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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ROSE BARBOZA
Psicóloga e investigadora.
Em sua trajetória
está atenta aos
movimentos de expansão
nas margens da vida,
sobretudo às narrativas que
reexistem, teimosas e íntegras,
nas vozes das mulheres.
VALE DO ANHANGABAÚ
Para Tula Pilar
Eu sabia que você chegaria tarde. Afinal você
vinha do Taboão. Precavida, retirei o livro
amarrotado da mochila e, sem muita atenção
deslizei para o chão da estação. Essa mania de
ler de cócoras. Em qualquer lugar. Acomodei-
-me, não na leitura que tinha nas mãos, mas
naquele mundo, cheio de volume e velocidade
que fluía e estancava entre as escadarias
da estação Anhangabaú. Aquele mar de gente
aflita. Aquela eterna passagem entre mundos
que se contorcem nas vísceras da locomotiva.
Aquele não-estar que, no entanto, arranca
vida, morte e impermanência da tragédia,
como se fosse possível, no atropelo dos dias,
expiar o trabalho e as manchas das noites
profundas. Aquela gente cansada a fazer do
incansável um dia a mais, tomando a sério a
exigência de sobreviver, teimosamente, sem
negociação.
Há quem possa chegar ao Anhangabaú e se
deter em letras, em mensagens frenéticas trocadas
nos celulares sempre em riste. Mas há
muito absorvendo-nos naqueles vãos intensos:
beijos trocados entre um sem número de
casais, jovens, idosos e recém-conhecidos, um
carteado à dinheiro deslocado à esquerda dos
olhares indiscretos dos urubus (funcionários
de uniforme preto responsáveis pela repressão
que pune e esculacha, sem dó e sem regras),
alguém que grita desafinado uma canção de
Adoniran, competindo sem chance de vitória
com o hip-hop metálico dos alto-falantes.
As veias abertas da cidade, diria um escritor
uruguaio parafraseando a si próprio. Sua
pulsação, eu diria. Se a cidade respira ou se
move em sua deriva frenética depende desse
pulso que se contrai e dilata em gestos descompassados
entre um Repente de Caruaru
e um Slam das Minas que joga a real por um
punhado de moedas. O pulso poético da cidade,
tão visceral quanto as entranhas que,
reviradas pela barrigudinha barata, despejam
um vômito honesto nas imediações. Sim, porquê
o pulso dessa metrópole cheira a suor,
urina, vômito e porra. Fluídos que registram
a espessura das emoções que empurram esses
corpos: para seguir, seguir, seguir, seguir.
Alguém disse algum dia que São Paulo é uma
cidade que nunca para. E eu me perguntava
qual era o combustível que alimentava a besta.
Sangue, suor, urina, vômito e porra. Muita
ureia para manter em constante fluxo o sistema,
para sustentar o movimento desejante de
vida que resiste e não se entrega.
Ali, deslizada e acomodada de cócoras, deixava-me
absorver pelas coordenadas da metrópole,
seus pulmões inebriados de fumaça e
desvario. Numa cumplicidade silenciosa com
aquela gente que, sem saber, fazia parte dessa
que eu era também por teimosia, por não
saber ser de outro modo. Sempre agarrada
ao solo hostil de estações, sempre alinhada à
pulsação da vida ali onde ela é quase suspiro,
equívoco, aglomeração. Uma náufraga, encharcada
em ureia dos pés à cabeça. Mas sem
saber muito bem o quê fazer com o incômodo
sob a pele, com as vísceras reviradas, com os
cacos de poemas dispersos.
Eram quase 16h30 quando você chegou: cartazes
e um tumulto todo seu a gritar da ca-
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