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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

BRANCA LESCHER

São Paulo - SP

Cantora, compositora

e poeta. Lançou

em 2016 o livro

de poesias “Fibromialgia”

e dois discos autorais

“Branca” e “Eu não Existo”

em 2017 e 2020. Participa do

coletivo “Senhoras Obscenas”.

SÓ TEM 39!

É

um acontecimento uma mulher calçar

40, 41. Parecido com ser canhoto. Todo

mundo sabe quando a gente é canhoto e

quando tem pés grandes. Canhoto tem um

certo glamour, tem aquela lenda que diz que os canhotos

são inteligentes, na escola recebem carteiras

especiais, mas ser canhoto e ser uma mulher com

pés grandes trazem consequências bem diferentes.

Sou uma canhota que calça 40, às vezes 41, e todo

mundo que me conhece sabe disso e lança sempre

a mesma pérola, ah nossa, seus pés são finos, nem

parece!

Sei que existem milhares de mulheres pelo mundo

que usam sapatos 40, 41, 42, até 43, mas parece

uma ofensa entrar em uma loja e perguntar

se aquele sapato ou sandália que você gostou está

disponível no número 40 (nem ouse dizer 41), é

sempre assim:

- Boa tarde, gostei daquele modelo, tem até que

número?

- Boa tarde, até 39, que número a senhora precisa?

aí eu digo, 40 mas, 39 não me serve, então pode

deixar, obrigada.

- Não, senhora, a forma é grande, vai servir.

Eu não gosto de experimentar a tal forma grande,

porque ela nunca me serve, mas vez ou outra me

deixo levar, ok, tudo bem, vamos ver, e aí como

sempre eu experimento aquela sensação, pela milionésima

vez, de ser uma das irmãs da Cinderela

que não cabiam no delicado e minúsculo sapatinho

de cristal da protagonista do conto de fadas.

É um inferno.

Quando eu tinha 14 anos e já calçava 40 ia com

a minha mãe na Cordobán, numa loja que ficava

no Shopping Iguatemi aqui em São Paulo em um

corredor que se chamava à época mini-shopping.

Lembrando da loja sinto até uma certa melancolia

pois era uma coisa bem sem graça, bege e marrom,

poucos produtos, mas era lá que eu ia com

a minha mãe para mandar fazer sapatos. Se hoje

é difícil achar meu número imagina há quarenta

anos? Nunca vou esquecer de uma mulher muito

alta que entrou na loja enquanto eu experimentava

o meu salto alto que enfim cabia em mim pois

tinham sido feitos sob medida e disse:

- Ah menina, não fique triste com os seus pés, eu

também calço 40, mas isso não me impediu de casar!

E você tem um rostinho lindo! Nunca esqueci

do que ela disse, só esqueci mesmo foi do modelo

do sapato.

Continua a ser um saco ir em loja de sapatos, mas

o pior são as lojas de tênis, pois os modelos femininos

vão até o número 39. Tenho que comprar os

modelos masculinos que são mais largos e não tem

aquelas cores fofas, rosinha, laranja. É muito chato,

muito difícil um que dê certo, mais complicado

ainda é levar o tênis na mala quando viajo, pois

ocupa metade do espaço e eu só uso em extrema

necessidade, basicamente para fazer caminhada.

Outro dia recebi um amigo em casa que perguntou

se eu era parente da Imelda Marcos, a tirana da

Filipinas, corrupta, que quando foi presa em 1986,

foram encontrados no seu closet mais de 1200 pares

de sapatos. Não gostei. Achei ele mal educado,

mas é verdade, basta eu achar um que me sirva que

compro logo de todas as cores e isso faz com que

eu tenha muitos pares mesmo.

Ter pés grandes é uma espécie de trauma, mas não

faço como muita gente que conheço que anda espremida,

com calos, para caber no 39, o maior número

que existe no mercado, com raras exceções.

Eu venho respeitando os meus pezinhos.

37

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