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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
Ano 1
nº 3
agosto/set.
2021
Qual a musa que te inspira?
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Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
Ano 1 - número 3 - Agosto/Setembro - 2021
Paranaguá - Pr - Brasil
Nº SNIIC (Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais): AG-206110
Publicação Bimestral
Distribuição Gratuita on-line
Idealização: Paulo Ras
Editoria: Paulo Ras
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EDITORIAL
Clio, Euterpe, Talia, Melpômene, Terpsícore,
Érato, Polímnia, Urânia, Calíope.
Se você acredita em inspiração deve
conhecer a mitologia grega e de onde
vem o mito das musas das artes.
As musas eram as responsáveis por
inspirar tanto as áreas artísticas como
as científicas na Grécia antiga e, segundo
a mitologia, elas foram criadas
por Zeus para exaltar as vitórias dos
olimpianos sobre os Titãs, na Titanomaquia.
Com o passar do tempo as
musas se tornaram imagens ligadas
às artes. Elas viviam em um templo
que se chamava Museion, que deu origem
à palavra Museu. Eram elas que
traziam dos deuses as obras criadas
pelas divindades, ou seja, as musas
inspiravam, “levavam para dentro” dos
artistas as criações dos moradores do
Olimpo. Ora, ora, isso interessava aos
artistas, afinal dava a eles uma aura
de arautos das histórias dos moradores
do Olimpo, tipo um amigo íntimo
de Zeus, Atena, Hera e companhia. O
tempo passou. A religião grega virou
mitologia, mas jamais se fecharam as
portas para a ideia dos helênicos. Isso
se tornou mais patente na época do
romantismo, e, mais de três mil anos
depois ainda é um mito sustentado
por muitos artistas. Isso não significa
que a inspiração não exista, ela é apenas
o ponto de partida para as obras
dos artistas, principalmente escritores,
mas a supervalorização da inspiração
deixa em segundo plano fatores
importantes, como estudo, leitura,
erros e acertos. Um artista não se faz
em um dia, nem em um ano. Escrever
ficção, por exemplo, é um trabalho
árduo, desgastante, que precisa de
tempo, técnica, conhecimento, foco,
concentração. A aura do artista, tão
carregada de magia, é apenas a casca,
nos bastidores a conversa é diferente.
Porém é mais bonito e poético dizer
que o autor foi atingido por uma inspiração
trazida do Olimpo, pelas mãos
de uma das musas da arte. Na verdade,
é a velha fórmula, 10% inspiração e
90% transpiração. Mas se este esforço
hercúleo é tão pouco valorizado, por
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que nós, artistas, ainda insistimos neste
trabalho de Sísifo que é a criação?
Talvez a resposta esteja na nossa porção
apaixonada, nessa composição
metade sábia, metade insana que nos
impele, que nos faz balançar, sem jamais
cair. O artista é o ser que mergulha
para dentro de si, luta contra seus
fantasmas, medos e monstros, para
emergir vivo, ofegante, trazendo entre
as mãos tesouros únicos, que vão virar
arte. E jornada diária atrás do equilíbrio
perfeito, há muito de poesia, de
anima, de alma, de paixão.
Então, arregacemos aos mangas.
Aprender, estudar, sentir, evoluir e fazer
do mundo um grande espaço de
arte de qualidade.
Cultural Traços
Por amor à cultura. Para um mundo
que sempre precisa de arte.
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Colaboradores
• Jô Diniz 7
• Marga Cendón 8
• Paulo Ras 9
• Penélope Jones 10
Seções
• A casa é sua 12
• Dicas joinhas 14
• Pretéritos 15
• Prazer em conhecer 16
• Coisas que... 18
• Cartas de amor são ridículas 19
• Espaço SerEsta 21
Autores Classificados
Adílio Teixeira Marques 23
Adriana Manduco 24
Agnes Izumi Nagashima 26
Alberto Arecchi 27
Alessandro Padin 29
Amanda Coelho 30
Amilton de Araújo Cavalcante 31
Ana Laura Jalles 32
André Nóbrega Novis de Oliveira 33
Andréa Carvalho 34
Andressa Galvão 35
Antonio Gil Neto 36
Arisson Tavares 37
Belise Campos 38
Bernardo A. Carvalho 39
Camila Lopes 41
Carlos Vilarinho 42
Carou Araújo 44
Cesar Casella 45
Cristiane Cardoso 46
D. Akokán 47
Dadá 48
Daiana Franco Nogueira 50
Danízio Dorneles 52
4
David Leite 53
Déllio Reis MM Aquino 54
Diana Magalhães 55
Edgar Borges 56
Edna Domenica 57
Eileen Wolff 58
Evandro Valentim de Melo 59
Fabiana Kretzer 61
Fábio Gomes 62
Falavinha 63
Fernanda Lucena 64
Fernanda Nara Mauricio 65
Flávia Redman 66
Geislane Lopes 67
Geraldo Magela de Faria 68
Geraldo Ramiere 69
Gil Tobias 70
Gleidston Alis 72
Gustavo Abreu 73
Helmo da Gama Santos 74
Hera de Jesus 75
Herculano Flores 77
Hitallo Dalsoto 78
Ian Anderson Gomes Dias 79
Iraci José Marin 80
Ita Yanara Karajá 82
Jaiane Alves 83
Janildes Almeida Chagas Magno 84
Jeferson Lorenzato 85
João Pedro Campos 86
João Ricardo Dias 87
Jonatan Magella 88
Juliana Moroni 89
Júlio Oliveira Neto 90
Kátia Surreal 91
Lua Pinkhasovna 92
Luciano Reis 94
Malvina de Castro Rosa 96
Mana Moa Mc 98
Marcel Luiz 100
Marcos Antonio Campos 101
Marcos Nunes Loiola 102
Maria Clara Lima 103
Maria Pia Monda 105
Marina Monteiro 106
Marina P. P. Oliveira 107
Milton Rezende 108
Nara Assis 109
Neide Oliveira 111
Patrícia Morais 112
Pedro Antônio Lima Pereira 113
Perpétua Amorim 114
Rafael Caputo 115
Regina Ruth Rincon Caires 118
Renata Vivacqua 121
Ricardo Mainieri 122
Roberta Ramos 123
Roque Aloisio Weschenfelder 124
Rosângela do Carmo 126
Sartre 127
Saul Cabral Gomes Júnior 128
Shirlei Honorato 130
Silva de Oliveira 131
Teresa Barranha 132
Tiago Teixeira Oliveira 133
Valéria Paz 134
Valéria Pisauro 135
Wellington Amancio da Silva 136
Werverton S. Santos 138
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Yasmeen Pereira da Cunha 139
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DESEJOS
JÔ DINIZ
BELO HORIZONTE - MG
Me ensina a preguiça,
O ronronar na rede,
Dormir o dia,
Acordar a noite,
Meias verdades,
Vontades inteiras.
Andar de bailarina,
olhos de não ver o
que se subentende
pulsando no peito,
foge da própria natureza,
mas a arte, sempre ela, a
encontra na esquina, oferece
mil promessas e a tira pra
dançar.
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MARGA CENDÓN
URUGUAIANA - RS
Marga Cendón é artista
plástica, fotógrafa
amadora
e escritora com
dois livros publicados - Lonjuras,
2013 e Sal e Trigo, 2014, ambos
pela Editora Viapampa. Integra
oito coletâneas, dentre elas, Os
Cem Melhores poemas do Twitter,
2013 e Contos de Pampa e Fronteira,
2019.
www.margacendon.com.br
Ausências postas à mesa
Impregnam de
Memória a última hora
Do dia.
Há um resto de beleza
Na saudade
E um recitar de silêncios
No poema.
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PAULO RAS
PARANAGUÁ - PR
O SEGREDO
Ela fazia esguicho de mangueira para desenhar parábolas
em dias de sol. Era a deusa dos arco-íris
que caçava tesouros deixados pelos duendes. Já
achara dois faróis de pirilampo, três pares de asas
de besouros furta-cor e seis patas de louva-deus. Guardou
tudo em uma caixa de música escondida no quarto, junto
com trapos mágicos coloridos e papéis rabiscados pelo
nada. Revia todos os dias aquelas riquezas únicas, que
contavam pormenores dos seus sonhos de menina.
Utópico, tem certeza
de que a arte salva,
a literatura liberta
e a cultura oferece
meios para que cada pessoa
se entenda, para que cada um
ouça e decifre o grito contido
na própria voz.
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PENELOPE JONES
PASÁRGADA
CALENDÁRIO
Não me refiz não me desfiz não limpei minhas
roupas não lavei meu corpo não te esqueci
não voltei a te amar não me explique não te
entendo não chorei não calei não retoquei a
maquiagem não toquei o meu corpo não amanheci calada
não me calei na madrugada não sou mais menina não quero
ser tão mulher não me toque não me deixe desprotegida não
me julgue não me condene não fique não parta não me entenda
não me leia sou sem ponto sem vírgula mulher para ser
lida sem pausa nem regras
Sonhadora por parte
de pai, mãe e orixás.
Ariana por capricho
do cosmos e de algum
alinhamento aleatório dos
astros. Personalidade forte,
loucura decidida e cortante
feito os raios de Iansã.
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A cultura de um país, de um povo, vai muito além da
literatura, da música, da dança, da pintura. Ela passa
pela linguagem e pela moda. Por isso, a entrevista da
“Casa é sua” deste mês será com Victória Correia, da
Ankara Turbantes, que tenta resgatar e valorizar as
raízes das mulheres negras com uma peça tradicional
do continente africano: o turbante. Moda, cultura,
valorização, voz, poder. Tudo junto e misturado.
Abra a porta, entre, leia a entrevista da Victória. A
casa é sempre sua.
De onde surgiu o seu interesse em turbantes?
Nasci no oeste do Paraná onde minhas
amigas e conhecidos eram todas brancas.
Então mesmo sendo negra nunca tive
muito acesso à cultura afro-brasileira. Ao
entrar na adolescência comecei a estudar
mais sobre as minhas origens. Quando
conheci e vi o significado que o turbante
carrega, me apaixonei e quis tornar disse
meu negócio. Incentivar outras meninas
como eu a usar o turbante
No Brasil ainda há o estereótipo de turbante
como vestuário religioso, principalmente
o candomblé. Qual o significado
do turbante na cultura africana?
O turbante é a coroa da mulher negra. O
turbante além de ser um elemento para
algumas religiões, ele é usado
com apoio ao carregar
lenha, mantimentos e seus
filhos. Cada nó e amarração
tem um significado que
varia de região para região
e tribo para tribo. Podendo
passar mensagem sobre seu
estado civil ou sobre seu humor
entre outros. No Brasil
usamos o turbante como
forma de resistência e luta
contra o racismo e preconceito.
Ao vestir um turbante
você estará honrando nos-
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sos ancestrais que lutaram por nós durante
a escravidão.
Qual o significado dos grafismos e das
cores nos turbantes?
Os tecidos carregam uma rica simbologia,
capaz de decifrar a alma de povos
ancestrais. Só de olhar já sabem de qual
tribo você e qual mensagem quer passar
. Entre eles destacam-se:
• Adrinkra: tecidos estampados a mão
do reino Ashanti, em Gana.
• Bogolan: tecidos pintados a mão, de
Mali.
• Adire: tecidos de algodão dos Iorubas,
na Nigéria.
Em relação às cores para algumas tribos,
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por exemplo, o vermelho usado pode estar
relacionado ao perigo e às guerras,
enquanto em outras pode estar associado
ao sucesso e às grandes realizações.
O amarelo pode representar a fartura e
riqueza.
Como nasceu a ideia e como você definiria
a Ankara Turbantes?
Eu, como mãe, encontrei muita dificuldade
em me recolocar no mercado de
trabalho CLT. Após muita pesquisa sobre
minhas origens, conheci o turbante.
Percebi que é um mercado pouco explorado.
Então resolvi me arriscar
e aqui estamos. Ankara é
o nome dado aos tecidos vindo
da Nigéria. Por ser algo
“novo” estamos numa fase
de educar a sociedade, quebrando
todos os estereótipos
que o turbante carregou.
Nosso objetivo é que as mulheres
afro brasileiras usem o
turbante como forma de honrar a
nossa história.
De onde vem os tecidos e as estampas
dos turbantes?
São Paulo é um dos locais com o
maior número de imigrantes e refugiados
do continente africano no
Brasil.
Nossa marca apoia a causa dos refugiados
e compra todos os tecidos
como forma de respeito e incentivo.
Tecido africano falso é muito
fácil de achar na internet. Qualquer
plataforma chinesa vende. Mas nós
valorizamos qualidade e acima de
13
tudo a história de vida de cada colaborador.
Nossos tecidos são 100% originais.
Quais os modelos de turbantes
que a Ankara cria?
Atualmente trabalhamos
com 3 modelos
- Turbante fechado (50 cm
x 150 cm) que cobre todo o
cabelo
- Turbante aberto (25cm x
100 cm) onde metade do cabelo
ficar exposto
- Turbante fixo, um turbante com elástico.
Fácil e prático, para as meninas que
tem mais dificuldade em amarrar seu
turbante.
Para fechar, como as pessoas fazem para
encontrar a Ankara?
Nossas redes sociais são no Instagram
e Facebook @ankara_turbantes. Nós
temos nosso WhatsApp 11 964818161
e nosso canal no YouTube Ankara turbantes
onde postamos nossos tutoriais e
assuntos relacionado ao mundo dos turbantes.
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A Revista SerEsta é uma criação de um
grupo de professores e ex-alunos apaixonados
pela arte e tem a finalidade de
homenagear figuras proeminentes da literatura.
Acesse, leia, baixe, participe.
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A Revista LiteraLivre é uma publicação brasileira
de periodicidade bimestral, com distribuição
eletrônica em PDF e totalmente gratuita.
A missão principal é dar espaço aos escritores
e artistas de todos os lugares, amadores ou
profissionais, publicados ou não, que desejam
divulgar seus escritos e mostrar seu talento de
forma independente e livre.
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Você escreve e quer ficar por dentro dos melhores
concursos literários do país? Acesse
uma das referências do país e não perca nada.
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lema a frase “Não é que o mundo esteja
pior, você que não fica sabendo das
coisas boas que acontecem.”. Ali você
encontra todas as novidades que vão te
deixar mais otimista e o seu dia mais
leve. Vai uma notícia boa aí?
https://razoesparaacreditar.com/
Sabe aquele livro que você leu e está jogado
em um canto, servindo de criadouro de poeira?
Aquele que você não leva para o sebo
porque eles vão de pagar uma merreca por
ele? Seus problemas acabaram. O livralivro
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Um livro por um ponto, um ponto por
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Hypeness é um site que, como diz o
próprio slogan, oferece inovação e
criatividade para todos. Com reportagens
abordando estes temas, dá
uma visão mais ampla e criativa sobre
os mais diversos assuntos.
Confira. Vale a visita.
https://www.hypeness.com.br/
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A revista Marinha foi
uma publicação de Paranaguá,
e era voltada
à cultura, o IHGP
- Instituto Histórico e
Geográfico de Paranaguá
- tem esta e outras
edições digitalizadas em
seus arquivos.
As páginas da Marinha
eram recheadas de poesia,
crônicas, contos e
anúncios publicitários
que marcam uma época
em que havia produção
e consumo de cultura.
Essa edição é de 1937,
ou seja, quase 84 anos
a separam dos tempos
atuais, e vendo a
quantidade de autores
e artistas desfilando por
suas páginas, fica uma
pergunta: será mesmo
que evoluímos?
Paulo Ras
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Gilmar Ávila de Almeida,
nascido em 15 de junho de
1962, é empresário e natural
de Santa Maria. Desde
criança demonstrou habilidades para o
desenho livre e trabalhos manuais. Recentemente,
como atividade de lazer, começou
a criar quadros utilizando materiais
como botões, tampas de garrafas,
parafusos e areia colorida. Os desenhos
são retirados do Pinterest, ampliados e
transferidos para a madeira.
Instagram: gaquadros_sm
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Selo Cultural Traços
lança primeiro e-book
O primeiro e-book editado pelo selo
Cultural Traços já está na Amazon.
Trata-se do livro "Memórias de um
temporal", a reunião de 16 contos
curtos da escritora gaúcha Marga
Cendón. Os textos foram escritos
entre 2015 e 2020, e a maioria já
foi publicada em jornais, revistas e
antologias. Nos textos Marga desfila
um rol de personagens marcantes,
em histórias profundas, carregadas
de lembranças e reflexões,
que exploram e trazem à tona os
mais complexos sentimentos humanos.
A delicadeza das imagens criadas,
com influência dos Pampas gaúchos,
é marca registrada da autora,
como no conto que dá nome ao livro.
“As nuvens apagavam a tarde
e o céu parecia uma imensa chapa
sobre o quintal. Pelo desenho dos
dedos na vidraça embaçada, espiava
o balanço girando sozinho e
vento brincando nos cinamomos.
Impossível andar lá fora.”.
Marga carrega em seu DNA artístico
toda a força característica da literatura
gaúcha e faz de “Memória
de um temporal” um passeio leve e
marcante pelas histórias da autora;
O e-book já está à venda na Amazon
por apenas R$ 5,99 e tem leitura
gratuita para quem assina o
kindle unlimited.
Acesse e confira mais esta novidade
da Cultural Traços.
https://url.gratis/i5bIhn
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vi li ouvi
Em Entre Facas e Segredos, após comemorar 85 anos
de idade, o famoso escritor de histórias policiais Harlan
Thrombey (Christopher Plummer) é encontrado morto
dentro de sua propriedade. Logo, o detetive Benoit Blanc
(Daniel Craig) é contratado para investigar o caso e descobre
que, entre os funcionários misteriosos e a família conflituosa
de Harlan, todos podem ser considerados suspeitos
do crime.
O filme presta claramente uma homenagem a Agatha
Christie, a mestre do suspense. Se você gosta de filmes
cheio de reviravoltas, com vários suspeitos, e um grande
enigma, Entre facas e segredos é um ótimo filme para assistir
com aquele balde de pipoca, olhos vidrados e uma
boa coberta, pois o frio, pelo menos aqui pelas bandas do
Paraná, está de amargar. Vale à pena? Sim. Filme presente
no catálogo do Prime Vídeo, da Amazon.
Ser presenteado com um livro é ótimo, ainda
mais quando o livro vem autografado e com o
carinho do autor. Foi assim que recebi o livro
infantil “O sonho da Girafa Zeni”, da Sigridi
Borges. Mania de leitor de carteirinha, abri o
exemplar e li com um sorriso no rosto. As ilustrações
estão impecáveis e a edição, belíssima,
porém a melhor parte e a história delicada e
bem escrita de uma girafa muito decidida, que
queria aprender a nadar. Se vale a pena? Vale
cada minuto de leitura. E sem spoiler... o que
você está esperando para comprar o livro e saber
se a girafa Zeni realizou seu sonho?
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Cocteau Twins foi uma banda escocesa de rock formada
em Grangemouth, Escócia, em 1979. Os seus membros
eram Elizabeth Fraser (vocais), Robin Guthrie (guitarra),
Will Heggie (baixo), Simon Raymonde (baixo, em 1983,
com a saída de Heggie). O CT tinha influências no pós-
-punk, com tons góticos e psicodelicos que marcaram os
anos 80, com o seu som melancólico, doce e sombrio. Ao
lado de Dead Can Dance e This Mortal Coil, são aclamados
como os precursores do estilo ethereal e dream pop. A
banda terminou em 1998. (Wikipedia)
Mas para fãs feito eu, o Cocteau é muito mais. Companheira
em todos os tempos, em várias escritas, o som da
banda sempre me levou para lugares que só músicas tão
diferentes e criativas poderiam levar. O vocal sempre cheio
de pesar e de doçura de Elizabeth Fraser sempre foi algo à
parte. Como proibir a mente de viajar com músicas como
Ivo, Heaven or Las Vegas, Cherry-coloured funk e tantas
outras? Impossível. Não conhece? Então dê uma chance
para o Cocteau Twins e deixe a sua alma flutuar por aí.
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Cartas de amor
são ridículas
Leitores, leitoras, artistas... esta é
a última edição em que teremos a
seção "Cartas de amor são ridículas".
Muito material chega para
a revista como se fosse para a seção
e na verdade é material para o
restante da revista, além do mais
muitos acabam fugindo do formato
"carta", o que acaba dificultando
a separação do material e posterior
análise.
Mas nem tudo é tristeza. Por ser
a última edição com a seção, publicaremos
três cartas, a primeira
de Amanda Balbão, de São Paulo,
a segunda de David Ehrlich, de
Curitiba e terceira de Rozimar Gomes
da Silva Ferreira, de Viçosa.
Querida Bruna,
Hesitei em te chamar de querida, mas a formalidade venceu o desafeto. Leia em tom
neutro, não tenha esperanças de que ainda te quero. Escrevo porque seria dramático demais
bater no seu portão às três da madrugada, bêbada, para dizer que não te quero. Seria
um excesso enviar mensagens de números pré-pagos para o seu celular para implorar que
não me procure. E não lhe daria o prazer de me ver nos arredores da casa dos seus pais
tentando, inutilmente, insistir para que não volte a me ver.
Evito o ridículo, como pode ver. Gostaria apenas de saber como estão os cachorros
e se posso visita-los. Comprei roupinhas novas que combinam e acho que poderiam passar
um tempo comigo. Ando afagando cachorros de outros donos nas ruas, por vezes deitamos
no chão. Faço para eles vozinhas de criança que gostaria de fazer aos cãezinhos por
quem realmente sinto afeição. Há momentos em que choro, quando derrubo um pedaço de
pão no azulejo da cozinha e recordo que preciso catar eu mesma. É por essa saudade dos
cães que te escrevo.
Também não entendo seu exagero. Não esperava o drama do seu silêncio quando te
pedi em casamento no parque temático. Os rapazes da banda não sabiam para onde olhar,
nossos pais se constrangeram. Por que isso? Poderia ter dispensado o chilique na frente de
todos os nossos amigos. Veja, gastei muito dinheiro com os cartazes, os balões e a reserva
da roda-gigante. Tudo isso para ter que aturar um circo. Não entendo.
Saiba que não mais considero nossa casa como nossa. Preciso te lembrar de que
paguei a entrada e sigo pagando o financiamento. Gostaria também de utilizar o carro de
vez em quando. Dos demais presentes, faça bom proveito. Na verdade, as flores já devem
estar murchas e os chocolates sendo digeridos enquanto redijo essa carta. Se bobear, foram
usufruídos com um outro alguém, tamanho o seu apetite por fazer uma cena. Pois bem,
saiba que não me importo.
Não responda. Saberei se o fizer, pois continuo no mesmo endereço. Não fale com
meu irmão quando o encontrar no bar às quintas-feiras. E definitivamente não se dê ao
trabalho de me procurar no escritório. Todos lá estão cientes do seu descontrole.
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Adeus,
Júlia
Cartas de amor
são ridículas
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Meu amor,
Lembro-me quando eu tinha oito ou nove anos e meu pai apontou-me
para uma estrela bastante específica no céu noturno, brilhando intensamente. Disse-me
que aquilo não era uma estrela, mas sim o planeta Vênus. Fiquei tão encantado
de estar enfim vendo um planeta que a todos que eu encontrava e estivesse de
noite eu apontava para o céu e mostrava-lhes Vênus. Faz já muito tempo que não
a procuro, na verdade faz muito tempo que não paro para olhar as estrelas. Será
que, se um dia eu voltar a levantar os olhos para o céu estrelado, reencontrarei
aquele planeta brilhante em meio às estrelas?
Se tenho um grande medo, é de que um dia isso aconteça conosco. Pois
entre tantas estrelas que andam pelas ruas, você é a que mais brilha. E isso porque
você não é uma estrela: é um planeta cheio de vida, cheio de beleza. Um ponto
onde posso firmar meus pés e sentir-me estável, em paz. E assim como meu entusiasmo
de criança por um ponto brilhando no céu, a todos que vejo aponto para
você e falo: este é meu amor, esta é minha paixão, esta é a estrela que norteia
minha vida.
Mas por quanto tempo será isso? Será que um dia não serei mais capaz de
apontar para você, assim como não consigo mais apontar para Vênus? Meu Deus,
quantas coisas de lá para cá aprendi a esquecer! De estrelas no céu a fórmulas
matemáticas, às vezes penso que não ficamos mais sábios com a idade, apenas
mais ocupados. E eu certamente não quero te esquecer. Não quero deixar de te
reconhecer. Não quero um dia ouvir perguntas às quais não saberei responder.
Quero sempre poder dizer sobre o brilho de seus olhos, as covinhas de seu sorriso,
o conforto de seu abraço.
Peço-te então apenas uma única coisa: que nunca me deixe olhar para o
chão. Que nunca me deixe perder você de vista. Quero sempre olhar para você,
apontar para você, falar de você para o mundo inteiro te reconhecer. Dizem que
as estrelas estão tão distantes que o que vemos é apenas o passado dela, devido à
demora que leva para sua luz nos alcançar. Pois então, que da mesma forma eu te
olhe e veja apenas aquele encanto de quando sua luz me atingiu pela primeira vez.
Do seu maior admirador.
David Ehrlich
Curitiba/PR
Nossocanto, 08 de julho 2021
Amor,
É, amor, difícil não acreditar na pessoa do Pessoa, quando permitiu Álvaro de Campos
caracterizar as cartas de amor... Pensasse um pouquinho, entenderia o ridículo
das cartas...
Quanto ridículo se enraizou em minha memória e, com um punhadinho de fertilizante,
fiz desabrochar quadrinhas de paixões, roxas, contundentes, rubis..., algumas
murcharam, perderam folhas, cores e até alguns versos. Entanto, mesmo tolhidas,
continuaram entoando notas de amor... formando sonetos multicoloridos.
Os pombos passaram levando mais cartinhas, ridículas como o amor solitário desses
anos todos. Amor de algodão, de cristal, de prata que se transforma em ouro, em
breve, diamante.
Quanto mais sonhos, surpresas, tilintar de taças, vinhos e comida boa, mais reciprocidade,
bilhetinhos, maior respeito às amplas jornadas de trabalho, menos memorandos
e mais epopeias. Longa estrada, quase verdadeiro amor, igualzinho ao das
novelas e da música brega que dizia: "A gente morou e cresceu na mesma rua, como
se fosse o sol e a lua, dividindo o mesmo céu (...) o tempo passou e eu sofri calada...
num cantinho rabiscado do verso, (...), estou casando, mas o grande amor da minha
vida é você..."
Às vezes, sinto a fria parede erguida entre nossos corações. Ardentemente faço crescer
o meu desejo de apertá-lo em meus braços, de abraçá-lo mais e mais.
Meu Deus! Que pieguice... E mais piegas as lembranças se formam diante dos cabelos
brancos que insistem em mostrar uma velhice que tende a ser tão dócil, irresponsável,
vaidosa...
Ah, o amor, o amor não é só tolo, imbecil e intenso, o amor é mais ridículo, quanto
mais se propõe ao enlace, ao amanhecer abraçadinhos, ao gosto de mel e à fragrância
das rosas e de flores perfumosas.
Ainda me lembro daquelas histórias do amor de Peri por Ceci; de Iracema por Martim;
de Romeu por Julieta; de Otelo por Desdêmona. Meu Deus! Sei que o nosso
amor é assim! Que até seríamos capazes de morrer por ele...
Entre altos e baixos, encontro um bom motivo para lhe escrever mais uma cartinha
de amor... é tão doce praticar esse ridículo, mas poucos são capazes de fazê-lo depois
de 40 e uns anos de convivência e de amor... ainda que por todo esse tempo, a cada
vez que abro os olhos, vejo outro em seu lugar, e sinto mais forte a sua falta. Te amo
nesta vida para estarmos juntinhos na outra.
20
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
Apaixonados pelas letras, pelos traços e por serestas.
Vamos falar de Costelas Felinas?
A editora Costelas Felinas
foi criada em 1998 pela
escritora Cláudia Brino ao
decidir editar seus próprios
livros. A partir da parceria
com Vieira Vivo, em 2008,
a editora foi ampliada para
atender aos amigos, aos conhecidos
e ao público em
geral. O percurso e o trabalho
da editora podem ser conferidos no curta-metragem
documental “Pescadores de Palavras”, lançado
em 2018 e editado pela produtora audiovisual Signos
Possíveis com direção de Madeleine Alves, e também
nas entrevistas concedidas a diferentes meios de comunicação,
dentre as quais destacamos “Entrevista
Diário do Grande ABC TV” e “TV Guará Record
News”.
Cláudia Brino e Vieira Vivo trabalham no ateliê da
Editora Costelas Felinas, da qual são proprietários,
supervisionados pela gatinha Noia, também logotipo
da editora, utilizando principalmente ferramentas
manuais na confecção dos livros e
das revistas. As páginas são dobradas
individualmente. A furação, a costura,
a encadernação e a prensagem são
realizadas de forma artesanal. A tecnologia
digital utilizada resume-se a
um computador e a uma impressora
doméstica.
Tudo começa com o envio dos textos
a serem publicados, juntamente
com uma imagem de capa. A partir
daí, é feita a diagramação e a edição de
um volume da obra, de forma gratuita e
sem compromisso. É possível ao escritor
solicitar de 1 a 100 exemplares da obra
toda vez que assim desejar e por um valor
acessível. O autor tem a opção de
escolher entre capa dura ou não, papel
reciclado ou papel pólen, além de contar
com o registro ISBN e com a divulgação
nas redes sociais.
A Costelas Felinas representa uma oportunidade
para que os autores tirem seus
textos das gavetas a fim de publicá-los.
A proposta é alternativa e o interessante é destacar livros,
que concorreram com obras editadas de forma
comercial, premiados, como é o caso de “Adágio Ensolarado”
de Cris Dakinis (Menção Honrosa UBE-RJ),
“Canção do Andarilho” com haicais elaborados por
moradores de rua e organização de Mahelen Madureira
(Prêmio Bunkyo de Literatura), “Centelha Insana”
de Vieira Vivo (Melhor Livro de Poesias pela IWA -
International Writers Association), “Encantamento”
de Geraldo José Sant’Anna (Prêmio Luso-
-Brasileiro de Poesia) e “Safra
Velha” de Cláudia Brino
(incluso em lista indicada ao
Nobel/2018 pela Edizioni
Universum da Itália).
A Costelas Felinas edita também,
desde 2008, a revista
temática Cabeça Ativa, de
periodicidade trimestral e impressa
em papel reciclado. A
partir da escolha do tema da
21
edição, são abertas convocatórias e pesquisas a fim
de publicar ao final do processo em torno de sessenta
poetas, consagrados e anônimos, de diferentes estilos.
A revista da editora recebeu o certificado de “Melhor
Revista Poética Temática/2017” concedido
pela IWA (International Writers
Association). Vale ressaltar que a convocatória
da revista é apenas um dos
concursos promovidos pela editora.
Convidamos aos leitores da Revista
Cultural Traços a conhecer mais sobre
a editora Costelas Felinas e sobre a Revista
Cabeça Ativa através dos seguintes
endereços:
@costelasfelinaseditora
https://artesanallivros.blogspot.com
https://www.facebook.com/artesanal.
livros
https://www.youtube.com/channel/UCcBriefjAH6Re-
GY2T8pGyNg
Daniela Genaro e Sigridi Borges (Revista SerEsta)
"Traços traçados através da arte, assim é a Revista
TRAÇOS; traçando olhares.”
Costelas Felinas Editora
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ADÍLIO TEIXEIRA
MARQUES
Manaus - AM
Autor, Estudante de
Geografia e Aspirante
a poeta, escreve
o torto por
linhas retas desde a mocidade,
com influência de seu pai, que
sempre o contou histórias de
vida, através de seus versos.
UM MERO DEVANEIO DE VERÃO
A
vida é uma fração do infinito
Disse-lhe distante
Ao som do próprio grito
Como se trouxesse à tona
Seus tolos sentimentos aflitos
Não era possível prever
Que à noite ela fosse reler
As frases escritas à mão
Nas folhas singelas de um simples cartão
Suas fortes histórias vividas
Que sempre, à sua amada fascina
Em breves ondas arredias
Tão cálidas, pálidas, salinas
E nessas mensagens lidas
Percebeu que a sorte
Ainda lhe era bem vinda
Em cada traço mal alinhado
Descobriu então, extasiada
Que todas as palavras
Se permitem ser rimadas.
Nesses devaneios de verão
Que fogem à mente
Em consoante questão
Elevam sua sombra
Ao mais alto dos céus
Num simples rabisco
Em um pedaço de papel.
23
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ADRIANA MANDUCO
Brasília - DF
Adriana Manduco,
nascida em Brasília
- DF (Brasil),
casada e mãe de
três filhos, gestora de Administração
e Consultora Financeira,
escritora romancista.
adrianamanduco.wixsite.
com/escritora
EU, MULHERES... MARIANA CRIOULA
Novembro, 1838 - Rio de Janeiro - Brasil
A economia cafeeira desponta na região
fluminense, Vale do Rio Paraíba.
A mão de obra escrava corresponde a maioria da
população da região.
Grandes fazendas crescem e se multiplicam às
custas do trabalho forçado de negros e negras,
comprados no mercado de escravos, trazidos em
navios negreiros sob condições totalmente desumanas.
O crescimento financeiro deslumbra os grandes
produtores de café que exigem cada vez mais de
seus serviçais.
Constantes e impiedosos castigos eram imputados
aos serviçais, muitas vezes sem motivo algum.
Grandes troncos, estrategicamente colocados no
pátio das fazendas, serviam como mastro onde
escravos eram amarrados e açoitados com um
instrumento feito com tiras de couro, até quase a
morte. O número de chicotadas eram definidas de
24
acordo com o “delito” do homem ou mulher castigado.
Quando uma das mucamas cozinheiras errava o
tempero da comida de seus senhores era castigada
com bolo, uma espécie de palmatória de madeira,
simplesmente com o objetivo de aleijar as mãos
das escravas.
Caso um escravo se rebelasse ou negligenciasse
uma de suas tarefas no plantio do café, era colocado
em seu pescoço um colar de metal com pontas
salientes, que dificultavam o seu descanso durante
a noite.
Para o escravo fujão, ou que tentava roubar comida,
era imposto o castigo da máscara de ferro
que o impedia de se alimentar. Com isso, muitos
morriam subnutridos.
Em alguns casos, mesmo após os castigos, escravos
eram colocados no vira-mundo: espécie de algemas
de ferro que prendiam suas mãos e pés.
Dia 05 de Novembro - Vila de Vassouras – Brasil
Preocupados com as revoltas de Palmares, Haiti
e Malês, os escravagistas tratavam seus escravos
com muito mais rigor.
Nas fazendas do capitão-mor, Manuel Francisco
Xavier, não era diferente.
No salão da casa grande, Francisca Xavier, sua
esposa, conversa tranquila com Mariana Crioula,
sua mucama.
Mariana era considerada uma escrava dócil e gentil,
por isso, era admirada e protegida por sua senhora.
No cafezal e sob um sol escaldante, negros fortes
carregam sacas de café recém-colhidos dos inúmeros
pés espalhados pela verde montanha.
Da cozinha, um delicioso cheiro de broa de milho
se espalha por todo o casarão.
No galpão, Manuel Gongo, o escravo ferreiro,
trabalha com outros seis escravos.
No cair da tarde a frágil calmaria é interrompida
após um alto barulho de tiros vindos da senzala.
Assustada, a senhora Francisca pergunta ao jardineiro:
- O que houve? Esses barulhos foram tiros?
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ADRIANA MANDUCO
Brasília - DF
EU, MULHERES... MARIANA CRIOULA
Também temeroso o velho responde:
- Sim, minha senhora! O capataz acaba de matar o
escravo Camilo Sapateiro.
- Mas, o que fez ele para merecer a morte?
- Senhora, pelo que ouvi de um outro capataz, o
escravo foi morto sem nenhum motivo aparente.
Atenta, Mariana ouve o diálogo de sua senhora.
A morte do pobre rapaz causou uma enorme revolta
nos escravos da fazenda, crescendo o clima
de ódio, sendo este o estopim para um grande levante.
Por volta da meia-noite, um grupo de escravos,
liderados por Manuel Congo, matam o capataz e
arrombam as portas da senzala. Mucamas se juntam
a eles, inclusive Mariana.
Antes do dia nascer a rebelião se espalhou pelas
outras fazendas de Francisco Xavier: São Luis da
Boa Vista, Cachoeira, Santa Tereza e Monte Alegre.
Cerca de quatrocentos escravos, entre homens
e mulheres, embrenharam-se na Serra da Estrela
planejando a formação de um novo Quilombo.
Manuel e Mariana logo tornam-se os líderes do
levante e foram intitulados pelos outros escravos
como rei e rainha. Mais que um casal, eles eram
guerreiros natos. Juntos, lutavam pela liberdade!
Quem poderia imaginar que uma escrava de aparência
tão frágil e delicada fosse na verdade uma
grande e visionária mulher?!
Fixaram-se nas matas da Serra da Mantiqueira e
iniciaram a montagem de um Quilombo.
Com as ferramentas saqueadas das fazendas de
Manuel Francisco Xavier, os escravos planejavam
iniciar uma plantação para o sustento de todos.
As armas serviriam para a proteção do Quilombo.
Inconformados, os fazendeiros da região solicitaram
à Guarda Nacional que partisse em busca dos
fugitivos.
Sob o comando de Luís Alves de Lima e Silva, o
futuro Duque de Caxias, os soldados localizaram
o grupo de escravos.
25
Após a troca de tiros entre a Guarda Nacional e
os rebelados, onde dois guardas morreram e outros
dois caíram feridos, desencadeou um intenso
massacre.
Todos os escravos recusavam a se entregarem, desobedecendo
a ordem do comandante da Guarda.
Cerca de vinte deles são mortos e outros tantos
são alvejados por espingarda nas pernas para impedir
a fuga.
O restante dos escravos largaram suas armas e saíram
correndo, desesperados.
Manuel e Mariana mantiveram-se firmes.
Aos gritos, ela declarava:
- Morrer sim… Se entregar jamais!
Levados prisioneiros, somente dezesseis negros foram
julgados: Manuel Congo, Pedro Dias, Vicente
Moçambique, Antônio Magro, Justino Bengala,
Belarmino, Miguel Crioulo, Canuto Moçambique,
Afonso Angola, Adão Bengala, Mariana Crioula,
Rita Crioula, Lourença Crioula, Joanna Mofumbe,
Josefa Angola e Emília Conga.
Mesmo após a tentativa de linchamento pela população,
Mariana e todas as mulheres do grupo
foram absolvidas, a pedido de sua dona, Francisca
Xavier.
Porém, como forma de castigo, ela foi obrigada
a assistir a execução pública de seu companheiro,
Manuel Congo, o único sentenciado a pena de
morte em 04 de setembro de 1839.
Manuel subiu ao cadafalso no Largo da Forca e
foi enterrado como indigente.
Outros sete homens receberam seiscentos e cinquenta
açoites e passaram três anos com um gonzo
de ferro no pescoço.
Entretanto, o Quilombo de Manoel Congo e Mariana
Crioula era a evidência de que os escravos
continuariam sua luta contra a escravidão.
Mariana é lembrada por seu legado de garra e revolta
contra a política de maus tratos, usada pelos
Barões do Café.
Somente em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel
assinou a Lei Áurea, sendo o Brasil o último país
do continente americano a abolir a escravidão.
Com isso, cerca de setecentos mil escravos foram
libertos de sua humilhante condição.
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
AGNES IZUMI
NAGASHIMA
Londrina - PR
HAICAIS DE INVERNO
Outono findou
e as folhas secas despertam
mais um frio de inverno.
No amanhecer álgido,
gotas de orvalho congelam,
café pra aquecer.
Em um dia frio,
caminhada sob o sol,
flor de cerejeira.
Silêncio na rua.
Sol aquece pela fresta
o gato encolhido.
Vento congelante,
permanecem abraçados
à luz do luar.
Escreve contos e
poemas, publicou
em revistas
e coletâneas. É
acadêmica correspondente
da Academia
Internacional da União Cultural,
faz parte da UBT Londrina
e da Comissão de Autores
da WebTv.
26
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ALBERTO ARECCHI
Pavia – Itália
Arquiteto italiano,
mora em Pavia.
Presidente da Associação
Cultural
Liutprand, que edita estudos
sobre a história local e as
tradições (liutprand.it). Escreve
contos e poemas.
O DIABO DA NUMÍDIA
Estou disposto a apostar que nenhum de
vocês já conheceu o diabo na Numídia.
Acredito que eu o vi, há muitos anos,
durante uma viagem de carro para atravessar
as montanhas da Medjerda, entre a Tunísia
e a Argélia. Era uma noite muito chuvosa e o
caminho, estreito e cheio de curvas fechadas, não
estava equipado com proteções adequadas para
garantir que o viajante não voe para a direita na
próxima ravina. Eu havia embarcado em Gênova,
debaixo da chuva. Após o desembarque na
Goulette, estava chovendo. Vinte e quatro horas
de água por cima do ombro, a água dos lagos em
Tunis de um lado e do outro, a água do céu. Realmente
demasiado: tentem vocês dizer isto àqueles
que estão convencidos de que na África nunca
chove. Abandonei a intenção original de passar
um dia inteiro em Tunis e decidi não parar. Ao
longo da estrada costeira eu podia chegar em volta
da noite em Annaba, mas a cidade era famosa
por seus ladrões, capazes de cortar vossos pneus
nos cruzamentos para forçá-los a ir para baixo e
roubar tudo... Então, aventurei-me na outra estrada,
que no papel não parecia muito desconfortável,
a convicção de chegar antes de escurecer em
Souk Ahras, a antiga Tagaste, lugar natal de Santo
Agostinho, uma tranqüila vila de montanha, do
outro lado da fronteira argelina. A chuva e as terríveis
curvas daquela estrada de montanha me dariam
uma noite de horda.
Em aquelas montanhas, anos antes, tinham lutado
os fellagha (rebeldes argelinos em revolta contra
a França). As tropas coloniais tentaram construir
uma linha “impenetrável” de fortes e arame farpado,
para impedir o fornecimento dos rebeldes. Os
sinais eram escassos, ao longo do caminho, mas eu
não estava com medo de me perder: a estrada de
asfalto estreita, toda de voltas e reviravoltas, continuava
subindo para o céu, sem desvios, embora
invisível na noite negra.
Nas curvas fechadas mais expostas, a chuva parecia
abrir o caminho sob as rodas. Eu tentava não
pensar sobre o que eu poderia esperar após a próxima
curva, cantarolando entre os dentes alguma
canção esquecida. Após cerca de dez minutos, no
entanto, a tensão renovava-se. Além da chuva,
das curvas, da escuridão, dos relâmpagos repentinos
que iluminavam a noite, eu tinha medo que
uns animais selvagens, atravessassem de repente
o meu caminho: um javali, um macaco, um cão
vadio, uma raposa ou qualquer outro ser vivo. Na
noite escura o carro poderia ter sido parado e não
encaminhar-se mais.
Isto pode explicar por que não parei, mesmo hesitando
um momento, quando, no meio de uma
curva, na escuridão diante de mim, uma silhueta
branca apareceu de repente. Uma grande sombra
pálida, com as asas abertas: tinha de ser uma ave
de rapina noturna na caça, talvez uma coruja de
celeiro. Parou por um momento no ar, na luz amarela
dos faróis, e desapareceu, em quanto meus
olhos tentavam reconhecer a estrada.
Um instante - ou um século - mais tarde, retornei
a mim de um breve desmaio, a testa coberta de
suor frio. Apito de morteiros. Eu estava sempre
na estrada, na noite de tempestade, mas estava
conduzindo um veículo blindado. De dois miradouros,
colocados em penhascos com vista para o
caminho, os raios de luz passavam na montanha
em busca dos rebeldes. Rajadas longas de metralhadora
cortavam a noite. Como sombras que desapareciam
na escuridão, os fellagha não se viam.
Meu carro passou no fogo cruzado de balas traçadoras
e vi diante de mim, claramente, uma máscara
sorridente: uma espécie de harpia, empoleirada
sobre o capô do meu caminhão. Como se fosse de
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ALBERTO ARECCHI
Pavia – Itália
O DIABO DA NUMÍDIA
fósforo, a larva brilhava de luz própria, pairando
e mexendo, aqui e ali.
Sentia-me em perigo imediato, o fantasma bailarino
me assustava mais que as rajadas e a tempestade.
Tinha que me forçar a ficar firme, os olhos bem
abertos na noite, tinha que não distrair-me. Sabia
instintivamente que, se seguir com os olhos os movimentos
da aparição, escaparia para fora da estrada,
descendo a ravina íngreme. O vento trazia
rajadas violentas de chuva. O confronto armado
parecia ter acabado, mas alguns tiroteios isolados
ainda ecoavam na escuridão. Os olhos corriam entre
as sombras de tuias e carvalhos, procurando o
brilho de uma arma ou o movimento das capas
dos rebeldes. Em vez disso, só via redemoinhos e
ramos, balançando nas rajadas do vento; mas no
jogo de luz e sombras, às vezes, até mesmo transparecia
o sorriso atroz da visão. A máscara me
convidava para acompanhá-la. Girou e veio descansar
em uma clareira, a cerca de cinqüenta metros
da estrada.
Então, a face do sorriso satânico explodiu em mil
fragmentos: estilhaços de luz, madeira, metal e
terra úmida. Um morteiro atingira uma barraca,
um pequeno depósito de munições. Longos minutos
de fogos de artifício. Parei, sai do veículo e me
aproximei cautelosamente à clareira. Deitado em
seu próprio sangue, um jovem soldado camuflado,
com o rosto desfigurado pela explosão, engasgava
e morreu em meus braços. Eu nunca vou saber
se era um francês, um mercenário da Legião ou
um rebelde. Nenhum sinal o identificava, e face
da morte os jovens são todos iguais. Ao longo
dos últimos suspiros, ele tirou do bolso o retrato
de uma menina apertando-o convulsivamente na
mão, como se estivesse tentando se agarrar àquela
última esperança, última memória. Deixei-o lá, na
chuva, na escuridão e no silêncio que se tornaram
absolutos. Na estrada, com os faróis acesos, meu
28
carro estava esperando.
Durante essa viagem, cheguei em Souk Ahras que
já era noite avançada e encontrei dificuldades para
achar um quarto para descansar. Tive a sorte de
ver nas ruas desertas um funcionário público, que
se ofereceu para chamar os poucos hotéis na cidade,
e me arranjar uma cama. Ainda me lembro
da estalagem esquálida, cujos lenços tinham definitivamente
perdido sua inocência e foram tão
endurecidos para ficar contra a parede, na posição
vertical, sem cair. Fiquei completamente vestido
na cama, grato à noite fria. Dormi muito pouco,
ainda abalado pela viagem na tempestade, pela
visão, os tiros, a imagem daquele jovem morrendo.
Acordei e retomei o sono, pelo menos, quatro
ou cinco vezes: a noite nunca passava. No dia seguinte,
a tempestade se acalmara e o céu estava se
abrindo, o vento não trazia mais nuvens. Assim
como não havia luz suficiente, eu continuei a viagem
para Argel.
Na minha longa estadia nesses países fui capaz de
descobrir, a partir de livros e conversas, as lendas
que são contadas, sobre aparências semelhantes
ao fantasma que eu tinha visto naquela noite.
O “diabo da Numídia” materializa-se como uma
larva ou um fantasma, em ocasiões especiais, para
prever - ou evocar - eventos desfavoráveis, em certos
vales as montanhas entre a Tunísia e a Argélia.
A gente diz que o diabo aparece na Numídia
quando alguém tem que morrer de uma morte violenta,
mas também para abrir brechas temporais,
aberturas que permitem conhecer o passado ou o
futuro.
Nessa noite de tempestade, a larva não tinha vindo
para me levar, ou talvez... Quem sabe? O que
é certo, é que a morte tomou uma vida naquele
lugar, naquela hora - mas em que ano, em qual dos
muitos mundos paralelos?
O diabo da Numídia lá estava.
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ALESSANDRO JOSÉ
PADIN FERREIRA
Praia Grande - SP
Poeta, professor universitário
e jornalista.
Após anos dedicados
à atividade
jornalística e acadêmica,
retomou sua produção poética.
Está preparando o seu
primeiro livro.
https://medium.com/padin
UMA CARTA PARA MANOEL DE BARROS
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
(Manoel de Barros)
Não reli nenhum dos seus poemas ontem, quando fui dormir pensando em você.
Só lembro, nesta minha memória falha que erra até o Hino Nacional, que você
entende o canto dos passarinhos, o dançar da terra sob os pés e a beleza de folha
balançando em frente à janela, mesmo que não haja flores.
Os passarinhos daqui foram embora lá pra floresta. Aquele vermelhinho, então, nunca mais
vi. A terra, coberta pelo concreto, e as flores são, como sempre, resistência. O dia não começa
com o som da brisa que vem do mar, tentando acalmar as urgências da rotina. É com o som
tonitruante das estacas que lembro onde estou e que tudo pode ser mais duro.
Quando escrevo, mais um caminhão dá uma freada violenta e o rugir do motor reforça minha
impotência. Devo ir embora? Não sei. Estou tão cansado e andar por aí pode ser perigoso.
Até o sorriso gratuito, que gosto de dar para desconhecidos embrutecidos, é censurado pela
máscara que raspa minha barba e me faz sentir pequeno diante de tudo.
Deu uma vontade danada de ler um poema seu agora, para lembrar da minha humanidade e
de que nem tudo são ambição e cifras. Deu uma vontade danada de dançar sob a terra, imitar
os passarinhos, distribuir flores para os funcionários da obra levarem, com um pouco de ternura,
para as suas amadas nos barracos da vida.
Deu uma vontade imensa de ser ridículo aos
olhos de quem se acha normal, pois, nesta
etapa da vida, concluo que são os ridículos
que fazem tudo valer a pena. Aqueles que riem
de si mesmos, que não usam guarda-chuva,
que tomam café sem açúcar e que param na
esquina para ver a goiabeira da infância.
Manoel, hoje é quinta-feira, dia dos Caboclos. É dia
de tomar banho de ervas. Alecrim, Aniz Estrelado e
outras que preciso ver lá na lista, pois sou
esquecido. Acho que vou fazer isso no jardim,
para não sujar muito o banheiro.
Fica bem, amigo. Prometo que hoje vou dormir
lendo algum poema seu.
Um beijo.
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
AMANDA COELHO
Petrolina - PE
Amanda Barbosa
Coelho, 25 anos,
atualmente graduada
em Direito Pela
Facape. Trabalha com performances
de intervenção urbana
e literárias desde 2017. E, desde
de 2019, também com audiovisual.
ELIZABETH
A
oeste o céu estava iluminado pela derradeira luz do poente.
O pôr do sol banhava a fragilidade daqueles minutos.
Os melhores momentos, eu acho, são aqueles que, quando revisitados na memória,
a gente sabe que, enquanto os viveu, não os reconheceu como momento. E é talvez
por isso que sejam especiais: não foram estragados pelo desejo de perpetuar cada instante de
saciedade.
Minha pupila dilata.
A vontade do abraço aumenta.
Permaneço segurando a grade do píer; a água abaixo bate calma e silenciosa contra as pedras
nuas que evidenciavam o inicio da seca.
Sentia o tempo esticado e preguiçoso como um gato que dorme.
- A água costumava bater ali naquela marca mais escura. Tá vendo? – debruçou-se ousadamente
por cima das grades.
- Tô sim – projetei a cabeça timidamente. Um arrepio me percorreu a espinha.
Um passo pra trás. O vinho derrama. Risos.
Olhares que se encontram e fogem outra vez
Foi como num piscar de olhos, o tempo passou. Como o virar de uma página, tanto tempo
passou.
O píer hoje estava vazio.
O céu estampava o mesmo tom de rosa alaranjado daquela data.
O crepúsculo vindo do leste investia impiedoso contra o adeus singelo de luz do sol. Absorta
eu observava a batalha silenciosa sendo travada na abóbada do céu.
Era possível ouvir o farfalhar de asas e a sinfonia desarmoniosa dos pardais que se acomodavam
nos galhos de árvore. Como se só o sono dos passarinhos inaugurasse oficialmente a
noite.
- Vê, Liz? o mundo é tão lindo, mas você se matou no inicio daquele novembro.
É estranho pensar na comunhão da vida que o universo rege lá fora. Nada mudou desde que
você se foi. E nada vai mudar!
Não lá fora, eu sei...
Amanhã é o primeiro dia do outono. Depois vem o verão. O inverno. A primavera e então
outono outro vez. O ciclo se completa e se perpetua. O mundo existe independentemente de
mim ou de você.
Essa indiferença do universo em relação a nossa insignificância é o que me conforma e me
conforta. O movimento continua. É assim que tem que ser.
No céu, a lua iluminava a escuridão com uma luz branca em um halo perfeitamente anelar.
Amanhã não estarei mais aqui. Não sei se no amanhã que se anuncia ou um outro maior ainda,
mas amanhã, eu sei, poderemos andar de mão dadas novamente, com nossos corpos de
memória, que já nem projetam sombra no chão.
30
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
AMILTON DE ARAÚJO
CAVALCANTE
São Luís - MA
Originário de Barra
do Corda (MA),
onde passou a infância
e a adolescência.
Mudou-se para Teresina
no ano de 2011. Formado
em Filosofia, escreve desde os
14 anos. Atualmente reside em
São Luís (MA).
AGONIAS SILENCIOSAS
Assenta a luz do dia, dissipando-se...
Sobre as nuvens roseadas no horizonte
Assenta-se a beleza rara e momentânea
Por sobre um chão enlameado e agonizante
Esta é a hora mais vaga, mas o momento da certeza
Entre a multidão e a escassez
A ponte insegura dos suspiros, dos olhares
Vomitando a andança que ata o medo à necessidade
Rosários de lamentos obscuros
Adoçando as orações do sol poente
A terra seca estende nervos rachando a ansiosidade da chuva
Na alma do entardecer que se assenta meditante
Engolindo as sensações selvagens ao esquecimento
Agonias silenciosas se desdobram no bordado
Cristalizando o lago turvo da memória
Fio por fio no tecido raso das horas
Ponto por ponto de consciência lógica
Traçado o plano, resta o peso do fato
A sede é que gera o medo
Mas a sua busca é a coragem do ato
Que toda a tentação exige o seu tentador
Que eu fiz em mim mesmo, em meu desejo
O tentador que, nas entranhas, a mim mesmo tentarei
Fumaça, fumaça e fumo...
Exala para as nuvens um sossego
O sossego do mundo...
E eis o sono perdido que encontrei
E o som, e a sombra e o homem
Entre as coisas de que nunca falei.
31
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ANA LAURA JALLES
Natal - RN
BEM ME QUER
Em 2010, Ana publica "A menina
da bola Rosa, Ed.Ata, Natal-RN";
2013: voz e violão na TV TCM,
Mossoró-RN; 2015: voz e violão
na Casa do Brasil, Madri: 2016
em diante: voz e violão em restaurantes;
2019: Lança Get High
(Spotify).
Assista o vídeo da música "Bem
me quer"no YouTube
https://www.youtube.com/watch?-
v=IdPQEaJhUZg
"Bem-me-quer"
de Ana Laura Jalles
Vento leva
nem sei,
tudo que vai também vem,
tudo que vem também vai.
Calma que passa, rapaz.
Que é que isso?
Tá perdendo o juízo, rapaz.
Calmaria, cê que sabe.
Se quiser pode ficar a vontade.
Bem-me-quer.
Mal-me-quer.
Mas eu me quero
bem mais.
Mal-me-quer.
Mas eu me quero
bem mais, rapaz.
Universo inconsequente
entorpece a mente.
Verdades, mentiras
iludem quem sente.
Uma vez
no abismo eu pensei:
era uma vez.
Uh, uh, u, oh, oh, oh
Bem-me-quer.
Mal-me-quer.
Mas eu me quero
bem mais, rapaz.
Bem-me-quer.
32
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ANDRÉ NÓBREGA
NOVIS DE OLIVEIRA
Rio de Janeiro - RJ
PARADISE CITY
Corte seco. Sua pronúncia
precisa da língua francesa,
tal qual uma
nativa. Literatura romanesca,
manteiga de cacau, restinga
ainda conservada,
não me constrange,
nem me restringe.
Tacar uma pedra
por cima do lago da infância
com raiva, mágoa,
estilingue
calcinha muito grande,
abocanha, do nada,
a minha cabeça.
apontado para o flagrante
surgido. Sorriso possível
no silêncio.
Formado em cinema,
em breve lançarei
meu primeiro livro,
de poemas. Mais do
que nunca creio no poder da
arte como cura, eixo de construção
e alimento, diante de
uma realidade cada vez mais
complexa.
Façamos um minuto
de silêncio, pelas
vítimas
da Covid. Façanhas,
o risco de assumir
a postura
de esfinge, com
as coxas na
caixa de Pandora
Coitos, adereços ridículos,
discussões sem sentido.
São sempre os mesmos
caminhos. Desconfio
já ter lubrificado
contigo,
todas as voltas
feitas, pela concepção
terrena de paraíso.
33
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ANDRÉA CARVALHO
Rio de Janeiro - RJ
Carioca, professora
de Língua Portuguesa
e Inglesa,
formada pela
UFRJ.
Por meio das publicações
"50 Dias Letivos" e "Falas
Brasileiras" conto capítulos
da história de muitos educadores
desse país.
UM DEDINHO DE PROSA
Consta em muitas gramáticas e livros
didáticos, de maneira muito discreta
e sem riqueza de exemplos, que
o sufixo –inho/a não serve só para
formar o diminutivo das palavras em português,
ou seja, indicar o tamanho dos seres ou
das coisas, percebe-se facilmente que, quando
se diz “fulano está vivinho da silva”, “aquela
mulherzinha fez um escândalo” ou “você é o
meu benzinho”, não nos referimos ao tamanho
ou à proporção do adjetivo/substantivo,
estamos sim acrescentando a ideia de intensificação,
pejoratividade e afetividade aos vocábulos
vivo, mulher e bem. Estar vivinho não
é simplesmente estar vivo, é estar surpreendentemente
vivo. Aquela mulherzinha é uma
pessoa desqualificada por algum motivo. E o
benzinho, se trocado por “meu bem”, pode
até ganhar uma conotação irônica, dependendo
da intencionalidade envolvida na escolha
de uma ou outra palavra.
Se você já desconfiava que, quando um atendente
lhe pede que aguarde “só um minutinho,
senhor”, é porque a espera será longa;
que o “jeitinho brasileiro” não se trata apenas
de uma pequena característica da nossa
cultura, mas quase uma regra de comportamento,
ou que um “rapaz bonitinho” pode
ser feio, mas arrumadinho, você está rondando
o âmago da questão. Certamente já usou
no seu cotidiano o grau diminutivo para atenuar
uma mentirinha, desprestigiar alguma
coisa ou até ironizar alguém. Isso porque as
possibilidades de emprego são inúmeras, estão
muito presentes nos nossos hábitos linguísticos
e variam de acordo com a intenção,
o efeito desejado ou a manifestação de uma
emoção do falante.
Esse poderoso recurso de linguagem está intimamente
ligado ao contexto. Por isso, cuidado
ao inserir o –inho/a deliberadamente no
final de uma palavra, pois você pode provocar
confusão ou ser mal interpretado. Se espera
ganhar um automóvel novinho, não diga
que vai ficar feliz com um carrinho novo, pois
pode ser que se decepcione com o presente.
Se vai se ausentar do trabalho, não fale que
vai dar só uma saidinha rapidinha. Seu chefe
pode ficar bravo. Ao sair para fazer umas
comprinhas, não retorne com dez sacolas, a
menos que seja você o titular do cartão de
crédito.
Esse emprego corriqueiro, esse modo de falar,
já provou que não tem muito compromisso
com a realidade dos fatos, mas ainda assim
pode produzir um efeito de sentido diverso do
pretendido e deixar o seu interlocutor, no mínimo,
descontente, mas só um bocadinho, ou
cadinho, à moda lusitana. O ideal é saber manejar
mais esse fantástico mecanismo da língua
portuguesa a seu favor e de acordo com a
intenção pretendida. E caso você perceba que
está usando pombinhos, vaquinha e peixinho
sem significar animais de tamanho pequeno,
é porque há ainda outros valores atribuídos
ao sufixo –inho/a, diferentes do que tratamos
até aqui. Mas isso fica para um próximo textinho…
34
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ANDRESSA GALVÃO
Londrina - PR
Professora de Língua
Portuguesa na Rede
Pública Estadual, em
Ituiutaba, MG, sua
cidade natal. Tem diversos
contos e crônicas em Antologias
digitais, e terá publicado
o primeiro livro de Contos.
ONDE ESTÁ A LITERATURA?
a literatura surge das latas de lixo fétidas e lotadas
de rosas cheirosas
e espinhosas
de mentes apaixonadas
obcecadas
inevitavelmente ególatras
embriagadas
a literatura está nos fios que levam energia para as casas
nas luzes que brilham em noites caladas
na consciência pesada
cheia de pesares
na alma rasgada
nos bebês paridos dos ventres de mães cansadas
olhos recém abertos
deparam-se com os horrores deste mundo
com a fome e a desnutrição
as grandes fortunas e a sonegação
descobrem que precisarão lutar por suas vidas
se forem vidas periféricas
precisarão lutar mais ainda
são vidas que mal começaram e já estão perdidas
afogadas em latas amassadas
copos de bebida
a efervescência intelectual dos pobres humanos
não parece ser suficiente para os intelectuais desumanos
muitos morreram
que pena
precisamos seguir
esquecer
vender nosso tempo
perder tempo para as competições acirradas
estar no topo
ao lado de almas desalmadas
meritocratas
a literatura está no mundo
em miudezas e grandezas
em seres individuais
que precisarão aprender a lutar juntos
35
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ANTONIO GIL NETO
São Paulo - SP
Nasceu em Taiaçu.
Graduou-se
em Letras e Pedagogia.
Reside
em São Paulo desde 1978.
Trabalhou em Educação, na
formação de educadores e
na criação obras didáticas. É
autor de literatura juvenil.
O AZUL DO AR
O que dizia este sol
sua voz
serenando os ventos?
Apontando andanças
de buscar orvalhos
sua direção, manancial.
De longe um olhar espreita
vocifera
e lambe o mato.
O que acua,
subverte
sempre
adverte às coragens mais fáceis.
Os raios não aquecem o inesperado
esse instante de estouro e movimento
a romper os ares.
Há a arte
e caudaloso
que alimenta a sermos ainda mais humanos
que tornam poéticos todos
os cantos
os brados
asas
que incendeiam todos os prantos.
36
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
E O VENTO LEVOU
ARISSON TAVARES
Escritor, jornalista e
cartunista do portal
Só Notícia Boa,
sendo finalista na
52ª edição do Prêmio de Comunicação
da CNBB.
Saiba mais acessando:
https://arissontavares.wixsite.com/site
37
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
BELISE CAMPOS
Curitiba - Pr
Belise Campos [Curitiba/Paraná]
nasceu
em 91. É contista,
mas também se arrisca
na poesia. Publicou nas
Revistas LiteraLivre e Toma
Aí Um Poema. Leitora ávida
dos autores russos e poetas
românticos.
HÁ NOITES QUE PALAVRAS SÃO COMO PROSTITUTAS BARATAS
à você
palavras se entregam
como amantes
apaixonadas
no entanto
à mim
chegam como
prostitutas
mal pagas
a contragosto.
38
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
BERNARDO A.
CARVALHO
Brasília - DF
Mora em Brasília.
Jornalista
e escritor,
autor de
Aventuras de um Ariano
Taurino e de A Globalização
em Xeque.
A POLCA FINLANDESA
Meados da década de 1980, tínhamos
formado uma turma de
amigos numa viagem de barco
descendo o rio São Francisco.
Havia gente de Belo Horizonte, Rio de Janeiro,
São Paulo, Ubatuba e outras cidades.
Éramos jovens que gostávamos de conhecer
as diferentes regiões do Brasil, seus costumes,
viajar do jeito que fosse dormir onde desse,
curtindo o rock rural de Sá, Rodrix e Guarabira
(sem contar Alceu Valença, Geraldo Azevedo,
Clube da Esquina, 14-Bis...).
Marcamos vários encontros depois da viagem
pelo Velho Chico. E um deles foi no Parque
Nacional de Itatiaia, na junção dos estados do
Rio, Minas e São Paulo.
Éramos
umas trinta pessoas, equipadas com barracas,
dispostas a explorar as belezas daquele
local. Para nossa surpresa, descobrimos que
ali já havia nevado, na década de 60. Fazia
um frio danado, mas isso não impediu vários
de nós de pularmos nas águas geladas de uma
cachoeira. Procurar as cachoeiras - e mergulhar
nelas -, era um imperativo em todas as
nossas viagens.
Na quinta-feira, início de um feriado estendido
de Sete de Setembro, alguém comentou
que, no sábado, haveria uma festa na cidade
vizinha de Penedo. E que ali se dançava uma
polca finlandesa...
Aquilo captou minha atenção imediatamente.
Eu adorava exotismos e nunca tinha dançado
uma polca, muito menos uma polca finlandesa...Era
algo que teria que fazer.
Conversando daqui e dali, ficamos sabendo
que, no início do século XX, um grupo de finlandeses
amantes da natureza comprou uma
antiga fazenda de café na região, mudou-se
para lá, iniciou uma comunidade vegetariana
e construiu Penedo (não confundir com a
Penedo de Alagoas), que hoje é um bairro do
município de Itatiaia. A comunidade cresceu,
alguns filhos foram estudar e/ou trabalhar no
Rio de Janeiro, mas aos sábados sempre havia
uma festa que a reunia. E nós estávamos
prestes a conhecer essa coisa original, diferente,
encontrada sem querer.
De quinta a sábado eu dizia: “Quero dançar a
polca finlandesa”. Vários integrantes do nosso
grupo se entusiasmaram também e acertamos
a viagem a Penedo.
No sábado à noite, enchemos uns cinco ou
seis carros e nos embrenhamos pelas montanhas.
Chegamos a Penedo e encontramos
muito movimento. Praças e bares cheios, soubemos
que havia saunas na cidade (claro!),
um grupo grande dos nossos já parou num
bar, começou a tomar umas e outras e ficou
ouvindo uns músicos.
Eu só queria chegar ao clube onde a festa estava
acontecendo, bar eu tinha aos milhares
em Belo Horizonte, queria mesmo era a polca
finlandesa...Fui direto para o local, com a minha
irmã Jacqueline e um amigo “mineirim”,
José do Rosário.
Na porta do clube, fomos informados de que
era preciso comprar um convite. Pagamos e
entramos. Algum tempo depois o Márcio Faria,
líder do nosso grupo, chegou e disse ao
porteiro que estava com mais vinte pessoas.
“Qual é o desconto que vocês dão?”, perguntou
espertamente. A resposta foi seca: “Não
fazemos questão de grupos aqui”. Já era um
sinal...O restante da nossa turma – pão duro
ou mão de vaca – preferiu ficar bebendo na
praça.
No clube, estava tocando uma música tradicional
finlandesa. Se era polca, não sei. Para
39
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
BERNARDO A.
CARVALHO
Brasília - DF
A POLCA FINLANDESA
nós, ficou sendo, já que alguém nos tinha dito
que era (olhando na internet, vejo que eles
curtem polcas, mazurcas e até um “tango finlandês”...).
O fato é que havia um grupo de
pessoas fazendo uma exibição, vestida com
roupas tradicionais da Finlândia. A grande
maioria era de louros, com aquela pele quase
transparente e muitos olhos azuis. Mas havia
um rapaz mulato, mostrando que alguém da
comunidade não resistiu aos encantos tropicais
e rompeu as barreiras étnicas do lugar...
E ele dançava bem, misturando a ginga brasileira
às evoluções escandinavas.
Assistimos ao show, aguardando o momento
de poder participar.
Lá pelas tantas os “astros” se retiraram e o
salão foi tomado pelo público, com a “polca”
prosseguindo. Era chegada a tão esperada
hora. Enchi o peito de coragem, escolhi uma
garota atraente, me aproximei e perguntei:
“Vamos dançar?”. E a resposta foi curta:
“Não”.
“Levar uma tábua”, como se diz em Minas,
era parte do métier de um candidato a dançarino.
Escolhi outra garota, repeti a pergunta e
recebi a mesma resposta: “Não”.
Disposto a não sair dali sem dançar, aproximei-me
de uma terceira e o ritual foi o mesmo:
“Não”.
“Tenho que mudar de tática”, pensei. Na
quarta tentativa, eu disse: “Você me ensina
a dançar essa música?”. Quem sabe ela tinha
uma certa vocação para professora, e gostaria
de compartilhar sua cultura comigo? Mas a
resposta não variou: “Não”.
Encontrei o José do Rosário e perguntei se ele
tinha tido sucesso. Ele disse que tinha feito
várias tentativas, infrutíferas.
Aos poucos me dei conta de que aquela era
uma comunidade fechada, que via a festa dos
sábados como uma reunião de família. Estranhos
não eram bem-vindos...
Sem saber o que fazer, ficamos os dois parados,
olhando a turma se divertir. Foi quando
vi duas garotas dançando juntas. Aí me veio
uma ideia pouco ortodoxa: “Zé, eu não vou
embora sem dançar esse diabo dessa polca.
Vamos dançar nós dois? Olha ali, duas mulheres
podem, então dois homens também
podem...”
Ele tomou um susto, mas logo abriu um sorriso
e disse: “Vamos”.
Entramos no salão e começamos a deslizar
para lá e para cá, imitando os passos dos outros
pares. Era muito divertido, as pessoas
fingiam que não estavam olhando, mas dava
para ver um rabo de olho quando elas passavam
ao nosso lado. Minha irmã acompanhava
tudo, incrédula.
Dançamos dolentemente, percorrendo todo
o salão, olhando diretamente nos olhos das
pessoas. Mas, como costuma acontecer em
Minas Gerais, ninguém passou recibo de que
estava interessado em olhar.
Muitas voltas depois, agradeci ao Zé pela
dança e exclamei: “Pronto, agora podemos ir
embora. Já dancei a polca finlandesa”.
40
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
A VISITA
CAMILA LOPES
Santa Cruz
do Rio Pardo - SP
Depois de anos, fui visitar minha tia que sempre
morou sozinha em um sítio. Aproveitando
a oportunidade, decidi sanar uma
curiosidade:
— Tia, por que você sempre guardava o espantalho
no meu quarto à noite depois que eu adormecia?
Minha tia me olhou assustada e respondeu:
— Mas eu nunca guardava!
Camila Lopes é
historiadora e
amante de contos
de terror.
Escritora amadora empenhando-se
em pôr medo em
pessoas desavisadas.
41
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
CARLOS VILARINHO
Palmeira
das Missões – RS
LOGO AO SAIR DO SOL
Deixou o menino dormindo
trancou a porta e saiu ainda
era cedo da manhã o sol mal
despontava atravessou a cidade
evitando os pensamentos sem escolher
as ruas as esquinas seguiu sem pestanejar
cega sem considerar as consequências
do que faria sabendo-as seguiu maquinal
sem escolher aclives declives ofegando pelas
calçadas trocando passos apressados
sem olhar para os lados sem perceber as
pessoas a paisagem invisível inviável improvável
na pressa de resolver a vida de
estancar aquela dor de tratar a ferida na
pressa de começar de novo de afastar os
entraves de resolver de resolver de resolver
no último recurso com o último recurso
na derradeira loucura na insanidade
programada e alimentada pelo desespero
aniquilador e frutífero como foi a vida até
ali e caminhou cem mil passos sem saber
quase a correr até chegar até chegar na
hora no momento chegar pela última vez
chegar para sempre sem esperar sem mais
demora sem ajustes e chegar bater na porta
insistir à porta ver a porta entreabrir-
-se e escancarar tantas dores escancarar o
abandono a violência o medo o descaso
a solidão olhou no olho aflito da mulher
desconhecida da mulher que nunca havia
visto pela porta entreaberta e o olho arregalado
da mulher desconhecida já traduzia
a tragédia a mulher desconhecida que
estava à porta à porta de seu desatino à
porta de seu passado à porta de sua dor
incomensurável aquela mulher viu uma
vida se esvair em seu olhar e gritou clamou
pelo homem o homem sem sangue
sem cor sem energia que veio o homem
já morto já entregue à sorte às agruras à
vida sem norte com os olhos de morto que
ainda olhava que ainda flamava sua ira
sua repulsa à vida a vida que não era mais
vida que já fora mas ele nem percebeu que
já estava morto morrera a tempos no tempo
que escapa da percepção na hora da
morte em que se sela a passagem em que
se abre a fenda na sua formalidade na sua
mesura e o tanto de ódio e o tanto de mágoa
e o tanto de dor que trazia a lâmina
afiada na vida ao seu lado tão pesada o
fardo tão duro o dardo a farpa a falha a
feia ferida feita a feitio daquele homenzarrão
que lhe apontou o caminho da morte
que lhe atravessou o caminho da vida e
agora no acerto de contas da mulher ultrajada
da amante esquecida da mãe desprezada
ignota sem face sem nome sem
luz sem lume só fome só medo no meio
do destino no meio do pensamento ele
veio outra vez o desatino a faca amolada
a mola propulsora aguçada que devolve
e fica calada calcada no ventre no ventre
que espirra e afrouxa na hora da morte
42
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
CARLOS VILARINHO
Palmeira
das Missões – RS
LOGO AO SAIR DO SOL
como o tempo demora como demora a
hora e atravessa a vida na travessia da cidade
que a devora e a leva à morte certa a
morte do homenzarrão do varão que não
viu do varão que não vê do varão vazio
no vazio do varão vil a lâmina vaza vaga
e o drama escolhe acolhe a longa espera a
longa sofreguidão a ânsia a razão lacerada
o homem cai encolhido é o começo é
o fim o que era o que será o ato o crime a
ação a defesa a verdade a luz a certeza se
esvai sem vida se vai o corpo que ainda cai
pesado pesando no solo pesado encolhido
ao sol da manhã ao sol escolhido e recém
saído espalhado no sangue da manhã no
sangue da vingança da desforra da demora
o sangue da última hora do último
olhar do único olhar sem medo do horror
no abdômen contraído na lâmina fria o
sangue esquenta escorre e flui do que era
vida do que era dor do que era violência
na palma da mão da mulher que corre outra
vez pelas ruas pelas ruas sem esquinas
sem escolhas sem obstáculos a mulher livre
corre com o sangue nas mãos as vísceras
na visão na versão de que a morte
era a salvação a morte a arte de tornar
definitiva e aplacar a dor sem saída sem
alternativa sem via a mulher corre para o
começo para longe daquele fim para perto
do filho para abraço silencioso do filho
com o sangue na ponta dos dedos aponta
para a vida aponta que a vida tem preço
um preço medonho um preço injusto a
vida é o medo a vida é a eterna solidão é
o peso da lâmina na mão chega corre até
o quarto o menino dorme plácido.
43
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
CAROU ARAÚJO
Belo Horizonte - MG
COMPLEMENTARES
o vermelho brigou com o verde
foi coisa séria, mal do coração
era respingo pra cá, espirro pra lá
quizumba da braba, uma comoção
então o amarelo se cansou
do azul se separou
pediu o desquite
vermelho glorioso comemorou
porém logo a vista se ofuscou
não foi conjuntivite
O que passa é que o pé de limão
Razão dos recentes dissabores
Calhou de daltonismo sofrer
Nada sabia das as cores
Entre primárias e complementares
O grande amor lhe foi dedicado
Se tornou pó que mora no ar
Uma trama triste de escrever
Fratura de coração, mais uma para o dia de hoje.
44
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
CESAR CASELLA
Inhumas - GO
EM CÍRCULOS
Uma bailarina no trapézio
que pisca e sorri para o palhaço.
Um mágico no picadeiro
que olha e acena ao palhaço.
Uma criança na plateia
que gargalha e gargalha do palhaço.
E, ao palhaço,
só resta o suicídio.
Lona verde,
luzes vermelhas e azuis,
piscando,
revezando-se,
a corda, firme,
forma a forca.
Viver é circular em um labirinto.
Cesar Augusto de
Oliveira Casella é
professor na Universidade
Estadual
de Goiás (UEG/Campus Cora
Coralina) e doutorando em
Estudos da Literatura na Universidade
do Estado do Rio de
Janeiro (PPGL/UERJ)
45
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
CRISTIANE CARDOSO
São Paulo - SP
GIRA-GIRA
Rodando sem parar
No gira-gira de mil cores
Do prédio da avó
Olhava para o alto
E as nuvens e aquele azul
E as tantas janelinhas
Deixavam-me tonta, tão tonta...
Sem parar gira a vida
Avós se foram
Pais avós
Irmãos quarentões
Filha que também girou colorida, adulta
E eu... Ainda ando meio tonta
Sei e dói um pouco saber
Que não cresci o tanto
Para ser adulta de verdade.
46
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
UMA COMPANHEIRA ATEMPORAL
D. AKOKÁN
Rio de Janeiro - RJ
D. Akokán é artista
visual e graduanda
em Pintura pela
EBA – UFRJ, desde
2020. Mora no Rio de Janeiro,
RJ desde 2006.
www.instagram.com/dianaisabellopezbotero/
47
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
DADÁ
São José
do Rio Preto - SP
Maria Eduarda
(Dadá) nasceu
em Votuporanga,
interior paulista, em 2003.
Atualmente, reside em São
José do Rio Preto. Fundadora
da Academia Internacional
de Mulheres das Letras e
admin do @abookpercup.
DA LETARGIA ROMÂNTICA
Clarice viria para um café. Antonella
sacudia os pés, cruzados um
sobre o outro no sofá, enquanto
aguardava. O relógio acabara de
anunciar as dez horas, o cheiro de pão de
queijo contagiava toda a casa.Talvez houvesse
algum acidente na pista, causando o
atraso da convidada. Talvez um cachorro
tivesse sido atropelado e todos estivessem
reduzindo a velocidade para olhar.
Lá fora, o vento gelado anunciava a chegada
do outono. A moça estava vestida em
um moletom velho, o cabelo castanho num
rabo de cavalo alto. Bufou, levantando-se.
Parada por um momento, encarou a estante
que cobria a parede da sala. Foi até ela,
passando o indicador pelas lombadas dos
livros, as unhas esmaltadas em azul. A parca
luz matutina, vindo do céu nublado lá
fora, derramava-se pelas capas preguiçosamente;
nuances de sábado. Ela procurava
por Romeu e Julieta, mas contentou-se com
Memórias Póstumas.
A campainha irrompeu pelo cômodo, alegre.
Já não era sem tempo! Apressou-se em
meio à mobília, por medo de deixar a visitante
congelando na soleira. Clarice vestia
jeans e sobretudo. Sua pele de porcelana
estava vermelha nas bochechas e ponta do
nariz; batia os dentes. Vem, menina, entra
logo! Que demora, minha amiga.
Abraçaram-se. Se demoro mais um pouco, a
“A: amor é suspensão (recusas);
MOR: amoooooor é expansãoooooooo
(pooooooooossibilidades).”
— Valdivino Pina da Silva
chuva me pega! Desculpa, deixei você com
fome? A loja... Meu Deus! Não consigo parar
nem para esticar as pernas. Desviou o
olhar para os sapatos, tímida das reclamações.
Mas nunca estive mais feliz! Sorriu.
Está perdoada, está perdoada. Mas acho
bom você ganhar muito dinheiro para me
compensar isso no futuro. Vem, que o café
já deve estar gelado.
A pequena mesa redonda da cozinha, já
acostumada com sua segunda função, servia-lhes
muito bem enquanto bistrô de um
café francês. Aos sábados de manhã, ambas
se transformavam, por algumas horas, em
importantes intelectuais do subúrbio, desvendando
juntas os mistérios da confusão
de viver. O móvel, na verdade, aceitara sua
nova missão a ponto de assumi-la como
primordial, cada semana inspirando-lhes
debates mais profundos.
Bom, no fim eles não ficam juntos, mas
admiro sua coragem. Antonella fechava o
livro, passando os olhos pelos dizerem da
capa. Está elogiando uma traição, Neia?
Não lhe reconheço! Cadê a minha moralista
favorita? Riram.
Eu tenho pensado sobre os limites da moral
no amor...Já ouviu que amar é como estar a
bordo de uma locomotiva desgovernada? E
pior, temo ser o maquinista. Antonella declarou,
baixando sua xícara. É o que vem
ecoando aqui. Levou o indicador à têmpo-
48
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
DADÁ
São José
do Rio Preto - SP
DA LETARGIA ROMÂNTICA
ra. Sabe, não adianta entregar os controles
nas mãos do seu parceiro enquanto grita
histericamente. Nem recorrer ao manual ou
a algum passageiro intrometido. A responsabilidade
é sua, para o bem e para o mal.
Clarice tomou algum tempo para considerar
as palavras da amiga, os olhos amendoados
voltados para cima em sua típica
careta pensativa. Não sei se é a visão ideal,
foi sua resposta. Assim você toma toda a
responsabilidade para você e todas as consequências
são culpa sua. Não parece saudável.
Os dois precisam colaborar para a
coisa fluir, eu acho. Quando eu estava com
o Marcos, tinha um pensamento mais ou
menos assim, e veja aonde isso me levou!
Acabamos ambos em uma delegacia e talvez
as feridas nunca se curem totalmente.
Jamais se esforce por um egoísta! Não seja
cega como eu.
Ah, claro, isso não significa rastejar por ninguém.
Não me entenda mal. Antonella arregalou
os olhos, sinalizando negativamente
com a cabeça. Estou falando de esforços
mútuos para driblar problemas externos,
não de implorar por amor. Acho que, num
geral, as pessoas levam a ideia de alma gêmea
tão a sério que não estão dispostas a
contrariar nada por uma relação. São românticos
preguiçosos, desistem quando algum
mexeriqueiro desaprova a união.
Talvez eu entenda o seu ponto, sim, Clarice
anuiu. Se ambas as partes pensassem assim,
certamente teríamos um relacionamento
utópico. Mas acho improvável. Por aí afora,
é difícil construir uma relação sólida o
suficiente para se acreditar tanto no valor
dela.
Antonella retomou a palavra com um sorriso
sarcástico: É curioso ver tanta gente chorando
quando Brás e Virgília fazem tudo
do mais sórdido para estarem juntos. Para
esses leitores, contrariar convenções sociais
por amor é algo incomum e digno de lágrimas.
Mas não é raro um romance ser reprovado
por terceiros. E aí, você faz o quê?
Desiste da pessoa que ama?
Clarice riu, metade do pão de queijo entre
os dedos finos. Não é raro?! A sociedade
tem alguma outra função senão julgar os
passos alheios? E como assuntos do coração
atiçam-na! São seus favoritos; ela os
devora! Sim, estou com você nessa.
É nesse ponto onde esbarro na moral. O ser
humano precisa ser mais que moral. Precisa
ser sincero e intenso. Não enganar a ninguém,
nem a si mesmo. Especialmente sobre
o amor. Fez uma pausa. Enfim, a culpa
não é só das circunstâncias, é das pessoas
também. Se decidem ou não lutar contra
elas. Por favor, amemos os lutadores, só e
sempre os lutadores.
Clarice ergueu sua xícara, risonha. A vocês,
hipócritas de coração partido, meus sinceros
pêsames por tudo que estão perdendo!
É mais divertido desse lado. E a nós, para
sermos sempre maquinistas tresloucadas!
Amar intensamente ou não amar.
49
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
DAIANA FRANCO
NOGUEIRA
Santa Catarina
SINAL
Era meu último dia de férias e eu
estava decidido a aproveitá-lo
intensamente.
Nem bem o sol despontara e eu
já me preparava para uma vigorosa caminhada,
obedecendo a recomendações
médicas. Vinha cumprindo fielmente esta
rotina de exercícios durante todos os dias
de descanso, com a satisfação redobrada
de passear pelo bairro enquanto tudo ainda
era orvalho e sono. Gostava especialmente
de me demorar explorando um pequeno
parque, diminuindo o passo para
examinar as plantas, as árvores, as tocas
de animais desconhecidos e, sobretudo, as
trilhas que levavam à paisagem deslumbrante
de uma pequena praia escondida
ao fundo da vegetação. Era ali que me
recompensava ao final do esforço diário.
No caminho, encontrava resquícios da civilização
recente – tocos de cigarro, papeis
de bala, preservativos, seringas –, sempre
me surpreendendo com a capacidade destrutiva
dos homens e com a paciência resignada
da natureza de tudo absorver e
transformar.
Cheguei ao parque naquela hora preciosa
em que o céu muda de tom, despindo azul
para vestir amarelo. Não havia ninguém
além de mim e da revoada de pássaros
madrugadores que anunciavam, com estridência,
o início do novo dia. Fazia frio,
mas sabia que em poucos minutos, energizado
pelas passadas rápidas e pelo jorro
de endorfina, eu recobraria o calor. Dei
uma, duas, três voltas em torno da pista
de jogging e então enxerguei, embrenhado
no mato, ao fim de uma passagem de
difícil acesso, um cobertor puído e amarfanhado,
largado de qualquer jeito, que
com absoluta certeza não estava ali no dia
anterior.
Curioso que sou, desviei da rota e me
aproximei. Para a minha surpresa, o pano
se mexia discretamente. Imaginei logo: é
bicho. Alguém prendeu um bicho neste
trapo. Procurei no entorno uma varinha,
um pedaço de madeira, e encontrei um galho
longo o suficiente para erguer o tecido
com segurança. Cuidadosamente, espetei
uma ponta e a levantei, a tempo de ver
que não havia animal algum ali dentro,
mas sim uma criança recém-nascida, fraca,
suja e coberta de formigas.
Levei um susto e derrubei desajeitadamente
a coberta. Meu Deus, um bebê,
largado ali sozinho, no sereno, sabe lá há
quantas horas! Olhei ao redor, desesperado,
mas não havia ainda gente acordada
ou carros passando, nada nem ninguém a
quem gritar por socorro. Lancei-me sobre
o embrulho, abri, examinei rapidamente
e vi que o tempo era pouco. A criança,
uma menina, gemia baixo, sofrendo. Res-
50
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
DAIANA FRANCO
NOGUEIRA
Santa Catarina
SINAL
piração curta, pele gelada, muitas picadas
espalhadas. Peguei-a no colo, correndo
em disparada para casa, já antecipando
os próximos movimentos (chave do carro,
hospital), mas a certa altura, quando
parei para vê-la mais uma vez, encontrei
seus olhos vidrados, a boca aberta paralisando
o último balido.
Agora sou eu quem está gemendo e chorando,
sacudindo de leve o pequeno pacote.
Choro mais alto, mas me sinto empurrado
e não entendo o que está acontecendo.
Desperto, puxando o ar com força: era
um pesadelo. Minha esposa delicadamente
chama meu nome. Acorde, já passou.
Foi só um sonho ruim.
Fico o dia inteiro me sentindo mal, assaltado
por lembranças turvas. Desisto da
caminhada por uns dias, até que a memória
faça sua parte e engavete o assunto.
Apenas uma semana depois, já de imerso
na rotina intensa de trabalho e com
a má impressão sepultada pelo peso dos
dias, crio coragem para voltar a andar na
rua. Meus passos me levam novamente
ao parque, mas agora o sol vai alto e a
grama floresce de gente; não vejo perigo.
Caminho com receio, espreitando os
cantos, mas nem sinal do cobertor. Vou
ganhando confiança e, por fim, estou convencido
de que tudo não passou de um
delírio. “Como sou besta! Quanto tempo
perdido!”, penso, enquanto acho graça
do meu medo supersticioso. Quando,
porém, estou prestes a ir embora, avisto
uma pessoa maltrapilha – uma mulher –
se arrastando com dificuldade justamente
para a entrada da trilha do sonho. Sem
pensar, corro até lá. Toco seu ombro e ela
se vira para mim. Vejo que está grávida
e ofegante, imunda e coberta de escaras.
Segura com as duas mãos a barriga imensa
e me observa com atenção. De repente,
abre um sorriso de reconhecimento. Quase
sem forças, me diz:
– Você veio mesmo...
51
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
DANÍZIO DORNELES
Canguçu - RS
PESCA À DOR
Pedro era peixe com nome de pedra. Devoto dos remos e igarapés, rezava em
silêncio a prece das águas. O ruído da areia riscando caminhos no casco do
barco. Partia e ficava. O curso do rio e o caminho do rancho, dois mundos
distintos de suor e promessa.
Seguia com légua de sol e um aceno de olhos miúdos por trás da janela. Não enxergava
as mãos enrugadas apertando o terço contra o peito vazio. Um suspiro inerte, um
beijo suspenso, os lábios ariscos — lambaris ligeiros — que mal se tocavam. Vida seca
na correnteza do tempo, a esperança do pão às voltas do estio.
Irmão dos cardumes, sabia os mistérios de luas e ventos. As linhas de espera, tarrafas
singelas, a dança certeira no sol dos pesqueiros. Pedro luzia aos raios da tarde. Queimavam
fogueiras, singravam anzóis na margem de pedra que a água esculpia.
O peixe mordia a isca. Vida em escamas que antecede a morte. Morte que sacia a vida.
Nos lábios sentia o gosto de ferro, a astúcia da fisga, a luta incessante, um corpo prateado
se debatendo em redemoinho. O destino na linha estendida, no rito final.
Pedro era peixe que bebia lágrima. Puxava das águas a si mesmo quando o caniço
vergava, quando a boia corria, quando a lua era boa, quando o barco pesava, quando
a noite sorria — e no rancho outros olhos se enchiam de rio.
Habitante do espaço
fluido das
fronteiras, viveu
até hoje entre o
RS e o Uruguay, entre o campo
e a vila, entre o Pampa e a
Mata Atlântica, entre o português
e o español. Estuda
Letras na UNILA.
52
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
DAVID LEITE
Jandira – SP
ALICE
Fazia 20 anos que deixou aquele lugar. No entanto, ainda queimado em sua retina
estava a imagem de Alice, sempre antes quieta, de dedo em riste apontando a porta,
em um primeiro ultimato. Tua princesa havia se tornado, ali, um monstro das mágoas
reunidas do casal. Sem o que fazer, tomou o pouco que tinha e caiu no mundo. Desde
então jamais retornou, sequer procurou saber daquela casa e de quem restou ali. Quando a
idade avançou, achou que seria tempo o suficiente para remir aquela culpa. Queria ao menos
rever sua filha. Certamente crescida e bem sucedida, quem sabe casada e com filhos, e ainda
menos certo, perdoando o pai alcóolatra. Chegou na soleira da casa, em evidente sinal de
abandono. A porta continuava sendo a mesma, mas a tinta estava gasta. Janelas quebradas.
Ninguém deveria morar ali. Bateu a porta. Esperou. A ansiedade cresceu com a espera. Se elas
tivessem se mudado, jamais as encontraria de novo. Novo bater na porta. Ninguém responde.
Esses anos todos tentando trabalhar a culpa, esses anos todos ansioso para, ao menos, entrar
em contato e saber como iam, caíram em suas costas como uma bomba. Você reencontra o
que perde, não o que abandona, dizia uma frase em algum lugar. Mas não era um abandono
covarde. Era um abandono necessário, pensava consigo, para liberta-las dele mesmo. Se justificava
desse modo, ao menos.
A ansiedade toma pontas de desespero. Teria que lidar com isso o resto de sua vida. Jamais
reencontraria a sua filha.
Pega o primeiro ônibus para ir embora. Senta-se no fundo dele, no fundo dele próprio, no
fundo de tudo. Amaldiçoou sua abstemia naquele momento. Precisava de um trago para
amainar a angústia como em muito tempo não queria. Olhando para o seu redor, repentinamente,
reconhece um semblante. A mesma cara séria da última vez. Era ela. Era Alice. Embevecido
pela emoção, sentindo-se salvo de seu crime, salta do assento e explode para a moça.
- Alice!! Minha filha – lágrimas rolam de seus olhos – Não acredito que lhe encontrei....
A moça retorna a manifestação do homem com surpresa e medo. Não o conhecia, não conhecia
Alice.
- Filha....perdão...me perdoe, por favor...
A moça fica cada vez mais constrangida e sem reação. O cobrador, percebendo a situação e o
estado alterado do homem, se adianta. Pega-o pelo braço e começa a empurra-lo para a saída,
enquanto o motorista para o ônibus.
- Não!! Espere...eu preciso que ela me desculpe...
- Senhor, está atrapalhando a viagem...saia.... – O cobrador o joga para fora, ainda que ele
tentasse retornar.
O ônibus segue viagem. O homem, cansado e aflito, se joga em um banco. Com a cabeça
baixa...derrotado.
Uma moça senta-se ao seu lado, aguardando o ônibus seguinte. O homem ergue um pouco o
olhar e, confuso, nota repentinamente. A mesma cara séria de antes. Era ela....
53
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
FOTOPOEMA
DÉLLIO REIS
MM AQUINO
Belém - PA
Fotografia
João Canto
Natural de Óbidos, Pará
Reside em Belém, Pará
Professor e fotógrafo
Texto
Déllio Reis MM Aquino'
Natural de Óbidos
Reside em Belém
54
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
CONHECER-ME MAR
DIANA MAGALHÃES
Bacharel em Cinema
e Graduanda em
Artes Visuais. Tem
experiência em diferentes
áreas do audiovisual,
escreve, é atriz, arte educadora
e apaixonada por experimentações
artísticas de
maneira geral.
55
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
EDGAR BORGES
Boa Vista – RR
Edgar Borges é escritor
e jornalista.
Lançou 2 livros de
microcontos e tem
textos de prosa e poesia em
publicações impressas e eletrônicas.
Articula o grupo de
autores roraimenses Coletivo
Caimbé.
ORGANIZADO, ORGANIZADINHO
“Minha ambição é prejudicada pela
preguiça”, disse Bukowski. A minha
também. Pela preguiça e pela
desorganização. Melhor, pela não
organização (que pode vir a ser o mesmo
ou talvez não). É que sempre fui de ir
adiando ao máximo a resolução das coisas
que davam ou dariam dor de cabeça.
Em certa época da vida lembro que meu
orgulho era afirmar ter a tranquilidade
das pessoas sem um pinto para dar água.
Olhando em retrospecto, vejo que só me
enganava, mas era boa essa ilusão.
Depois de certa idade e acontecimentos,
não deu mais para ficar adiando tudo e
esperando que o novo dia resolvesse por
mim as questões da vida, sobretudo por
elas irem se acumulando. Decidi então,
sem expor os detalhes de quanto sofri
até chegar neste ato, começar a anotar as
pendências.
Em papéis soltos, agendas físicas ou blocos
digitais de anotação comecei a registrar
as demandas e a estabelecer prazos.
Virei o pseudo-organizadozinho.
Muitas demandas continuam sendo anotadas
e reanotadas semana após semana
(algumas têm mais de ano à espera de um
milagre, para ser franco).
De outras dou conta logo. Quer dizer, não
assim, logo, logo...mas fecho o débito e
consigo passar para outras.
Neste momento, no qual escrevo sobre
preguiça, demandas, prazos e anotações,
estou com vários papéis ao meu lado esquerdo,
na minha mesa de trabalho. Tem
lembretes da pesquisa que devo fazer para
encaminhar um doutorado ao calendário
de exercícios em família que montei para
tirar meu povo do sedentarismo abusivo.
Há rabiscos (não queiram ver minha letra.
Podem assustar-se.) sobre metas como escritor,
projetos culturais, atos prosaicos
como lembrar de limpar os vidros do
carro antes que a poeira os faça ceder e
várias lembranças sobre as reformas das
reformas que fizemos na casa.
Contei aqui e são mais de 20 linhas de
lembretes. A meta é me livrar de pelo menos
70% dessas demandas nos próximos
quatro dias, antes de chegar o domingo.
O problema é que a preguiça prejudica
minhas ambições, o calor ajuda nisso e
nem sempre tenho energia para lembrar
de avançar sobre as fileiras inimigas das
coisas atrasadas.
Ainda bem que anoto quase tudo o que
tenho para fazer. Só devo começar a lembrar-me
mais de agir ao ver essas anotações.
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
EDNA DOMENICA
Florianópolis - SC
Edna Domenica é
bacharel em Letras,
Pedagogia e Psicologia,
psicodramatista,
mestre em Educação.
Autora de crônicas, poemas
e contos.
ANTÍFONA, DE SÓCRATES
Esse discurso das redes sociais durante a pandemia precisa urgente de vacina! Está
infectado!
Veja bem: fiz um teste! Perguntei se alguém já tinha lido a Antífona, de Sócrates,
porque queria mensurar quão xingada eu seria. E também a presença de robôs (que
são cruéis, mas com nível superior nas funções concentração e informação).
Mas me decepcionei muito! Os robôs a serviço de um dos dois (céu e inferno do ângulo do
usuário) não estavam concentrados em detectar ironias.
Mas coloquei-me uma máxima de sobrevivência: “se não rende pra pesquisa tem que render
pro riso”.
Alguém respondeu:
– Antífona é aquele diálogo cantado que tem na missa!
Daí postei:
– Quando a missa era em latim o celebrante dizia “Vacinares Covides!”. E os fiéis respondiam:
“Amém!”. Tinha também: “conhecetis a ti mesmus/ amém”.
– As missas em latim eram lindas! – disse Alguém Um. Lembro bem dessa “conhece-te a ti
mesmo/ amém”. Mas não lembro do “Vacinares...”. Vou perguntar pro meu primo que era
coroinha. Ele é muito bom nisso ...
– O Sócrates é o jogador de futebol. Quem não conhece? – disse Alguém Dois.
– Orra meu! Isso de “conhece-te a ti mesmo” parece coisa de boiola... Daqueles que ficam se
apalpando... É pecado de gente que não lê Bíblia! ⸺ disse Alguém Três.
– Pronto! Postei o link pra vocês lerem sobre o Sócrates, filósofo de tal importância que seu
pensamento é o marco divisório entre os que vieram antes dele – os pré socráticos – e os que
vieram depois – os socráticos, a exemplo de Platão. ⸺ disse Alguém Quatro.
– Num falei? Sempre quem faz bandalheira acaba ficando famoso! Aposto que ele vai acabar
sendo chamado pra ir no Big Brother Brasil! – retornou Alguém Três.
Percebendo que o picadeiro estava quente e que era hora de iniciar a função, retornei à inicial:
– E então moçada, alguém já leu a Antífona, de Sócrates?
– Li sim! Inclusive tem um filme na plataforma televisiva A Tal que está passando o documentário
O Jovem Sócrates – disse Alguém Três.
– Já é quase meia noite, vou desligar para o necessário repouso. Mas antes quero lhes dizer
que caíram numa fake. Não existe nenhuma Antífona escrita por Sócrates. Existe a Antígona,
de Sófocles. Se tivessem lido, compreenderiam o lado trágico de perder um ente querido e
não poder proporcionar-lhe as devidas homenagens na sua despedida. O culto à memória de
alguém que amo é necessário para minha sobrevivência. Vocês não conseguem avaliar isso!?
– Adeus Polinice, meu amado companheiro: marido, pai e irmão.
57
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
EILEEN WOLFF
Novo Hamburgo - RS
NO FIM DAS HISTÓRIAS, O OCEANO
a garota fez uma canoa.
ela ouviu dizer que a distância era apenas um estado mental.
ela remou e ouviu a canção das ondas do outro lado,
viu a tênue linha dividindo o céu azul e o mar.
a garota olhou para as nuvens e viu um desenho novo,
ela ouviu dizer que a solidão era apenas um estado mental.
ela deitou e ouviu a canção das sereias já próximas,
viu a tênue linha entre o aqui e o futuro.
a garota ergueu o corpo e viu o mar calmo,
ela ouviu dizer que às vezes nem tudo se encaixa,
ela fechou os olhos e ouviu a canção do vento,
viu novamente o sorriso que tanto procurava.
a garota deu de ombros e viu a tempestade chegar,
ela ouviu dizer que havia dois silêncios, um antes e o outro depois,
ela pôs uma mensagem numa garrafa e ouviu o
[som do seu próprio lamento,
sentiu pela única e última vez a paz de existir e logo após desaparecer.
"ouvi dizer que as estrelas-do-mar se regeneram, eu espero
[conseguir também."
58
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
EVANDRO VALENTIM
DE MELO
Brasília - DF
Evandro Valentim.
Escritor brasiliense,
detém prêmios
nas categorias: micro
conto, crônica, conto e
livro. Seu mais recente livro
de literatura infanto-juvenil
chama-se Caapuã (Telucazu,
2021).
REFLEXÕES E OS TÊNIS BRANCOS
“Meu salário não permite luxos”, dizia
Ernesto à filharada. Naquele ano,
contudo, pela primeira vez, o caçula
Epaminondas ganhou um par novo de
tênis. Brancos. Emocionado, o menino experimentou
os tênis e, ao mesmo tempo, imensa
alegria, pois até então, só herdava calçados de
segunda mão, que já não mais cabiam nos pés
dos irmãos mais velhos.
Sempre que caminhava, Epaminondas percorria
o trajeto cabisbaixo. Humildade? Não,
observava a alvura dos novos tênis. Graças ao
luzidio calçado, nasceu-lhe consciência cívica,
passou a reclamar da falta de calçamento que
prestasse nas ruas.
De manhã cedo, quando o pai o acordava
para comprar pão, ele nem mais achava ruim.
Levantava-se e calçava os imaculados tênis.
Ia à padaria e, rápido como quem furta, estava
de volta. Caso pudesse, flutuaria, para não
obscurecer o brilho de seu tesouro. Como não
detinha tal poder, tão logo chegava em casa,
ia ao tanque e os limpava para retirar quaisquer
resquícios de poeira.
Sábado. Dormir até mais tarde é quase tradição.
Enquanto muitos permaneciam na cama
para se recuperar do cansaço semanal acumulado,
Ernesto e Epaminondas, bem cedo, já
haviam ido à feira fazer o milagre da multiplicação
do salário paterno, a fim de preencher o
vazio da geladeira e da despensa. Em seguida,
foram a uma loja de molduras, Ernesto necessitava
alguns produtos ali comercializados.
Voltaram para casa. Epaminondas ajudou a
guardar as compras. Depois, foi ‘lagartear’
ao sol, em frente de sua casa. Sentou-se em
um toco. Não havia sombra, era a sobra da
59
árvore cortada. Ela não o protegia dos raios
solares do astro-rei. Nem achou ruim, os tênis
novos refletiam a luz e até tornavam a manhã
mais clara.
Enquanto Epaminondas se regozijava com o
efeito da bela luminosidade, rememorava o
desconfortável episódio há pouco presenciado
na loja de molduras. Uma das vendedoras
atendia elegante senhora, já idosa, que parecia
bastante insatisfeita.
Ao mesmo tempo que Ernesto conversava
com vendedores, a certa distância, seu filho
observava a senhora tão bem vestida já àquela
hora da manhã, a manifestar crescente
indignação. Reclamava e ameaçava a jovem
de procurar, pessoalmente, o proprietário da
loja, seu conhecido. A jovem atendente se esforçava
para respeitar a tirânica regra de que
o cliente sempre tem razão.
Depois de uma eternidade, a cliente sentenciou:
— Darei apenas mais uma chance, caso o serviço
não fique bom, esperem pelas consequências,
não serão nada agradáveis. Eu prometo!
— Tenho certeza que a senhora ficará satisfei-
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
EVANDRO VALENTIM
DE MELO
Brasília - DF
REFLEXÕES E OS TÊNIS BRANCOS
ta – disse a repreendida vendedora.
Um terceiro cliente, que também acompanhava
a cena, comentou em voz alta para que a
senhora escutasse, antes de sair:
— São Jorge nos proteja! A casa grande acordou
de mau humor hoje!
Bastou a senhora se retirar da loja, a jovem
vendedora caiu em pranto. Mesmo se afastando
da área de atendimento, todos lhe ouviram
os soluços até então contidos sob hercúleo
esforço.
Solidários, clientes e demais vendedores procuraram
consolá-la, mas a enxurrada de lágrimas
se prolongou ainda por muito tempo.
Epaminondas misturava a ingênua e infantil
compreensão de seus verdes anos com um quê
de raiva daquela senhora. Para ele, fora fácil,
só de olhar as roupas, o penteado e as joias,
saber que a irritada senhora devia ter bastante
dinheiro. Pensava ele: “como uma pessoa
rica pode ser assim? Deve morar ‘num’ baita
casarão, viajar ‘pro’ estrangeiro sempre que
quer, comer do bom e do melhor...”.
O brilho fulgurante do novo calçado atraiu a
atenção do filósofo mirim, que concluiu: “a
vida é muito é boa, isso sim! Quando eu for
adulto, não serei como aquela senhora. Serei
uma pessoa ‘do bem’. Se alguém me fizer raiva,
serei compreensivo, perdoarei”.
Dois ‘amigos’ aproximaram-se de Epaminondas.
Dissimulada, de longe a dupla fora atraída
pelo ofuscante esplendor aos pés do menino.
Era costume entre a molecada ‘batizar’
novos calçados como aquele.
Antes que pudesse evitar, os tênis de Epaminondas,
outrora brancos, foram pisoteados e
perderam a lividez. Ele partiu para a briga.
60
Os dois ‘malfeitores’ também partiram, mas
em grande velocidade para escapar da vítima,
agora transformada em algoz.
Brusca freada evitou o atropelamento dos
moleques endiabrados que, repentina e irresponsavelmente,
atravessaram a via, quando
um carrão importado por lá trafegava. Ao
volante, o chofer contou até dez para não
abrir o vidro e xingá-los. Não ousaria fazê-lo
por saber que sua patroa, no banco de trás, o
demitiria. Educada na Suíça, ela não tolerava
palavrões.
Pudesse ver o interior do veículo, Epaminondas
reconheceria a distinta e mau humorada
senhora, que há pouco torturara a jovem vendedora
da loja de molduras, a ponto de a fazer
chorar.
Os tênis, imundos pelo ‘batismo’, clamavam
vingança. Epaminondas atirava pedras enquanto
corria. Errou os alvos todas as vezes.
Mesmo fracos de tanto gargalhar, os meninos
conseguiram escapar da ira desproporcional
do dono dos tênis.
Frustrado, Epaminondas voltou para casa.
Esvaíra-se o encantoa pela brancura dos tênis.
Nem mesmo procurou limpar o par de
tênis depois do ocorrido.
Dias depois, os três meninos e muitos outros,
riam juntos do batismo e da raiva desmedida
de Epaminondas. Encontravam-se prestes a
iniciar a partida de futebol no campinho de
barro batido. O primeiro duelo em que Epaminondas
entraria calçado com seus ex-tênis
brancos. O desejo dele, agora, era marcar um
golaço e oferecer à torcida imaginária de seu
time de coração.
Foi dada a partida...
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
EXISTO
Amo
logo existo
com minha fé e
com meu rito
com a bênção das águas
e com meu grito
FABIANA KRETZER
Penso
logo insisto
no beijo,
no beijo
na vibração cósmica
dos nossos átomos
Ata-me
com teu abraço
e com teu tempo
Penso
logo insisto
no beijo,
no beijo
na vibração cósmica
dos nossos átomos
Ata-me
em teus versos lascivos
cheios de vírgulas e
agoras
61
Amo
logo existo...
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
DOMINGO
O domingo era meu abrigo no inverno frio.
Você me olhou e sorriu,
você me beijou e sumiu.
Tarde solitária em um domingo cheio,
o bolo
o prato
a fatia
e o recheio.
FÁBIO GOMES
Ferraz de Vasconcelos - SP
Era sobremesa, Prado.
Chocolate e morango.
Era sobremesa.
Fechos os olhos e enxergo,
eu viajo em lembranças que não quero recordar.
Teu lábio, beijo e boca.
Vento e praia,
alto mar.
Poeta de tuas coxas, poucas
gordas pernas, ternura e paixão.
Ah se eu pudesse eu mudaria o tempo
e que o tempo mudaria meu destino.
Prender-te
ou perder-me.
Ator e produtor Teatral
em formação
pela CIA das
Artes e estudante
de Letras pela Universidade
de Mogi das Cruzes. Paulistano,
hoje com 24 anos e escrevendo
desde os 16.
Giro em vão desses ponteiros
música, susto e violino.
O som do apito e o menino que canta.
meu retorno,
esperança.
Não queria sobrevoar sem chão.
Me apavorei,
te assustei.
Abri a porta da casa e não via ninguém.
Tira a mão daqui eu quero que durma bem.
O sábado já foi embora,
o domingo vem.
O sábado já foi embora,
e o domingo vem.
62
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
SOM
FALAVINHA
Piraquara - Pr
A escuridão
O frio e a umidade
A solidão
Que tudo isto causa
Quando a voz se cala
Resta-lhe apenas
Ouvir o som
Em apenas uma escala
Nascido em Piraquara,
região
metropolitana
de Curitiba, foi
pequeno morar na capital,
cresceu e se tornou professor,
e através de sua prática
busca trazer aos alunos uma
formação ampla e integral.
63
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
FERNANDA LUCENA
Mãe. Multiartista.
Bacharela
Interdisciplinar
em
Ciência e Tecnologia. Pós
graduada em Marketing Digital.
Estudante de Lic. em
Geografia. Cria do Território
de Identidade Bacia do
Rio Grande, Bahia.
SONHOCÍDIO
Outro dia matei um sonho
Na minha cabeça era um caminho aberto
Uma possibilidade encantadora
Parecendo fácil de dar certo
Já tinha porquê, o que, como e pra quem
Mas eu dei a quem não merecia
E matei porque ouvi que já não me pertencia.
Meu sonho fênix renasceu das cinzas
E achei que precisava de orientação
Então, eu dei a quem não quis ouvir
Depois matei, por achar que recebi um não.
Das mesmas cinzas o sonho ressurgiu
Como estava lindo!
Vi alguém precisando de um
Então, eu dei.
Mas meu sonho não interessou
E ali mesmo eu lhe matei.
Parece que cheguei na terra
De finalmente plantar meu sonho
Pego a semente e ponho ali
Mas já que falei, vou ter que ouvir.
Que ele é pequeno, insignificante,
Que em um ano já terá morrido
Tem nem porque, então, ter renascido.
Miro certa na testa dele
Prestes a matar mais uma vez
Mas percebo que sou a mão,
Sou a testa, sou o sonho
E sou a arma.
Então, componho
Esses versos pra me enxergar.
Um pedaço de mim morreu no samba
Cada vez que um sonho meu morreu
O presente é a chave
O passado é a porta
Quando abri vi meus pedaços
Estava em mim, mas já estava morta.
Cantarei esperança sobre os meus ossos.
64
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
FERNANDA NARA
MAURICIO
São Paulo - SP
AS OPERÁRIAS
65
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
FLÁVIA REDMAN
Manaus - AM
POEMA DA REJEIÇÃO
Pobre mulher
Tenho pena de ti
Não te cansas de tentar
Esse amor me dar?
Teus lamentos, não aguento
Não vê que tuas lágrimas não me convencem?
Não vou ceder aos teus anseios
O teu amor, pobre mulher
É um presente que eu não quero receber
E essas cartas mal escritas,
De rimas mal feitas
E estrofes desalinhadas
Um tédio sem fim!
Quer saber, mulher
Esqueçe-te de mim!
Esse amor que no peito carregas
Amor ilimitado
Exacerbado
Incalculado
Mulher, leva pra longe!
Pra um lugar onde eu não possa encontrar
Mesmo que um dia, porventura, eu volte a amar
Pelo estrôgeno
Que carregas de um fogo que não se apaga
O leito de morte será teu companheiro
E essa esperança insistente, mata mulher!
Sofre calada e espera o indigno
Essa paixão em teu peito, mulher
É um espírito maligno
Teu amor é um passaro agoureiro
Cantando lamúrias em minha janela
Afoga esse delírio de paixão
Engole a decepção
Te lanças nessa sorte
E aceita o teu destino
Pelo sangue antagônico que corre em tuas veias
Rejeição amarga
Que fere, maltrata
Aceita mulher
Aceita o teu mal
Crônico
Daltônico
Esquisofrênico
Patogênico
Não quero nada contigo
Que história é essa de eu ser teu abrigo?
Escrava és desse amor platônico
Que não tem fim e não encontra começo
Como idiota
É assim que te comporta
Criança mimada
Infantil, debil mental
À beira da morte
Teus ovários se contorcem
A paixão é uma dádiva
Uma pluma suave
Que acalma, afaga
Abraça, dilata
Mas tem um preço
De amar e ser rejeitada
66
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
INSTANTE SECRETO DE UMA CHEGADA
GEISLANE LOPES
Ouricuri - PE
Geislane Lopes é
natural de Ouricuri
PE, estudante
de artes visuais
desde 2018. Interessa-se pelas
diferentes possibilidades
de leituras sobre a vida que
a arte propicia.
67
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
GERALDO MAGELA
DE FARIA
Belo Horizonte - MG
INDECISÃO
Comprou formicida e guaraná, balas
para o revólver. Ligar o gás e
fechar a casa, outra opção. Resolveu
pelo tiro. Faltava escolher
o dia. Hesitava. Avocando para si o direito,
o destino interveio. Em uma manhã, o infarto.
Fulminante como o tiro que não houve.
Aposentado, formado
em Letras,
reside em Belo
Horizonte (MG).
68
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
GERALDO RAMIERE
Planaltina - DF
TÃO LEVE QUE CORTA
I
Ao entrar na barbearia
Fui logo dizendo
Apare os sentimentos
Mas não muito
E tenha cuidado
Eles estão bem afiados
II
Amolei a saudade na dureza da insônia
Para assassinar seu cheiro
Só que ele não morre, não morre
Não importa quantas vezes o golpeie
Assim, resta-me apenas
Retalhar este olhar sucessivamente
Em pedaços cada vez menores
Até que eu não consiga vê-lo
III
O toque ferido fere
IV
Para abrir os dias
É preciso lâminas usadas
E de certa prática
Não adquirida
Sexta, sábado e feriados
São bem fáceis
Pela moleza das carnes
Quartas e quintas
Com suas partes rígidas
Já são mais difíceis
Segundas e terças
Para seus corpos duros
É necessário violência
Os domingos são os piores
Cascudos por fora e por dentro
São quase impossíveis
De se abrir
V
Guarde o álbum de cicatrizes
Elas não interessam mais
Mesmo que talhemos os caminhos
Nós não chegaremos antes
VI
Voou com suas asas de vidro
E antes que chegasse às alturas
Em queda decaiu
No chão e sobre o corpo
Cacos pareciam estrelas
E de algum modo sentiu
Ter encontrado, enfim, o céu
Que tanto procurou
VII
Cortes sempre apareceram em mim
A maioria nunca consegui fechar
Antes escondia, até que aprendi
A usar o sangue que escorre
Para preencher páginas brancas
Paredes limpas e outros vazios
Engraçado é perceber que existem
Aqueles que ainda me aplaudem
Pelo meu simples ato de sangrar
VIII
O amor também troca de pele
Não por natureza ou escolha
E sim quando é rasgado
O que fica para trás
É apenas pele morta
Que não merece lamento algum.
69
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
GIL TOBIAS
GBILÉ
Em uma terra distante
do além mar existia um
vilarejo de agricultores
chamado Ireti onde vivia
uma linda e esperta menina
chamada Gbilé.
Ela morava com o seu pai Omi
em um pequeno sítio, na qual
eles cultivavam inhame, batata-doce,
criavam um pequeno
rebanho de cabras e algumas
galinhas.
Todas as amanhã ela ajudava o
seu pai na plantação e no cuidar
dos animais da propriedade.
Nos finais de semana iam à
feira vender os produtos que
produziam no sítio como: queijo e leite
de cabra, inhame, batata-doce e ovos de
galinha.
Gbilé estava feliz com a sua vida, mas, ela
tinha um sonho em era aprender a dançar
o “Ijó Idan”, uma dança que acontecia
durante do Ikore nla o festival das boas
colheitas que acontecia no seu vilarejo.
A festança começava próximo ao final
da época das colheitas durando três dias
onde todos dançam, comem e se divertem.
A fogueira é acesa no centro do vilarejo,
os moradores e visitantes festejam
a fatura daquele ano, se caso as colheitas
não tivessem sido tão boas comemorava
mesmo assim na intenção de trazer mais
prosperidade no próximo ano.
Era uma festança com muita fartura e animação.
70
Quando a festa chegava no auge os adultos
e principalmente os mais velhos se
preparavam para dançar o Ijó Idan. Escutavam-se
o toque dos tambores e uma
grande roda era formada próximo à fogueira.
Batiam-se palmas e cantavam as
cantigas ao som dos tambores que ficavam
cada vez mais vibrantes.
No centro da roda, casais dançavam e giravam,
sob a luz da lua seus olhos brilhavam
o bem viver de estar ali. O chão tremia
no som das pisadas na terra batida.
A energia do Ijó Idan emanava na terra
e nas pessoas subindo ao céu, formando
uma de arco íris que se espalhava por todos
os lugares por todos os cantos.
Os jovens ficaram sentados de longe observando,
mas, Gbilé tinha certeza que
um dia seria ela naquela roda.
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
GIL TOBIAS
GBILÉ
Ao final do ano a anciã do vilarejo de
Gbilé escolhiam jovens que tivessem para
aprender o Ijó Idan podendo um dia chegar
a se tornar anciã ou ancião detector
dos ensinamentos do Ijó Idan. Quando
chegou o grande dia, vinham jovens de
vários vilarejos vizinhos se reunindo na
grande tenda onde morava a anciã e cada
um tinha que mostrar as suas habilidades
para dançar.
Gbilé estava se preparando para ir na casa
da anciã quando seu pai correu para dentro
de casa trazendo consigo uma caixa de
madeira toda decorada com a descrição:
“Fun omobinrin mi”. A caixa era um presente
que a mãe de Gbilé havia deixado,
nesse momento ela se lembrou da história
de como seus pais haviam se apaixonado.
Aiyé, a mãe de Gilé, era uma das melhores
dançarinas do vilarejo Ireti. Ela tinha
muitos pretendentes, porém Omi nunca
desistiu de conquistá-la. E em uma bela
noite de festança ele criou coragem se
aproximando dela, daí então desde aquele
dia Omi e Aiyé nunca mais se separaram,
nascendo desse amor a pequena Gbilé.
Ao abrir a caixa viu uma linda Capulana
que pertencia a sua mãe para dançar o Ijo
Idan.
Pai e filha se abraçaram emocionados.
Chegando na tenda da anciã um por um
os jovens iam se apresentando e finalmente
chegou a vez de Gbilé. sua forma
de dançar amor, força e beleza. Os seus
braços se moviam leves como o bater de
asas de uma borboleta, seus pés batiam na
terra como a força de um pilão captando
a energia da natureza e a sua voz soava
como o vento soprando nas folhas de um
Baobá. Seu pai viu em sua filha o reflexo
da sua amada esposa Aiyé. Era tão lindo
ouvi-la e vê-la que anciã se encantou. Gbilé
fora escolhida.
Emocionada, ela correu para abraçar o
pai e a felicidade tomou conta do coração
dos dois.
E assim Gbilé pode realizar seu sonho de
participar todos os anos da Festança Ikore
nla o festival das boas colheitas. E com
o passar dos anos Gbilé se tornou anciã
do conhecimento da dança Ijó Idan.
E esse conhecimento foi se passando, passando,
passando, até chegar aqui no Brasil.
Mas isso é uma outra história.
71
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
GLEIDSTON ALIS
Betim - MG
Gleidston Alis é
doutor em estudos
literários
pela UFMG, professor,
escritor e cantautor,
com algumas obras literárias
e musicais publicadas e premiadas,
além de publicações
no âmbito acadêmico.
É HORA DE ACORDAR
Os primeiros raios de um sol que aconchega a carne ainda a descolar-se
de um sonho úmido começam a surgir, pintando a noite
com as manias coloridas da manhã...
É hora de acordar.
Os pássaros trinam sobre as árvores...
É hora de acordar.
O galo já cantou faz tempo, nos campos onde ainda galos há...
É hora de acordar.
O cheiro de café fresco escapole pelas frestas de janelas e portas mal cerradas...
É hora de acordar.
O cobertor se descuidou ao chão enquanto tu dormias...
É hora de acordar.
Nos tantos lares, as donas de casa se reiteram na cotidiana faina...
É hora de acordar.
Nas fábricas, os operários reiniciam o que nunca terminaram nem jamais
terminarão, suas ações-sempre-meio...
É hora de acordar.
Nos supermercados, padarias, bares e até nos bancos logo mais, os cidadãos
de bens gozam a cortesia tão simpática dos sorrisos que os recepcionam,
tendo espantado em árdua luta a inconveniência dos bocejos ainda
de madrugadinha...
É hora de acordar.
Nos escritórios como públicos e tão privados, nos quais se decide um por
todos, todos comuns, segue o trabalho como de costume, o de sempre...
É hora de acordar.
72
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
GUSTAVO ABREU
Porto Velho-RO
Gustavo Abreu é
doutor em Geografia
pela
UFPR, tendo
feito estágio de doutorado
na França. Mora na região
Norte do país e é autor do
livro “Na Beira das Matas:
poemas diversos” disponível
na Amazon.
SEMENTES
Eu sou um rio de águas frias
Olho de jacaré
Mata fechada,
rapé
Somos índios da mesma aldeia
História de sereia
Iansã na areia
Menino na beira do rio
Eu sou dor de amigo
Flechada no inimigo
Estrada que vai ao longe
Somos monges
Viagens,
do extremo Oriente
às matas do Sul.
Ayahuasca e a onça pintada
no verde das folhas
no brilho da lua.
Nas meninas tomando banho
ao luar...
Somos sementes de árvores gigantes
Incendiadas,
e perseguidas
Estamos sempre prontas a brotar.
73
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
OUITÊ
HELMO DA
GAMA SANTOS
Inventei a mim mesmo
enquanto artista há 4
anos, deixando para
trás uma vida que não
me cabia. Comecei a viajar e
viver como nômade, aprendendo
aquarela e vendendo
minhas pinturas.
74
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
HERA DE JESUS
Maputo - Moçambique
MAFALALA IN SOLO
Caminho silenciosa pelas artérias da Mafalala,
um mundo submerso na miséria
um subúrbio no coração urbano
Me perco nos rostos felizes
e ingênuos de cada infante
Pouco compreendo a esperança que ainda reluz
naqueles rostos cravados de rugas pousados na varanda
esmigalhando o tempo na sua lerda cachimbada
Amanhã...
teremos uma Mafalala melhor
sobrevoa esta nuvenzinha
em algumas mentes brilhantes
Involuntariamente minha retina cansada,
em flash's rápidos, memórias para a vida toda
vai captando pouco daquele chão imundo, e inundado
das casas de lata, e dos rostos serenos na sua plena felicidade
Hera de Jesus poetisa
moçambicana.
Coautora de
duas antologias,
Soletras Esse Verso (2019) e
“Fique Em Casa” (2020).
Facebook: Hera de Jesus
Instagram: @hera.dejesus
Onde se foram os filhos da Mafalala?
Deixando-a só
Numa solidão profunda, dorida e secular
Celebramos-te Mafalala
coração suburbano
onde o mundo vem beijar-te
sem olhar as tuas feridas
Há vida naquela Mafalala
no crepitar da lenha ardendo
em cada quintal improvisado
nas capulanas garridas
75
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
HERA DE JESUS
Maputo - Moçambique
MAFALALA IN SOLO
abraçadas aos corpos das mulheres
Nos rostos alegres das crianças
saltitando, alvoroçadas
Nos rostos enrugados
dos anciãos
sentados à varanda
rencontando as tramóias e sortes da vida
Há vida
há esperança
nos inúmeros rostos
num só coração
in solo
Glossário:
Mafalala = bairro da cidade de Maputo; o nome surge provavelmente de uma dança de origem macua
que se chama M’falala, praticada outrora por gente vinda da Ilha de Moçambique. E as pessoas quando
se queriam referir a este local, em Ronga, a língua de Maputo, diziam Ka Mafalala (lugar onde se dança
M’falala).
Foram oriundas deste lugar grandes figuras como Fany Mpfumo, José Craveirinha, o futebolista Eusébio
e os presidentes Samora Machel e Joaquim Chissano, bem como Noémia de Sousa. Aliás, o bairro
de Mafalala esteve na génese do movimento que apadrinhou o folclore e os ritmos tradicionais originando
a “marrabenta”, dança de origens urbanas. Actualmente este bairro continua a ser viveiro de
jovens promessas.
No tempo colonial, a Mafalala representava a linha fronteiriça entre a cidade “de cimento” e a de
“madeira e zinco”, onde viviam quer os “assimilados” quer o povo comum. Os seus moradores eram
interditos de construir casas de alvenaria, de maneira que eles construíam as suas residências em madeira
e zinco, o que as tornava extremamente quentes no verão. Quando as suas condições económicas o
permitiam, os moradores da Mafalala erguiam paredes de tijolos por dentro das suas residências, assim
não podiam ser vistos pelos portugueses, o que tornava as suas casas mais acolhedoras, mais frias e,
naturalmente, mais sólidas.] Matteo Angius
76
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
HAIKAI
HERCULANO FLORES
Belém - PA
Rompa urbes da mente
sinta a essência avó da flora
Qual nexo dos bens?
Natural de Óbidos,
Pará, residente
em Belém,
escreve em
verso e prosa, admirador de
vários poetas e compositores
brasileiros e estrangeiros
e agora ganha coragem para
apresentar seus escritos.
77
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
HITALLO DALSOTO
Porto Alegre - RS
Hitallo queria ser
astronauta, mas
se tornou escritor,
além de preguiçoso
assumido e apaixonado
por pizza. É autor do
romance "Essa Visita Está
Adiantada” e do conto "A
Maravilhosa Feira Universal".
O PROFETA DO FIM DA RUA
Me disse certa vez que dinheiro
entraria na minha casa. Não só
fiquei feliz por receber tal profecia,
como me veio a alegria
de encontrar a nota de dez reais na grama do
meu quintal. Ignorei o fato de ter ouvido ruídos
durante a noite, pois sabendo de quem se
tratava, não pude deixar de sorrir diante da
nota encontrada.
Também contou para Suzana que um gato entraria
em sua vida. Ela passou desodorante,
escovou os dentes e tomou um banho decente
para esperar. Então, numa quarta-feira, o
profeta em pessoa a entregou um filhote de
gato abandonado que precisava urgente de
cuidados. Suzana, desolada e ao mesmo tempo
bem-humorada por ter caído na pegadinha,
aceitou seu destino como mãe do felino.
Aquele que recebeu a sorte que Suzana ansiava
foi o Antônio do mercadinho. Há alguns
anos, ele ouviu do profeta que o amor
que tanto esperou logo cruzaria sua porta. A
cada cliente que atendia soltava um gracejo
diferente, na esperança de que fosse a amada
prometida. E olha, quem diria, aquele que
apresentou a moça da profecia foi o próprio
profeta, com os cumprimentos de “vocês
muito combinam”. Assim teve início o romance,
resultando em três filhos e no empate
de infidelidade ¬– dois pontos para cada. De
todo modo, ficaram juntos, pois assim fora
profetizado.
Certa vez, em plena praça e a todo pulmão,
o profeta gritou para multidão que a morte
espreitava o bairro. Alguém que lá morava
não veria o nascer de maio. Profecia essa feita
na segunda semana de abril. As palavras ditas
abertamente instalaram o terror nos corações
de todos nós.
Não havia manhã que não acordássemos com
receio de colocar os pés para fora de casa. O
perigo podia estar a dois passos depois do
portão, ou talvez no expediente do trabalho.
Quem sabe no caminho para padaria, ou no
abraço de alguém que se confia?
Os amigos que saiam toda noite cantando
cantigas boêmias, se trancavam em casa na
segurança da solidão. Os amantes que ansiavam
pelas noites de carícia, se resguardavam
para o mês das noivas. As senhoras que tudo
sabiam do cotidiano, não cumpriram mais
sua função de bisbilhotar a rotina alheia. O
bairro, tão agitado, jazia em tal estado que a
morte desafiava cada um que tentasse a sorte.
Foram duas semanas de clausura, medo e tortura.
Ninguém nunca viu tamanho recolhimento.
O silêncio massacrava dia e noite, até
os pássaros debochavam dos humanos amedrontados.
Na última manhã de abril, o sol iluminou
todo o bairro. Mesmo assim, ninguém saiu
de casa. Embora o dia brilhasse tão belo, a
escuridão que assombrava o pensamento de
todos não podia ser mais densa. Uma alma
corajosa caminhou lá para fora e gritou que
tudo estava bem. Estavam todos a salvo, pois
a vítima da profecia fora o próprio profeta. O
alívio foi doloroso, pois todos nós profetizamos
que, com a morte de figura tão querida,
o bairro não teria mais emoções intensas e o
futuro passaria a ser um mistério na neblina.
78
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
IAN ANDERSON
GOMES DIAS
Manhuaçu - MG
Nascido em 2002
em Manhuaçu,
Minas Gerais,
Ian Anderson
Gomes Dias sempre foi apaixonado
pela leitura. Geralmente
um garoto taciturno
e solitário, ele escondia um
segredo: ele amava escrever.
O GALO QUE CANTAVA À MEIA-NOITE
À meia-noite, cantava um galo.
Se estava perto, ou longe, da minha casa,
Eu não sabia.
Só sabia que conseguia ouvir seu canto,
Tal qual a mesmérica canção das sereias.
Só que, ao invés de doce, amargava.
Era como arranhar quadro negro com as
[unhas,
Choro de criança, violino desafinado.
Não suportava ouvir aquele horror
[cacofônico.
Tremia, os calafrios servindo de aviso tardio
Da chegada daquele som angustiante.
Não cante, galo da meia-noite!
Eu imploro, eu choro, eu grito,
Ouço-lhe o quanto quiser, ao meio-dia, às
[três da tarde, às cinco da manhã,
Mas agora não.
Agora, à meia-noite que você tanto gosta,
Causa-me asco seu cantar, ojeriza,
Nojo, agonia, raiva, fúria, medo, melancolia,
Tudo que há de ruim no mundo,
Desperta com seus cacarejos horrendos!
Sempre que ouvia, e eu sempre ouvia,
Se por azar ou muito boa audição, não sei,
Jogava-me na cama, querendo dormir,
Talvez para fugir,
Da inevitável chegada da manhã,
E
Do
A
Ma
Nhã.
Pois você, galo maléfico,
É um arauto
Do fim das festas do pijama,
Da aproximação das aulas,
Do fechamento dos bares,
Da morte das estrelas,
E de tantos outros auspícios malignos.
Cale-se, profeta profano,
Que sua canção pertence ao raiar do dia,
À chegada da inimiga,
E não à meia-noite,
Pois nela, ainda não estou pronto.
79
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
IRACI JOSÉ MARIN
Caxias do Sul - RS
INFÂNCIA
Pedro falou para sua mãe:
- Vou buscar jabuticabas lá no morro.
- Tenha cuidado.
Ele fez ‘sim’ com a cabeça e foi.
Uns dias antes tinha ido com o Onofre, mas
as frutas ainda não estavam maduras.
- Tem que vir outro dia – falou Onofre.
- Está bem – respondeu o menino.
Aprendera o caminho e agora estava ali de
novo.
Parado no alto do morro, olhou a paisagem
colonial. Sentiu o imenso silêncio do dia. Lá
embaixo, o grande rio parecia imóvel. Olhar
o rio lhe dava um prazer gostoso. Aquela
imensidão de água entre as duas tiras de mato
das margens parecia se esconder atrás de outro
morro, no fim do horizonte. Mas o rio seguia,
rasgando a terra, costurando enorme e
infindável linha.
As águas do rio enchiam os olhos do menino.
Passado um instante neste olhar distante, se
pôs a procurar a jabuticabeira, caminhando
pela plantação de milho do pai. Devia estar
por ali, na entrada do mato.
Finalmente encontrou-a e leve alegria bateu
em seu peito. Olhou o tronco e os galhos carregados
de frutas pretas e a imaginação levou-
-o a compará-las com a cor da pele do amigo.
Experimentou algumas, antes de colher e colocar
na sacola listrada que levara. Rasgava
com os dentes a casca macia das frutas e a
polpa enchia sua boca de prazer. Estavam maduras,
gostosas, suculentas.
Nisto, ouviu o trinado de um pássaro. Olhou
80
para o alto e não o encontrou.
Passou a colher as frutinhas com enorme satisfação.
Em seguida, o trinado recomeçou
e se tornou insistente. O menino parou de
colher e respondeu com um assobio fraco.
Fez-se completo silêncio. Parecia um mundo
vazio. Mas não. Era o mundo da sua vida enfeitada
de imaginação.
Pedro continuou a procurar o pássaro por entre
os galhos da árvore, esquecido de repente
das jabuticabas. Saiu de debaixo dela e foi
para o
meio do
milharal. Então pode
vê-lo no galho mais alto.
Era pequeno e colorido.
Assobiou de novo.
O pássaro respondeu:
- Olá!
Surpreso, o menino silenciou. Sem ação
ou pensamentos, ficou olhando para o
pássaro empoleirado na jabuticabeira.
- Eu vi você por aqui estes dias...
- Você é um pássaro... mas fala?
- Sim.
- Como pode?
- Eu sou assim. Não sei como foi... talvez
uma fada... não sei... acho nasci assim.
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
IRACI JOSÉ MARIN
Caxias do Sul - RS
INFÂNCIA
- Minha mãe não vai acreditar.
- Não faz mal. Importa você acreditar.
Agora Pedro apenas olhava. Não tinha o que
dizer. O pássaro deu um pequeno voo e pousou
num galho mais próximo do menino.
- Eu vi você aqui outro dia. Mas não estava
sozinho.
O menino ouvia, sem acreditar.
- Você deve vir aqui mais vezes...
O menino ouvia e continuava sem acreditar.
O pássaro trinou novamente e, antes de voar,
falou:
- Não demora pra voltar.
Pedro ficou a observar o gorjeio dele por sobre
o milharal. Depois, ele voou para o interior
da mata.
O menino se pôs a colher as frutas.
Quando chegou em casa com as jabuticabas,
os irmãos fizeram festa. A mãe também apareceu.
- Mãe, eu vi um pássaro lá no morro e conversei
com ele.
- O quê?
- Isto. Eu conversei com um passarinho pequeno
e todo colorido que estava lá no pé de
jabuticaba.
- Que invenção é esta agora, meu filho?!
- É verdade, mãe. Ele até disse que me viu
quando fui lá com o Onofre.
- Isto é só imaginação tua. Dias atrás falou
que tinha ouvido um cachorro cantar... O que
mais vai inventar? – disse, retornando para a
cozinha.
O menino olhou ao seu redor e tudo estava
igual.
Então pensou que a palavra ‘imaginação’
existia para explicar o mundo das crianças.
Montou em seu cavalo de pau e saiu a galope
estrada afora.
81
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ITA YANARA KARAJÁ
Aldeia Pankararu - PE
Sou Ita Yanara Karajá,
tenho 18 anos, nasci
em Brasília, e vivo em
Pernambuco desde
os 7 anos na Aldeia Pankararu.
Sou indígena, também
descendente dos Kamaiurá
do Xingu e dos Karajás, do
Mato Grosso.
MINHA RUA SEM CALÇADA
Vive um cotidiano rotineiro
Simples e verdadeiro
Rua pacata e encantada
Sem qualquer preocupação
Crianças brincam de pés no chão
No horizonte da estrada
Ao soar o meio-dia
A rua fica vazia
Tem sabor de feijoada
Quando o sol beija a serra
A pequena rua deserta
Volta a ficar lotada
Com conversas do dia a dia
As resenhas das senhorinhas
A pequena rua fica badalada
Na escuridão da madrugada
onde barulho é quase nada
A pequena rua dorme sossegada
E ao raiar do dia
Volta toda a alegria
Na minha rua sem calçada.
82
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
JAIANE ALVES
Iguatu - CE
TRAVESSIA
Transbordo vazios.
Nesse desaguar
faço enchente de vários nadas.
Talvez “Nada!” seja mesmo um bom conselho, Lygia!
Um descaminho líquido
a me arrastar de volta à casa...
Água a marulhar
me convidando à sua dança,
água a ser meu leito
a esperar que eu me derrame
abrindo-me um
braço
d’água
para
um
rio
Yanomami.
Maria Gabriela
Cardoso, 23
anos, nascida
no Rio Grande
do Sul, atualmente morando
em Santa Catarina. Apaixonada
por todas as formas
de arte, mas principalmente
as que envolvem letras.
83
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
RUBRO
JANILDES ALMEIDA
CHAGAS MAGNO
Bahia
84
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
JEFERSON LORENZATO
São Paulo - SP
LIBERDADE DO CORPO
Jeferson Lorenzato é quadrinista
e ilustrador, publica na
mídia brasileira e europeia,
atualiza semanalmente blog
Ilustrea e tem publicado HQ
de estreia 'Como Existências'
pela Chiado Books.
85
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
JOÃO PEDRO CAMPOS
Belo Horizonte - MG
TORRENTE
A
fumaça da exaustão do ônibus metropolitano se confunde
com a fumaça exaurida por meu peito exausto.
Exausto de solidão.
De buscar a todo momento por um motivo.
De me manter. De me manter buscando.
Não deveria ser necessário um motivo para se buscar. Nem uma busca
por um motivo.
Mas cá estou eu. Lamuriando. Lamuriado.
Na infinda concessão da busca por motivos para me manter.
Como um graveto em uma torrente, apenas sigo.
Ignorante ao destino. Ignorado pelos deuses.
Apenas sigo.
Sou o João Pedro. Estudo
engenharia, mas
mesmo tendendo
para as áreas exatas,
ainda sou apaixonado por
poesia. De todos os tipos.
Músico e poeta nas horas
vagas, tenho como hobby o
violão e a pena.
86
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
JOÃO RICARDO DIAS
São Paulo - SP
Escritor, jornalista,
diretor de vídeos
e palestrante, são
algumas das personas
de João Ricardo Dias.
Nascido em São Paulo, em
1981, o autor tem 4 livros
publicados, sendo 3 de poesia
e 1 de ficção
O FOGO EM MEUS DEDOS
O
fogo em meus dedos
como um cigarro, prestes a se apagar,
queima – vorazmente – a lembrança que tenho de ti
alimento meus sonhos com as raízes
de mil céus envelhecidos na madeira febril
que constrói, sem refinamento algum, minha máscara de tristeza
penso – como nunca antes em minha vida
ousei pensar – nos degraus aviltados da escuridão
que me toma o corpo
e
na rigidez de meus lábios pronunciando palavras ao vazio
– uma música toca em algum lugar do universo
despejando em meu corpo
um rio triste feito da matéria escura das sombras –
a quietude incerta da sua voz
ainda reina na melancolia quebrada de meu olhar
sua presença já tomou de todo a substância fria
de minhas desilusões
recuo ao uísque,
mas nem o álcool pode me atender
nessa prisão de euforia
sobreposta ao jejum indiferente à alma
levanto-me perante meus sonhos
e os aprisiono
as palavras que teria dito a ti
tranco-as atrás dos dentes
e só um vento de hesitação e desespero
sopra em minha boca
mas se um dia a indiferença dos astros
a trouxer para mim
me fecharei em ti e serei você
em seu ventre em seu beijo em sua pele
serei único
eu e ti
serei você em minhas mãos em meu colo
serei você
perdida no interior profundo de mim.
87
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
JONATAN MAGELLA
Nova Iguaçu - RJ
Nasceu em Paracambi/RJ
em
1990. É professor
de História
e escreve ficção.
PARA CALAR PERSONAGENS ESCANDALOSOS
No princípio era o verbo. Mentira.
No princípio eram grunhidos,
sussurros; mas, principalmente...
gritos. [...] Na pré-história, o grito
era uma arma, uma estratégia de sobrevivência:
quem elevava sua voz a tons altos
amedrontava predadores. [...] Hoje, quem
grita, é chamado de louco. Principalmente as
mulheres. Se você for um roteirista da novela
das sete da Globo e quiser retratar uma mulher
irritada, coloque uns gritos na boca dela.
O público curte. O primeiro problema do seu
roteiro é que as mulheres não são histéricas
na vida real; o segundo problema é que você
não escreve pra Globo. [...] Gritar, hoje, não
soa bem - literalmente. [...] A história da civilização
humana é a história da domesticação
do grito. [...] Bem, agora estou aqui em minha
casa (silenciosa) tentando escrever. Odeio
gritos, mas não sou o centro do mundo, então
não posso dizer que meu ódio deva ser o
padrão (embora eu possa odiar, porque odiar
de maneira direcionada me faz muito bem).
Escrevo a partir de um ambiente silencioso,
isso não pode ser desprezado. Mas o que vocês
não sabem é que, dentro da minha cabeça,
tem sempre uma gritaria danada. [...] Acho
que a pré-história, quando acabou, se mudou
para a minha cabeça. [...] Meus personagens,
quando ainda estão na imaginação, parecem
viver no Paleolítico: querem ganhar a vez no
grito. [...] Mas a história que eu gostaria de
contar é a seguinte: Com a crise, uma madame
precisou ir ao Mercadão de Madureira
e andou de trem pela primeira vez na vida.
Chocou-a, para além da sujeira e da falta de
conforto dos vagões, a pobreza dos vendedores
ambulantes. Uma velhinha, um cego
e uma criança, aos berros, tentando vender
produtos infinitamente variados. Alho. Pilha.
Pente fino. Fone de ouvido. Cotonete. Eles
gritavam! Mas, com o passar das estações,
a madame notou que os vendedores conseguiam
ganhar algum dinheiro. Ainda assim
compadeceu-se das pobres criaturinhas. Até
que um rapaz de vinte e poucos anos entrou
no vagão carregando um isopor enorme. Dos
idosos, das crianças e dos cegos, tudo bem, vá
lá sentir pena, mas desse aí não, é um homem
na flor da idade, pensou a madame. Contudo,
ao tentar anunciar seus picolés, saiu da
boca do homem na flor da idade apenas um
sussurro. Ele, por mais que se esforçasse, que
sua artéria da garganta quase explodisse, não
era ouvido. Estava rouco. E sem voz e sem
grito, nosso jovem ambulante era presa fácil
aos outros vendedores ambulantes do trem.
Fim. [...] Gostaria que os pré-históricos da
minha mente pegassem uma rinite e perdessem
a voz, feito o ambulante, mas os meus
personagens são incaláveis e nunca adoecem.
[...] Nesses casos, existem duas saídas para o
problema. A primeira é um pouco mais fácil:
chama-se escrever; a segunda coisa que você
pode fazer para calar seus personagens - e que
envolve maior complexidade - seria morrer.
Referência bibliográfica:
MAGELLA, Jonatan. Para calar personagens
escandalosos. Editora Rouco. Rio de Janeiro,
2021.
88
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
JULIANA MORONI
Ibaté - SP
Bacharela, mestra
(UNESP) e doutora
(UERJ) em filosofia.
Interessada em
filosofia, psicologia, pintura
abstrata e Folk art, fotografias
em preto e branco, poesia
intimista e ideias não
dogmáticas.
NORMALIDADE AINDA NÃO RESTAURADA
Caminho pela cidade de ruas vazias,
céu noturno,
a lua vigia o silêncio de vidas trancadas
em redomas de tijolos
com medo do dia seguinte.
Percorro casas abandonadas
por antigos moradores esgotados do nada,
foram embora levando os sonhos
e os pesadelos de perdas em tempos
de reinados de poderes sórdidos.
Olho para trás,
um cão perdido,
caminha devagar,
atento aos meus passos,
desejando abrigo,
receando o ataque do suposto humano inimigo.
Faço um sinal amistoso,
ele caminha e para,
ainda receoso,
prefere seguir por outra rua,
escolhendo a solidão
ao invés de apostar na sorte
de ir na direção de um humano
que poderia ser igual a tantos outros: impiedoso.
Sinto pena do animal solitário,
dentro das casas há lobos aprisionados,
desejando a liberdade,
alguns arriscam,
brincam com a morte,
desprezam os enlutados,
desafiam a sorte.
Econtro um grupo de pessoas,
bêbadas e sorridentes,
vieram de outro mundo,
paralelo ao atual presente.
Escolho outra rua,
a manhã se aproxima,
na padaria da esquina,
o cheiro de pão aquece a esperança
de uma normalidade ainda não restaurada,
de um cotidiano perdido em outra época,
onde tínhamos o futuro,
os apertos de mãos
e os sorrisos,
em um tempo em que viver era óbvio.
89
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
JÚLIO OLIVEIRA NETO
Passo Fundo - RS
PRÁ NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DA FLOR
E
por falar em COVID, a coqueluche
que andava na dela, meio sumida,
resolveu ser solidária à velha insônia
de Dalton Trevisan e deu as caras
num acesso às três da madrugada. Suspendeu
o netinho magriço de um solavanco só, botando
a avó para correr porta afora.
Em meio à ventania da rua, a velha bem que
tentou, mas só conseguiu abaixar a saia depois
de revelar que o fogo selvagem continua
se alastrando por debaixo dos panos. Passou
por um mendigo que parecia dormir. Souberam
depois que ele morreu. Dizem que foi o
frio; mais provável infarto. Muita gente não
sabe que o inverno costuma ser uma estação
perigosa para o coração. Partido ou convulsionado,
pouco importa.
Pouco importa, tanto faz. O bom é que já não
enterramos nossos mortos ao longo das estradas,
fora dos muros da cidade. Também não
permitimos que repousem, ou melhor, que sejam
incomodados em seu repouso pelo tacão
dos calçados no chão das igrejas. Repelimos a
ideia de que a sua ossada à mostra se preste a
revestir paredes.
Entre a barbárie romana e a medieval, nós,
a civilização iluminada que pela primeira vez
alcançou os píncaros do bom senso e inteligência,
temos solução mais prática. Fora com
o escandaloso memento mori das escuras catedrais
e com o degredo perpétuo ao cidadão
defunto da idade clássica: o mendigo será devidamente
acondicionado na capa de invisibilidade
que o levará direto ao necrotério. Isso,
bem acomodado dentro do saco preto, e assim
podemos seguir confiantes, com a sujeira
debaixo do tapete, longe das nossas vistas, e
também do coração.
Sendo bem práticos, que tal pensar na cremação
obrigatória em favor da saúde pública?
Colírio para os olhos. Higiene e ecologia
numa tacada só. Nenhum germe acima de
1000ºC. Depois, um mínimo de resíduos facilmente
restituíveis à Mãe Terra, e la nave
va. Eis o sonho de uma humanidade inaudita,
sem cadáveres pelos caminhos, abaixo de
nossos pés ou acima de nossas cabeças. Xô,
assombração!
Mas vamos com calma: e a velha? Vem chegando.
Entra esbaforida pela porta do pronto-socorro.
Felizmente para a tempo de não
esmagar com o pé a última flor de sangue que
o tuberculoso deixou cair no piso branco. O
brabo é que antes de acontecer a morte empesta
tudo, o raio do rastro que fica por onde
ela passa.
É, vai ser difícil se livrar dela tão cedo. Eu,
você, tantos outros, teremos todos de conviver
com ela até o fim, menos aquele ali.
- Aquele quem? – você pergunta.
O cidadão parado na esquina, de braços cruzados.
Ontem levou uma picada. Agora não
sabe dizer se foi agulha, mosca azul ou dente
de vampiro. Desde então paira sobre ele a certeza
inquebrantável de que já não morrerá.
90
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
FOTOPOEMA
KÁTIA SURREAL
Niterói - RJ
O urubu
escolheu
o galho
humano
Kátia Surreal é
autora do livro
de poesias
eróticas Gradações
hiperbólicas
(2021), membro da
Academia Independente de
Letras (AIL), formada em
Letras (UFRJ, UFF e Uerj),
professora e militante da
CMI.
91
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
LUA PINKHASOVNA
Porto Belo - SC
LÉXICO DOS SENTIDOS
Cansei de regras
Teoremas
Cansei das ênclises
Próclises
E sempre detestei as mesóclises
Querer-te-ei?
Como poderia querer-te no futuro?
Ter você agora seria o único presente mais que perfeito aceito
[pelas minhas linhas
Preciso criar um novo tempo pro pretérito
Um que eu possa usar em qualquer texto
E sirva para todos os momentos com você
Eu quero rasgar o verbo
Expulsar todas as minhas hipérboles
Como alforria
Quero gritar interjeições
Sem analogias
Quero a palavra nua
E sentir todos os paradoxos da minha existência saindo pela boca
Maria Gabriela
Cardoso,
23
anos, gaúcha
atualmente
morando em SC. Apaixonada
pelas letras. Acredita
fortemente que a arte pode mudar
a vida das pessoas.
Não quero o uso correto do idioma
Quero gaguejar
Me lambuzar nos erros
E delirar entre as palavras tão livres expressadas
Quero cuspir palavrões
Buscar o sentido pejorativo
Escrever fora das linhas
Rabiscar tudo escrito
E quem sabe rasgar a folha
Quero me libertar da minha forma humana
Amar outras espécies
92
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
LUA PINKHASOVNA
Porto Belo - SC
LÉXICO DOS SENTIDOS
Afiar minhas presas
Usar minha prosopopeia
E me transformar em quem
talvez seja quem de fato sou
Eu quero a sinestesia
Aprender
Prender
A tua língua em mim
E jamais usar amar no verbo oculto
Eu quero abusar dos neologismos
E encontrar a palavra exata que sirva como palíndromo
Que mesmo que você leia de outras direções, o sentido será o mesmo
Mas antes, não se esqueça de respeitar meus parágrafos
Pois são eles que definem o começo
das minhas histórias
Então, engula minhas reticências
Não pause nas vírgulas
Saboreie cada silêncio
E você estará sentido o verdadeiro gosto do meu léxico
E o que vem depois serão palavras sinceras
sem pontos finais.
93
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
LUCIANO REIS
Sintra - Portugal
GRATIDÃO
A
esta distância da minha vida
eu sinto que tudo o que existiu
em mim foi como se de um
nada se tratasse. Tudo foi feito
e vivido de uma forma apressada, sem a
devida convicção e certeza de quem era
em cada espaço, em cada tempo e em
cada momento do aqui e agora.
Não fui capaz de ir ao mais íntimo de
cada pensamento, de cada olhar, de cada
observação, de cada força de sentir e de
estar.
Aqui, neste lugar, neste espaço/tempo que
me leva ao encontro do baú da minha
memória, das muitas memórias que vivi e
arquivei, quero extrair desse acervo informações
autobiográficas que me permitem
analisar o ser humano que sou hoje.
Pego nas palavras, nas muitas palavras
que meditei, que coloquei em várias resmas
de papel e as saboreei com a chuva
de ideias, com a força e verdade do muito
que senti, que amei, que transformei; que
sofri e até inventei, dentro do disciplinado
artífice das palavras que escrevi e que
experienciei.
As palavras têm-me acompanhado desde
os meus quinze anos, como se elas fossem
o meu respirar, a razão principal da minha
vida; a verdade de todas as verdades
e o caminho que me pode levar até a uma
felicidade capaz de acelerar o ritmo e a
sonoridade da beleza humana.
O “Mestre das Palavras” fala-vos agora
de Lisboa, desta capital que muito amo.
Desde muito cedo me recebeu como se de
um filho verdadeiro se tratasse. Começou
por me dar o seu colo; por me limpar as
lágrimas nos momentos de dor, de perda e
do muito sofrimento e desespero que vivi
em muitos momentos da minha vida.
Esta cidade foi o meu porto de abrigo; a
escola da vida e a escola académica; a fonte
da minha criatividade, dos meus valores,
dos meus amigos e a semente daquilo
que penso, que sinto, bem como a oportunidade
de poder ver mais além. Nesta
cidade tive paz, tive amor e oportunidades
únicas de atingir objetivos que, noutras
circunstâncias, nunca seria capaz de
concretizar.
Medito agora na voz interior que me tem
acompanhado, com toda a força e rigor,
ao longo da minha existência, tentando,
sempre que possível, dificultar aquilo que
verdadeiramente quero e determino para
o meu caminho. Tem sido uma batalha
difícil de ganhar. No entanto penso que
sempre fui capaz de ir ao encontro dessa
voz, nunca permitindo que ela ultrapasse
barreiras de controle e poder em mim
mesmo. Aprender a coabitar com a voz
interior, foi também, graças aos muitos
saberes/saberes que adquiri em vários es-
94
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
LUCIANO REIS
Sintra - Portugal
GRATIDÃO
paços desta cidade que admiro e à qual
estou grato.
Paro!
Respiro fundo para me preparar para novas
memórias e meditações. Quero com
este texto transmitir o que de mais verdadeiro
e intenso está dentro de mim. Quero
transmitir em palavras os muitos pensamentos
e reflexões que criei ao longo deste
meu percurso existencial. O estar só, muitas
vezes, foi, sem sombra para dúvidas, o
melhor que me pode acontecer. O estar só
permitiu-me outras visualizações e outros
voos. Foi outro respirar, outro olhar e até
outra sobrevivência de mim mesmo.
Foi como se tivesse:
- Noção profunda do meu nascimento.
- Conhecimento de outras realidades e de
outros sentimentos e emoções.
- Permissão de ir por outros caminhos,
mais condizentes como ADN da minha
dimensão de ser e de estar.
- Noção dos pensamentos agrestes e como
eles se podem transformar em boas energias
racionais, emocionais e espirituais.
- Informação das minhas dúvidas, dos
meus medos, das minhas revoltas, mas
também dos meus sonhos, das minhas
preces, da minha gratidão e até da grandeza
da minha abundância.
- Reconhecimento do poder da minha
mente; do acesso e fruição da liberdade,
do amor, do saber/saber constante, do sacrifício,
do sofrimento, do benefício de ter
noites e dias; de ter um permanente aqui
e agora; do planeamento e realização de
cada objetivo e cada viagem existencial.
Termino este modesto texto com a aceitação
da pequenez do meu ser; das dúvidas
constantes que tenho tido ao longo do
meu caminho; do cair e do reerguer contínuo,
porque acredito que o aperfeiçoamento
e a sabedoria nos vem pelas muitas
oportunidades da experienciação.
95
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MALVINA DE
CASTRO ROSA
Porto Alegre - RS
Sou escritora. Em 2013
publiquei "As Loucas
Aventuras da Guria
Maluca.
Já tive alguns blogs, atualmente
me dedico ao
bomdiasociedademachista.
blogspot.com
QUANDO O SONO BATE
Ganhei de aniversário uma mi
band (aqueles reloginhos que
medem tudo: passos, calorias,
distância percorrida, frequência
cardíaca). Amei! Tenho relógio o que
eu adoro, não gosto de olhar as horas no
celular. Humilho todo mundo aqui em
casa com os vários mil passos que dou,
sem contar a quilometragem é claro. Isso
tudo só olhando para o pulso e liberando
minhas informações
para o
mundo.
Uma coisa
muito louca
que a mi band
me fez mensurar
foi o tão
pouco que durmo.
É melhor
nem falar em
números, para
não assustar.
Sono profundo,
então, é bem mais escasso do que
profundo. Deve fazer uns 8 anos e meio
(idade da minha filha mais velha) que eu
não sei o que é dormir uma noite inteira.
Para a gente ver como o amor de mãe é
uma coisa bem doida. Não bastava uma
sem me deixar dormir direito e eu quis ter
outra. Elas me expõem a privação de sono
há mais de 8 anos e eu ainda assim as amo
incondicionalmente.
O pior (ou melhor, não sei bem) é que eu
sempre adorei dormir e durmo com facilidade
em qualquer lugar. Durmo sentada.
Durmo no cinema, independente do filme
ser lento, violento, engraçado, gênero e
estética não são problemas. Já dormi de
pé em boate. Viajar comigo é uma maravilha
liga o motor do que for (avião,
carro, ônibus,
barco...) e eu
automaticamente
durmo
independente
do horário,
não precisa
nem sair do
lugar. Claro
que não durmo
dirigindo,
mas sou a pior
companhia
para um motorista,
piloto ou marinheiro.
Hoje em dia os momentos de sono são
poucos, às vezes sou vencida por ele e dá
aquela vontade de tirar uma sestinha no
final de semana, mas alguém acredita na
lenda que as crianças fazem soninho da
tarde? Nessas ocasiões desenvolvi uma
técnica: me disfarço de sofá. Coloco uma
96
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MALVINA DE
CASTRO ROSA
Porto Alegre - RS
QUANDO O SONO BATE
roupa escura para não destoar do estofado.
Me deito no sofá. No pobre sofá, que
é um dos seres que mais sofreu com essa
pandemia. Sem dúvida quando as aulas
voltarem ele vai precisar ser estofado. Já
fiz uma anotação mental, vou pedir para
o estofador fazer um macacão com capuz
no mesmo tecido do sofá para eu me camuflar
melhor.
Enquanto isso não acontece me deito no
sofá sofrido (com a roupa que não destoe
da cor dele, nada de cores ou estampas
chamativas) na frente da televisão
que passa algum desenho já visto umas
500 vezes e fico ali quase sem respirar.
É um soninho bem bom, super tranquilo!
Minhas filhas passam por cima. Me
cutucam. Em alguns momentos alguém
abre um dos meus olhos e ouço ao longe
“mamãe tu tá dormindo?”. Passada uma
meia hora a paz começa a terminar. Elas
invariavelmente brigam e eu de olho fechado
só repito "Não bate na tua irmã".
Então, subitamente desperto por completo
no meio de um ringue de luta livre com
as duas engalfinhadas. Rola chute, tapa,
puxão de cabelo. Pronto! Tirei minha sonequinha
revigorante do final de semana.
Ai que saudade de uma aglomeração infantil
para movimentar o final de semana,
para poder fazer ameaças vazias: se vocês
não me deixarem dormir 30 minutos não
vamos a tal lugar! Se bater na tua irmã
não tem festinha da fulana. Se vocês continuarem
assim ninguém vai na pracinha.
Ai que saudade!
97
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MANA MOA MC
Florianópolis - SC
De SP pra SC desde
2015. Acolhida
por mulheres
que fazem arte e
cultura na cidade,eu já participava
de rodas de freestyle,
fui incentivada a acreditar
na carreira de mc através da
"batalha das mina".
LEVANTE UBUNTU
Violência Velada, Favela é calada
No centro ou na praça Só Jah é seu parça
'Nois' bate na tecla Não mosca, não mescla
Quem peca é quem pesca Se tem e faz festa...
Eu já nao mais disfarço os olhares Ou devia fazer?
Enquanto eles fazem pilates. Meus pilares, osso duro de roer
Travada na língua, Tratada a míngua
Antes que extingua eu vou permanecer! 2x
“Nois tá” em todos lugares
Nas ruas, Nos becos, Nos morros,Nas lages
Sem sobrevoar Pra sobreviver
Quem ta de dentro pode ver
temos a cor, da terra, terreiro batuque, tamobor
agogô Luz da Vela Morteiro, Fogo! Pra essa partida é Go! Gol!
E os burguês nem quer ser jogador, Os burguês nem quer ser
No bote, no embate e no rebate, Quem paga pra ver Quem paga pra ver?
Bem mais que debate Pro combate!
Pra se proteger Pra poder manter
Fortaleza antes que invadam, Quem vem cobrar você
Ainda vem perguntar: ''De onde cê vem, quem é você?''
E eu: não to te devendo, ah não ser que
Voltei pra dar o troco e vc aprender
Se fica em cima do muro
De qualquer lado pode vim um furo
Chicote, borracha, pente, cartucho
Sabe de onde vem
Aquele uniforme foi feito de sujo
Não é acidente, acaso o nojo
É pra fazer correr, pra nos deter
E cada dia que eu sigo
Grata reinvindico
À todos que aqui não mais vivos
98
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MANA MOA MC
Florianópolis - SC
LEVANTE UBUNTU
Morreram no mesmo suplico
Dandaras, Cláudias, Rosas, Terezas
Enfrentam as dores, medos tristezas
Suas incertezas Mas nunca se esqueça
Esclareça, quando escurecer
E a cada gota de lágrima derramada
No rio de mágoas será força transmutada
Pra lavar minha alma não mais derrotada
Não mais derrotada
Então lute!
Não como estátuas
Nem por status
Muito mais tetos
Bem menos Taurus
Sistema dinossauro Hip Hop é restauro
Nova era, Não só eu instauro
Grito de Socorro, pedido de paz
Quebrada merece bem mais 3x
LEVANTE UBUNTU!
99
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
DECLINA
MARCEL LUIZ
Contagem - MG
declina
a luz aos
olhos
surpresas e graças
em miniaturas
santos
em barro
pedra/sabão e
ossos
no ataúde_
lápide
vazia
à espera
o vento escreve
seu tempo
100
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MARCOS ANTONIO
CAMPOS
Natal – RN
O SUPREMO
Decisão tomada pela primeira turma do Superior Tribunal Federal esclareceu
que o ponto final não encerra uma sentença, antes que se ponha o
ponto final na oração, elucidou o colegiado, a vírgula e o ponto e vírgula
devem se pronunciar para que não restem dúvidas quanto ao enclausuramento
dos vocábulos.
A mesma turma do Tribunal, também por ocasião do julgamento do primeiro ponto,
deslindou que muito menos os dois-pontos encerram a sentença, já que após os
dois-pontos cabem uma citação, uma enumeração ou um esclarecimento. Uma síntese
protelatória do que se acabou de afirmar, uma justaposição de recursos para serem
analisados, antes que se estabeleça a sentença final.
Esclareceu o Tribunal que, mesmo na terceira instância, ainda cabem recursos, se os
três pontos permitirem interpretações diversas. Os três pontos, simplesmente, indicam
que o julgamento ainda não acabou, permitindo-se as hesitações, as dúvidas, a suspensão
ou a interrupção do julgamento, até que não pairem incertezas quanto ao direito
da palavra ao Libertatem Verbi.
Finalmente, comunicou o colegiado que a sociedade precisa entender que a Justiça
só se subordina ao imperativo da lei, através da tergiversação. Não cabe ao Tribunal
restringir o uso das palavras, conduzindo-as as orações, aos períodos sintáticos sem o
amplo direito à liberdade. Afinal, o direito de ir e vir de uma oração à outra se estende
às palavras, porque só existe comunicação se entre emissor e receptor não houver
obstáculos pontuais a livre circulação dos fonemas.
101
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MARCOS
NUNES LOIOLA
Botuporã - BA
Um baiano de coração,
advogado
e apaixonado por
literatura.
LEMBRAR JOÃO CÂNDIDO FELISBERTO
João, tu não és cândido,
nunca foste.
Tua pele é preta
tal qual a tantos Joões
e Marias.
Tu és cândido, João,
sempre foste.
Tua luta
não carrega a culpa
das cândidas mãos pesadas
dos açoites.
Que as gentes não te esqueçam,
do teu propósito
tal qual um poema, esta estrofe;
porque as chibatas são outras, João,
e o céu da Guanabara
ainda é azul e branco
tal qual vermelho
o sangue.
102
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MARIA CLARA LIMA
Recife - PE
Maria Clara
Lima é formada
em
Direito pela
UFPE. Venceu o VII Concurso
de Contos Dirce Doroti
Merlin Clève, com o conto
Troca de Pessoal. Hoje edita
o seu primeiro romance.
Nasceu em Recife, em 1991.
ENCONTRO EM FAMÍLIA
Quando Sabrina11 sugeriu o encontro
no cinema, ele pensou que ela só estava
seguindo o protocolo de segurança para encontros
marcados por aplicativo. Logo que
ele vencesse as defesas dela, esperava dar seguimento
à transação num lugar mais conveniente.
Mas a morena da foto do perfil, passo
firme, cabelo alisado até a cintura, apareceu
na fila da bilheteria segurando uma criança
em cada mão, um menino e uma menina que
eram a cópia da
mulher, exceto
pelos dentes de
leite na boca.
— A creche não
funciona no fim
de semana — ela
justificou, sem
tom de desculpa,
como se fosse
muito natural
transformar a
foda que ele tinha
programado
a semana inteira
no jardim de infância.
Ele mal cuidava dos próprios filhos e não pretendia
ser babá do filho dos outros. Entreabriu
os lábios para proferir o discurso de retirada,
acabava de se lembrar de um compromisso
inadiável etc., quando ela fez o sonzinho esquisito
com a garganta. Um barulho discreto,
gutural, como quem espanta uma alergia na
laringe, tão rápido quanto a primeira gozada
que ele teve na vida, numa punheta batida às
pressas no banheiro da escola, média de três
segundos.
Ligeiro, porém significativo.
Engoliu o pretexto que quase escapou da ponta
da língua. Ponderou. Baixou os olhos nos
moleques, o menino escondido atrás da perna
da mãe, a menina engraçadinha, brincando
de escorregar a sandália no piso de cerâmica.
Então voltou a inspecionar Sabrina11. No total
e ao vivo, ela nem impressionava tanto assim,
tendo parido dois e tudo mais. Não fosse
aquela coçada de garganta…
Como se adivinhasse que ele precisava ser
convencido, ela
fez de novo, caprichado,
não
chegou a abrir a
boca, o ruído saiu
do meio do pescoço.
Ele se concentrou
na vibração
da garganta dela,
lembrou aquela
punheta adolescente
roubada no
recreio da escola,
no tempo em que
ele ainda tinha
todos os cabelos
na cabeça e qualquer roçada na bunda das
colegas, na fila da cantina, bastava para deixá-lo
duro.
Rendeu-se à reunião em família. Entraram os
quatro na sessão do Lego Batman.
O ar-condicionado central trabalhava inclemente,
mantinha a sala gelada, seca, a inimiga
perfeita das vias aéreas, a vilã implacável
das inflamações de garganta. Antes de o Lego
Coringa aparecer na tela de vinte metros de
extensão, Sabrina11 já tinha limpado a laringe
cinco vezes. O que somava quinze segundos
da zoadinha que o remetia aos tempos de
103
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MARIA CLARA LIMA
Recife - PE
ENCONTRO EM FAMÍLIA
juventude, à época de despreocupação e inocência,
sim, inocência, pois ele foi um adolescente
puro, apesar das pornografias escondidas
na última gaveta do guarda-roupa. Não
era culpa dele se ele gostava de boceta. Era
culpa de Deus. Deus fez o homem e a mulher
para que trepassem e se multiplicassem. Ele
frequentava a igreja. Estava na Bíblia.
Dezoito segundos. Ele vinha contando. A
matemática ajudava a manter a cabeça longe
do formigamento que começava a sentir na
virilha. Não era certo pensar naquelas coisas
ali, cercado de crianças, as de Sabrina11 e as
outras que gargalhavam das piadas sem graça
do Lego Robin. Ele era chefe de família, tinha
emprego fixo, filhos quase crescidos, amantes
apenas ocasionais que arranjava no aplicativo
e escondia com muito zelo da esposa.
O pirralho de Sabrina11, o menininho medroso
que na bilheteria não largava a barra
da saia da mãe, pediu o colo dela quando se
assustou com um estampido nos alto-falantes.
Ela sentou o caçula nas coxas e fez cavalinho
com o moleque, acalentando. O assento vizinho,
onde ele fingia assistir ao filme espremido
entre Sabrina11 e a menina, acompanhava
a trepidação suave da brincadeira mãe-e-filho.
Vinte e um segundos. Qual era mesmo o
nome da colega que ele encurralou no final da
aula de Biologia sobre o sistema reprodutor
humano? Uma loirinha, bonitinha. Ele tinha
uma memória tátil dela, os peitos ainda desabrochando,
mas o nome agora fugia… Joana?
Ao lado dele, a menina de Sabrina11 se preocupava
com a Batgirl. Balançava as pernas
ansiosas, cutucava o braço dele sem despregar
os olhos da tela e sussurrava: tio, ela vai
se dar mal? Ele nem conseguia responder,
com medo de que a voz denunciasse o que
ia na cabeça. Cravou as unhas no acolchoado
da cadeira. Vinte e quatro segundos. A
menina ainda cutucava o braço direito dele,
Sabrina11 ainda fazia cavalinho com o menino
nas coxas no lado esquerdo. Juliana! A
loirinha da aula de Biologia. Lembrar o nome
trouxe em detalhes a textura dos peitinhos da
colega de escola, lisos, virgens, os bicos atiçados
quando ele massageava a ponta. Fechou
os olhos. Afundou de novo as unhas na poltrona.
Vinte e sete segundos. A menina errou a mira
e cutucou o pau dele em vez do antebraço. Ele
não abriu os olhos para verificar se ela tinha
percebido o engano.
Trinta segundos. Será que Sabrina11 conseguia
fazer aquela coçada de garganta com um
pau duro dentro da boca?
Trinta e três segundos. Cacete. Estava admirado
com o próprio autocontrole.
O menino avisou que precisava ir ao banheiro.
Ele se ofereceu para levar a criança. Tinha
que terminar o serviço em algum lugar.
Se Deus não quisesse que ele sentisse tesão,
não teria metido um membro cheio de vontades
bem no meio das suas pernas. Não teve
tempo de ajudar o menino no banheiro. Largou
o pirralho perto da pia e se precipitou
sozinho para dentro de um cubículo. Apoiou
a mão esquerda na parede atrás da privada e
com a direita libertou o membro como Deus
queria. Começou agarrando os peitos de Juliana
e terminou ouvindo a garganta de Sabrina11.
Quando voltou com o menino para
a sala de cinema, a menina avisou que estava
com fome.
Depois do filme, ele comprou até o McLanche
das crianças.
104
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MARIA PIA MONDA
Belo Horizonte - MG
Maria Pia
Monda, italiana
de Napoli
e, desde
2015, residente na cidade de
Belo Horizonte, é autora de
poemas e contos, publicados
em revistas italianas e brasileiras.
TU VIVES
As perguntas que me impacientam
são aquelas que eu mesma
me faço. É muito mais fácil
lembrar quantas vezes por mês
tomo cerveja do que ser honesta quando
me interrogo sobre a autenticidade de
uma felicidade que não sinto.
Os hospitais não são, decerto, feitos para
hospedar alegria.
Se este questionário fosse uma prova, com
consequente aprovação ou reprovação,
qual nota tornaria minha anamnese digna
de me levar para o próximo nível?
Onde a língua bate, os dentes mordem a
tampa da caneta, com migalhas de silêncio
e fatias de estrondos improvisos, e o
que resta do dia fica inciso por nada mais
do que a marca dos meus incisivos.
O homem que enfiou meu pulso em uma
pulseira de papel, perguntando se era
minha primeira consulta, me colocou na
condição de desejar que fosse a última.
Nas ruas, no caminho até aqui, procurei
uma voragem onde precipitar, só para
me permitir a ilusão de poder escolher
a gravidade e assim evitar sofrê-la, mas,
logo que parei de olhar em volta, tropecei
numa raiz que sonhava em ser um ramo.
Não é incrível como todos, até mesmo as
árvores, tentam fugir de sua condição?
A ilusão de que nada me importa colide
com o duplo significado, comercial e
emocional, do verbo importar. Eu importo,
então eu me importo, porque acredito
que as pessoas que nunca se importam,
não importando nada, são mais vazias e
mais miseras daquelas que se importam
com tudo.
Enquanto espero, antes de ser forçada a
encarar novamente minhas avarias, brinco
de adivinhar, nas duplas ao meu redor,
quem é o paciente e quem é o acompanhante.
No meu caso, a questão não se
coloca: a solidão me impõe os dois papéis,
mas não sou boa em mascarar a impaciência,
nem em vencer a inaptidão a ser
para mim mesma uma boa companhia.
Tento sugerir palavras de conforto para
minhas palmas suadas. As que coleto nos
sofás não são suficientes; as que leio nos
cartazes colados nas paredes e as que, pulando
de canto a canto, entrando e saindo
de portas abertas e prontamente fechadas,
chegam aos meus tímpanos, estão profundamente
erradas. Elas cortam até o cheiro
asséptico que permeia a sala.
São os nomes que tornam as coisas ruins
ou as coisas que tornam um nome ruim?
Não sei, mas sempre pensei que se os tumores
fossem chamados de “tuvives”,
não seriam tão assustadores.
Afinal, o melhor cuidado para cuidar da
vida não é mesmo a vontade de viver?
Sorrio para o doutor e me convenço.
Eu vivo.
105
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MARINA MONTEIRO
Rio de Janeiro - RJ
ÀS VEZES O MAR ARRANHA
Às vezes o mar arranha
só de enfiar o pé
de pontinha,
ele exige a oferenda
do corpo por inteiro,
tudo ou nada.
às vezes o mar arranha
arde o mindinho,
ele quer meus segredos
o tudo que tenho
não conto a ninguém
nem a mim.
às vezes o mar arranha,
mas eu canto,
o canto da sereia-pós-contemporânea
e arranho o mar de volta
com meus agudos deslocados.
Marina Monteiro
é escritora,
atriz,
dramaturgista,
arte-educadora e produtora
cultural. Autora do
livro "Em nossa cidade amarelinha
era sapata" (Patuá),
que em 2020 foi vencedor
do 18º Prêmio AGES.
106
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MARINA P. P. OLIVEIRA
Brasília - DF
EXU TRICOTANDO
Na amplidão do cerrado, procura
uma encruzilhada
Onde, entre a invenção e o medo,
possa desafiar o dominado e incitar
o incriado
Mas, entre horizontes infinitos, onde
semeá-la?
Exu ri, pega as agulhas e começa a
tricotar, perdendo-se em si mesmo e
no Cerrado
Murmura em pensamento “U-B-U-
-N-T-U” e logo traz o vento: uma ema, um tucano, uma jaguatirica, um burro, uma
mulher, várias crianças e um bando de marmanjos...
E ele, concentrado no tricô, abre os sentidos, fecha os olhos e espreita, se arregalando
E então vê, em toda parte, fios invisíveis costurando ema, tucano, burro, mulher,
crianças, marmanjos, jaguatirica, ipê, pedra e horizonte num único bordado, ao qual
também ele, Exu, se descobre pregado!
Encruzilhada materializada em meio ao infinito do Cerrado...
"Ser-com ou ser-só?", pergunta.
Reunir, festejar, separar, resistir, escolher, expressar, enfrentar, reconciliar...
Melhor seria L-I-B-E-R-T-A-R, L-I-B-E-R-D-A-D-E… sopra a brisa em oração
E ele ri, mostrando lindos dentes luminosos
A encruzilhada, enfim (com A maiúsculo, pensa e se delicia Exu)!
A que existe em cada ser vivente, não importando a história ou a geografia da gente
Ela é minha, é sua, é nossa, é de Exu e mora nos fios que amarram cada um ao todo
E depois, de volta a cada um
Fios de Exu espreitando, tricotando e sonhando com U-B-U-N-T-U,
liberdade I-N-D-I-V-I-S-Í-V-E-L, fruto da J-U-S-T-I-Ç-A feita pra todos e pra cada um
Ou então pra nenhum!
É ela que nos espreita de toda e cada encruzilhada
Alimentando o sonho e a esperança de muitos
E o pavor e a ira de alguns….U-B-U-N-T-U e Exu.
107
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
MILTON REZENDE
Campinas - SP
BALADA DAS DUAS MULHERES NA PRAÇA
Gostaria de saber
quem são aquelas
mulheres da capa
do livro dos Aflitos.
Quem sabe assim
eu pudesse, voltando
ao passado e aos
costumes antigos,
dar a volta no sentido
contrário aos das moças
e perguntar-lhes:
“Quer voltar?”.
E aí, se fosse aceito o pedido,
eu estaria abrigado sob as
saias e a proteção do grande
guarda-chuvas de uma delas,
a do canto.
108
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
NARA ASSIS
Cuiabá - MT
Formada em Jornalismo
(2009 e servidora
pública estadual
desde 2014. Escreve
textos jornalísticos e artigos
de opinião. Passou a escrever
contos há poucos meses
e trabalha no projeto de um
romance.
A MULHER SUBMERSA
Respira, é fácil, você consegue. Aqui
embaixo é muito mais tranquilo. O
mantra que levou Laura ao fundo
do mar parecia mais uma palestra
motivacional que ela sempre detestou. Foi a
única maneira que encontrou
pra descer. Os
óculos de mergulho aumentavam
a sensação
de sufocamento e ela
passou a buscar peixes
coloridos pra tentar se
convencer de que aquilo
valia a pena. Viu alguns,
nada de extraordinário,
exceto um de
cor amarela brilhante,
focinho longo, praticamente
um bico.
Ensaiou um riso no
canto da boca, então
lembrou que precisava
respirar. Não fosse
a grande quantidade
de corais, poderia se
sentir melhor. Buscava
aquela sensação de
horizonte e paz que as
águas transmitiam do
lado de fora. Respira, é fácil, você consegue.
Aqui embaixo é muito mais tranquilo. Tem
que ser. Vai ser. O mantra crescia e tentava
ocupar o tempo, que demorava a passar.
Junto com o grupo, passou pela primeira
estátua, um homem com as mãos no rosto,
a expressão de desespero com a qual ela se
identificou. Em seguida, outra obra que consistia
em esculturas enterradas até o pescoço,
diferentes contornos, muitos corais em volta,
alguns até servindo como cabelo. Resolveu
seguir adiante, passou os olhos por outras
obras, e deixou o grupo para trás. “Assim
termino logo e já posso subir”, pensou.
O elástico dos óculos
de mergulho provocou
uma enxaqueca e
foi o suficiente para o
mantra ganhar novos
versos. Respira, é fácil,
você consegue. Aqui
embaixo é muito mais
tranquilo. Tem que ser.
Vai ser. A dor de cabeça
não existe. Controle-se!
Respira, é fácil,
você conse...Parou.
Estava de frente para a
estátua de uma mulher.
Mãos no queixo, cabelo
amarrado no alto,
detalhes tão fiéis às características
humanas.
Laura tentava controlar
a respiração, enquanto
se aproximava
da estátua. Entre elas,
havia apenas corais.
Os peixes nadavam no entorno e ao longe,
as águas ficaram tranquilas, o mantra parou
de ser entoado. Os olhos procuravam o que
havia de diferente naquele monte de concreto,
o único até então que a fez parar. As mãos no
queixo, firmes, e o olhar impetuoso causaram
uma tensão até então submersa.
“Quem ela pensa que é?”, se perguntou Laura,
intrigada com a postura provocadora da
109
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
NARA ASSIS
Cuiabá - MT
A MULHER SUBMERSA
estátua. Não podia encara-la da mesma forma,
naquele ambiente que não era o seu. A
profundidade sempre a perturbou. Estava
cada vez mais difícil respirar. Ainda assim,
aquela sensação fazia bem. Não conseguia tirar
os olhos dela, algo de familiar a convidava
a chegar mais perto. Avançou o máximo que
pôde, até onde a barreira de corais permitia.
Respira, é fácil, você consegue. Aqui embaixo
é muito mais tranquilo. Tem que ser. Vai ser.
“Você sabe que esses mantras não funcionam,
querida. Por que você insiste?”. Atônitos, os
olhos de Laura se fixaram na boca da mulher
de pedra. Gesto um tanto inútil, já que
a boca não moveu um milímetro. “Eu sei, eu
sei, você quer falar, está impressionada, e um
pouco zangada também, não é?”.
Alguns segundos de silêncio. Os olhos de
Laura procuravam sabia lá o que ao redor,
um ponto de apoio, um alto-falante próprio
para o fundo do mar. Os turistas ainda estavam
três obras atrás dela. Nada, não encontrou
qualquer coisa viva que pudesse ser dona
daquela voz.
“Calma, querida, não vou te fazer mal. Você
sabe que o mantra não vai te fazer respirar, só
estou tentando ajudar alertando sobre isso”.
O tom irônico fez com que Laura apertasse os
olhos. A estátua logo reagiu. “Você não consegue
encarar os fatos, uma pena. Todo esse
modo de agir, se fazendo de durona, tentando
desdenhar, tudo isso é medo, insegurança”.
A respiração voltou a ficar ofegante, o tom
provocador deu lugar a uma fúria incontrolável.
Laura tirou o cilindro de mergulho das
costas e atingiu a cabeça com rabo de cavalo,
antes que ela pudesse terminar o pedido de
socorro.
Parte do rosto da mulher se desfigurou. A voz
sumiu. O mantra também. Laura estava viva,
conseguia respirar.
110
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
NEIDE OLIVEIRA
Vitória - ES
SEM VOCÊ
Como você faz falta! Sem você tudo é tão sem graça. É virar para o lado sentir a cama
ainda úmida e quente, mas os meus lábios ressecados, meu corpo petrificado, qual sua
ausência me mumificasse, desde aquele adeus ao nada que hoje tudo invade.
Ainda tem o seu espaço no guarda-roupas, ainda tem o seu cheiro em tantas coisas, não quero
respostas, se faz sentido é pouco importante, quero o ponto onde não haja equilíbrio, onde as
coisas flutuam desafiando a gravidade, quero curtir Netflix com você aos domingos à tarde.
Quero o giro contrário do relógio, que as horas não sejam somadas, quero horas descontadas,
dias em câmera lenta, a terra parada até que você regresse aos meus braços.
Pois sem você tudo desmorona a todo tempo! Vivo um contínuo apocalipse de emoções, já
não alcanço o céu, somente o inferno da
solidão, aqui, dentro de mim.
Neide Oliveira,
Vitória – ES,
fisioterapeuta
possui poemas
publicados em: Sarau Brasil
2020 Vivara, Poesia Agora
Ed. Trevo, Rev. Entreverbo
#37 #38, e Concurso Nacional
de Poesias da Rev. Brasília.
Os dias são insuportáveis, para que tanto
sol? Essa claridade chega doer meus
olhos. Prefiro àquela hora que não é
noite nem dia, crepúsculo, àquela hora
que não se vigia, que não se guarda, que
escapa entre os dedos, onde a língua
atordoada remexe a ferida, tudo tão
simples, sem você tenho nada.
Vivo feito uma névoa perdida ao vento,
encaracolado entre pensamentos, confundido,
feito distúrbio, monossílaba do ilógico. Sem você não há mar nem ondas, toda essa
calmaria me faz mal, toda essa inércia me sufoca, me rouba, me afogo entre mágoas e desculpas
fartas.
Não quero toque, não quero palavras, apenas necessito desse deslocar de sentidos, e simplesmente
estar consigo. Em algum lugar talvez sem rumo, deixarmos soltos em nós mesmos, sem
cobranças, sem julgamentos, curtir aquilo que ainda não sabemos, ainda que possam classificar
como inquietude, na verdade quero a plenitude de viver ao seu lado.
111
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
PATRÍCIA MORAIS
Curitiba - Pr
TRANSFORMER DE BOMBEIRO
Dia desses um amigo me encaminhou
um texto do Instagram.
Algo familiar já... tratava basicamente
de dizer que temos que
“cuidar do jardim” e esperar que as borboletas
apareçam. E, em algum momento, trazia a
máxima: “você tem que se bastar”.
Isso me colocou numa máquina do tempo e
fui transportada para a biblioteca da escola.
Eu, com 13 anos, passando por um dos amores
platônicos da minha vida. E, nesse dia, foi
a primeira vez que ouvi isso: você tem que se
bastar. Quando ouvi achei que era algo genial
e que tinha sido de autoria da pessoa que me
disse.
A pessoa que me deu esse precioso (ou não)
conselho, foi a bibliotecária. Marinês. Marinês
era uma mulher linda e charmosa. Dessas
que as meninas admiravam. Ou, ao menos eu
admirava na época. Deveria ter uns 35 anos,
talvez um pouco menos. Cabelos vermelhos
num corte chanel e unhas impecavelmente
pintadas de cores escuras. Dirigindo seu carro,
aos meus olhos, era incrivelmente independente.
Passados 25 anos as palavras dela (não sei
se são dela mesmo) ainda ecoam na minha
cabeça. Por muito tempo, arrisco dizer que
por duas décadas e meia, considerei que fosse
uma verdade absoluta e inquestionável. Cada
ser deve se bastar, ora bolas! Você tem que ser
o suficiente para si próprio. Não faz sentido
pra você?
Mas... a verdade é que eu nunca me bastei.
Sempre ansiei por uma parceria e, mesmo
passando a maior parte da vida “acompanhada”,
me sentia desacompanhada. Isso me trazia
um sentimento de culpa e frustração: por
que eu não me bastava?
Com o passar do tempo fui ouvindo de outras
bocas esse jargão que, por tanto tempo,
martelou meus pensamentos e se tornou uma
meta a ser atingida. E foi então que passei a
desconfiar. Sempre que algo cai no senso comum,
precisamos questionar mais profundamente.
E, de repente, o insight veio. Eu entendi
que está tudo bem eu não me bastar. É
antagônico, mas parece que quanto mais gritamos
por liberdade, mais nos tornamos escravos
de algumas ideologias. E a grande ironia
é que eu aceito isso no momento em que
estou mais próxima dessa realidade. Não há
outra companhia que não a minha e eu gosto
de estar comigo mesma. Gosto também.
Ninguém precisa definir sua vida pautada em
algo rígido. Tudo é cíclico. Hoje eu me basto,
amanhã não me basto. E às vezes isso acontece
no mesmo dia.
Hoje meu filho quer um transformer de bombeiro
de presente de aniversário. Ano passado
ele também queria e eu não levei à sério. Pode
ser que ano que vem as coisas mudem. É assim
que funciona na primeira infância. E na
quinta (ou já estarei na sexta?). Fato é que
minha própria companhia é boa, mas eu não
preciso negar que seria legal ter um transformer
de bombeiro.
112
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
PEDRO ANTÔNIO
LIMA PEREIRA
Guarulhos – São Paulo
Paulista de 19 anos,
graduando em design
de interiores e
design de produtos,
na Belas Artes, com grande
amor na ilustração e pintura.
PRATOS E AMBIÇÕES
Limitado pelo medo alheio em que, possa existir algo
pior que seu ego, o mal interno se reprime, da própria
dúvida daquilo que o consome. Tão difícil reclamar
enquanto as palavras são maiores do que as cordas
vocais para que possam “tocar”, mas, o meio-dia sempre chega,
e é a hora de almoçar, engolir tudo e procrastinar; já de noite,
a inquietude de suas pernas gera uma energia desnecessária,
sempre o desnutrindo, e as vezes, criando mais dúvidas.
Todo momento, todos os segundos, parecem uma pulsação durante
uma gravidez, batidas de sinos e soluços que desacompanham
as ideias, que dessas, vendem sua criatividade; confusa,
sempre agindo, repetidamente confusa.
As idas ao “foco” mudam, se alegram e não levam consigo
falsas esperanças quando alimentadas de forma correta. Não
acredite em noites eternas das quais vivera, o meio-dia voltará
em outra estação, desde que isso não seja sua única ambição.
113
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
PERPÉTUA AMORIM
Franca - SP
Poeta mineira da Academia
Feminina Sulmineira
de Letras,
reside em Franca, é
faz parte da Academia Francana
de Letras.
FOLHEANDO NERUDA
As velas que derretem ao meu redor
marcam o tempo que ainda resta
o dia promete-me boas novas
embrulhadas em notas fiscais do que jamais comprei
pago cada centavo dos meus erros
antes de morrer como as luzes amareladas das velas.
A morte e o presente se completam
em gotas de espera
Espera que o sol se ponha
num horizonte de quimeras
para que do alto eu possa ver
o cortejo dando volta ao redor dos meus desejos
e os sonhos embriagados zombarem
das orações repetidas por carpideiras enlutadas
A morte passeia todos os dias ao meu lado,
em passos desencontrados.
Quando finda o amontoado do tempo
as ideias derretem como neve
e as certezas escondem-se em geleiras
para ouvir bandolins e folhear Neruda
na crença de ser perecível, escrevo sonetos
dedilhando no ar um requem, assim
volto a terra, sou grão de poeira.
Nascer e morrer faz parte do mesmo ato.
114
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
RAFAEL CAPUTO
Curitiba - Pr
Rafael Duarte
Caputo é professor
e escritor. Seu
romance de estreia
foi finalista do Prêmio
Kindle de Literatura 2019.
Atualmente, é membro da
AILB, Academia Internacional
de Literatura Brasileira.
A VIDA É TREM-BALA, PARCEIRO
Quarentena que nada, nunca trabalhei
tanto na vida. A demanda está absurda.
Não que eu esteja reclamando, longe de
mim. Enquanto muitos perderam seus empregos
em meio à crise, só tenho a agradecer.
Afinal, fiz por merecer. Tô batendo meta
atrás de meta. Tanto sacrifício, entretanto,
tem seu preço. Sinto-me exausto! Até mesmo
eu preciso de um descanso. Falando nisso,
é hora da minha pausa. Bato o cartão,
pego um copo de leite e aproveito para ler
as notícias: “Milagre: avião cai no meio do
oceano e todos os passageiros sobrevivem”.
Mal tenho tempo para reagir, logo sou interrompido.
“Com licença, Senhor. Sei que está em seu
horário de intervalo, mas os estagiários chegaram.”
Abandono as notícias, engulo o leite de forma
apressada, bato novamente o cartão e
sigo em direção aos novatos. Como vocês
podem perceber, está ficando cada vez mais
difícil dar conta do recado. Não tive outra
alternativa, a não ser pedir ajuda. Sim, foi
preciso deixar o orgulho de lado, pelo menos
dessa vez. O pessoal do RH até que foi
rápido. Como é maravilhoso ver o termo
“Recursos Humanos” sendo tão bem empregado
novamente.
Os candidatos selecionados possuem bom
potencial. Um deles tem vasto conhecimento
em logística, o que é imprescindível nesse
ramo. O outro, um pouco mais velho, dedicou
grande parte da sua vida recepcionando
pessoas. Já sei para onde irei designá-lo. E,
por fim, uma outra, mais nova e sem muita
experiência, atuava como motorista de
aplicativo. Não sou muito familiarizado
com essas novas tecnologias, mas acho que
tal conhecimento pode ser útil. Quem dirige
um carro também pode dirigir um barco,
por que não? Tudo bem que, ultimamente,
esse barco mais que triplicou de tamanho.
Quase um transatlântico. Já é a segunda
vez que mudamos de modelo. Culpa do trabalho
que só aumenta. Até entrei com um
requerimento – polêmico, por sinal – para
usarmos um trem como meio de transporte.
De preferência, um trem-bala. Acredito que
assim, com a distribuição dos passageiros
em vagões, seria tudo mais organizado, e
rápido. Digo por experiência própria. Mas
o pessoal da velha guarda insiste em defender
que o transporte marítimo é uma antiga
tradição e estão meio receosos com uma
mudança nessa altura do campeonato, blá-
-blá-blá... Vamos ter que esperar para ver se
o pedido será ou não deferido. Tô na torcida!
Pode me chamar de ousado, não tem
problema. Ou nostálgico, tanto faz. Vou
fazer de tudo para ganhar de goleada. Tipo
sete a um, se é que você me entende.
“Guten Tag, senhoras e senhores, sejam
muito bem-vindos! Modéstia à parte, tenho
certeza de que vocês já me conhecem, ou
pelo menos, já ouviram falar de mim. Pois
bem, graças ao vosso currículo, vocês foram
requisitados como meus assistentes. Não se
enganem, sei tudo sobre cada um de vocês.
Você, da logística, foi acusado de pedofilia e
conseguiu incriminar um inocente que agora
está pagando a pena em seu lugar. Nada
mal. O cara da recepção, por sua vez, atuava
também como pastor e usou o dízimo
115
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
RAFAEL CAPUTO
Curitiba - Pr
A VIDA É TREM-BALA, PARCEIRO
dos fiéis para pagar dívidas com prostitutas
e traficantes. Corajoso, tenho que admitir.
Por último, a motorista que atropelou o
próprio cliente e fugiu sem prestar socorro.
Bem, a política da empresa é que todos
merecem uma segunda chance. Eu, no entanto,
espero que vocês se esforcem ainda
mais dessa vez. Temos muito trabalho pela
frente. Isso está um verdadeiro inferno, um
caos. Não para vocês, obviamente! Para vocês
isso aqui é o Paraíso, fala a verdade?
Bando de sortudos. Hoje é o primeiro dia,
então, me acompanhem e observem.”
Passo pela sala de operações estratégicas e
pego meu megafone. Subo com eles até um
dos palanques principais para colocar ordem
na casa. O local nos permite uma visão
ampla de todo o saguão. Estamos no
deck principal, o maior deles. À nossa frente,
uma multidão de gente. Desde o início
do ano está assim. Recentemente, nas duas
últimas semanas, tivemos um crescimento
ainda maior: cerca de dez mil pessoas por
dia. Tem gente de todo o lugar, de várias
partes do mundo. Nosso papel – nessa estação,
especificamente – é relativamente
simples: transportá-las com segurança para
o outro lado da fronteira. Eu sou o responsável
por isso também, além de trazê-las até
aqui. É um cargo importante, escolhido a
dedo. Não vejo problemas em acumular
certas funções.
“Pessoal, atenção! Escutem com atenção.
Essa fila maior é somente para COVID-19.
Por favor, saiam da fila quem não for CO-
VID. Consultem o nome de vocês na lista
afixada no mural. Outra coisa: moedas e bilhete
nas mãos. Quem não validou o bilhete
de embarque, favor retornar ao primeiro
guichê. Quem ainda não recebeu as duas
moedas de ouro precisa passar na bilheteria.
Sem as moedas, não embarca.”
Todo dia é a mesma coisa: precisamos repetir
essas instruções senão vira bagunça. O
pior que pode ocorrer é alguém embarcar
sem a devida autorização. Se eu os transporto,
sobra pra mim. Tem alguns engraçadinhos
que tentam burlar o sistema e adiantam
a viagem. Quando descobertos, são
deportados imediatamente. Voltam para lá,
sem piedade. Antes, porém, acabam sendo
punidos. Poucos retornam sem nenhuma
sequela. Mas isso já não é meu departamento.
Aqui, cada um cuida do seu setor.
Muitos acham que a Morte é um ser, uma
espécie de indivíduo (tipo uma pessoa), mas
não é. Na verdade, trata-se de um título.
Assim como o Papa. Já existiram vários
Papas, assim como várias Mortes. Sou eu
quem ocupa esse cargo agora. (não o do
Papa, o outro). E não que eu esteja querendo
me gabar, mas estou fazendo um ótimo
trabalho. Depois de tanto empenho para
chegar até aqui, é o mínimo que posso fazer.
Soube da possibilidade e aproveitei um programa
de intercâmbio. Me candidatei pouco
tempo depois que fiz a travessia. O tempo
aqui é relativo, parece que foi ontem. O
diretor de onde eu estava não queria abrir
mão de mim de jeito nenhum, mas consegui
convencê-lo. Nunca duvide do meu poder
de argumentação, sou ótimo nisso! Ele está
satisfeito agora, sua casa nunca esteve tão
cheia.
116
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
RAFAEL CAPUTO
Curitiba - Pr
A VIDA É TREM-BALA, PARCEIRO
Tomei posse no primeiro dia de 2020 e, desde
então, venho recebendo bônus por produção,
mês a mês. Um recorde. Nunca uma
Morte foi tão eficaz logo no início do mandato.
Não vejo a hora de receber a PLR.
Acho que no fundo, me escolheram porque
já sabiam da minha capacidade. Usei parte
da minha experiência em vida como campanha
eleitoral para disputar o título. Ganhei
fácil. Fiquei sabendo, mais tarde, que não
haviam candidatos à altura para competir
comigo. Que pena, iria adorar travar mais
uma batalha. Comigo é assim: ou tudo, ou
nada. Quando entro numa guerra é para
vencer. Pode apostar! Cá entre nós: a ideia
do vírus foi tão boa quanto a do gás, não é
mesmo?
Deixo o megafone nas mãos da estagiária e
volto para concluir meu intervalo, também
sou filho de Deus. Bato de novo o cartão,
pego outro copo de leite e retomo a leitura:
“Vazo ruim não quebra fácil: marginal
toma quinze tiros e, ainda assim, consegue
escapar da Polícia”, “Motorista bêbado
que invadiu supermercado foi preso. Ninguém
saiu ferido”, “Inacreditável: câmeras
de segurança flagram o momento exato em
que uma criança de apenas quatro anos
despenca do sexto andar de um edifício, se
levanta e sai andando normalmente”, “Protestos
antifascistas e conflitos contra o racismo
geram quebra-quebra generalizado
com incêndios, brigas e saques. Apesar do
prejuízo, não houve vítimas.”, ao ler esta
última notícia, deixei escapar um curto sorriso
irônico de canto, quase um espasmo.
Amadores! Novamente, sou interrompido.
“Com licença senhor, desculpe incomodá-lo
mais uma vez. É que o senhor pediu para
avisá-lo caso afrouxassem o isolamento social
e acabou de chegar uma informação de
que no Brasil estão reabrindo igrejas, academias,
shopping centers e várias outras
atividades comerciais.”
“Perfeito! Ótima notícia. Vamos colocar em
prática o plano emergencial de contingenciamento
brasileiro. Eu já imaginava que
isso fosse acontecer. Avise o RH que preciso
quadriplicar o efetivo o quanto antes (e não
é exagero). Também ligue para ‘você sabe
quem’ e pergunte sobre o trem, tente sondar
se eles já se decidiram. Vou voltar ao trabalho
imediatamente, temos muito o que fazer.
Tome, já li o relatório com as notícias.”
“O que eu faço com ele, senhor?”
“Guarda na gaveta das pendências. Depois
da Pandemia, eu resolvo.”
“Tá bom, e não esqueça da sua reunião às
cinco com o chefe.”
“Pode deixar!”
“Mais uma coisa: já estou com ‘você sabe
quem’ na linha e ele disse que, graças ao
Governo Tupiniquim, concordaram com o
seu trem. Parabéns, você conseguiu!”
“Sieg Heil, minha querida. Sieg Heil.”
117
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
REGINA RUTH
RINCON CAIRES
“MEU PRESIDENTE”
Início da década de 1960...
A pequena vila, acanhada, era quase estéril
de empregos. Afora os pequenos sitiantes
e comerciantes, o resto lutava só
Deus sabe como... Mas tudo era mais fácil,
visivelmente mais fácil que hoje. É bem verdade
que a comida não era tão diversificada
como agora, mas existia a fartura. Em quase
todas as casas podia-se ver uma horta ampla,
um chiqueiro apinhado de crias, galinhas aos
montes, sem contar as frutas! A gente comia
até se fartar, e não havia a menor preocupação
com a sobrevivência futura, como hoje.
Não sei se isso, se essa despreocupação estava
só com as crianças, e ficava para os adultos a
angústia do “como fazer?”. Acho que não...
As pessoas eram leves, não mostravam tensão.
Eram falantes, alegres, maravilhosamente
solidárias. Tempo bom! Sadio nos costumes
e nas amizades!
Em casa, minha mãe, viúva, com uma penca
de filhos... Éramos assustadoramente pobres,
quase sem perspectivas, mas comida não faltava.
Do quintal vinha muito do nosso sustento.
Comum era a troca de verduras e legumes
com os vizinhos. Não me sai da lembrança
o caramanchão de chuchu de Dona Eulália.
Imponente, fecundo! Erguido próximo ao batedouro
de roupas, alimentado com água em
abundância, produzia o ano todo!
Todos nós trabalhávamos. Minha mãe fazia
salgados para os bares, meu irmão era metido
a eletricista, o outro era balconista da Casa
Pereira, a única loja de tecidos da vila, e assim
por diante... Eu, caçula de sete anos, defendia
o meu com uma caixa de engraxar. Tempo
bom pros engraxates! Todo mundo usava
sapatos de couro. Ainda não havia surgido a
febre do tênis. Bom mesmo era engraxar botinas!
O cano alto permitia cobrar mais caro
pelo serviço. Justificável, não?
Na praça da igreja, pela manhã, eu tinha o
melhor ponto. Cedo, com o sol ainda fraquinho,
os velhos se juntavam nos bancos para
uma prosa gostosa, e ali eu fazia a minha
clientela. Quando o sol esquentava, e até que
chegasse a hora de ir para a escola, ficava difícil.
Era raro encontrar um ou outro freguês
pelas ruas. De vez em quando conseguia algum
na barbearia. Mas, decididamente, não
era vantajoso esperar.
Achei uma saída espetacular! Ia engraxar em
domicílio! Passava pelas casas e assim engraxava
os sapatos da família inteira. Com o
tempo consegui organizar uma clientela fixa,
e com isso tinha trabalho de segunda a sábado.
Já sabia que na segunda-feira engraxaria
na casa do Seu Dorival, na terça na casa do
Seu Duílio, na quarta na casa do Seu Osório...
Adorava as sextas-feiras! Verdade mesmo!
Nesses dias eu nem passava pela praça. Ia
cedo para a casa do Seu João. Sujeito incrível!
Meu ídolo! Gostava tanto de conversar com
ele que fazia meu serviço lentamente, com
esmero excessivo. Nunca lhe sujei as meias!
Alongava minha tarefa ao máximo para poder
ficar mais tempo ao lado dele. Como era
sábio!
Sempre que eu chegava, um farto café da manhã
me esperava. Até queijo eu comia! Parecia
mais um banquete! Nutria um carinho especial
por mim... Acho que era mais um caso
de simpatia recíproca, de empatia, de encaixe
completo. Aquela velha história de panela e
tampa... Era mais que isso! Era uma afinidade
tamanha, tão intensa e profunda, que fazia
o tempo voar, que alimentava a minha alma!
Homem de seus cinquenta e tantos anos, mui-
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
REGINA RUTH
RINCON CAIRES
“MEU PRESIDENTE”
to calmo, costumeiramente vestido em terno
de casimira ou de linho bem amarrotado, os
cabelos sempre lustrosos, recendendo à brilhantina.
Mãos grandes, com as unhas sempre
bem aparadas, e trazia no dedo anular um
largo anel de ouro com uma imensa pedra de
rubi. Uma figura marcante, sem dúvida alguma!
Seu João era meu chapa! Sempre que falava
comigo, com aqueles olhos de raios-X, não
hesitava em demonstrar seu afeto e me fazer
um agrado. Às vezes, fico pensando se eu não
encontrava nele aquele pai que eu havia perdido?!
Sei lá... Só sei que ele era muito importante
pra mim! Guardava as suas palavras
como um registro, e as ficava matutando à
noite, antes de dormir. Entre tantas coisas
que me passou, guardo claramente e com saudade
as suas aspirações. Apesar de toda sua
sabedoria, não se aprofundara nos estudos.
Deixava claro em suas conversas o desalento
desta proeza irrealizada. Queria ter sido engenheiro!
Mas, entremeado pelas peripécias que
a vida reserva a todos, não passou do quarto
ano primário. Foi pra luta, trabalhou muito,
e tornou-se cartorário. Aliás, profissão que levou
até o fim da vida!
Mas o que mais me empolgava mesmo, era
a sua campanha política. Conversava horas
e horas, comigo, sobre isso. Estava se preparando
para ser Presidente da República! Hoje
sei que só falava disso comigo, é claro! Falava
sobre suas estratégias políticas, seu plano de
governo, da escolha e da preparação de seus
cabos eleitorais... Juro! Desejava ser um deles!
Eu me sentia tão envolvido com suas ideias,
que queria que os dias voassem para que eu
me tornasse mais velho e pudesse chegar a
ser um cabo eleitoral dele. Verdade! Era até
capaz de fechar os olhos e me imaginar com
as mãos cheias de “santinhos” com o retrato
dele, e com bandeiras trazendo o “slogan” de
sua campanha. Sabe como ele me “comprou”
nesta campanha toda? Com seu plano de mudar
o calendário. Afirmava, e isso acontecia
sempre que nos encontrávamos, que quando
fosse Presidente da República mudaria completamente
o calendário. Não haveria dias comuns
da semana. Nada de feira, feira, feira...
Só existiriam o sábado e o domingo. E mais
ainda, o calendário escolar seria invertido.
No período das férias teríamos aulas, e o período
das aulas seria transformado em férias!
E não era pra eu me empolgar? Estudar só
três meses por ano? Inacreditável! Seria a glória!
Daí o meu interesse pela campanha e pelo
meu ídolo. Ele era o máximo! Quantas ideias
maravilhosas! Como eu o admirava!
Hoje, com os meus cabelos brancos, rememoro
tudo isso e chego a ter ataques de riso
quando penso em algum detalhe particular
daquelas nossas conversas. Propostas utópicas!
Devaneios... Sandice pura! O pior de
tudo é que eu procurava passar essas ideias
adiante! Dentro de minha ingenuidade e afoiteza,
propagar esta campanha era primordial!
Em casa falava com minha mãe, com meus irmãos,
com os vizinhos. Na escola, falava com
os meninos. Mas ninguém me ouvia. Ninguém
se empolgava... Cheguei até mesmo a pensar
que o ideal seria levar todas essas pessoas até
a casa do Seu João, assim ele mesmo exporia
suas ideias e seu programa de governo. Quem
sabe assim, as pessoas se motivariam! Que
nada... Ninguém queria me ouvir... Quando
dava por mim, falando pelos cotovelos, entusiasmado
com a campanha, estava sozinho.
As pessoas davam-me as costas, e eu ficava
119
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
REGINA RUTH
RINCON CAIRES
“MEU PRESIDENTE”
pregando no deserto. Achava-as tolas, desinteressadas,
burras mesmo! Afinal, não davam
ouvidos a ideias de vital importância, a
planos que mudariam totalmente suas vidas!
Seria uma guinada de cento e oitenta graus!
Bobagem... Inútil tentar convencê-las... Eu
me sentia mais triste ainda porque percebia
a minha incompetência como cabo eleitoral.
Nunca poderia ser um deles! Não conseguia
convencer ninguém!
E foram muitos meses assim, anos até! De repente,
a voz do “Meu Presidente” se calou.
Não falava mais... Nem comigo, nem com
ninguém. Ficou triste, abatido. Nem engraxava
mais os sapatos! Também, não os usava!
Só calçava chinelos e quase não andava. Só
que uma alegria eu ainda sentia. Não ouvia a
sua voz, mas seus olhos me falavam. Seu jeito
de me olhar ainda era o mesmo. Transparecia
amor, carinho, cumplicidade. Eu ficava tempo
ao lado dele, sentado em uma cadeira no canto
do quarto. “Meu Presidente” estava muito
mal. Eu não sabia bem o que lhe acometia o
corpo, mas percebia que estava chegando ao
fim. Ao fim da campanha, ao fim da proeza,
ao fim da vida.
E o agosto terrível chegou...
Levou, com seus ventos mórbidos e angustiantes,
a vida do “Meu Presidente”. Velho
amigo! Meu timoneiro!
Sempre que passo por aquela rua, olhando
aquela varanda, vislumbro a sua imagem
no mesmo traje de linho, com aquele sorriso
zombeteiro, com aquele olhar afetuoso, e com
a mesma imponência do “Meu Presidente”.
120
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
RENATA VIVACQUA
Cavalcante - GO
Brasiliense, educadora,
cozinheira, escritora,
cinquentona
e microcontista
em descoberta. Vivo em Cavalcante,
no Goiás. E escrevo
para cutucar sorrisos.
BALÉ GUARDADO
Escolheu uma vida que quis. Vida de desejos rasos,
sexo avulso, escolhas incertas como tanto faz. Comia
se tinha e bebia demais. Trabalhava no que convinha
para manter seu pouco. E era bonita quando
moça. Sorriso largo de covinha, despenteada de preguiça e
com jeito de moleca que todo mundo gostava, menos ela, que
nem espelho tinha. Não amou porque não sabia e pouco se
deu com gente, gostava de ser sozinha. E na velhice, quando
o corpo cansado pedia sofá, suas covinhas se escondiam
nas rugas e seu cabelo era amarrado perto do pescoço como
castigo dos anos de rebeldia, lembrou que um dia quis ser
bailarina. Só quis, porque nada fez. Guardou esse desejo da
mãe tão sofrida, que um dia sumiu no mundo. Guardou tão
guardado que ela mesmo esqueceu. Mas uma hora a hora
chega. Calçou o chinelo com os pés trocados na pressa sorrida,
comprou um espelho, despenteou o cabelo e foi ver o
Bolshoi de camarote.
121
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
RICARDO MAINIERI
Porto Alegre - RS
Poeta e prosador, nascido
em Porto Alegre/RS,
geração 60.
Autor do livro-solo,
em poesia, "A travessia dos
espelhos", 1990.
Owner do blog "Mainieri's"
NEOBARROQUISMO
solte o arpão
que busca
pé-ante-pé
o alvo
escuro
(o alvo de gravata
é inacessível)
viva a dívida
indivisível
com que nos
exploram
implore pois
a alforria
tarda
terceirize sim
seu suor
importante
é o gozo do Outro.
122
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ROBERTA RAMOS
Sintra - Portugal
Professora de português,
procura na
escrita o prazer de
falar sobre as coisas
simples. Vive em Sintra, Portugal,
país que a adotou com
carinho.
PATINHO FEIO
A
vassoura piaçava deslizava pelo chão do
quintal, juntando as folhas que haviam
caído da trepadeira. A mãe via a filha
sentada em cima da mesa de pedra, a juntar
florzinhas brancas e vermelhas, grudando umas
às outras pelo cabinho, fazendo colares e pulseiras.
O pai estava no serviço; as irmãs, bem mais
velhas, na escola ou na faculdade.
A pequena ouviu um “Ei!” vindo do outro lado
do muro. Subiu na mesa e viu outra menininha,
da mesma idade dela. Tinha cabelo preto, franjinha,
olhos sorridentes. A mãe já havia ido para
a cozinha. A menina pegou a escada de madeira,
encostou-a no muro, subiu com cuidado e
começou a conversar com a outra.
- Oi. Qual seu nome?
- Zoe. Quer brincar?
- Quero. Você vem aqui?
- Vou.
Foi simples assim. Criança não precisa de complicação.
Como se fossem amigas há séculos,
deram-se as mãos e foram até a sala. A menina
pegou suas duas fofoletes. Ficou com a azul e
deu a rosa para a Zoe. Os livros da estante viraram
paredes na construção que fizeram: uma
mansão para as bonequinhas. Caixinhas de fósforos
encapadas de papel de presente viraram a
mobília. Tampas de frascos eram bancos. Retalhos
de tecidos cobriam as camas e forravam o
chão. Mesmo os paninhos de crochê que a avó
fizera acabaram por se transformar em cortinas.
Enquanto as operárias-engenheiras-arquitetas
trabalhavam, conversavam sobre a vida. Zoe,
por fim, teve de ir embora, prometendo voltar
no dia seguinte.
A mãe chamou para o banho. Ouviu a filha contar
tudo sobre a amiga. Principalmente sobre
seu irmão, o Túlio Márcio, que era muito legal.
Viu a mãe rir baixinho e não entendeu qual a
graça. Não podia ter uma companheira? Ficou
emburrada até a hora de dormir.
123
De manhã, bem cedo, escapou da cama, saiu da
casa e subiu novamente a escada para chamar a
Zoe. A mãe havia ido à padaria, as irmãs ainda
dormiam, pois era sábado. A brincadeira era
na mesa do quintal. Um lençol velho foi jogado
por cima, transformando-a em uma cabana. Ficaram
lá embaixo, com uma provisão de água
e biscoitos, planejando outros acampamentos
mundo afora. A irmã mais velha apareceu, ouviu
a conversa, levantou o lençol e também riu.
A pequena novamente fechou a cara, pensando
que a irmã tinha debochado da amiga.
Cada dia era uma brincadeira diferente. Bonequinhas
de papel, vai-e-vem, pique-esconde, dominó,
desenho. Zoe era a melhor companheira.
Nunca reclamava de nada, estava sempre por
perto. Gostavam das mesmas cores, não brigavam
durante os jogos, jamais havia rivalidade.
A menina sentia-se feliz, pois não havia outras
crianças nas redondezas. Ela, “raspa do tacho”,
estivera sozinha por tanto tempo!
Gostavam de desenhar juntas. Uma fazia o gramado;
a outra, as nuvens. Uma traçava a cabeça
do gato; a outra, o corpo. O lápis preferido da
menina era o verde-água, já muito gasto. A caixa
de 24 cores havia sido um luxo, nem sabia
quando teria outra, pois o dinheiro em casa era
contado. Mesmo assim, ela o emprestava à Zoe,
sem ciúme.
Mais um dia, mais uma brincadeira. Dessa vez,
chama Zoe para “lerem”, mesmo não sendo alfabetizadas.
Ela já sabia a história do Patinho
Feio, sua preferida, de cor. Sentam-se juntas na
poltrona da sala de TV. Começa a ler, em voz
alta, e a amiga continua. Revezam-se, cada página
lida por uma. Só havia um livro.
A mãe passa pelo corredor e ouve a voz da filha,
seguida de outra, diferente, mais aguda. Já sorrindo,
abre a porta.
Na poltrona imensa, apenas duas perninhas balançando.
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ROQUE ALOISIO
WESCHENFELDER
Graduado em Letras,
professor
aposentado de
Português e Inglês,
faz revisões, traduções e
publicação de livros. Premiado
em mais de 300 concursos
literários, é autor de 16
livros solo.
ME ACHEI
Me perco e me acho seguidamente,
porém, a última vez foi mais difícil.
Eu tinha ido pescar no rio
que divisiona o município com
outro e tem uma bela cascata, lugar em que
muitas pessoas vêm passar algumas horas para
viver em contato com a natureza.
Caniços com anzóis, iscas num tubo de plástico,
mais alguns apetrechos normais, uma garrafa
com água pra beber na sacola, cheguei à
cascata descendo uma ladeira que é nada fácil
subir na hora da volta. Pescar no poço em que
cai água da altura de uns quinze metros é uma
gostosa aventura, precisa vadeá-lo até a fundura
das coxas em tempos normais e depois
escalar uma pedra e pular desta até outras em
sequência para chegar onde os jundiás gostam
de esperar os petiscos que a cachoeira traz.
Tudo isso foi normal, embora, por pouco, não
tenha caído no último pulo direto para dentro
do poço na parte já com águas revoltas e da
fundura de três metros. Vários afogamentos já
ocorreram no local.
Estranhei que nesta tarde de domingo ninguém
estivesse pescando ainda. Me ajeitei como
pude, isquei dois anzóis e os lancei na água, um
segurei com a direita e outro firmei o caniço
com o pé. A água era bastante clara e isso não
é bom pra pegar jundiá em partes calmas, mas
nas turbulências nada disso importa. Aquelas
gatas, que via outras vezes aqui tomando banho
num poço com águas mais calmas, logo
ao lado onde o rio forma uma ilhota, também
não apareceram ainda. O ronco da água caindo
penetrava até o mais profundo da alma e
despertava lembranças de muitas pescarias em
tempos passados pelos rios da vida. Um firme
puxão no anzol na mão acordou-me dos devaneios,
dei um pouco de tempo e em seguida
ergui um belo exemplar de uma tilápia, certamente
um remanescente de uma limpeza de
açude, quando os proprietários descarregam
baldes e baldes destes peixinhos no rio. Alguns
sobrevivem e com sorte pode-se fisgar uma
como a que estava segurando.
As gatas caminham pela praça e observam os
rapazes com suas motos potentes ou seus carrinhos
envenenados pela avenida. O calor faz
com que o essencial em roupa as deixe mais
sensuais. No banho elas são sereias, na praça
poderiam ser divas e eu, nunca notado por
elas, imaginava que já não fazia o tipo que
anda de Cebê ou de Escort turbinado, mas não
sou morto, muito menos cego, embora apenas
um olho tenha sobrado da recaída de sarampo
aos três anos de idade.
Tenho de trocar o caniço de mão e pegar o firmado
pelo pé, pois um dos grandes quase me
desequilibrou. Dou-lhe um pouco de linha e
quando eu puxo, sinto a resistência dele. Com
mais um esforço vejo-o subir no ar e se desprender
caindo de volta na água. A pescaria
promete embora as gatas estejam na praça e
não tomando banho, como eu mais gostaria.
O marulhar forte da cascata, o ronco das motos,
a buzinada dos Chevetes, um pio intenso
de gavião, algumas gralhas voando baixas por
entre os arbustos, as pombas rolas caminhando
mansamente na praça entre os passeantes
de domingo, o pensamento no pretérito mais-
-que-perfeito, um novo puxão no anzol, uma
tilápia pequena apenas, vozes na mata; devem
ser rapazes que vêm espreitar as gatas no banho
– que decepção eles terão, vendo apenas
um vulto sobre uma pedra e uma sacola com
duas tilápias! – tá dando peixe? – perguntarão;
não entendi direito a pergunta e não respondi;
um deles vai para o Monza todo incrementado
e com o som no volume máximo, duas gatas
embarcam; no puxão que sinto na vara parece
124
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ROQUE ALOISIO
WESCHENFELDER
ME ACHEI
que o perdido voltou, com esforço especial um
belo jundiá vai para a bolsa; já daria para uma
boa fritada, as vozes calaram e as gatas saíram
juntas no Monza...
Precisava me achar. Tudo rodopiava com essa
água turbulenta, mas isquei outra vez os anzóis,
afinal não é sempre que esta pedra está
sem dono quando se chega ao rio. O Dijei
anunciou que em dez minutos todos os carros
concorrentes ao melhor som devem estacionar
no lado direito da praça. O Monza com
as gatas deve voltar. Quem sabe, desta vez elas
resolvam entrar na água e sair depois com os
biquínis coladinhos e escorrendo água pelo
corpo todo! Em pouco ao redor da praça pararam
Escorts, Chevetes, Monzas, Unos e até
alguns Fuscas, cada um mais envenenado que o
outro. A zonzeira era mais forte que o barulho
da água da cascata, e os peixes parecia terem se
assustado com ela.
Insisto em pegar mais algum peixe, mas em
vão. As gatas rodeavam os carros e cada uma
beijava cada um dos magrinhos motorizados.
A praça parecia uma obra de arte de Aleijadinho,
ele teria de arrumar muita pedra-sabão
para esculturar tantas beldades. No tempo dele
não as deve ter havido, porque ele preferiu os
profetas bíblicos. Mas esses eram outros tempos
em que escultores e escribas não se perdiam
como pescadores e como apreciadores de
corpos femininos com pouca roupa. Diziam os
padres que a bíblia proibia andar assim. Agora
elas nem parecem mais saber de bíblia e religião.
Esta é só para consumo, serve para festas
de Natal, Carnaval, Páscoa e Batizados, pois
nem Casamentos quase não são mais celebrados.
Mas onde eu estava? Pescando no rio? Então
meu carro ficou no pátio de um amigo na vilinha
lá fora da mata. Passeando na praça? Então
estacionei numa rua não longe dali. E agora?
O que poderia fazer? Como me encontrar?
Tentei enrolar as linhas nos caniços e pular de
volta às pedras. Estava tonto e não sabia se não
cairia na água. Tentei caminhar para uma rua
adjacente, nem um santo ou profeta era capaz
de dizer onde estacionara. Perguntei a uma
gata menos exibidona que estava acompanhada
de uma menina, devia ser sua filha, se ela
viu um Fiat Uno azul por perto, ela disse que
não prestava atenção a carros. Tomei coragem
e pulei para a outra pedra e a custo consegui
me equilibrar. Fiz o caminho de volta e vadeei
a última parte. Tentei escalar a encosta. Parecia
tudo estranho, estava querendo escurecer e o
trilho da encosta estava úmido e escorregadio.
Em nenhuma das ruas que procurei encontrei
o carro. A zoeira parecia ser um ronco de temporal
que está prestes a despejar uma chuva de
granizo. A cachoeira roncava na minha cabeça
e a muito custo subi no quase escuro os últimos
degraus da ladeira e saí da mata.
Todos corriam. O Dijei e seus ajudantes desmontavam
às pressas as instalações de som. Os
magrinhos fechavam as portas e arrancavam
com roncos e buzinadas. As gatas corriam desesperadas
tentando arranjar caronas. As primeiras
grossas gotas caíram e os raios e trovões
se sucediam numa infernal barra-funda. Corri
o quanto pude para chegar ao pátio na vilinha
fora da mata e acabei entrando num ônibus
que chegou à parada. Finalmente me achei em
casa e o Uno estava na garagem. O temporal
cessou e já não ouvia ronco de cascata e nem
de zonzeira na praça. Fui dormir sem limpar e
nem fritar os peixes.
125
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
ROSÂNGELA DO CARMO
Belo Horizonte - MG
A BENDITA TIMIDEZ
Por dias estive a compor uma melodia como um presente pra você
Mas ela não conseguiu romper a distância que nos separa
Então roguei aos meus amigos alados que a levassem consigo
mundo afora
Sei que seus olhos estão sempre a buscar o céu
E quando isso acontecer
Vai perceber que ele não está mais nublado como de costume
Foi minha blue note que o tingiu de azul só pra chamar sua atenção
e poder derramar sobre seus ouvidos sedentos,
a nossa canção.
Nascida em Teresópolis
RJ é
cronista e poetisa,
atualmente
é editora do jornal cultural
Escritores da Serra, estudante
de Bacharelado em História
e criadora do Blog Paixão
Crônica.
126
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
SARTRE
Belo Horizonte - MG
127
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
SAUL CABRAL
GOMES JÚNIOR
São Paulo - SP
Graduou-se em Letras.
Em 1998,
obteve o 4º lugar
no Concurso Nacional
de Contos "Cidade de
Araçatuba". Seis anos depois,
teve uma poesia classificada
no VIII Prêmio Escriba
de Poesia.
O CAMINHANTE
O
dia que parecia um dos dias clarividentes,
desses que povoam os calendários,
intumescentes sob o tic-tac dos relógios,
avolumou-se, sobrepujou as nuvens
de inércia, dilatou-se em águas lúcidas,
perfurou a crosta de suculento tédio
em que a alma se farta, abriu-se
na trilha insólita à qual sucumbe
o juízo, à qual meus pés aquiesceram,
ainda que as pedras quentes sorvessem
meus sapatos, ainda que as roupas,
extenuadas, me fugissem ao corpo,
ainda que o peso sobre minhas costas
dissimulasse o domingo, ainda assim,
caminhei,
apoiando-me em passos descompassados,
caminhei,
atravessando olhares arrítmicos,
testemunhei a fumaça desgovernada,
o barulho promíscuo desembocarem num azul
que fere os olhos da moça que passa,
inalei o cheiro que exalava dos bancos da praça,
afugentando os pássaros embebidos no chafariz,
debrucei os olhos, esbaforidos, sobre o chão,
fluí pelo desvio milimetricamente projetado,
transcendi a couraça dos aglomerados ônticos,
esbarrei numa silhueta oscilante,
incitei o iminente
risco: revolver-se o rançoso rebuço do rancor,
um broche retiniu no áspero pavimento,
salvei-o do asfalto férvido,
128
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
SAUL CABRAL
GOMES JÚNIOR
São Paulo - SP
O CAMINHANTE
com o queixo cravado no peito,
preparei-me para o trovão
que o céu jamais havia parido,
transfigurei-me no receio sublimado a pavor,
ergui-me à altura do ventre anoitecido,
veio, então, a sinfonia redentora,
subvertora dos medos insculpidos em minha pele,
ouvi as partituras enclausuradas
por um deus ensurdecido,
ouvi a primavera soar dos poros da atmosfera cinzenta
que imortaliza a morte diária, fluida,
indolor que a Vontade, sorridente, acalenta,
ouvi a fúria do cotidiano,
insuflada na esdrúxula sentença: “muito obrigada”,
no domínio de meu profuso olhar,
uma sombra, desfiando-se, habitava o longe,
deixava um rastro de dama medieval,
procrastinava as manhãs anestesiantes,
ofertava o que a mão impetra e a Ideia não ousa fabular,
absolvia o riso dormente,
restou-me colher os resquícios do dia límpido,
sem reminiscência que não a assombrosa carícia,
venha o suor ácido que pinga
dos manuseios irrefreáveis,
venha o veneno que espirra
das filas ofídicas rastejantes no tráfego,
venha a histeria que emana
do coro desatinado de ofícios inebriantes,
eu vi nascer, no meio do dia,
a flor eterna da gratidão.
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
SHIRLEI HONORATO
Caieiras - SP
A FALA ESTÁ FLORESCENDO
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
COSTELAS
SILVA DE OLIVEIRA
Manaus - AM
osso por osso
pulmões inflando
alvéolos enchendo
preenchendo
o cheiro no ar invadindo as narinas
o cheiro no ar
almiscarado... embriagado. Embriagado,
sonhos adocicados com um toque de luxúria, desejo.
Desejo,
osso por osso
pulmões queimando
o coração bombardeando juventude.
Nascido e criado
em Manaus, no
estado de Amazonas,
Silva de
Oliveira é o pseudônimo de
um jovem de 21 anos apaixonado
pela arte da escrita e
o poder das palavras.
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
SAUDADE
TERESA BARRANHA
Portugal
Corremos atrás da saudade
em sentido contrário da vida,
calcando as folhas do livro
que sobraram da história.
Saudade, carregamos às costas.
A vida, transportamos no colo!
O futuro levamos, cuidadosamente, na mão.
132
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
TIAGO TEIXEIRA
OLIVEIRA
SEGUIREI
133
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
VALÉRIA PAZ
São Paulo - SP
OUROBOROS
Tem um vazio todo dia
me devorando pelas beiradas
quando chega no âmago
no centro do nada
me vomita num jorro
e começa de novo
como aquela cobra infinita
maldita com um furo no meio
ciclo da vida uma ova
porque de onde eu olho
é só destruição vagarosa
um retorno perpétuo ao oco
que transborda da minha boca
Mestre e doutora
em Letras
pela USP, com
trabalhos sobre
poesia e mídia. Foi professora
durante 30 anos. Aos
55 anos, arriscou-se a lançar
seu primeiro livro, Era vida e
se quebrou (Penalux, 2021).
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
VALÉRIA PISAURO
Campinas – SP
BABEL
Da prosa prefiro a rosa,
Não me importa, poetizo.
Ao acaso arrisco,
Café, cafuné.
Açúcar mascavo,
Não sou de tico-tico,
Viro a mesa, alinhavo,
Sinuca de bico,
Não desisto,
Desconheço ré!
VALÉRIA PISAU-
RO, natural de
Campinas-SP,
exerce intensa atividade
na literatura e na música,
como poeta, roteirista
e letrista musical. Possui vários
trabalhos literários editados
e poemas musicados.
Na volta das horas,
Pecado cor de amora,
Devoro a descida,
Driblo a esquina,
Num carrinho de rolemã.
Faço cena, declamo um poema
Em dias de Reis,
Divinos grãos de romã.
Ceifo Saturnos feito revés,
Mantra de papel,
Semeaduras, grãos e cordéis,
Torre de Babel!
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
WELLINGTON AMANCIO
DA SILVA
VESTIDO DE TAFETÁ
Quem escreve ficção no fundo diz — parte
do que vi, aqui está.
Lembro-me como se ainda agora ocorresse,
mas não sei definir ao certo se me pertence
e o que hei de fazer com isto.
O dia em que vi Liúna. Achado de pérola
num campo. Seu movimento. Anseio nos
gestos das mãos. Reaver a leveza; nela
recostar-se, vê-la. Vestir-se dela. Senti-la
num senso de novidade. Eis o dia igual a
quem retorna, nítido, delineado. Apenas
vestir-se do que sereno vier ao olhar. Usar
por usar, sem palavras mais profundas.
Ela — vestido de tafetá vermelho vinho,
pele aveludada em roupa fina; passos sem
igual nesta terra. E chegou-se como se
alegre, e sentou-se ali, numa cadeira de
recosto vermelho, e respirou com muito
gosto e olhou-nos. Renovo — sabor e perfume
de festa. A mesa e seu bordado em
renda guipir; flores vermelhas ao centro,
num vaso negro; mãos apalmadas sobre a
mesa — eu as vi apalmadas sobre a mesa,
e também contentes, as mãos dela. As flores,
o pano bordado, os talheres e os pratos
para ela. Vi-a de soslaio. A luz malva e
esbranquiçado sobre o verde; o aramado
negro do caderno branco, um texto em
letras cursivas, letras derreadas, em grafite
grosso e maquinal, um texto em forma
de verso, seu espírito que não desvelo.
O verde fértil, a esperança circundante,
a copa densa das árvores cacheadas de
sombras de brandura. No quintal, a mesa
alegre à presença dela. Auspícios em nosso
meio, e nós entre nós. Uma criança de
colo dorme em lábios rosados; uma mão
idosa, feminina, afaga a criança; afagos
precisam de uma criança. E dorme, com
se a paz fosse instaurada em todo lugar. O
sonho tem o gosto de mil notas. Invejo as
crianças. Gravetos que estalam; o ranger
terno de um tronco; o silvo entre as folhagens.
Auspícios em nosso meio. Grama
verdinha e o orvalho que perdura, e ela
sentada observa, não sei para onde para
quê; o caderno fechado. Se o dia não fosse
somente dela. Um burburinho tenaz não
sabe o que quer. Ninguém faz questão,
ninguém jamais ouviu um burburinho. O
amor é uma boa morte. E os anjos têm
asas frágeis, mas creem que podem voar e
voam. Liúna, a moça do vestido vermelho
vinho, sabe mais que aquelas árvores antigas
o que deseja um moço feliz. Como na
fábula, esse moço vê a musa e por instante
não quer morrer, nunca mais. Liúna é uma
ideia para mim, tenho que reconhecer. Insondável
mulher. Vejo-a belíssima, quase
ao meu lado, e percebo que não sei nada a
seu respeito. Nenhum homem neste mun-
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
WELLINGTON AMANCIO
DA SILVA
VESTIDO DE TAFETÁ
do conhece uma mulher, mas ele gosta de
imagina que conhece. Essa imaginação é
uma mentira, e tão necessária para que se
mantenha sendo o homem que é. Observo
o alto e respiro fundo; acho que o dia argênteo
não permitiria certos voos. O que
poderia acontecer? Uma chuva do tamanho
do mundo, do tamanho do mundo.
Uma chuva que aponta lá longe. Um sopro
torna-se vento e o vento é premente
no rosto dela, um silvo comprido, é agosto.
Arborosas pendem, de um lado para
o outro pendem, e nunca vi uma dança
tão feliz. Há quem não leve a sério o céu?
Cansa-me pensar em voltar para casa, e eu
mantenho-me sentado ao lado dela, quase
tocando a orla mágica daquele vestido. E
as suas pernas. Uma chuva do tamanho
do mundo. A manhã nubla-se de repente
e profundamente. As serras distantes cor
de chumbo nos ensinam que a manhã é
senhora de si, como Liúna, e tudo se reveste
de um mando opaco. As serras se
perdem num manto de chuva. Liúna se ergue
e corre até a varanda, a trinta metros.
Permaneço sentado, olhando-a. A chuva
cai e eu me deixo encharcar. Emudecido,
observo Liúna que parece sorrir vendo-
-me sentado à chuva. Alçada esta vontade
que o silêncio veste de abrasadura. Permaneço
sentado, mas não em paz. Ouço
vindo de longe as gargalhadas mais musicais
do mundo e meu coração dispara; Liúnaatravessa
a chuva segurando a orla do
vestido, ela corre. Vem até mim e me olha.
Desce ao fundo da mesa, e fixa-se a me
encarar por entre o forro bordado — seus
olhos me recontam do peito para dentro
e profundo. Eu a contemplo e junto-me a
ela num beijo, como se fosse o último e
decisivo, como se fosse o fim do mundo;
seguro seu rosto, beijo sua boca mil vezes
e rapidamente, beijo-a no pescoço como
se eu tivesse uma sede estranha, sinto o
veludo finíssimo se eriçar em sua nuca.
Esse fogo inútil é o que quero e insisto em
que dure. Mordo-a com carinho, percebo
que está de olhos fechados, a boca entreaberta,
como se num transe. Dela, cada
pequeno gesto é um Acontecimento. Nunca
antes beijei uma só mulher em minha,
ainda que as tenha amado, no passado.
E se há bonança no mundo, agora, eu a
quero, e digo isto para mim mesmo, enquanto
estou absorto em seu ventre.
137
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
WERVERTON S. SANTOS
Salgueiro - PE
O PIQUETE
As presentes obras disponibilizadas,
contam em suas narrativas os momentos
de lazer de duas crianças irmãs nascidas
e criadas em umas das regiões mais periféricas
da cidade de Salgueiro, localizada
no sertão central Pernambucano.
As obras mostram uma divisória do espaço
de lazer com o espaço de serviço
geral de sua casa.
Os mesmos usufruem de todos os ambientes
de sua casa para poder brincar e
se permiterem e possam encontrar magia
e beleza para enfrentarem situações de
conflito ou privação de direitos sociais.
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ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
YASMEEN PEREIRA
DA CUNHA
Goiânia - GO
RAINHA DE ESPADAS
Dia e noite é sempre à noite.
O dragão de mil olhos espreita,
rainha de espadas, não vê, mas luta.
E luta porque na escuridão habita seres indizíveis.
Abaixo da rainha, há um olho que tudo vê,
que tudo percebe, paralisado, confronta.
E o dragão de mil olhos é três ou quatro
talvez cinco
ora furioso, ora certo de sua vitória,
ora apenas ali, sorrateiro, à espera.
Porque de olhos vendados a rainha de espadas
prevê os movimentos, prevê à sua volta.
E o dragão de mil olhos e mil cabeças
permanece entre o que ela deseja e
o que ela vai ter.
E à noite, de dia, com as espadas
não abaixa a guarda.
A todo momento, em línguas que não sei,
o dragão de mil olhos observa.
Digo:
de olhos vendados, percebo os movimentos,
os sons e o vento.
Em línguas que não domino,
a besta de mil olhos encanta e graceja
vocifera e teme.
A rainha de espadas luta,
em todas as línguas possíveis,
com coisas incontáveis.
A rainha de espadas luta só,
só e somente, contra feras
desconhecidas.
Ela vive o limbo, o escuro,
que em línguas que não domino,
é sempre noite, é sempre lúgubre,
é sempre reconhecível e sempre e
a toda hora o lugar em que vive.
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