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Traços 3

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ANO 1

Nº 3

AGOSTO/SET.

2021

ALBERTO ARECCHI

Pavia – Itália

O DIABO DA NUMÍDIA

fósforo, a larva brilhava de luz própria, pairando

e mexendo, aqui e ali.

Sentia-me em perigo imediato, o fantasma bailarino

me assustava mais que as rajadas e a tempestade.

Tinha que me forçar a ficar firme, os olhos bem

abertos na noite, tinha que não distrair-me. Sabia

instintivamente que, se seguir com os olhos os movimentos

da aparição, escaparia para fora da estrada,

descendo a ravina íngreme. O vento trazia

rajadas violentas de chuva. O confronto armado

parecia ter acabado, mas alguns tiroteios isolados

ainda ecoavam na escuridão. Os olhos corriam entre

as sombras de tuias e carvalhos, procurando o

brilho de uma arma ou o movimento das capas

dos rebeldes. Em vez disso, só via redemoinhos e

ramos, balançando nas rajadas do vento; mas no

jogo de luz e sombras, às vezes, até mesmo transparecia

o sorriso atroz da visão. A máscara me

convidava para acompanhá-la. Girou e veio descansar

em uma clareira, a cerca de cinqüenta metros

da estrada.

Então, a face do sorriso satânico explodiu em mil

fragmentos: estilhaços de luz, madeira, metal e

terra úmida. Um morteiro atingira uma barraca,

um pequeno depósito de munições. Longos minutos

de fogos de artifício. Parei, sai do veículo e me

aproximei cautelosamente à clareira. Deitado em

seu próprio sangue, um jovem soldado camuflado,

com o rosto desfigurado pela explosão, engasgava

e morreu em meus braços. Eu nunca vou saber

se era um francês, um mercenário da Legião ou

um rebelde. Nenhum sinal o identificava, e face

da morte os jovens são todos iguais. Ao longo

dos últimos suspiros, ele tirou do bolso o retrato

de uma menina apertando-o convulsivamente na

mão, como se estivesse tentando se agarrar àquela

última esperança, última memória. Deixei-o lá, na

chuva, na escuridão e no silêncio que se tornaram

absolutos. Na estrada, com os faróis acesos, meu

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carro estava esperando.

Durante essa viagem, cheguei em Souk Ahras que

já era noite avançada e encontrei dificuldades para

achar um quarto para descansar. Tive a sorte de

ver nas ruas desertas um funcionário público, que

se ofereceu para chamar os poucos hotéis na cidade,

e me arranjar uma cama. Ainda me lembro

da estalagem esquálida, cujos lenços tinham definitivamente

perdido sua inocência e foram tão

endurecidos para ficar contra a parede, na posição

vertical, sem cair. Fiquei completamente vestido

na cama, grato à noite fria. Dormi muito pouco,

ainda abalado pela viagem na tempestade, pela

visão, os tiros, a imagem daquele jovem morrendo.

Acordei e retomei o sono, pelo menos, quatro

ou cinco vezes: a noite nunca passava. No dia seguinte,

a tempestade se acalmara e o céu estava se

abrindo, o vento não trazia mais nuvens. Assim

como não havia luz suficiente, eu continuei a viagem

para Argel.

Na minha longa estadia nesses países fui capaz de

descobrir, a partir de livros e conversas, as lendas

que são contadas, sobre aparências semelhantes

ao fantasma que eu tinha visto naquela noite.

O “diabo da Numídia” materializa-se como uma

larva ou um fantasma, em ocasiões especiais, para

prever - ou evocar - eventos desfavoráveis, em certos

vales as montanhas entre a Tunísia e a Argélia.

A gente diz que o diabo aparece na Numídia

quando alguém tem que morrer de uma morte violenta,

mas também para abrir brechas temporais,

aberturas que permitem conhecer o passado ou o

futuro.

Nessa noite de tempestade, a larva não tinha vindo

para me levar, ou talvez... Quem sabe? O que

é certo, é que a morte tomou uma vida naquele

lugar, naquela hora - mas em que ano, em qual dos

muitos mundos paralelos?

O diabo da Numídia lá estava.

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