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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
PRICILA MARCHESE
São Paulo - SP
Os cinquenta anos
trouxeram coragem
para eu
publicar meus
textos. Escrever é magico,
transformador, empolgante,
terapêutico…
Fiz cursos de escrita criativa
na Metamorfose e com Renato
Modesto.
“TODO DIA ELA FAZ TUDO SEMPRE IGUAL”
Salta da cama muito cedo para ir ao trabalho.
Toma banho e encharca-se de
colônia, come pão francês com manteiga
e café forte.
Espera o ônibus perto da sua casa. Pontualmente
às 7:30h, o transporte passa, ela entra
na lotação ainda vazia. Senta-se sempre no
mesmo lugar ao lado da janela. Pega o celular
e tira uma dezena de selfies. Faz caras e
bocas. Usa a tela como espelho. Desembarca
às 8:10h.
É a primeira a chegar ao escritório. Pega um
grande e pesado molho de chaves e escolhe
a que está envolta num elástico amarelo e
grudento, marcando aquela que abrirá a porta.
Ao entrar, coloca a bolsa debaixo da sua
mesa. Vai ao banheiro, retoca o lápis de olho,
a sombra e o batom vermelho cintilante.
Senta-se em sua cadeira.
Sobre a mesa, um monitor com teclado encardido.
Do lado direito, uma rosa de plástico
fincada num vasinho empoeirado. Do lado
esquerdo, um porta-lápis com canetas hidrográficas
coloridas.
Cabelo repartido ao meio, preto e muito liso.
Desliza os dedos a todo momento, impedindo
que eles caiam sobre seus olhos, deixando-os
com aspecto ensebado.
Liga o obsoleto computador, dando início ao
seu dia de trabalho numa repartição pública
no centro da capital paulista.
A mesmice de sua função ganha emoção
quando Paulo aparece. Ele passa todos os
dias no mesmo horário para entregar as correspondências
do enorme prédio comercial.
Ao vê-lo entrar, ela sorri, deixando à mostra
seus dentes tortos. O brilho nos olhos é
tamanho que sua arcada dentária passa despercebida.
Corada, agradece no momento em
que enrola entre os dedos uma mecha do seu
cabelo. Vez ou outra ela morde a ponta da
caneta e pisca o olho direito, exibindo seus
cílios postiços.
Cartas entregues. Ele finge não perceber a sedução
da colega.
Ela fixa o olhar em Paulo enquanto ele desaparece
descendo a escada.
Hora do almoço. Vai ao refeitório, esquenta
a marmita em banho-maria. Posta sua rotina
entediante no Instagram em fotos coloridas.
Volta. Digita centenas de palavras até que a
tendinite a pega de jeito.
Hora do encerramento.
Vai ao banheiro e retoca a maquiagem. Capricha
na colônia barata. Passa pela recepção.
- Até amanhã, Paulo. - diz ela com fala atraente.
Ele sorri desconcertado.
Vai à lanchonete em frente ao ponto de ônibus.
Entra. Pede café forte e pão francês. Às
19:30h, pega a condução lotada. Chega em
casa às 20:30h. Toma banho. Faz uma hora
em frente à TV ao mesmo tempo em que segue
os passos de Paulo numa rede social. Ela
sabe tudo sobre ele. Paulo é a obsessão de Joana.
Desliga tudo às 22h. Tem sonhos eróticos
com o rapaz. Ao acordar, sua cama está
encharcada de suor. Ela vai direto pro chuveiro
livrar-se dos sonhos perturbadores.
Não tem coragem de se declarar. Teme dar
fim à fantasia idealizada por ela. Prefere ficar
nas conjecturas do cotidiano sonso.
Salta da cama muito cedo para ir ao trabalho.
Toma banho e encharca-se de colônia, come
pão francês com manteiga e café forte.
Espera o ônibus perto da sua casa…
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