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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

CLARA

GERHARDT DAVID

São Mateus - ES

Clara Gerhardt David,

21, é uma brasileira

por excelência

(e também por

nascimento). Apaixonada

por humanas, música, gatos

e cachorros. Ansiosa por

diagnóstico e agitada por natureza.

Uma sonhadora.

ANSIEDADE

Sabe aquela hora quase noite? Quando as luzes

da rua começam a se acender e o calor do

sol é apenas uma lembrança nos seus braços

que começam a ficar arrepiados. Eu caminhava,

em meio a pingos de chuva e a escuridão

que me abraçava. O céu, todo cheio de nuvens, parecia

até falar comigo, chamar-me para mais perto.

É que, entre o corpo e a mente, a terra e o céu, estou

mais lá que cá. Enquanto andava pelas ruas de

chão de terra, desviando das poças d’água, aproximava-me

mais do mar. Nesses dias, quase ninguém

sai à noite, por ser tão inconveniente. Mas são os

meus dias preferidos. Antes da beira da praia, tem

uma avenida e uma orla, onde as pessoas geralmente

se exercitam. E quanto mais se adentra as pontes

de madeira para o mar, mais escuro fica. E só se

vê o mar pela espuma branca. Eu pisei na areia e

me escondi de quem pudesse ir para lá. A restinga,

composta de cactos, de guriris (coqueiros pequenos)

e diversas outras espécies nativas, me protegia.

Enquanto eu olhava o mar, eu tinha medo e apreço.

Medo, porque sempre sonhei em estar na praia e

a maré, tão alta, me puxa e não me deixa sair da

praia. Enquanto a coluna de areia à minha frente

desmorona quando passo os meus dedos nela para

me agarrar. E eu nunca consigo sair de lá. E apreço,

porque, enquanto a maioria associa viagem a um

avião ou carro, eu penso em um navio. É a forma

mais simples de se viajar a outros continentes. A

mais primitiva. O mar nos conecta. É nossa primeira

forma de conexão. A mesma água salgada que

eu toco é a que alguém em Singapura toca. Mesmo

tão distantes, nos encostamos e nos conhecemos.

Sabe aquele barulho de mar? As ondas quebrando

e pouco a pouco se tranquilizando na beira da

praia. Indo e voltando. Enquanto chove, eu choro.

O mundo para. A noite cai. E as ondas quebram.

O vento gela meu corpo e eu tenho medo da tempestade.

Luzes, bem ao longe, indicam raios. Mas

não se ouve seu barulho. Você sente que não cabe

naquele lugar. Que tem de sair dali. Será que o mar

pode me levar? Se eu pegar um barco, eu consigo

fugir? Para onde eu vou? Como saio daqui? Será

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que me entrego? Eu vou desaparecer se eu entrar

no mar. As ondas vão me levar. Se eu sair daqui,

será que chegarei a algum lugar? Eu não sei. Se eu

te chamar, você vem? Não. Nenhuma mensagem

ou chat em meu telefone vale a pena meu tempo

agora. A ansiedade em mim me faz imaginar meu

corpo ser engolido por diversas ondas e afundar.

Me faz ir de viagens de avião a conhecer pessoas,

a me machucar, a sofrer por não viver, por querer

viver e não saber como. A fala atropelada. É mais

comum do que se pensa. Mas eles não parecem entender

que eu tenho tanta raiva dentro de mim que

poderia explodir a qualquer momento. Eu quero

te machucar. Eu posso te machucar. SAI. Para. O

tempo não para. O mundo deveria parar. Para de

produzir, para de querer agradar. Para de escrever,

de querer fazer. Para de pensar. Eu não consigo. A

chuva cai. Ela me molha. E eu gosto. É aqui meu

lugar. Quieta, no escuro. No molhado. Onde ninguém

fica. Onde ninguém quer ficar. Deixe estar.

Deixe se envolver até implorar para ir embora. Eu

não sei se sou suficiente para eles, para você. Eu

sempre extrapolo. Eu sou fora do normal. Eu não

quero ser normal, eu quero ser algo que ninguém

é. Eu quero crescer, eu quero que vejam tudo o

que há em mim. Olhem como eu desenho, olhem

como eu falo inglês, espanhol, francês e mandarim.

Olhem para mim. Meu escritório. Minha casa.

Minhas viagens. Olhem. Prêmios. Dinheiro. Reconhecimento.

A melhor. Eu só serei alguém digno de

amor se eu conquistar algo. Até lá, eu vou recusar

seus carinhos, eu vou recusar ficar bem. Eu vou me

punir. Eu preciso sofrer para crescer. Como? Como

vou conquistar tudo? Como vou conquistar o mundo?

Quantas páginas preciso ler, quantas provas?

Quanto sacrifício? Quanto suplício? Para eu dar

orgulho, para eu merecer. Para lembrarem de mim

e me citarem como David. Para ter certeza de que

falarão de mim mesmo depois da minha partida.

Olha como a ansiedade é. Ela corrói. Ela destrói.

Ela me quebra, me dilacera e me dá energia para

me reconstruir do chão e me refazer maior, até cair

um raio e desmoronar o castelo. Como se não fos-

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