You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
MARI BRITO
Porto Alegre - RS
Mari Brito dá
aulas de música,
anda de
bici e cuida
de plantas. Gosta de tarô, livros,
abraços, banho de rio e
açaí. É pianista, nortista, feminista
e escritora amadora.
Curiosa e intensa de nascença.
SOFIA
Desabotoou o casaco e sentiu as
meias se agarrarem ao tapete da
sala, como se celebrassem a liberdade
após um sufocante dia dentro
das botas quase surradas. A lenta coreografia
de suas mãos enquanto desenrolava o cachecol
do pescoço conduzia também o desenrolar
dos pensamentos sobre todas as coisas que
ainda precisava fazer naquele dia. Sofia fixava
o olhar num ponto do sofá enquanto sua
mente revia item por item não resolvido de
sua checklist. Ao fim do gesto que desnudou
seu pescoço, ela já havia lembrado de tudo.
Pendurou as roupas na entrada, jogou a bolsa
no sofá, virou à direita na cozinha, encheu
a chaleira, acendeu uma das bocas do fogão.
Esse ano o frio resolveu fazer birra, teimoso
até outubro, e como não tinha muito o que
fazer, Sofia simplesmente aceitou a mãe natureza
temperamental e nos últimos dias virou
adepta dos chás. Precisava se sentir aquecida
para trabalhar. Ágil, apanhou papel e caneta e
anotou as obrigações daquela noite.
“Tanta coisa, meu deus, e hoje é só segunda-
-feira” comentou para sua fiel companheira
dos últimos meses naquele apartamento: ela
mesma. De volta na sala, se estirou no tapete
colorido que ganhou de presente da mãe em
agosto daquele ano. Era um bom presente de
aniversário para quem passava horas na frente
do computador pesquisando bibliografia,
escrevendo artigo e revisando trabalho dos
orientandos — durante as raras pausas, ela
podia fugir e se jogar no chão e rolar, esticar,
deitar, como uma criança livre de obrigações.
E sim, um tapete de pano colorido devia ser
mesmo um presente incomum para quem faz
trinta e cinco anos, mas devia existir ali alguma
sabedoria materna que Sofia ainda não
compreendia.
Ela olhou para o teto. Fechou os olhos e viu
a lista “email pro Rodrigo pra Carla pra Sandra
revisar o capítulo do Diego responder o
coordenador agendar as salas com datashow
escrever o referencial teórico do projeto”,
abriu os olhos antes que a lista acabasse. Sentiu
em seus músculos a exaustão do primeiro
dia da semana e ouvindo o inabalável silêncio
daquele condomínio suburbano depois das
nove, sentiu vontade de estar cansada com
alguém.
A rotina na universidade era bem corrida e
ela estava sempre envolvida em alguma atividade,
evento, organização, planejamento, em
consonância com seu marte em virgem. Sempre
havia algo a ser feito, e devaneios eram
luxos que ela normalmente não se permitia
ter. Entretanto, no calor daquele tapete de
pano, algo que ela não sabia nomear começou
a surgir de dentro, lentamente encharcando
seu peito, até umedecer seus olhos.
Como uma menina desamparada, foi tomada
por um choro quieto, soluçando em silêncio.
Abraçava a si mesma, buscando um consolo
no próprio toque. Sofia se sentia profundamente
sozinha.
Feito um alarme, a chaleira apitou. Ela se
levantou num sobressalto, voltando à superfície.
E, ríspida, repreendeu a si mesma por
esse momento de fraqueza. Recompôs-se e de
pé, carregou seu corpo exaurido em direção
à bebida quente que regaria o trabalho que a
esperava naquela madrugada.
85