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Cartas de amor
são ridículas
ANO 1
Nº 3
AGOSTO/SET.
2021
Meu amor,
Lembro-me quando eu tinha oito ou nove anos e meu pai apontou-me
para uma estrela bastante específica no céu noturno, brilhando intensamente. Disse-me
que aquilo não era uma estrela, mas sim o planeta Vênus. Fiquei tão encantado
de estar enfim vendo um planeta que a todos que eu encontrava e estivesse de
noite eu apontava para o céu e mostrava-lhes Vênus. Faz já muito tempo que não
a procuro, na verdade faz muito tempo que não paro para olhar as estrelas. Será
que, se um dia eu voltar a levantar os olhos para o céu estrelado, reencontrarei
aquele planeta brilhante em meio às estrelas?
Se tenho um grande medo, é de que um dia isso aconteça conosco. Pois
entre tantas estrelas que andam pelas ruas, você é a que mais brilha. E isso porque
você não é uma estrela: é um planeta cheio de vida, cheio de beleza. Um ponto
onde posso firmar meus pés e sentir-me estável, em paz. E assim como meu entusiasmo
de criança por um ponto brilhando no céu, a todos que vejo aponto para
você e falo: este é meu amor, esta é minha paixão, esta é a estrela que norteia
minha vida.
Mas por quanto tempo será isso? Será que um dia não serei mais capaz de
apontar para você, assim como não consigo mais apontar para Vênus? Meu Deus,
quantas coisas de lá para cá aprendi a esquecer! De estrelas no céu a fórmulas
matemáticas, às vezes penso que não ficamos mais sábios com a idade, apenas
mais ocupados. E eu certamente não quero te esquecer. Não quero deixar de te
reconhecer. Não quero um dia ouvir perguntas às quais não saberei responder.
Quero sempre poder dizer sobre o brilho de seus olhos, as covinhas de seu sorriso,
o conforto de seu abraço.
Peço-te então apenas uma única coisa: que nunca me deixe olhar para o
chão. Que nunca me deixe perder você de vista. Quero sempre olhar para você,
apontar para você, falar de você para o mundo inteiro te reconhecer. Dizem que
as estrelas estão tão distantes que o que vemos é apenas o passado dela, devido à
demora que leva para sua luz nos alcançar. Pois então, que da mesma forma eu te
olhe e veja apenas aquele encanto de quando sua luz me atingiu pela primeira vez.
Do seu maior admirador.
David Ehrlich
Curitiba/PR
Nossocanto, 08 de julho 2021
Amor,
É, amor, difícil não acreditar na pessoa do Pessoa, quando permitiu Álvaro de Campos
caracterizar as cartas de amor... Pensasse um pouquinho, entenderia o ridículo
das cartas...
Quanto ridículo se enraizou em minha memória e, com um punhadinho de fertilizante,
fiz desabrochar quadrinhas de paixões, roxas, contundentes, rubis..., algumas
murcharam, perderam folhas, cores e até alguns versos. Entanto, mesmo tolhidas,
continuaram entoando notas de amor... formando sonetos multicoloridos.
Os pombos passaram levando mais cartinhas, ridículas como o amor solitário desses
anos todos. Amor de algodão, de cristal, de prata que se transforma em ouro, em
breve, diamante.
Quanto mais sonhos, surpresas, tilintar de taças, vinhos e comida boa, mais reciprocidade,
bilhetinhos, maior respeito às amplas jornadas de trabalho, menos memorandos
e mais epopeias. Longa estrada, quase verdadeiro amor, igualzinho ao das
novelas e da música brega que dizia: "A gente morou e cresceu na mesma rua, como
se fosse o sol e a lua, dividindo o mesmo céu (...) o tempo passou e eu sofri calada...
num cantinho rabiscado do verso, (...), estou casando, mas o grande amor da minha
vida é você..."
Às vezes, sinto a fria parede erguida entre nossos corações. Ardentemente faço crescer
o meu desejo de apertá-lo em meus braços, de abraçá-lo mais e mais.
Meu Deus! Que pieguice... E mais piegas as lembranças se formam diante dos cabelos
brancos que insistem em mostrar uma velhice que tende a ser tão dócil, irresponsável,
vaidosa...
Ah, o amor, o amor não é só tolo, imbecil e intenso, o amor é mais ridículo, quanto
mais se propõe ao enlace, ao amanhecer abraçadinhos, ao gosto de mel e à fragrância
das rosas e de flores perfumosas.
Ainda me lembro daquelas histórias do amor de Peri por Ceci; de Iracema por Martim;
de Romeu por Julieta; de Otelo por Desdêmona. Meu Deus! Sei que o nosso
amor é assim! Que até seríamos capazes de morrer por ele...
Entre altos e baixos, encontro um bom motivo para lhe escrever mais uma cartinha
de amor... é tão doce praticar esse ridículo, mas poucos são capazes de fazê-lo depois
de 40 e uns anos de convivência e de amor... ainda que por todo esse tempo, a cada
vez que abro os olhos, vejo outro em seu lugar, e sinto mais forte a sua falta. Te amo
nesta vida para estarmos juntinhos na outra.
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