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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
JOSÉ CARLOS VAZ
São Paulo - SP
Professor da Escola
de Artes, Ciências
e Humanidades da
Universidade de São
Paulo. Pesquisa esportes implausíveis
e atualmente prepara
livro sobre a obra do
escritor Breno Caldeira.
ESTÔMAGO
Traz um sanduíche para mim. Estou
meio mole. Acho que vou ficar gripada.
Veja o que achar mais gostoso.
Estômago está com fome.
O sanduíche veio logo. Do hotel até a praça
são cem metros, uns vinte minutos, tudo: o
ir, o pedir, o esperar a preparação, o pagar, o
trazer.
Quando voltei, parecia que ela estava febril.
Tossia. Pus as costas da mão em sua testa. Ao
tato, parecia quente. Um pouco de coriza e o
olhar caído. Estômago. Comeu o sanduíche
com gosto, mesmo adoentada.
Vendo que piorara, ofereci buscar um remédio.
Falou que não precisava, mas insisti. A
farmácia do outro lado da praça, quando
fui comprar o sanduíche vi que estava aberta.
Estômago. Pediu para trazer um sorvete,
também. Antes da minha expressão de espanto,
percebeu o que falou. Traz um docinho,
então. Sorvete nesta situação é demais, né?
Aquele né que costuma soltar no final das frases
tem uma graça muito própria. Estômago.
Comprei remédio, pastilhas para tosse, xarope.
Entrei no quarto sem bater. Ela podia
ter adormecido. Vi que dormia, mesmo. Hesitei.
Não sabia se devia acordá-la. Aproveitei
o tempo da dúvida para olhar. Continua
bonita, até quando a gripe a derruba. Deixei
passar uns dois ou três minutos, pus a mão
em seu ombro, sacudi levemente. Não acordou.
Curvei-me e falei seu nome, baixinho,
ao ouvido. Despertou, mas manteve os olhos
fechados ao sorrir preguiçosamente. Trouxe
meu docinho ou vai só me maltratar com remédio?
Estômago. Para não ter como errar,
eu havia comprado bomba de chocolate e torta
de morango.
Comeu tudo. Parcimônia não combina com
ela, nessas horas. Estômago. A boca lambuzada
de doce, os dedos lambuzados de doce.
Lambeu os dedos e os lábios, só então pediu
água para tomar o remédio. Acho que nem
preciso, curou-me com o doce, mas vou tomar
os comprimidos para não fazer desfeita a
tanta gentileza sua, obrigada.
Os doces fizeram bem, já se lhe via os olhos
mais acesos. Duas jabuticabas. Estava sentada
na cama, de frente para mim, as costas
apoiadas no travesseiro. Segurou minha mão
entre as suas, quentes. Poucas frases na conversa
que tivemos. Agradeceu novamente.
Você escolheu bem, esse xarope é gostoso.
Estômago. Avisei que mudara o horário da
reunião com o cliente. Seria após o almoço,
ela poderia dormir até mais tarde para se recuperar.
Vou descansar, então, mas tomamos
o café da manhã juntos, faço questão. E fica
comigo até eu dormir, vai ser rápido. Puxou
minha mão, para que eu sentasse na beirada
da cama, ao lado dela. Deitou-se e logo pegou
no sono. Estômago.
Ao ver que adormecera, levantei-me. Senti
uma espécie de pudor em continuar sentado
ao seu lado na cama, agora que dormia. Estômago.
Sobre a mesa de cabeceira, os remédios
e as embalagens dos doces, ao lado de seus
óculos.
Quando cheguei ao meu quarto, parei sob o
umbral, sem entrar. Nunca a tinha visto sem
óculos. O hotel não tem bar, hotel modesto
de cidade do interior. Saí para caminhar pela
praça. A noite está agradável, a temperatura
amena. Se ela não estivesse gripada, talvez tivéssemos
ido à pizzaria. Amanhã a reunião
promete ser rápida, encerramos o contrato.
Depois, pegaremos a estrada de volta. Estômago.
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