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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

FRAN PIGOSSO

Farroupilha – RS

Fran Pigosso é natural

de Farroupilha,

RS. Professora de

Língua Portuguesa e

escritora, em especial de contos

e minicontos. Também é

colaboradora de uma web

rádio com contos de terror.

@contos_e_contrapontos

ÓBVIO

- Como o ônibus está demorando para chegar…

- Que horas são?

- Deixe me ver…

Coloco a mão em meu bolso, tento pegar o

celular para ver a hora. Meu bolso é apertado

como o que sinto em meu coração neste momento.

Imerjo a mão no jeans da mesma forma

que, em pensamentos, invado a pele escondida

pela camiseta de botões, branca, de Lavínia

depois do expediente. E em minhas ilusões ela

sorri enquanto me enfeitiça com seus olhos.

Mas está difícil puxar meu eletrônico dentro o

tecido. No fundo não quero ver que está perto

da hora de chegar o ônibus. Não era para ser

assim.

- Mandou fazer o celular?

- Já vai. Que horas que o ônibus parte?

- Dezoito e dez.

...

Oito e dez, segunda-feira. Feriado. O Rio de

Janeiro inteiro comemorando o Carnaval e nós

dois, os escravos da vez, escolhidos para recebermos

reclamações das Rações Vitt. Porra, reclamamos

do trabalho o dia inteiro, mesclando

as queixas com comentários carnavalescos.

- Dérick, sabia que eu torço pra Beija-Flor?

Em silêncio grito que ela é delicada e linda

como um pequeno beija-flor. Ah se soubesse

como amo seus cabelos ruivos crespos, na altura

dos ombros. Ela tem um sorriso iluminado

e vulgar, ressaltado pelo batom marrom. Eu a

vejo andando pelo corredor da empresa, admiro

Lavínia sentando ao meu lado e colocando

sua maçã delicadamente ao lado da tela do

computador. Ela coloca seus fones e aproxima

o pequeno microfone de sua boca. Vejo a nós

dois, abraçados, nus, imergindo e voltando na

praia do Flamengo. Afundamos unidos pelos

lábios, salgando nossa saliva. Emergimos buscando

o mesmo oxigênio. O céu está escuro,

chove, ninguém nos vê.

- Dérick, hello? Você torce pra quem?

- Salgueiro.

Salgueiro, a árvore símbolo da imortalidade na

China, mas acho que não faz flor pra você, meu

beija-flor, sugar. Ah como ela me suga a cada

olhar.

- Ninguém liga pra reclamar de rações numa

segunda de Carnaval. Que empreguinho de

merda temos - disse Lavínia, realmente irritada.

- Melhor que nada.

- Sabe, acho que deveríamos montar nosso próprio

negócio, o que você gosta de fazer?

- Cozinhar. Me amarro em cozinhar.

- Hum, não conhecia esse seu dom. Eu também

gosto de cozinhar, mas sou péssima com sobremesas.

Quem sabe termos um foodtruck de cachorro-quente?

Deve ser fácil.

- Deve ser. Vamos conversando sobre isso.

Continuamos falando sobre diferentes opções

de cachorros-quentes, molhos, acompanhamentos,

condimentos até o final do expediente.

Rimos muito. Temos o mesmo canino torto do

lado esquerdo, e eu acho isso muito real.

Às dezessete e trinta nosso chefe chegou para

saber como foi o dia, bêbado, acompanhado

por uma moça que ficou no corredor vomitando

junto ao capacho na entrada. Mal Lavínia

começou a falar, ele gritou “tá bom, saiam pra

eu trancar essa senzala”.

Descemos as escadas, três lances, sem sabermos

o que falar, mas na calçada trocamos adjetivos

como “bizarro, ridículo, loucura, sem noção”

em diante.

Naquele dia esperei ela pegar o ônibus para

casa. Ele chegou, mas a gente não embarcou.

Fomos ver o pôr do sol na praia do Flamengo,

próxima ao escritório.

Sentado na areia, vimos todas as pessoas ao

nosso redor no ritmo da festa. Turistas lotavam

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