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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SABINA SABINO

São Paulo - SP

NINGUÉM

da fachada, tentando enxergar o sol. Ele

se move. Algo o move, uma força primeva

e imemorial, que seria descrita por um

poeta como o peso da história, da história

de Ninguém. Ele anda com propósito, determinado,

bravo, com cães do inferno no

seu encalço, ele anda por bem e por mal,

entre os corredores. Chega ao seu destino,

uma loja de sapatos chiques. Ninguém

foi sapateiro, fez muitos sapatos.

Ele entra, com ele, uma rajada de vento,

uma rajada grande demais, que derruba

um atendente e bagunça a peruca de uma

senhora. O mundo cintila, olhos piscam

como faróis vermelhos. A velocidade se

torna lenta. O tempo se afogou no vento.

Ninguém se aproxima de um par de sapatos,

apenas um, um específico no fundo

da loja, sem marca, num canto. Ele os

pega na mão, os sente, a textura do couro

nos dedos, os laços cuidadosos, os minúsculos

relevos de cola. Um par de sapatos

de sua confecção nunca estaria em uma

loja como essa, nunca estaria, em nenhum

mundo estaria, mas estava. Ninguém os

abraça, abraça com todo seu ser, para arrebentar

os próprios braços. Eram seus,

completamente seus, ele os fez. Ele sai da

loja, diante do atordoamento geral, ninguém

nota Ninguém. No corredor, senta

no chão e abraça mais forte os sapatos,

começa a chorar. Chorar como ninguém

nunca chorou e como Ninguém jamais

chorará. Ninguém chora alto, um choro

ranhento e feio, um choro de mãe recentemente

orfanada de seus filhos, desesperado

e sozinho. Sentado de índio, abraçado

com seus sapatos, no corredor estéril, de

mármore e granito, com suas luzes frias,

o choro faz eco. Primeiro foi uma criança,

um menino, loiro, olhos azuis, com

um balão e um sorvete de bolas, sabor

morango, que logo se espatifam sobre o

chão quando o garoto começa a chorar. É

o choro de alguém prestes a ser enterrado

vivo. Depois foram outras crianças, uma

menina ali, mais um menino aqui, mas

logo começaram os velhos. Uma senhora,

a da peruca, começou a espernear, a

prantear, a bater com os punhos no chão,

quebrando as unhas postiças. Um por

um, os habitantes do shopping começam

a chorar. Os pais do menino seguiram o

coro, ajoelhando e rogando. O atendente

que caíra no chão ficou por lá, rolando no

frio, choramingando consigo. O shopping

inteiro lacrimejava sua dor, que não era

nova, nem poderia ser chamada de velha,

porque o seu princípio era o princípio de

tudo que lá foi feito e de tudo que lá seria

feito. Estão todos acordados. O sono

se desfez, restou apenas o que um poeta

chamaria do peso da história. O lugar encontrava

o não lugar, o fantasma tomou

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