passou

por um mendigo que parecia dormir. Souberam

depois que ele morreu. Dizem que foi o

frio; mais provável infarto. Muita gente não

sabe que o inverno costuma ser uma estação

perigosa para o coração. Partido ou convulsionado,

pouco importa.

Pouco importa, tanto faz. O bom é que já não

enterramos nossos mortos ao longo das estradas,

fora dos muros da cidade. Também não

permitimos que repousem, ou melhor, que sejam

incomodados em seu repouso pelo tacão

dos calçados no chão das igrejas. Repelimos a

ideia de que a sua ossada à mostra se preste a

revestir paredes.

Entre a barbárie romana e a medieval, nós,

a civilização iluminada que pela primeira vez

alcançou os píncaros do bom senso e inteligência,

temos solução mais prática. Fora com

o escandaloso memento mori das escuras catedrais

e com o degredo perpétuo ao cidadão

defunto da idade clássica: o mendigo será devidamente

acondicionado na capa de invisibilidade

que o levará direto ao necrotério. Isso,

bem acomodado dentro do saco preto, e assim

podemos seguir confiantes, com a sujeira

debaixo do tapete, longe das nossas vistas, e

também do coração.

Sendo bem práticos, que tal pensar na cremação

obrigatória em favor da saúde pública?

Colírio para os olhos. Higiene e ecologia

numa tacada só. Nenhum germe acima de

1000ºC. Depois, um mínimo de resíduos facilmente

restituíveis à Mãe Terra, e la nave

va. Eis o sonho de uma humanidade inaudita,

sem cadáveres pelos caminhos, abaixo de

nossos pés ou acima de nossas cabeças. Xô,

assombração!

Mas vamos com calma: e a velha? Vem chegando.

Entra esbaforida pela porta do pronto-socorro.

Felizmente para a tempo de não

esmagar com o pé a última flor de sangue que

o tuberculoso deixou cair no piso branco. O

brabo é que antes de acontecer a morte empesta

tudo, o raio do rastro que fica por onde

ela passa.

É, vai ser difícil se livrar dela tão cedo. Eu,

você, tantos outros, teremos todos de conviver

com ela até o fim, menos aquele ali.

- Aquele quem? – você pergunta.

O cidadão parado na esquina, de braços cruzados.

Ontem levou uma picada. Agora não

sabe dizer se foi agulha, mosca azul ou dente

de vampiro. Desde então paira sobre ele a certeza

inquebrantável de que já não morrerá.

90


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

FOTOPOEMA

KÁTIA SURREAL

Niterói - RJ

O urubu

escolheu

o galho

humano

Kátia Surreal é

autora do livro

de poesias

eróticas Gradações

hiperbólicas

(2021), membro da

Academia Independente de

Letras (AIL), formada em

Letras (UFRJ, UFF e Uerj),

professora e militante da

CMI.

91


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

LUA PINKHASOVNA

Porto Belo - SC

LÉXICO DOS SENTIDOS

Cansei de regras

Teoremas

Cansei das ênclises

Próclises

E sempre detestei as mesóclises

Querer-te-ei?

Como poderia querer-te no futuro?

Ter você agora seria o único presente mais que perfeito aceito

[pelas minhas linhas

Preciso criar um novo tempo pro pretérito

Um que eu possa usar em qualquer texto

E sirva para todos os momentos com você

Eu quero rasgar o verbo

Expulsar todas as minhas hipérboles

Como alforria

Quero gritar interjeições

Sem analogias

Quero a palavra nua

E sentir todos os paradoxos da minha existência saindo pela boca

Maria Gabriela

Cardoso,

23

anos, gaúcha

atualmente

morando em SC. Apaixonada

pelas letras. Acredita

fortemente que a arte pode mudar

a vida das pessoas.

Não quero o uso correto do idioma

Quero gaguejar

Me lambuzar nos erros

E delirar entre as palavras tão livres expressadas

Quero cuspir palavrões

Buscar o sentido pejorativo

Escrever fora das linhas

Rabiscar tudo escrito

E quem sabe rasgar a folha

Quero me libertar da minha forma humana

Amar outras espécies

92


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

LUA PINKHASOVNA

Porto Belo - SC

LÉXICO DOS SENTIDOS

Afiar minhas presas

Usar minha prosopopeia

E me transformar em quem

talvez seja quem de fato sou

Eu quero a sinestesia

Aprender

Prender

A tua língua em mim

E jamais usar amar no verbo oculto

Eu quero abusar dos neologismos

E encontrar a palavra exata que sirva como palíndromo

Que mesmo que você leia de outras direções, o sentido será o mesmo

Mas antes, não se esqueça de respeitar meus parágrafos

Pois são eles que definem o começo

das minhas histórias

Então, engula minhas reticências

Não pause nas vírgulas

Saboreie cada silêncio

E você estará sentido o verdadeiro gosto do meu léxico

E o que vem depois serão palavras sinceras

sem pontos finais.

93


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

LUCIANO REIS

Sintra - Portugal

GRATIDÃO

A

esta distância da minha vida

eu sinto que tudo o que existiu

em mim foi como se de um

nada se tratasse. Tudo foi feito

e vivido de uma forma apressada, sem a

devida convicção e certeza de quem era

em cada espaço, em cada tempo e em

cada momento do aqui e agora.

Não fui capaz de ir ao mais íntimo de

cada pensamento, de cada olhar, de cada

observação, de cada força de sentir e de

estar.

Aqui, neste lugar, neste espaço/tempo que

me leva ao encontro do baú da minha

memória, das muitas memórias que vivi e

arquivei, quero extrair desse acervo informações

autobiográficas que me permitem

analisar o ser humano que sou hoje.

Pego nas palavras, nas muitas palavras

que meditei, que coloquei em várias resmas

de papel e as saboreei com a chuva

de ideias, com a força e verdade do muito

que senti, que amei, que transformei; que

sofri e até inventei, dentro do disciplinado

artífice das palavras que escrevi e que

experienciei.

As palavras têm-me acompanhado desde

os meus quinze anos, como se elas fossem

o meu respirar, a razão principal da minha

vida; a verdade de todas as verdades

e o caminho que me pode levar até a uma

felicidade capaz de acelerar o ritmo e a

sonoridade da beleza humana.

O “Mestre das Palavras” fala-vos agora

de Lisboa, desta capital que muito amo.

Desde muito cedo me recebeu como se de

um filho verdadeiro se tratasse. Começou

por me dar o seu colo; por me limpar as

lágrimas nos momentos de dor, de perda e

do muito sofrimento e desespero que vivi

em muitos momentos da minha vida.

Esta cidade foi o meu porto de abrigo; a

escola da vida e a escola académica; a fonte

da minha criatividade, dos meus valores,

dos meus amigos e a semente daquilo

que penso, que sinto, bem como a oportunidade

de poder ver mais além. Nesta

cidade tive paz, tive amor e oportunidades

únicas de atingir objetivos que, noutras

circunstâncias, nunca seria capaz de

concretizar.

Medito agora na voz interior que me tem

acompanhado, com toda a força e rigor,

ao longo da minha existência, tentando,

sempre que possível, dificultar aquilo que

verdadeiramente quero e determino para

o meu caminho. Tem sido uma batalha

difícil de ganhar. No entanto penso que

sempre fui capaz de ir ao encontro dessa

voz, nunca permitindo que ela ultrapasse

barreiras de controle e poder em mim

mesmo. Aprender a coabitar com a voz

interior, foi também, graças aos muitos

saberes/saberes que adquiri em vários es-

94


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

LUCIANO REIS

Sintra - Portugal

GRATIDÃO

paços desta cidade que admiro e à qual

estou grato.

Paro!

Respiro fundo para me preparar para novas

memórias e meditações. Quero com

este texto transmitir o que de mais verdadeiro

e intenso está dentro de mim. Quero

transmitir em palavras os muitos pensamentos

e reflexões que criei ao longo deste

meu percurso existencial. O estar só, muitas

vezes, foi, sem sombra para dúvidas, o

melhor que me pode acontecer. O estar só

permitiu-me outras visualizações e outros

voos. Foi outro respirar, outro olhar e até

outra sobrevivência de mim mesmo.

Foi como se tivesse:

- Noção profunda do meu nascimento.

- Conhecimento de outras realidades e de

outros sentimentos e emoções.

- Permissão de ir por outros caminhos,

mais condizentes como ADN da minha

dimensão de ser e de estar.

- Noção dos pensamentos agrestes e como

eles se podem transformar em boas energias

racionais, emocionais e espirituais.

- Informação das minhas dúvidas, dos

meus medos, das minhas revoltas, mas

também dos meus sonhos, das minhas

preces, da minha gratidão e até da grandeza

da minha abundância.

- Reconhecimento do poder da minha

mente; do acesso e fruição da liberdade,

do amor, do saber/saber constante, do sacrifício,

do sofrimento, do benefício de ter

noites e dias; de ter um permanente aqui

e agora; do planeamento e realização de

cada objetivo e cada viagem existencial.

Termino este modesto texto com a aceitação

da pequenez do meu ser; das dúvidas

constantes que tenho tido ao longo do

meu caminho; do cair e do reerguer contínuo,

porque acredito que o aperfeiçoamento

e a sabedoria nos vem pelas muitas

oportunidades da experienciação.

95


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MALVINA DE

CASTRO ROSA

Porto Alegre - RS

Sou escritora. Em 2013

publiquei "As Loucas

Aventuras da Guria

Maluca.

Já tive alguns blogs, atualmente

me dedico ao

bomdiasociedademachista.

blogspot.com

QUANDO O SONO BATE

Ganhei de aniversário uma mi

band (aqueles reloginhos que

medem tudo: passos, calorias,

distância percorrida, frequência

cardíaca). Amei! Tenho relógio o que

eu adoro, não gosto de olhar as horas no

celular. Humilho todo mundo aqui em

casa com os vários mil passos que dou,

sem contar a quilometragem é claro. Isso

tudo só olhando para o pulso e liberando

minhas informações

para o

mundo.

Uma coisa

muito louca

que a mi band

me fez mensurar

foi o tão

pouco que durmo.

É melhor

nem falar em

números, para

não assustar.

Sono profundo,

então, é bem mais escasso do que

profundo. Deve fazer uns 8 anos e meio

(idade da minha filha mais velha) que eu

não sei o que é dormir uma noite inteira.

Para a gente ver como o amor de mãe é

uma coisa bem doida. Não bastava uma

sem me deixar dormir direito e eu quis ter

outra. Elas me expõem a privação de sono

há mais de 8 anos e eu ainda assim as amo

incondicionalmente.

O pior (ou melhor, não sei bem) é que eu

sempre adorei dormir e durmo com facilidade

em qualquer lugar. Durmo sentada.

Durmo no cinema, independente do filme

ser lento, violento, engraçado, gênero e

estética não são problemas. Já dormi de

pé em boate. Viajar comigo é uma maravilha

liga o motor do que for (avião,

carro, ônibus,

barco...) e eu

automaticamente

durmo

independente

do horário,

não precisa

nem sair do

lugar. Claro

que não durmo

dirigindo,

mas sou a pior

companhia

para um motorista,

piloto ou marinheiro.

Hoje em dia os momentos de sono são

poucos, às vezes sou vencida por ele e dá

aquela vontade de tirar uma sestinha no

final de semana, mas alguém acredita na

lenda que as crianças fazem soninho da

tarde? Nessas ocasiões desenvolvi uma

técnica: me disfarço de sofá. Coloco uma

96


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MALVINA DE

CASTRO ROSA

Porto Alegre - RS

QUANDO O SONO BATE

roupa escura para não destoar do estofado.

Me deito no sofá. No pobre sofá, que

é um dos seres que mais sofreu com essa

pandemia. Sem dúvida quando as aulas

voltarem ele vai precisar ser estofado. Já

fiz uma anotação mental, vou pedir para

o estofador fazer um macacão com capuz

no mesmo tecido do sofá para eu me camuflar

melhor.

Enquanto isso não acontece me deito no

sofá sofrido (com a roupa que não destoe

da cor dele, nada de cores ou estampas

chamativas) na frente da televisão

que passa algum desenho já visto umas

500 vezes e fico ali quase sem respirar.

É um soninho bem bom, super tranquilo!

Minhas filhas passam por cima. Me

cutucam. Em alguns momentos alguém

abre um dos meus olhos e ouço ao longe

“mamãe tu tá dormindo?”. Passada uma

meia hora a paz começa a terminar. Elas

invariavelmente brigam e eu de olho fechado

só repito "Não bate na tua irmã".

Então, subitamente desperto por completo

no meio de um ringue de luta livre com

as duas engalfinhadas. Rola chute, tapa,

puxão de cabelo. Pronto! Tirei minha sonequinha

revigorante do final de semana.

Ai que saudade de uma aglomeração infantil

para movimentar o final de semana,

para poder fazer ameaças vazias: se vocês

não me deixarem dormir 30 minutos não

vamos a tal lugar! Se bater na tua irmã

não tem festinha da fulana. Se vocês continuarem

assim ninguém vai na pracinha.

Ai que saudade!

97


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MANA MOA MC

Florianópolis - SC

De SP pra SC desde

2015. Acolhida

por mulheres

que fazem arte e

cultura na cidade,eu já participava

de rodas de freestyle,

fui incentivada a acreditar

na carreira de mc através da

"batalha das mina".

LEVANTE UBUNTU

Violência Velada, Favela é calada

No centro ou na praça Só Jah é seu parça

'Nois' bate na tecla Não mosca, não mescla

Quem peca é quem pesca Se tem e faz festa...

Eu já nao mais disfarço os olhares Ou devia fazer?

Enquanto eles fazem pilates. Meus pilares, osso duro de roer

Travada na língua, Tratada a míngua

Antes que extingua eu vou permanecer! 2x

“Nois tá” em todos lugares

Nas ruas, Nos becos, Nos morros,Nas lages

Sem sobrevoar Pra sobreviver

Quem ta de dentro pode ver

temos a cor, da terra, terreiro batuque, tamobor

agogô Luz da Vela Morteiro, Fogo! Pra essa partida é Go! Gol!

E os burguês nem quer ser jogador, Os burguês nem quer ser

No bote, no embate e no rebate, Quem paga pra ver Quem paga pra ver?

Bem mais que debate Pro combate!

Pra se proteger Pra poder manter

Fortaleza antes que invadam, Quem vem cobrar você

Ainda vem perguntar: ''De onde cê vem, quem é você?''

E eu: não to te devendo, ah não ser que

Voltei pra dar o troco e vc aprender

Se fica em cima do muro

De qualquer lado pode vim um furo

Chicote, borracha, pente, cartucho

Sabe de onde vem

Aquele uniforme foi feito de sujo

Não é acidente, acaso o nojo

É pra fazer correr, pra nos deter

E cada dia que eu sigo

Grata reinvindico

À todos que aqui não mais vivos

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MANA MOA MC

Florianópolis - SC

LEVANTE UBUNTU

Morreram no mesmo suplico

Dandaras, Cláudias, Rosas, Terezas

Enfrentam as dores, medos tristezas

Suas incertezas Mas nunca se esqueça

Esclareça, quando escurecer

E a cada gota de lágrima derramada

No rio de mágoas será força transmutada

Pra lavar minha alma não mais derrotada

Não mais derrotada

Então lute!

Não como estátuas

Nem por status

Muito mais tetos

Bem menos Taurus

Sistema dinossauro Hip Hop é restauro

Nova era, Não só eu instauro

Grito de Socorro, pedido de paz

Quebrada merece bem mais 3x

LEVANTE UBUNTU!

99


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

DECLINA

MARCEL LUIZ

Contagem - MG

declina

a luz aos

olhos

surpresas e graças

em miniaturas

santos

em barro

pedra/sabão e

ossos

no ataúde_

lápide

vazia

à espera

o vento escreve

seu tempo

100


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MARCOS ANTONIO

CAMPOS

Natal – RN

O SUPREMO

Decisão tomada pela primeira turma do Superior Tribunal Federal esclareceu

que o ponto final não encerra uma sentença, antes que se ponha o

ponto final na oração, elucidou o colegiado, a vírgula e o ponto e vírgula

devem se pronunciar para que não restem dúvidas quanto ao enclausuramento

dos vocábulos.

A mesma turma do Tribunal, também por ocasião do julgamento do primeiro ponto,

deslindou que muito menos os dois-pontos encerram a sentença, já que após os

dois-pontos cabem uma citação, uma enumeração ou um esclarecimento. Uma síntese

protelatória do que se acabou de afirmar, uma justaposição de recursos para serem

analisados, antes que se estabeleça a sentença final.

Esclareceu o Tribunal que, mesmo na terceira instância, ainda cabem recursos, se os

três pontos permitirem interpretações diversas. Os três pontos, simplesmente, indicam

que o julgamento ainda não acabou, permitindo-se as hesitações, as dúvidas, a suspensão

ou a interrupção do julgamento, até que não pairem incertezas quanto ao direito

da palavra ao Libertatem Verbi.

Finalmente, comunicou o colegiado que a sociedade precisa entender que a Justiça

só se subordina ao imperativo da lei, através da tergiversação. Não cabe ao Tribunal

restringir o uso das palavras, conduzindo-as as orações, aos períodos sintáticos sem o

amplo direito à liberdade. Afinal, o direito de ir e vir de uma oração à outra se estende

às palavras, porque só existe comunicação se entre emissor e receptor não houver

obstáculos pontuais a livre circulação dos fonemas.

101


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MARCOS

NUNES LOIOLA

Botuporã - BA

Um baiano de coração,

advogado

e apaixonado por

literatura.

LEMBRAR JOÃO CÂNDIDO FELISBERTO

João, tu não és cândido,

nunca foste.

Tua pele é preta

tal qual a tantos Joões

e Marias.

Tu és cândido, João,

sempre foste.

Tua luta

não carrega a culpa

das cândidas mãos pesadas

dos açoites.

Que as gentes não te esqueçam,

do teu propósito

tal qual um poema, esta estrofe;

porque as chibatas são outras, João,

e o céu da Guanabara

ainda é azul e branco

tal qual vermelho

o sangue.

102


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MARIA CLARA LIMA

Recife - PE

Maria Clara

Lima é formada

em

Direito pela

UFPE. Venceu o VII Concurso

de Contos Dirce Doroti

Merlin Clève, com o conto

Troca de Pessoal. Hoje edita

o seu primeiro romance.

Nasceu em Recife, em 1991.

ENCONTRO EM FAMÍLIA

Quando Sabrina11 sugeriu o encontro

no cinema, ele pensou que ela só estava

seguindo o protocolo de segurança para encontros

marcados por aplicativo. Logo que

ele vencesse as defesas dela, esperava dar seguimento

à transação num lugar mais conveniente.

Mas a morena da foto do perfil, passo

firme, cabelo alisado até a cintura, apareceu

na fila da bilheteria segurando uma criança

em cada mão, um menino e uma menina que

eram a cópia da

mulher, exceto

pelos dentes de

leite na boca.

— A creche não

funciona no fim

de semana — ela

justificou, sem

tom de desculpa,

como se fosse

muito natural

transformar a

foda que ele tinha

programado

a semana inteira

no jardim de infância.

Ele mal cuidava dos próprios filhos e não pretendia

ser babá do filho dos outros. Entreabriu

os lábios para proferir o discurso de retirada,

acabava de se lembrar de um compromisso

inadiável etc., quando ela fez o sonzinho esquisito

com a garganta. Um barulho discreto,

gutural, como quem espanta uma alergia na

laringe, tão rápido quanto a primeira gozada

que ele teve na vida, numa punheta batida às

pressas no banheiro da escola, média de três

segundos.

Ligeiro, porém significativo.

Engoliu o pretexto que quase escapou da ponta

da língua. Ponderou. Baixou os olhos nos

moleques, o menino escondido atrás da perna

da mãe, a menina engraçadinha, brincando

de escorregar a sandália no piso de cerâmica.

Então voltou a inspecionar Sabrina11. No total

e ao vivo, ela nem impressionava tanto assim,

tendo parido dois e tudo mais. Não fosse

aquela coçada de garganta…

Como se adivinhasse que ele precisava ser

convencido, ela

fez de novo, caprichado,

não

chegou a abrir a

boca, o ruído saiu

do meio do pescoço.

Ele se concentrou

na vibração

da garganta dela,

lembrou aquela

punheta adolescente

roubada no

recreio da escola,

no tempo em que

ele ainda tinha

todos os cabelos

na cabeça e qualquer roçada na bunda das

colegas, na fila da cantina, bastava para deixá-lo

duro.

Rendeu-se à reunião em família. Entraram os

quatro na sessão do Lego Batman.

O ar-condicionado central trabalhava inclemente,

mantinha a sala gelada, seca, a inimiga

perfeita das vias aéreas, a vilã implacável

das inflamações de garganta. Antes de o Lego

Coringa aparecer na tela de vinte metros de

extensão, Sabrina11 já tinha limpado a laringe

cinco vezes. O que somava quinze segundos

da zoadinha que o remetia aos tempos de

103


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MARIA CLARA LIMA

Recife - PE

ENCONTRO EM FAMÍLIA

juventude, à época de despreocupação e inocência,

sim, inocência, pois ele foi um adolescente

puro, apesar das pornografias escondidas

na última gaveta do guarda-roupa. Não

era culpa dele se ele gostava de boceta. Era

culpa de Deus. Deus fez o homem e a mulher

para que trepassem e se multiplicassem. Ele

frequentava a igreja. Estava na Bíblia.

Dezoito segundos. Ele vinha contando. A

matemática ajudava a manter a cabeça longe

do formigamento que começava a sentir na

virilha. Não era certo pensar naquelas coisas

ali, cercado de crianças, as de Sabrina11 e as

outras que gargalhavam das piadas sem graça

do Lego Robin. Ele era chefe de família, tinha

emprego fixo, filhos quase crescidos, amantes

apenas ocasionais que arranjava no aplicativo

e escondia com muito zelo da esposa.

O pirralho de Sabrina11, o menininho medroso

que na bilheteria não largava a barra

da saia da mãe, pediu o colo dela quando se

assustou com um estampido nos alto-falantes.

Ela sentou o caçula nas coxas e fez cavalinho

com o moleque, acalentando. O assento vizinho,

onde ele fingia assistir ao filme espremido

entre Sabrina11 e a menina, acompanhava

a trepidação suave da brincadeira mãe-e-filho.

Vinte e um segundos. Qual era mesmo o

nome da colega que ele encurralou no final da

aula de Biologia sobre o sistema reprodutor

humano? Uma loirinha, bonitinha. Ele tinha

uma memória tátil dela, os peitos ainda desabrochando,

mas o nome agora fugia… Joana?

Ao lado dele, a menina de Sabrina11 se preocupava

com a Batgirl. Balançava as pernas

ansiosas, cutucava o braço dele sem despregar

os olhos da tela e sussurrava: tio, ela vai

se dar mal? Ele nem conseguia responder,

com medo de que a voz denunciasse o que

ia na cabeça. Cravou as unhas no acolchoado

da cadeira. Vinte e quatro segundos. A

menina ainda cutucava o braço direito dele,

Sabrina11 ainda fazia cavalinho com o menino

nas coxas no lado esquerdo. Juliana! A

loirinha da aula de Biologia. Lembrar o nome

trouxe em detalhes a textura dos peitinhos da

colega de escola, lisos, virgens, os bicos atiçados

quando ele massageava a ponta. Fechou

os olhos. Afundou de novo as unhas na poltrona.

Vinte e sete segundos. A menina errou a mira

e cutucou o pau dele em vez do antebraço. Ele

não abriu os olhos para verificar se ela tinha

percebido o engano.

Trinta segundos. Será que Sabrina11 conseguia

fazer aquela coçada de garganta com um

pau duro dentro da boca?

Trinta e três segundos. Cacete. Estava admirado

com o próprio autocontrole.

O menino avisou que precisava ir ao banheiro.

Ele se ofereceu para levar a criança. Tinha

que terminar o serviço em algum lugar.

Se Deus não quisesse que ele sentisse tesão,

não teria metido um membro cheio de vontades

bem no meio das suas pernas. Não teve

tempo de ajudar o menino no banheiro. Largou

o pirralho perto da pia e se precipitou

sozinho para dentro de um cubículo. Apoiou

a mão esquerda na parede atrás da privada e

com a direita libertou o membro como Deus

queria. Começou agarrando os peitos de Juliana

e terminou ouvindo a garganta de Sabrina11.

Quando voltou com o menino para

a sala de cinema, a menina avisou que estava

com fome.

Depois do filme, ele comprou até o McLanche

das crianças.

104


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MARIA PIA MONDA

Belo Horizonte - MG

Maria Pia

Monda, italiana

de Napoli

e, desde

2015, residente na cidade de

Belo Horizonte, é autora de

poemas e contos, publicados

em revistas italianas e brasileiras.

TU VIVES

As perguntas que me impacientam

são aquelas que eu mesma

me faço. É muito mais fácil

lembrar quantas vezes por mês

tomo cerveja do que ser honesta quando

me interrogo sobre a autenticidade de

uma felicidade que não sinto.

Os hospitais não são, decerto, feitos para

hospedar alegria.

Se este questionário fosse uma prova, com

consequente aprovação ou reprovação,

qual nota tornaria minha anamnese digna

de me levar para o próximo nível?

Onde a língua bate, os dentes mordem a

tampa da caneta, com migalhas de silêncio

e fatias de estrondos improvisos, e o

que resta do dia fica inciso por nada mais

do que a marca dos meus incisivos.

O homem que enfiou meu pulso em uma

pulseira de papel, perguntando se era

minha primeira consulta, me colocou na

condição de desejar que fosse a última.

Nas ruas, no caminho até aqui, procurei

uma voragem onde precipitar, só para

me permitir a ilusão de poder escolher

a gravidade e assim evitar sofrê-la, mas,

logo que parei de olhar em volta, tropecei

numa raiz que sonhava em ser um ramo.

Não é incrível como todos, até mesmo as

árvores, tentam fugir de sua condição?

A ilusão de que nada me importa colide

com o duplo significado, comercial e

emocional, do verbo importar. Eu importo,

então eu me importo, porque acredito

que as pessoas que nunca se importam,

não importando nada, são mais vazias e

mais miseras daquelas que se importam

com tudo.

Enquanto espero, antes de ser forçada a

encarar novamente minhas avarias, brinco

de adivinhar, nas duplas ao meu redor,

quem é o paciente e quem é o acompanhante.

No meu caso, a questão não se

coloca: a solidão me impõe os dois papéis,

mas não sou boa em mascarar a impaciência,

nem em vencer a inaptidão a ser

para mim mesma uma boa companhia.

Tento sugerir palavras de conforto para

minhas palmas suadas. As que coleto nos

sofás não são suficientes; as que leio nos

cartazes colados nas paredes e as que, pulando

de canto a canto, entrando e saindo

de portas abertas e prontamente fechadas,

chegam aos meus tímpanos, estão profundamente

erradas. Elas cortam até o cheiro

asséptico que permeia a sala.

São os nomes que tornam as coisas ruins

ou as coisas que tornam um nome ruim?

Não sei, mas sempre pensei que se os tumores

fossem chamados de “tuvives”,

não seriam tão assustadores.

Afinal, o melhor cuidado para cuidar da

vida não é mesmo a vontade de viver?

Sorrio para o doutor e me convenço.

Eu vivo.

105


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MARINA MONTEIRO

Rio de Janeiro - RJ

ÀS VEZES O MAR ARRANHA

Às vezes o mar arranha

só de enfiar o pé

de pontinha,

ele exige a oferenda

do corpo por inteiro,

tudo ou nada.

às vezes o mar arranha

arde o mindinho,

ele quer meus segredos

o tudo que tenho

não conto a ninguém

nem a mim.

às vezes o mar arranha,

mas eu canto,

o canto da sereia-pós-contemporânea

e arranho o mar de volta

com meus agudos deslocados.

Marina Monteiro

é escritora,

atriz,

dramaturgista,

arte-educadora e produtora

cultural. Autora do

livro "Em nossa cidade amarelinha

era sapata" (Patuá),

que em 2020 foi vencedor

do 18º Prêmio AGES.

106


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MARINA P. P. OLIVEIRA

Brasília - DF

EXU TRICOTANDO

Na amplidão do cerrado, procura

uma encruzilhada

Onde, entre a invenção e o medo,

possa desafiar o dominado e incitar

o incriado

Mas, entre horizontes infinitos, onde

semeá-la?

Exu ri, pega as agulhas e começa a

tricotar, perdendo-se em si mesmo e

no Cerrado

Murmura em pensamento “U-B-U-

-N-T-U” e logo traz o vento: uma ema, um tucano, uma jaguatirica, um burro, uma

mulher, várias crianças e um bando de marmanjos...

E ele, concentrado no tricô, abre os sentidos, fecha os olhos e espreita, se arregalando

E então vê, em toda parte, fios invisíveis costurando ema, tucano, burro, mulher,

crianças, marmanjos, jaguatirica, ipê, pedra e horizonte num único bordado, ao qual

também ele, Exu, se descobre pregado!

Encruzilhada materializada em meio ao infinito do Cerrado...

"Ser-com ou ser-só?", pergunta.

Reunir, festejar, separar, resistir, escolher, expressar, enfrentar, reconciliar...

Melhor seria L-I-B-E-R-T-A-R, L-I-B-E-R-D-A-D-E… sopra a brisa em oração

E ele ri, mostrando lindos dentes luminosos

A encruzilhada, enfim (com A maiúsculo, pensa e se delicia Exu)!

A que existe em cada ser vivente, não importando a história ou a geografia da gente

Ela é minha, é sua, é nossa, é de Exu e mora nos fios que amarram cada um ao todo

E depois, de volta a cada um

Fios de Exu espreitando, tricotando e sonhando com U-B-U-N-T-U,

liberdade I-N-D-I-V-I-S-Í-V-E-L, fruto da J-U-S-T-I-Ç-A feita pra todos e pra cada um

Ou então pra nenhum!

É ela que nos espreita de toda e cada encruzilhada

Alimentando o sonho e a esperança de muitos

E o pavor e a ira de alguns….U-B-U-N-T-U e Exu.

107


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

MILTON REZENDE

Campinas - SP

BALADA DAS DUAS MULHERES NA PRAÇA

Gostaria de saber

quem são aquelas

mulheres da capa

do livro dos Aflitos.

Quem sabe assim

eu pudesse, voltando

ao passado e aos

costumes antigos,

dar a volta no sentido

contrário aos das moças

e perguntar-lhes:

“Quer voltar?”.

E aí, se fosse aceito o pedido,

eu estaria abrigado sob as

saias e a proteção do grande

guarda-chuvas de uma delas,

a do canto.

108


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

NARA ASSIS

Cuiabá - MT

Formada em Jornalismo

(2009 e servidora

pública estadual

desde 2014. Escreve

textos jornalísticos e artigos

de opinião. Passou a escrever

contos há poucos meses

e trabalha no projeto de um

romance.

A MULHER SUBMERSA

Respira, é fácil, você consegue. Aqui

embaixo é muito mais tranquilo. O

mantra que levou Laura ao fundo

do mar parecia mais uma palestra

motivacional que ela sempre detestou. Foi a

única maneira que encontrou

pra descer. Os

óculos de mergulho aumentavam

a sensação

de sufocamento e ela

passou a buscar peixes

coloridos pra tentar se

convencer de que aquilo

valia a pena. Viu alguns,

nada de extraordinário,

exceto um de

cor amarela brilhante,

focinho longo, praticamente

um bico.

Ensaiou um riso no

canto da boca, então

lembrou que precisava

respirar. Não fosse

a grande quantidade

de corais, poderia se

sentir melhor. Buscava

aquela sensação de

horizonte e paz que as

águas transmitiam do

lado de fora. Respira, é fácil, você consegue.

Aqui embaixo é muito mais tranquilo. Tem

que ser. Vai ser. O mantra crescia e tentava

ocupar o tempo, que demorava a passar.

Junto com o grupo, passou pela primeira

estátua, um homem com as mãos no rosto,

a expressão de desespero com a qual ela se

identificou. Em seguida, outra obra que consistia

em esculturas enterradas até o pescoço,

diferentes contornos, muitos corais em volta,

alguns até servindo como cabelo. Resolveu

seguir adiante, passou os olhos por outras

obras, e deixou o grupo para trás. “Assim

termino logo e já posso subir”, pensou.

O elástico dos óculos

de mergulho provocou

uma enxaqueca e

foi o suficiente para o

mantra ganhar novos

versos. Respira, é fácil,

você consegue. Aqui

embaixo é muito mais

tranquilo. Tem que ser.

Vai ser. A dor de cabeça

não existe. Controle-se!

Respira, é fácil,

você conse...Parou.

Estava de frente para a

estátua de uma mulher.

Mãos no queixo, cabelo

amarrado no alto,

detalhes tão fiéis às características

humanas.

Laura tentava controlar

a respiração, enquanto

se aproximava

da estátua. Entre elas,

havia apenas corais.

Os peixes nadavam no entorno e ao longe,

as águas ficaram tranquilas, o mantra parou

de ser entoado. Os olhos procuravam o que

havia de diferente naquele monte de concreto,

o único até então que a fez parar. As mãos no

queixo, firmes, e o olhar impetuoso causaram

uma tensão até então submersa.

“Quem ela pensa que é?”, se perguntou Laura,

intrigada com a postura provocadora da

109


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

NARA ASSIS

Cuiabá - MT

A MULHER SUBMERSA

estátua. Não podia encara-la da mesma forma,

naquele ambiente que não era o seu. A

profundidade sempre a perturbou. Estava

cada vez mais difícil respirar. Ainda assim,

aquela sensação fazia bem. Não conseguia tirar

os olhos dela, algo de familiar a convidava

a chegar mais perto. Avançou o máximo que

pôde, até onde a barreira de corais permitia.

Respira, é fácil, você consegue. Aqui embaixo

é muito mais tranquilo. Tem que ser. Vai ser.

“Você sabe que esses mantras não funcionam,

querida. Por que você insiste?”. Atônitos, os

olhos de Laura se fixaram na boca da mulher

de pedra. Gesto um tanto inútil, já que

a boca não moveu um milímetro. “Eu sei, eu

sei, você quer falar, está impressionada, e um

pouco zangada também, não é?”.

Alguns segundos de silêncio. Os olhos de

Laura procuravam sabia lá o que ao redor,

um ponto de apoio, um alto-falante próprio

para o fundo do mar. Os turistas ainda estavam

três obras atrás dela. Nada, não encontrou

qualquer coisa viva que pudesse ser dona

daquela voz.

“Calma, querida, não vou te fazer mal. Você

sabe que o mantra não vai te fazer respirar, só

estou tentando ajudar alertando sobre isso”.

O tom irônico fez com que Laura apertasse os

olhos. A estátua logo reagiu. “Você não consegue

encarar os fatos, uma pena. Todo esse

modo de agir, se fazendo de durona, tentando

desdenhar, tudo isso é medo, insegurança”.

A respiração voltou a ficar ofegante, o tom

provocador deu lugar a uma fúria incontrolável.

Laura tirou o cilindro de mergulho das

costas e atingiu a cabeça com rabo de cavalo,

antes que ela pudesse terminar o pedido de

socorro.

Parte do rosto da mulher se desfigurou. A voz

sumiu. O mantra também. Laura estava viva,

conseguia respirar.

110


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

NEIDE OLIVEIRA

Vitória - ES

SEM VOCÊ

Como você faz falta! Sem você tudo é tão sem graça. É virar para o lado sentir a cama

ainda úmida e quente, mas os meus lábios ressecados, meu corpo petrificado, qual sua

ausência me mumificasse, desde aquele adeus ao nada que hoje tudo invade.

Ainda tem o seu espaço no guarda-roupas, ainda tem o seu cheiro em tantas coisas, não quero

respostas, se faz sentido é pouco importante, quero o ponto onde não haja equilíbrio, onde as

coisas flutuam desafiando a gravidade, quero curtir Netflix com você aos domingos à tarde.

Quero o giro contrário do relógio, que as horas não sejam somadas, quero horas descontadas,

dias em câmera lenta, a terra parada até que você regresse aos meus braços.

Pois sem você tudo desmorona a todo tempo! Vivo um contínuo apocalipse de emoções, já

não alcanço o céu, somente o inferno da

solidão, aqui, dentro de mim.

Neide Oliveira,

Vitória – ES,

fisioterapeuta

possui poemas

publicados em: Sarau Brasil

2020 Vivara, Poesia Agora

Ed. Trevo, Rev. Entreverbo

#37 #38, e Concurso Nacional

de Poesias da Rev. Brasília.

Os dias são insuportáveis, para que tanto

sol? Essa claridade chega doer meus

olhos. Prefiro àquela hora que não é

noite nem dia, crepúsculo, àquela hora

que não se vigia, que não se guarda, que

escapa entre os dedos, onde a língua

atordoada remexe a ferida, tudo tão

simples, sem você tenho nada.

Vivo feito uma névoa perdida ao vento,

encaracolado entre pensamentos, confundido,

feito distúrbio, monossílaba do ilógico. Sem você não há mar nem ondas, toda essa

calmaria me faz mal, toda essa inércia me sufoca, me rouba, me afogo entre mágoas e desculpas

fartas.

Não quero toque, não quero palavras, apenas necessito desse deslocar de sentidos, e simplesmente

estar consigo. Em algum lugar talvez sem rumo, deixarmos soltos em nós mesmos, sem

cobranças, sem julgamentos, curtir aquilo que ainda não sabemos, ainda que possam classificar

como inquietude, na verdade quero a plenitude de viver ao seu lado.

111


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

PATRÍCIA MORAIS

Curitiba - Pr

TRANSFORMER DE BOMBEIRO

Dia desses um amigo me encaminhou

um texto do Instagram.

Algo familiar já... tratava basicamente

de dizer que temos que

“cuidar do jardim” e esperar que as borboletas

apareçam. E, em algum momento, trazia a

máxima: “você tem que se bastar”.

Isso me colocou numa máquina do tempo e

fui transportada para a biblioteca da escola.

Eu, com 13 anos, passando por um dos amores

platônicos da minha vida. E, nesse dia, foi

a primeira vez que ouvi isso: você tem que se

bastar. Quando ouvi achei que era algo genial

e que tinha sido de autoria da pessoa que me

disse.

A pessoa que me deu esse precioso (ou não)

conselho, foi a bibliotecária. Marinês. Marinês

era uma mulher linda e charmosa. Dessas

que as meninas admiravam. Ou, ao menos eu

admirava na época. Deveria ter uns 35 anos,

talvez um pouco menos. Cabelos vermelhos

num corte chanel e unhas impecavelmente

pintadas de cores escuras. Dirigindo seu carro,

aos meus olhos, era incrivelmente independente.

Passados 25 anos as palavras dela (não sei

se são dela mesmo) ainda ecoam na minha

cabeça. Por muito tempo, arrisco dizer que

por duas décadas e meia, considerei que fosse

uma verdade absoluta e inquestionável. Cada

ser deve se bastar, ora bolas! Você tem que ser

o suficiente para si próprio. Não faz sentido

pra você?

Mas... a verdade é que eu nunca me bastei.

Sempre ansiei por uma parceria e, mesmo

passando a maior parte da vida “acompanhada”,

me sentia desacompanhada. Isso me trazia

um sentimento de culpa e frustração: por

que eu não me bastava?

Com o passar do tempo fui ouvindo de outras

bocas esse jargão que, por tanto tempo,

martelou meus pensamentos e se tornou uma

meta a ser atingida. E foi então que passei a

desconfiar. Sempre que algo cai no senso comum,

precisamos questionar mais profundamente.

E, de repente, o insight veio. Eu entendi

que está tudo bem eu não me bastar. É

antagônico, mas parece que quanto mais gritamos

por liberdade, mais nos tornamos escravos

de algumas ideologias. E a grande ironia

é que eu aceito isso no momento em que

estou mais próxima dessa realidade. Não há

outra companhia que não a minha e eu gosto

de estar comigo mesma. Gosto também.

Ninguém precisa definir sua vida pautada em

algo rígido. Tudo é cíclico. Hoje eu me basto,

amanhã não me basto. E às vezes isso acontece

no mesmo dia.

Hoje meu filho quer um transformer de bombeiro

de presente de aniversário. Ano passado

ele também queria e eu não levei à sério. Pode

ser que ano que vem as coisas mudem. É assim

que funciona na primeira infância. E na

quinta (ou já estarei na sexta?). Fato é que

minha própria companhia é boa, mas eu não

preciso negar que seria legal ter um transformer

de bombeiro.

112


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

PEDRO ANTÔNIO

LIMA PEREIRA

Guarulhos – São Paulo

Paulista de 19 anos,

graduando em design

de interiores e

design de produtos,

na Belas Artes, com grande

amor na ilustração e pintura.

PRATOS E AMBIÇÕES

Limitado pelo medo alheio em que, possa existir algo

pior que seu ego, o mal interno se reprime, da própria

dúvida daquilo que o consome. Tão difícil reclamar

enquanto as palavras são maiores do que as cordas

vocais para que possam “tocar”, mas, o meio-dia sempre chega,

e é a hora de almoçar, engolir tudo e procrastinar; já de noite,

a inquietude de suas pernas gera uma energia desnecessária,

sempre o desnutrindo, e as vezes, criando mais dúvidas.

Todo momento, todos os segundos, parecem uma pulsação durante

uma gravidez, batidas de sinos e soluços que desacompanham

as ideias, que dessas, vendem sua criatividade; confusa,

sempre agindo, repetidamente confusa.

As idas ao “foco” mudam, se alegram e não levam consigo

falsas esperanças quando alimentadas de forma correta. Não

acredite em noites eternas das quais vivera, o meio-dia voltará

em outra estação, desde que isso não seja sua única ambição.

113


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

PERPÉTUA AMORIM

Franca - SP

Poeta mineira da Academia

Feminina Sulmineira

de Letras,

reside em Franca, é

faz parte da Academia Francana

de Letras.

FOLHEANDO NERUDA

As velas que derretem ao meu redor

marcam o tempo que ainda resta

o dia promete-me boas novas

embrulhadas em notas fiscais do que jamais comprei

pago cada centavo dos meus erros

antes de morrer como as luzes amareladas das velas.

A morte e o presente se completam

em gotas de espera

Espera que o sol se ponha

num horizonte de quimeras

para que do alto eu possa ver

o cortejo dando volta ao redor dos meus desejos

e os sonhos embriagados zombarem

das orações repetidas por carpideiras enlutadas

A morte passeia todos os dias ao meu lado,

em passos desencontrados.

Quando finda o amontoado do tempo

as ideias derretem como neve

e as certezas escondem-se em geleiras

para ouvir bandolins e folhear Neruda

na crença de ser perecível, escrevo sonetos

dedilhando no ar um requem, assim

volto a terra, sou grão de poeira.

Nascer e morrer faz parte do mesmo ato.

114


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

RAFAEL CAPUTO

Curitiba - Pr

Rafael Duarte

Caputo é professor

e escritor. Seu

romance de estreia

foi finalista do Prêmio

Kindle de Literatura 2019.

Atualmente, é membro da

AILB, Academia Internacional

de Literatura Brasileira.

A VIDA É TREM-BALA, PARCEIRO

Quarentena que nada, nunca trabalhei

tanto na vida. A demanda está absurda.

Não que eu esteja reclamando, longe de

mim. Enquanto muitos perderam seus empregos

em meio à crise, só tenho a agradecer.

Afinal, fiz por merecer. Tô batendo meta

atrás de meta. Tanto sacrifício, entretanto,

tem seu preço. Sinto-me exausto! Até mesmo

eu preciso de um descanso. Falando nisso,

é hora da minha pausa. Bato o cartão,

pego um copo de leite e aproveito para ler

as notícias: “Milagre: avião cai no meio do

oceano e todos os passageiros sobrevivem”.

Mal tenho tempo para reagir, logo sou interrompido.

“Com licença, Senhor. Sei que está em seu

horário de intervalo, mas os estagiários chegaram.”

Abandono as notícias, engulo o leite de forma

apressada, bato novamente o cartão e

sigo em direção aos novatos. Como vocês

podem perceber, está ficando cada vez mais

difícil dar conta do recado. Não tive outra

alternativa, a não ser pedir ajuda. Sim, foi

preciso deixar o orgulho de lado, pelo menos

dessa vez. O pessoal do RH até que foi

rápido. Como é maravilhoso ver o termo

“Recursos Humanos” sendo tão bem empregado

novamente.

Os candidatos selecionados possuem bom

potencial. Um deles tem vasto conhecimento

em logística, o que é imprescindível nesse

ramo. O outro, um pouco mais velho, dedicou

grande parte da sua vida recepcionando

pessoas. Já sei para onde irei designá-lo. E,

por fim, uma outra, mais nova e sem muita

experiência, atuava como motorista de

aplicativo. Não sou muito familiarizado

com essas novas tecnologias, mas acho que

tal conhecimento pode ser útil. Quem dirige

um carro também pode dirigir um barco,

por que não? Tudo bem que, ultimamente,

esse barco mais que triplicou de tamanho.

Quase um transatlântico. Já é a segunda

vez que mudamos de modelo. Culpa do trabalho

que só aumenta. Até entrei com um

requerimento – polêmico, por sinal – para

usarmos um trem como meio de transporte.

De preferência, um trem-bala. Acredito que

assim, com a distribuição dos passageiros

em vagões, seria tudo mais organizado, e

rápido. Digo por experiência própria. Mas

o pessoal da velha guarda insiste em defender

que o transporte marítimo é uma antiga

tradição e estão meio receosos com uma

mudança nessa altura do campeonato, blá-

-blá-blá... Vamos ter que esperar para ver se

o pedido será ou não deferido. Tô na torcida!

Pode me chamar de ousado, não tem

problema. Ou nostálgico, tanto faz. Vou

fazer de tudo para ganhar de goleada. Tipo

sete a um, se é que você me entende.

“Guten Tag, senhoras e senhores, sejam

muito bem-vindos! Modéstia à parte, tenho

certeza de que vocês já me conhecem, ou

pelo menos, já ouviram falar de mim. Pois

bem, graças ao vosso currículo, vocês foram

requisitados como meus assistentes. Não se

enganem, sei tudo sobre cada um de vocês.

Você, da logística, foi acusado de pedofilia e

conseguiu incriminar um inocente que agora

está pagando a pena em seu lugar. Nada

mal. O cara da recepção, por sua vez, atuava

também como pastor e usou o dízimo

115


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

RAFAEL CAPUTO

Curitiba - Pr

A VIDA É TREM-BALA, PARCEIRO

dos fiéis para pagar dívidas com prostitutas

e traficantes. Corajoso, tenho que admitir.

Por último, a motorista que atropelou o

próprio cliente e fugiu sem prestar socorro.

Bem, a política da empresa é que todos

merecem uma segunda chance. Eu, no entanto,

espero que vocês se esforcem ainda

mais dessa vez. Temos muito trabalho pela

frente. Isso está um verdadeiro inferno, um

caos. Não para vocês, obviamente! Para vocês

isso aqui é o Paraíso, fala a verdade?

Bando de sortudos. Hoje é o primeiro dia,

então, me acompanhem e observem.”

Passo pela sala de operações estratégicas e

pego meu megafone. Subo com eles até um

dos palanques principais para colocar ordem

na casa. O local nos permite uma visão

ampla de todo o saguão. Estamos no

deck principal, o maior deles. À nossa frente,

uma multidão de gente. Desde o início

do ano está assim. Recentemente, nas duas

últimas semanas, tivemos um crescimento

ainda maior: cerca de dez mil pessoas por

dia. Tem gente de todo o lugar, de várias

partes do mundo. Nosso papel – nessa estação,

especificamente – é relativamente

simples: transportá-las com segurança para

o outro lado da fronteira. Eu sou o responsável

por isso também, além de trazê-las até

aqui. É um cargo importante, escolhido a

dedo. Não vejo problemas em acumular

certas funções.

“Pessoal, atenção! Escutem com atenção.

Essa fila maior é somente para COVID-19.

Por favor, saiam da fila quem não for CO-

VID. Consultem o nome de vocês na lista

afixada no mural. Outra coisa: moedas e bilhete

nas mãos. Quem não validou o bilhete

de embarque, favor retornar ao primeiro

guichê. Quem ainda não recebeu as duas

moedas de ouro precisa passar na bilheteria.

Sem as moedas, não embarca.”

Todo dia é a mesma coisa: precisamos repetir

essas instruções senão vira bagunça. O

pior que pode ocorrer é alguém embarcar

sem a devida autorização. Se eu os transporto,

sobra pra mim. Tem alguns engraçadinhos

que tentam burlar o sistema e adiantam

a viagem. Quando descobertos, são

deportados imediatamente. Voltam para lá,

sem piedade. Antes, porém, acabam sendo

punidos. Poucos retornam sem nenhuma

sequela. Mas isso já não é meu departamento.

Aqui, cada um cuida do seu setor.

Muitos acham que a Morte é um ser, uma

espécie de indivíduo (tipo uma pessoa), mas

não é. Na verdade, trata-se de um título.

Assim como o Papa. Já existiram vários

Papas, assim como várias Mortes. Sou eu

quem ocupa esse cargo agora. (não o do

Papa, o outro). E não que eu esteja querendo

me gabar, mas estou fazendo um ótimo

trabalho. Depois de tanto empenho para

chegar até aqui, é o mínimo que posso fazer.

Soube da possibilidade e aproveitei um programa

de intercâmbio. Me candidatei pouco

tempo depois que fiz a travessia. O tempo

aqui é relativo, parece que foi ontem. O

diretor de onde eu estava não queria abrir

mão de mim de jeito nenhum, mas consegui

convencê-lo. Nunca duvide do meu poder

de argumentação, sou ótimo nisso! Ele está

satisfeito agora, sua casa nunca esteve tão

cheia.

116


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

RAFAEL CAPUTO

Curitiba - Pr

A VIDA É TREM-BALA, PARCEIRO

Tomei posse no primeiro dia de 2020 e, desde

então, venho recebendo bônus por produção,

mês a mês. Um recorde. Nunca uma

Morte foi tão eficaz logo no início do mandato.

Não vejo a hora de receber a PLR.

Acho que no fundo, me escolheram porque

já sabiam da minha capacidade. Usei parte

da minha experiência em vida como campanha

eleitoral para disputar o título. Ganhei

fácil. Fiquei sabendo, mais tarde, que não

haviam candidatos à altura para competir

comigo. Que pena, iria adorar travar mais

uma batalha. Comigo é assim: ou tudo, ou

nada. Quando entro numa guerra é para

vencer. Pode apostar! Cá entre nós: a ideia

do vírus foi tão boa quanto a do gás, não é

mesmo?

Deixo o megafone nas mãos da estagiária e

volto para concluir meu intervalo, também

sou filho de Deus. Bato de novo o cartão,

pego outro copo de leite e retomo a leitura:

“Vazo ruim não quebra fácil: marginal

toma quinze tiros e, ainda assim, consegue

escapar da Polícia”, “Motorista bêbado

que invadiu supermercado foi preso. Ninguém

saiu ferido”, “Inacreditável: câmeras

de segurança flagram o momento exato em

que uma criança de apenas quatro anos

despenca do sexto andar de um edifício, se

levanta e sai andando normalmente”, “Protestos

antifascistas e conflitos contra o racismo

geram quebra-quebra generalizado

com incêndios, brigas e saques. Apesar do

prejuízo, não houve vítimas.”, ao ler esta

última notícia, deixei escapar um curto sorriso

irônico de canto, quase um espasmo.

Amadores! Novamente, sou interrompido.

“Com licença senhor, desculpe incomodá-lo

mais uma vez. É que o senhor pediu para

avisá-lo caso afrouxassem o isolamento social

e acabou de chegar uma informação de

que no Brasil estão reabrindo igrejas, academias,

shopping centers e várias outras

atividades comerciais.”

“Perfeito! Ótima notícia. Vamos colocar em

prática o plano emergencial de contingenciamento

brasileiro. Eu já imaginava que

isso fosse acontecer. Avise o RH que preciso

quadriplicar o efetivo o quanto antes (e não

é exagero). Também ligue para ‘você sabe

quem’ e pergunte sobre o trem, tente sondar

se eles já se decidiram. Vou voltar ao trabalho

imediatamente, temos muito o que fazer.

Tome, já li o relatório com as notícias.”

“O que eu faço com ele, senhor?”

“Guarda na gaveta das pendências. Depois

da Pandemia, eu resolvo.”

“Tá bom, e não esqueça da sua reunião às

cinco com o chefe.”

“Pode deixar!”

“Mais uma coisa: já estou com ‘você sabe

quem’ na linha e ele disse que, graças ao

Governo Tupiniquim, concordaram com o

seu trem. Parabéns, você conseguiu!”

“Sieg Heil, minha querida. Sieg Heil.”

117


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

REGINA RUTH

RINCON CAIRES

“MEU PRESIDENTE”

Início da década de 1960...

A pequena vila, acanhada, era quase estéril

de empregos. Afora os pequenos sitiantes

e comerciantes, o resto lutava só

Deus sabe como... Mas tudo era mais fácil,

visivelmente mais fácil que hoje. É bem verdade

que a comida não era tão diversificada

como agora, mas existia a fartura. Em quase

todas as casas podia-se ver uma horta ampla,

um chiqueiro apinhado de crias, galinhas aos

montes, sem contar as frutas! A gente comia

até se fartar, e não havia a menor preocupação

com a sobrevivência futura, como hoje.

Não sei se isso, se essa despreocupação estava

só com as crianças, e ficava para os adultos a

angústia do “como fazer?”. Acho que não...

As pessoas eram leves, não mostravam tensão.

Eram falantes, alegres, maravilhosamente

solidárias. Tempo bom! Sadio nos costumes

e nas amizades!

Em casa, minha mãe, viúva, com uma penca

de filhos... Éramos assustadoramente pobres,

quase sem perspectivas, mas comida não faltava.

Do quintal vinha muito do nosso sustento.

Comum era a troca de verduras e legumes

com os vizinhos. Não me sai da lembrança

o caramanchão de chuchu de Dona Eulália.

Imponente, fecundo! Erguido próximo ao batedouro

de roupas, alimentado com água em

abundância, produzia o ano todo!

Todos nós trabalhávamos. Minha mãe fazia

salgados para os bares, meu irmão era metido

a eletricista, o outro era balconista da Casa

Pereira, a única loja de tecidos da vila, e assim

por diante... Eu, caçula de sete anos, defendia

o meu com uma caixa de engraxar. Tempo

bom pros engraxates! Todo mundo usava

sapatos de couro. Ainda não havia surgido a

febre do tênis. Bom mesmo era engraxar botinas!

O cano alto permitia cobrar mais caro

pelo serviço. Justificável, não?

Na praça da igreja, pela manhã, eu tinha o

melhor ponto. Cedo, com o sol ainda fraquinho,

os velhos se juntavam nos bancos para

uma prosa gostosa, e ali eu fazia a minha

clientela. Quando o sol esquentava, e até que

chegasse a hora de ir para a escola, ficava difícil.

Era raro encontrar um ou outro freguês

pelas ruas. De vez em quando conseguia algum

na barbearia. Mas, decididamente, não

era vantajoso esperar.

Achei uma saída espetacular! Ia engraxar em

domicílio! Passava pelas casas e assim engraxava

os sapatos da família inteira. Com o

tempo consegui organizar uma clientela fixa,

e com isso tinha trabalho de segunda a sábado.

Já sabia que na segunda-feira engraxaria

na casa do Seu Dorival, na terça na casa do

Seu Duílio, na quarta na casa do Seu Osório...

Adorava as sextas-feiras! Verdade mesmo!

Nesses dias eu nem passava pela praça. Ia

cedo para a casa do Seu João. Sujeito incrível!

Meu ídolo! Gostava tanto de conversar com

ele que fazia meu serviço lentamente, com

esmero excessivo. Nunca lhe sujei as meias!

Alongava minha tarefa ao máximo para poder

ficar mais tempo ao lado dele. Como era

sábio!

Sempre que eu chegava, um farto café da manhã

me esperava. Até queijo eu comia! Parecia

mais um banquete! Nutria um carinho especial

por mim... Acho que era mais um caso

de simpatia recíproca, de empatia, de encaixe

completo. Aquela velha história de panela e

tampa... Era mais que isso! Era uma afinidade

tamanha, tão intensa e profunda, que fazia

o tempo voar, que alimentava a minha alma!

Homem de seus cinquenta e tantos anos, mui-

118


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

REGINA RUTH

RINCON CAIRES

“MEU PRESIDENTE”

to calmo, costumeiramente vestido em terno

de casimira ou de linho bem amarrotado, os

cabelos sempre lustrosos, recendendo à brilhantina.

Mãos grandes, com as unhas sempre

bem aparadas, e trazia no dedo anular um

largo anel de ouro com uma imensa pedra de

rubi. Uma figura marcante, sem dúvida alguma!

Seu João era meu chapa! Sempre que falava

comigo, com aqueles olhos de raios-X, não

hesitava em demonstrar seu afeto e me fazer

um agrado. Às vezes, fico pensando se eu não

encontrava nele aquele pai que eu havia perdido?!

Sei lá... Só sei que ele era muito importante

pra mim! Guardava as suas palavras

como um registro, e as ficava matutando à

noite, antes de dormir. Entre tantas coisas

que me passou, guardo claramente e com saudade

as suas aspirações. Apesar de toda sua

sabedoria, não se aprofundara nos estudos.

Deixava claro em suas conversas o desalento

desta proeza irrealizada. Queria ter sido engenheiro!

Mas, entremeado pelas peripécias que

a vida reserva a todos, não passou do quarto

ano primário. Foi pra luta, trabalhou muito,

e tornou-se cartorário. Aliás, profissão que levou

até o fim da vida!

Mas o que mais me empolgava mesmo, era

a sua campanha política. Conversava horas

e horas, comigo, sobre isso. Estava se preparando

para ser Presidente da República! Hoje

sei que só falava disso comigo, é claro! Falava

sobre suas estratégias políticas, seu plano de

governo, da escolha e da preparação de seus

cabos eleitorais... Juro! Desejava ser um deles!

Eu me sentia tão envolvido com suas ideias,

que queria que os dias voassem para que eu

me tornasse mais velho e pudesse chegar a

ser um cabo eleitoral dele. Verdade! Era até

capaz de fechar os olhos e me imaginar com

as mãos cheias de “santinhos” com o retrato

dele, e com bandeiras trazendo o “slogan” de

sua campanha. Sabe como ele me “comprou”

nesta campanha toda? Com seu plano de mudar

o calendário. Afirmava, e isso acontecia

sempre que nos encontrávamos, que quando

fosse Presidente da República mudaria completamente

o calendário. Não haveria dias comuns

da semana. Nada de feira, feira, feira...

Só existiriam o sábado e o domingo. E mais

ainda, o calendário escolar seria invertido.

No período das férias teríamos aulas, e o período

das aulas seria transformado em férias!

E não era pra eu me empolgar? Estudar só

três meses por ano? Inacreditável! Seria a glória!

Daí o meu interesse pela campanha e pelo

meu ídolo. Ele era o máximo! Quantas ideias

maravilhosas! Como eu o admirava!

Hoje, com os meus cabelos brancos, rememoro

tudo isso e chego a ter ataques de riso

quando penso em algum detalhe particular

daquelas nossas conversas. Propostas utópicas!

Devaneios... Sandice pura! O pior de

tudo é que eu procurava passar essas ideias

adiante! Dentro de minha ingenuidade e afoiteza,

propagar esta campanha era primordial!

Em casa falava com minha mãe, com meus irmãos,

com os vizinhos. Na escola, falava com

os meninos. Mas ninguém me ouvia. Ninguém

se empolgava... Cheguei até mesmo a pensar

que o ideal seria levar todas essas pessoas até

a casa do Seu João, assim ele mesmo exporia

suas ideias e seu programa de governo. Quem

sabe assim, as pessoas se motivariam! Que

nada... Ninguém queria me ouvir... Quando

dava por mim, falando pelos cotovelos, entusiasmado

com a campanha, estava sozinho.

As pessoas davam-me as costas, e eu ficava

119


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

REGINA RUTH

RINCON CAIRES

“MEU PRESIDENTE”

pregando no deserto. Achava-as tolas, desinteressadas,

burras mesmo! Afinal, não davam

ouvidos a ideias de vital importância, a

planos que mudariam totalmente suas vidas!

Seria uma guinada de cento e oitenta graus!

Bobagem... Inútil tentar convencê-las... Eu

me sentia mais triste ainda porque percebia

a minha incompetência como cabo eleitoral.

Nunca poderia ser um deles! Não conseguia

convencer ninguém!

E foram muitos meses assim, anos até! De repente,

a voz do “Meu Presidente” se calou.

Não falava mais... Nem comigo, nem com

ninguém. Ficou triste, abatido. Nem engraxava

mais os sapatos! Também, não os usava!

Só calçava chinelos e quase não andava. Só

que uma alegria eu ainda sentia. Não ouvia a

sua voz, mas seus olhos me falavam. Seu jeito

de me olhar ainda era o mesmo. Transparecia

amor, carinho, cumplicidade. Eu ficava tempo

ao lado dele, sentado em uma cadeira no canto

do quarto. “Meu Presidente” estava muito

mal. Eu não sabia bem o que lhe acometia o

corpo, mas percebia que estava chegando ao

fim. Ao fim da campanha, ao fim da proeza,

ao fim da vida.

E o agosto terrível chegou...

Levou, com seus ventos mórbidos e angustiantes,

a vida do “Meu Presidente”. Velho

amigo! Meu timoneiro!

Sempre que passo por aquela rua, olhando

aquela varanda, vislumbro a sua imagem

no mesmo traje de linho, com aquele sorriso

zombeteiro, com aquele olhar afetuoso, e com

a mesma imponência do “Meu Presidente”.

120


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

RENATA VIVACQUA

Cavalcante - GO

Brasiliense, educadora,

cozinheira, escritora,

cinquentona

e microcontista

em descoberta. Vivo em Cavalcante,

no Goiás. E escrevo

para cutucar sorrisos.

BALÉ GUARDADO

Escolheu uma vida que quis. Vida de desejos rasos,

sexo avulso, escolhas incertas como tanto faz. Comia

se tinha e bebia demais. Trabalhava no que convinha

para manter seu pouco. E era bonita quando

moça. Sorriso largo de covinha, despenteada de preguiça e

com jeito de moleca que todo mundo gostava, menos ela, que

nem espelho tinha. Não amou porque não sabia e pouco se

deu com gente, gostava de ser sozinha. E na velhice, quando

o corpo cansado pedia sofá, suas covinhas se escondiam

nas rugas e seu cabelo era amarrado perto do pescoço como

castigo dos anos de rebeldia, lembrou que um dia quis ser

bailarina. Só quis, porque nada fez. Guardou esse desejo da

mãe tão sofrida, que um dia sumiu no mundo. Guardou tão

guardado que ela mesmo esqueceu. Mas uma hora a hora

chega. Calçou o chinelo com os pés trocados na pressa sorrida,

comprou um espelho, despenteou o cabelo e foi ver o

Bolshoi de camarote.

121


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

RICARDO MAINIERI

Porto Alegre - RS

Poeta e prosador, nascido

em Porto Alegre/RS,

geração 60.

Autor do livro-solo,

em poesia, "A travessia dos

espelhos", 1990.

Owner do blog "Mainieri's"

NEOBARROQUISMO

solte o arpão

que busca

pé-ante-pé

o alvo

escuro

(o alvo de gravata

é inacessível)

viva a dívida

indivisível

com que nos

exploram

implore pois

a alforria

tarda

terceirize sim

seu suor

importante

é o gozo do Outro.

122


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ROBERTA RAMOS

Sintra - Portugal

Professora de português,

procura na

escrita o prazer de

falar sobre as coisas

simples. Vive em Sintra, Portugal,

país que a adotou com

carinho.

PATINHO FEIO

A

vassoura piaçava deslizava pelo chão do

quintal, juntando as folhas que haviam

caído da trepadeira. A mãe via a filha

sentada em cima da mesa de pedra, a juntar

florzinhas brancas e vermelhas, grudando umas

às outras pelo cabinho, fazendo colares e pulseiras.

O pai estava no serviço; as irmãs, bem mais

velhas, na escola ou na faculdade.

A pequena ouviu um “Ei!” vindo do outro lado

do muro. Subiu na mesa e viu outra menininha,

da mesma idade dela. Tinha cabelo preto, franjinha,

olhos sorridentes. A mãe já havia ido para

a cozinha. A menina pegou a escada de madeira,

encostou-a no muro, subiu com cuidado e

começou a conversar com a outra.

- Oi. Qual seu nome?

- Zoe. Quer brincar?

- Quero. Você vem aqui?

- Vou.

Foi simples assim. Criança não precisa de complicação.

Como se fossem amigas há séculos,

deram-se as mãos e foram até a sala. A menina

pegou suas duas fofoletes. Ficou com a azul e

deu a rosa para a Zoe. Os livros da estante viraram

paredes na construção que fizeram: uma

mansão para as bonequinhas. Caixinhas de fósforos

encapadas de papel de presente viraram a

mobília. Tampas de frascos eram bancos. Retalhos

de tecidos cobriam as camas e forravam o

chão. Mesmo os paninhos de crochê que a avó

fizera acabaram por se transformar em cortinas.

Enquanto as operárias-engenheiras-arquitetas

trabalhavam, conversavam sobre a vida. Zoe,

por fim, teve de ir embora, prometendo voltar

no dia seguinte.

A mãe chamou para o banho. Ouviu a filha contar

tudo sobre a amiga. Principalmente sobre

seu irmão, o Túlio Márcio, que era muito legal.

Viu a mãe rir baixinho e não entendeu qual a

graça. Não podia ter uma companheira? Ficou

emburrada até a hora de dormir.

123

De manhã, bem cedo, escapou da cama, saiu da

casa e subiu novamente a escada para chamar a

Zoe. A mãe havia ido à padaria, as irmãs ainda

dormiam, pois era sábado. A brincadeira era

na mesa do quintal. Um lençol velho foi jogado

por cima, transformando-a em uma cabana. Ficaram

lá embaixo, com uma provisão de água

e biscoitos, planejando outros acampamentos

mundo afora. A irmã mais velha apareceu, ouviu

a conversa, levantou o lençol e também riu.

A pequena novamente fechou a cara, pensando

que a irmã tinha debochado da amiga.

Cada dia era uma brincadeira diferente. Bonequinhas

de papel, vai-e-vem, pique-esconde, dominó,

desenho. Zoe era a melhor companheira.

Nunca reclamava de nada, estava sempre por

perto. Gostavam das mesmas cores, não brigavam

durante os jogos, jamais havia rivalidade.

A menina sentia-se feliz, pois não havia outras

crianças nas redondezas. Ela, “raspa do tacho”,

estivera sozinha por tanto tempo!

Gostavam de desenhar juntas. Uma fazia o gramado;

a outra, as nuvens. Uma traçava a cabeça

do gato; a outra, o corpo. O lápis preferido da

menina era o verde-água, já muito gasto. A caixa

de 24 cores havia sido um luxo, nem sabia

quando teria outra, pois o dinheiro em casa era

contado. Mesmo assim, ela o emprestava à Zoe,

sem ciúme.

Mais um dia, mais uma brincadeira. Dessa vez,

chama Zoe para “lerem”, mesmo não sendo alfabetizadas.

Ela já sabia a história do Patinho

Feio, sua preferida, de cor. Sentam-se juntas na

poltrona da sala de TV. Começa a ler, em voz

alta, e a amiga continua. Revezam-se, cada página

lida por uma. Só havia um livro.

A mãe passa pelo corredor e ouve a voz da filha,

seguida de outra, diferente, mais aguda. Já sorrindo,

abre a porta.

Na poltrona imensa, apenas duas perninhas balançando.


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ROQUE ALOISIO

WESCHENFELDER

Graduado em Letras,

professor

aposentado de

Português e Inglês,

faz revisões, traduções e

publicação de livros. Premiado

em mais de 300 concursos

literários, é autor de 16

livros solo.

ME ACHEI

Me perco e me acho seguidamente,

porém, a última vez foi mais difícil.

Eu tinha ido pescar no rio

que divisiona o município com

outro e tem uma bela cascata, lugar em que

muitas pessoas vêm passar algumas horas para

viver em contato com a natureza.

Caniços com anzóis, iscas num tubo de plástico,

mais alguns apetrechos normais, uma garrafa

com água pra beber na sacola, cheguei à

cascata descendo uma ladeira que é nada fácil

subir na hora da volta. Pescar no poço em que

cai água da altura de uns quinze metros é uma

gostosa aventura, precisa vadeá-lo até a fundura

das coxas em tempos normais e depois

escalar uma pedra e pular desta até outras em

sequência para chegar onde os jundiás gostam

de esperar os petiscos que a cachoeira traz.

Tudo isso foi normal, embora, por pouco, não

tenha caído no último pulo direto para dentro

do poço na parte já com águas revoltas e da

fundura de três metros. Vários afogamentos já

ocorreram no local.

Estranhei que nesta tarde de domingo ninguém

estivesse pescando ainda. Me ajeitei como

pude, isquei dois anzóis e os lancei na água, um

segurei com a direita e outro firmei o caniço

com o pé. A água era bastante clara e isso não

é bom pra pegar jundiá em partes calmas, mas

nas turbulências nada disso importa. Aquelas

gatas, que via outras vezes aqui tomando banho

num poço com águas mais calmas, logo

ao lado onde o rio forma uma ilhota, também

não apareceram ainda. O ronco da água caindo

penetrava até o mais profundo da alma e

despertava lembranças de muitas pescarias em

tempos passados pelos rios da vida. Um firme

puxão no anzol na mão acordou-me dos devaneios,

dei um pouco de tempo e em seguida

ergui um belo exemplar de uma tilápia, certamente

um remanescente de uma limpeza de

açude, quando os proprietários descarregam

baldes e baldes destes peixinhos no rio. Alguns

sobrevivem e com sorte pode-se fisgar uma

como a que estava segurando.

As gatas caminham pela praça e observam os

rapazes com suas motos potentes ou seus carrinhos

envenenados pela avenida. O calor faz

com que o essencial em roupa as deixe mais

sensuais. No banho elas são sereias, na praça

poderiam ser divas e eu, nunca notado por

elas, imaginava que já não fazia o tipo que

anda de Cebê ou de Escort turbinado, mas não

sou morto, muito menos cego, embora apenas

um olho tenha sobrado da recaída de sarampo

aos três anos de idade.

Tenho de trocar o caniço de mão e pegar o firmado

pelo pé, pois um dos grandes quase me

desequilibrou. Dou-lhe um pouco de linha e

quando eu puxo, sinto a resistência dele. Com

mais um esforço vejo-o subir no ar e se desprender

caindo de volta na água. A pescaria

promete embora as gatas estejam na praça e

não tomando banho, como eu mais gostaria.

O marulhar forte da cascata, o ronco das motos,

a buzinada dos Chevetes, um pio intenso

de gavião, algumas gralhas voando baixas por

entre os arbustos, as pombas rolas caminhando

mansamente na praça entre os passeantes

de domingo, o pensamento no pretérito mais-

-que-perfeito, um novo puxão no anzol, uma

tilápia pequena apenas, vozes na mata; devem

ser rapazes que vêm espreitar as gatas no banho

– que decepção eles terão, vendo apenas

um vulto sobre uma pedra e uma sacola com

duas tilápias! – tá dando peixe? – perguntarão;

não entendi direito a pergunta e não respondi;

um deles vai para o Monza todo incrementado

e com o som no volume máximo, duas gatas

embarcam; no puxão que sinto na vara parece

124


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ROQUE ALOISIO

WESCHENFELDER

ME ACHEI

que o perdido voltou, com esforço especial um

belo jundiá vai para a bolsa; já daria para uma

boa fritada, as vozes calaram e as gatas saíram

juntas no Monza...

Precisava me achar. Tudo rodopiava com essa

água turbulenta, mas isquei outra vez os anzóis,

afinal não é sempre que esta pedra está

sem dono quando se chega ao rio. O Dijei

anunciou que em dez minutos todos os carros

concorrentes ao melhor som devem estacionar

no lado direito da praça. O Monza com

as gatas deve voltar. Quem sabe, desta vez elas

resolvam entrar na água e sair depois com os

biquínis coladinhos e escorrendo água pelo

corpo todo! Em pouco ao redor da praça pararam

Escorts, Chevetes, Monzas, Unos e até

alguns Fuscas, cada um mais envenenado que o

outro. A zonzeira era mais forte que o barulho

da água da cascata, e os peixes parecia terem se

assustado com ela.

Insisto em pegar mais algum peixe, mas em

vão. As gatas rodeavam os carros e cada uma

beijava cada um dos magrinhos motorizados.

A praça parecia uma obra de arte de Aleijadinho,

ele teria de arrumar muita pedra-sabão

para esculturar tantas beldades. No tempo dele

não as deve ter havido, porque ele preferiu os

profetas bíblicos. Mas esses eram outros tempos

em que escultores e escribas não se perdiam

como pescadores e como apreciadores de

corpos femininos com pouca roupa. Diziam os

padres que a bíblia proibia andar assim. Agora

elas nem parecem mais saber de bíblia e religião.

Esta é só para consumo, serve para festas

de Natal, Carnaval, Páscoa e Batizados, pois

nem Casamentos quase não são mais celebrados.

Mas onde eu estava? Pescando no rio? Então

meu carro ficou no pátio de um amigo na vilinha

lá fora da mata. Passeando na praça? Então

estacionei numa rua não longe dali. E agora?

O que poderia fazer? Como me encontrar?

Tentei enrolar as linhas nos caniços e pular de

volta às pedras. Estava tonto e não sabia se não

cairia na água. Tentei caminhar para uma rua

adjacente, nem um santo ou profeta era capaz

de dizer onde estacionara. Perguntei a uma

gata menos exibidona que estava acompanhada

de uma menina, devia ser sua filha, se ela

viu um Fiat Uno azul por perto, ela disse que

não prestava atenção a carros. Tomei coragem

e pulei para a outra pedra e a custo consegui

me equilibrar. Fiz o caminho de volta e vadeei

a última parte. Tentei escalar a encosta. Parecia

tudo estranho, estava querendo escurecer e o

trilho da encosta estava úmido e escorregadio.

Em nenhuma das ruas que procurei encontrei

o carro. A zoeira parecia ser um ronco de temporal

que está prestes a despejar uma chuva de

granizo. A cachoeira roncava na minha cabeça

e a muito custo subi no quase escuro os últimos

degraus da ladeira e saí da mata.

Todos corriam. O Dijei e seus ajudantes desmontavam

às pressas as instalações de som. Os

magrinhos fechavam as portas e arrancavam

com roncos e buzinadas. As gatas corriam desesperadas

tentando arranjar caronas. As primeiras

grossas gotas caíram e os raios e trovões

se sucediam numa infernal barra-funda. Corri

o quanto pude para chegar ao pátio na vilinha

fora da mata e acabei entrando num ônibus

que chegou à parada. Finalmente me achei em

casa e o Uno estava na garagem. O temporal

cessou e já não ouvia ronco de cascata e nem

de zonzeira na praça. Fui dormir sem limpar e

nem fritar os peixes.

125


ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ROSÂNGELA DO CARMO

Belo Horizonte - MG

A BENDITA TIMIDEZ

Por dias estive a compor uma melodia como um presente pra você

Mas ela não conseguiu romper a distância que nos separa

Então roguei aos meus amigos alados que a levassem consigo

mundo afora

Sei que seus olhos estão sempre a buscar o céu

E quando isso acontecer

Vai perceber que ele não está mais nublado como de costume

Foi minha blue note que o tingiu de azul só pra chamar sua atenção

e poder derramar sobre seus ouvidos sedentos,

a nossa canção.

Nascida em Teresópolis

RJ é

cronista e poetisa,

atualmente

é editora do jornal cultural

Escritores da Serra, estudante

de Bacharelado em História

e criadora do Blog Paixão

Crônica.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

SARTRE

Belo Horizonte - MG

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

SAUL CABRAL

GOMES JÚNIOR

São Paulo - SP

Graduou-se em Letras.

Em 1998,

obteve o 4º lugar

no Concurso Nacional

de Contos "Cidade de

Araçatuba". Seis anos depois,

teve uma poesia classificada

no VIII Prêmio Escriba

de Poesia.

O CAMINHANTE

O

dia que parecia um dos dias clarividentes,

desses que povoam os calendários,

intumescentes sob o tic-tac dos relógios,

avolumou-se, sobrepujou as nuvens

de inércia, dilatou-se em águas lúcidas,

perfurou a crosta de suculento tédio

em que a alma se farta, abriu-se

na trilha insólita à qual sucumbe

o juízo, à qual meus pés aquiesceram,

ainda que as pedras quentes sorvessem

meus sapatos, ainda que as roupas,

extenuadas, me fugissem ao corpo,

ainda que o peso sobre minhas costas

dissimulasse o domingo, ainda assim,

caminhei,

apoiando-me em passos descompassados,

caminhei,

atravessando olhares arrítmicos,

testemunhei a fumaça desgovernada,

o barulho promíscuo desembocarem num azul

que fere os olhos da moça que passa,

inalei o cheiro que exalava dos bancos da praça,

afugentando os pássaros embebidos no chafariz,

debrucei os olhos, esbaforidos, sobre o chão,

fluí pelo desvio milimetricamente projetado,

transcendi a couraça dos aglomerados ônticos,

esbarrei numa silhueta oscilante,

incitei o iminente

risco: revolver-se o rançoso rebuço do rancor,

um broche retiniu no áspero pavimento,

salvei-o do asfalto férvido,

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

SAUL CABRAL

GOMES JÚNIOR

São Paulo - SP

O CAMINHANTE

com o queixo cravado no peito,

preparei-me para o trovão

que o céu jamais havia parido,

transfigurei-me no receio sublimado a pavor,

ergui-me à altura do ventre anoitecido,

veio, então, a sinfonia redentora,

subvertora dos medos insculpidos em minha pele,

ouvi as partituras enclausuradas

por um deus ensurdecido,

ouvi a primavera soar dos poros da atmosfera cinzenta

que imortaliza a morte diária, fluida,

indolor que a Vontade, sorridente, acalenta,

ouvi a fúria do cotidiano,

insuflada na esdrúxula sentença: “muito obrigada”,

no domínio de meu profuso olhar,

uma sombra, desfiando-se, habitava o longe,

deixava um rastro de dama medieval,

procrastinava as manhãs anestesiantes,

ofertava o que a mão impetra e a Ideia não ousa fabular,

absolvia o riso dormente,

restou-me colher os resquícios do dia límpido,

sem reminiscência que não a assombrosa carícia,

venha o suor ácido que pinga

dos manuseios irrefreáveis,

venha o veneno que espirra

das filas ofídicas rastejantes no tráfego,

venha a histeria que emana

do coro desatinado de ofícios inebriantes,

eu vi nascer, no meio do dia,

a flor eterna da gratidão.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

SHIRLEI HONORATO

Caieiras - SP

A FALA ESTÁ FLORESCENDO

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

COSTELAS

SILVA DE OLIVEIRA

Manaus - AM

osso por osso

pulmões inflando

alvéolos enchendo

preenchendo

o cheiro no ar invadindo as narinas

o cheiro no ar

almiscarado... embriagado. Embriagado,

sonhos adocicados com um toque de luxúria, desejo.

Desejo,

osso por osso

pulmões queimando

o coração bombardeando juventude.

Nascido e criado

em Manaus, no

estado de Amazonas,

Silva de

Oliveira é o pseudônimo de

um jovem de 21 anos apaixonado

pela arte da escrita e

o poder das palavras.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

SAUDADE

TERESA BARRANHA

Portugal

Corremos atrás da saudade

em sentido contrário da vida,

calcando as folhas do livro

que sobraram da história.

Saudade, carregamos às costas.

A vida, transportamos no colo!

O futuro levamos, cuidadosamente, na mão.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

TIAGO TEIXEIRA

OLIVEIRA

SEGUIREI

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

VALÉRIA PAZ

São Paulo - SP

OUROBOROS

Tem um vazio todo dia

me devorando pelas beiradas

quando chega no âmago

no centro do nada

me vomita num jorro

e começa de novo

como aquela cobra infinita

maldita com um furo no meio

ciclo da vida uma ova

porque de onde eu olho

é só destruição vagarosa

um retorno perpétuo ao oco

que transborda da minha boca

Mestre e doutora

em Letras

pela USP, com

trabalhos sobre

poesia e mídia. Foi professora

durante 30 anos. Aos

55 anos, arriscou-se a lançar

seu primeiro livro, Era vida e

se quebrou (Penalux, 2021).

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

VALÉRIA PISAURO

Campinas – SP

BABEL

Da prosa prefiro a rosa,

Não me importa, poetizo.

Ao acaso arrisco,

Café, cafuné.

Açúcar mascavo,

Não sou de tico-tico,

Viro a mesa, alinhavo,

Sinuca de bico,

Não desisto,

Desconheço ré!

VALÉRIA PISAU-

RO, natural de

Campinas-SP,

exerce intensa atividade

na literatura e na música,

como poeta, roteirista

e letrista musical. Possui vários

trabalhos literários editados

e poemas musicados.

Na volta das horas,

Pecado cor de amora,

Devoro a descida,

Driblo a esquina,

Num carrinho de rolemã.

Faço cena, declamo um poema

Em dias de Reis,

Divinos grãos de romã.

Ceifo Saturnos feito revés,

Mantra de papel,

Semeaduras, grãos e cordéis,

Torre de Babel!

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

WELLINGTON AMANCIO

DA SILVA

VESTIDO DE TAFETÁ

Quem escreve ficção no fundo diz — parte

do que vi, aqui está.

Lembro-me como se ainda agora ocorresse,

mas não sei definir ao certo se me pertence

e o que hei de fazer com isto.

O dia em que vi Liúna. Achado de pérola

num campo. Seu movimento. Anseio nos

gestos das mãos. Reaver a leveza; nela

recostar-se, vê-la. Vestir-se dela. Senti-la

num senso de novidade. Eis o dia igual a

quem retorna, nítido, delineado. Apenas

vestir-se do que sereno vier ao olhar. Usar

por usar, sem palavras mais profundas.

Ela — vestido de tafetá vermelho vinho,

pele aveludada em roupa fina; passos sem

igual nesta terra. E chegou-se como se

alegre, e sentou-se ali, numa cadeira de

recosto vermelho, e respirou com muito

gosto e olhou-nos. Renovo — sabor e perfume

de festa. A mesa e seu bordado em

renda guipir; flores vermelhas ao centro,

num vaso negro; mãos apalmadas sobre a

mesa — eu as vi apalmadas sobre a mesa,

e também contentes, as mãos dela. As flores,

o pano bordado, os talheres e os pratos

para ela. Vi-a de soslaio. A luz malva e

esbranquiçado sobre o verde; o aramado

negro do caderno branco, um texto em

letras cursivas, letras derreadas, em grafite

grosso e maquinal, um texto em forma

de verso, seu espírito que não desvelo.

O verde fértil, a esperança circundante,

a copa densa das árvores cacheadas de

sombras de brandura. No quintal, a mesa

alegre à presença dela. Auspícios em nosso

meio, e nós entre nós. Uma criança de

colo dorme em lábios rosados; uma mão

idosa, feminina, afaga a criança; afagos

precisam de uma criança. E dorme, com

se a paz fosse instaurada em todo lugar. O

sonho tem o gosto de mil notas. Invejo as

crianças. Gravetos que estalam; o ranger

terno de um tronco; o silvo entre as folhagens.

Auspícios em nosso meio. Grama

verdinha e o orvalho que perdura, e ela

sentada observa, não sei para onde para

quê; o caderno fechado. Se o dia não fosse

somente dela. Um burburinho tenaz não

sabe o que quer. Ninguém faz questão,

ninguém jamais ouviu um burburinho. O

amor é uma boa morte. E os anjos têm

asas frágeis, mas creem que podem voar e

voam. Liúna, a moça do vestido vermelho

vinho, sabe mais que aquelas árvores antigas

o que deseja um moço feliz. Como na

fábula, esse moço vê a musa e por instante

não quer morrer, nunca mais. Liúna é uma

ideia para mim, tenho que reconhecer. Insondável

mulher. Vejo-a belíssima, quase

ao meu lado, e percebo que não sei nada a

seu respeito. Nenhum homem neste mun-

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

WELLINGTON AMANCIO

DA SILVA

VESTIDO DE TAFETÁ

do conhece uma mulher, mas ele gosta de

imagina que conhece. Essa imaginação é

uma mentira, e tão necessária para que se

mantenha sendo o homem que é. Observo

o alto e respiro fundo; acho que o dia argênteo

não permitiria certos voos. O que

poderia acontecer? Uma chuva do tamanho

do mundo, do tamanho do mundo.

Uma chuva que aponta lá longe. Um sopro

torna-se vento e o vento é premente

no rosto dela, um silvo comprido, é agosto.

Arborosas pendem, de um lado para

o outro pendem, e nunca vi uma dança

tão feliz. Há quem não leve a sério o céu?

Cansa-me pensar em voltar para casa, e eu

mantenho-me sentado ao lado dela, quase

tocando a orla mágica daquele vestido. E

as suas pernas. Uma chuva do tamanho

do mundo. A manhã nubla-se de repente

e profundamente. As serras distantes cor

de chumbo nos ensinam que a manhã é

senhora de si, como Liúna, e tudo se reveste

de um mando opaco. As serras se

perdem num manto de chuva. Liúna se ergue

e corre até a varanda, a trinta metros.

Permaneço sentado, olhando-a. A chuva

cai e eu me deixo encharcar. Emudecido,

observo Liúna que parece sorrir vendo-

-me sentado à chuva. Alçada esta vontade

que o silêncio veste de abrasadura. Permaneço

sentado, mas não em paz. Ouço

vindo de longe as gargalhadas mais musicais

do mundo e meu coração dispara; Liúnaatravessa

a chuva segurando a orla do

vestido, ela corre. Vem até mim e me olha.

Desce ao fundo da mesa, e fixa-se a me

encarar por entre o forro bordado — seus

olhos me recontam do peito para dentro

e profundo. Eu a contemplo e junto-me a

ela num beijo, como se fosse o último e

decisivo, como se fosse o fim do mundo;

seguro seu rosto, beijo sua boca mil vezes

e rapidamente, beijo-a no pescoço como

se eu tivesse uma sede estranha, sinto o

veludo finíssimo se eriçar em sua nuca.

Esse fogo inútil é o que quero e insisto em

que dure. Mordo-a com carinho, percebo

que está de olhos fechados, a boca entreaberta,

como se num transe. Dela, cada

pequeno gesto é um Acontecimento. Nunca

antes beijei uma só mulher em minha,

ainda que as tenha amado, no passado.

E se há bonança no mundo, agora, eu a

quero, e digo isto para mim mesmo, enquanto

estou absorto em seu ventre.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

WERVERTON S. SANTOS

Salgueiro - PE

O PIQUETE

As presentes obras disponibilizadas,

contam em suas narrativas os momentos

de lazer de duas crianças irmãs nascidas

e criadas em umas das regiões mais periféricas

da cidade de Salgueiro, localizada

no sertão central Pernambucano.

As obras mostram uma divisória do espaço

de lazer com o espaço de serviço

geral de sua casa.

Os mesmos usufruem de todos os ambientes

de sua casa para poder brincar e

se permiterem e possam encontrar magia

e beleza para enfrentarem situações de

conflito ou privação de direitos sociais.

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

YASMEEN PEREIRA

DA CUNHA

Goiânia - GO

RAINHA DE ESPADAS

Dia e noite é sempre à noite.

O dragão de mil olhos espreita,

rainha de espadas, não vê, mas luta.

E luta porque na escuridão habita seres indizíveis.

Abaixo da rainha, há um olho que tudo vê,

que tudo percebe, paralisado, confronta.

E o dragão de mil olhos é três ou quatro

talvez cinco

ora furioso, ora certo de sua vitória,

ora apenas ali, sorrateiro, à espera.

Porque de olhos vendados a rainha de espadas

prevê os movimentos, prevê à sua volta.

E o dragão de mil olhos e mil cabeças

permanece entre o que ela deseja e

o que ela vai ter.

E à noite, de dia, com as espadas

não abaixa a guarda.

A todo momento, em línguas que não sei,

o dragão de mil olhos observa.

Digo:

de olhos vendados, percebo os movimentos,

os sons e o vento.

Em línguas que não domino,

a besta de mil olhos encanta e graceja

vocifera e teme.

A rainha de espadas luta,

em todas as línguas possíveis,

com coisas incontáveis.

A rainha de espadas luta só,

só e somente, contra feras

desconhecidas.

Ela vive o limbo, o escuro,

que em línguas que não domino,

é sempre noite, é sempre lúgubre,

é sempre reconhecível e sempre e

a toda hora o lugar em que vive.

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