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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SARA BINATTI

DOS ANJOS

Porto Alegre - RS

OS RIOS SOB A MINHA PELE

Neste meu banheiro minúsculo

não cabe toda a minha ansiedade

da manhã. A minha

cara assustada no espelho

não ajuda e eu fico aqui pensando, me

analisando, me criticando. O que são estas

olheiras e estas rugas e estes cabelos

sem brilho e estes poros abertos e estes

pelos de bigode?

Maldita descendência portuguesa!

E estes rios sob a minha pele?

Hem?! O que?!

Olho mais de perto todas as veias azuis

esturricadas sob a pele branquinha do

pescoço, do colo. Das mãos também! E

das pernas, percebo quando me curvo à

procura de provas! Mas o que é isto?!

Me tornei transparente de repente?! Meu

Deus, estou ficando invisível?!

Também pudera, você queria o

quê? Passou dos sessenta, minha filha, vai

te acostumando! Estes rios sempre estiveram

aí, desde a tua infância. Talvez fossem

só riachinhos, sim senhora e você deixou

que eles fossem se enchendo, se enchendo.

Quem mandou não ter paciência e ficar aí

se irritando por coisas bobas?

O mapa repleto de caminhos azuis está

me assombrando, socorro!

Está demorando muito para sair

do banheiro, está fazendo o número dois?

A pergunta que sai da minha cabeça me

faz resmungar e achar graça.

Está falando sozinha, coitada, se

vê que está velha!

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Sim, estou velha, mas não sou velha.

Que diferença faz?

Estes rios que pensam em transbordar estão

aí mesmo. O que é que eu faço, meu

Deus?

Toma um remédio para a circulação,

minha filha!

Que remédio! O negócio é conviver com

mais isto. Saio do banheiro deprimida,

cansada, triste.

O que? Nem pensar! Trata de sacudir

a poeira dar a volta por cima! Já!

Evito o espelho do quarto porque já vi de

tudo por ali. Me visto com pressa, quero

cobrir com urgência todos os rios, antes

que se transformem em oceano e me afoguem

em sal. Calças compridas, mangas

compridas, gola alta.

Calorão!

Acaba se afogando em sol, minha

filha! Tira tudo, fica nua, vai!

Mas de que foram feitos estes rios? Das

minhas lágrimas?

Deixa de ser boba, você nem chorou

tanto assim!

É, teve aquela vez que... e aquela outra

vez... E no funeral da mãe?

Ok, ok, todos estes momentos foram

sofridos, mas... e daí? Tem mãe que

perde filho, isto sim é que é dor!

Deixo os rios seguirem seu curso sob a

minha pele e saio de casa pensando na dor

de uma mãe que perdeu o filho.

Coitada!

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