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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

JÚLIO CÉSAR

São Luís - MA

Chamo-me Júlio,

sou um estudante

de 18 anos, moro

em São Luís do

Maranhão.

Instagram: @joootttaaaa

A VIDA DESABROCHOU EM UMA TELA DE CINEMA

Paulo, você fingia? Os holofotes,

os palcos, os aplausos valeram a

pena? Você guardado no segundo

todo, você desconhecido, você

subitamente sentido. Custaste caro, pouca

revolta, Paulo, pouca revolta. A que se

destinou teu dinheiro, a tua fortuna, a tua

paixão? A paixão, literalmente póstuma,

vai para onde, vai por quê? Só se pode fazer

perguntas frente à morte, são sempre

as mesmas: Como vai a família, quais as

últimas palavras, sentiu dor, estava triste,

talvez feliz, como passou, e agora? E agora,

Paulo, o que deixaste para o que sobrou?

Beber teu sobejo, chorar tua derrota,

pedir uma foto, um autógrafo? Paulo,

você pássaro, você livre, você completo

desconhecimento e conhecido. Ouviste de

um amigo que os olhos fechados enxergam

um pouco mais?

Abrir-te-ão todo, vasculharão tudo, remexerão

os teus segredos e pô-los-ão de

cabeça para baixo, teus órgãos que costumavam

funcionar, tua cabeça de fórmulas,

métodos, tanto conhecimento. Paulo,

de que serviu tua gramática, teus chapéus,

olhos de furadeira, agendas de compromissos,

a trigonometria, os artigos da filosofia,

aquele espelho laranja que tu não

largavas... de que serviu tanto, muitíssimo,

esses castelos, quando nasceu teu último

suspiro?

Como crescerão teus filhos? teu casamento

definhará? tua luz se apagará? para

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onde levarão teu corpo, teu sangue, tua

embolia, tua morte, teu sorriso e fazer

sorrir, tua resistência, tua gentileza, tua

interrogação?

O artista é tão carente, fechado, envelopado,

não tem com quem conversar, o bate-papo

dos finados é a boca dos outros,

deixando-os frescos na lembrança. E se te

esquecem, que resta de ti? uma fala, uma

fotografia, um botão?

Não consigo formular muito mais que

essas perguntas irrespondíveis, pesadas.

E essa seriedade, olhar confuso, cabelo –

pouco cabelo –, perna pendendo no chão

em que te deitas. Paulo, a vida é curta demais,

cortina que se fecha e deixa saudade,

um gesto perdido no ar, um quadro

irreversível, dificuldade de despedir-se, de

entender, de desintegrar o futuro. Paulo,

passou um filme seu, um pouco tarde da

noite, e todos os que estavam dormindo,

levados pelo transporte do mundo, acordaram

sobressaltados como se tivessem

um compromisso com sabe-se lá o quê,

abriram a porta do quarto, juntou-se a

família toda, em silêncio, pretendendo

guardar um segredo, pé ante pé, coração

ante coração, os olhos encheram-se de

lágrimas e ficaram todos a te assistirem,

perplexos, admirados, risonhos, carentes

e tão magnificamente corajosos, como se

assistissem a própria vida que ressurgia

vagarosamente de tua eternidade.

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