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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

GERALDO MAGELA

DE FARIA

Belo Horizonte - MG

Nascido em

Pará de Minas

(MG). Funcionário

aposentado

do Banco do Brasil

(1971-2001). Formado em

Letras pelo Centro Universitário

(UNI-BH). Revisor de

textos. Reside em Belo Horizonte

(MG).

O ESPELHO DE BRANCA

Muita coisa mudou em menos de

um ano. O falecimento do pai, a

mudança do Juninho para Nova

Zelândia e, depois, a morte da

mãe. Assim, Branca ficaria sozinha no apartamento

de quatro quartos e, por isso, resolveu

vendê-lo e adquirir um de dois, que, para ela,

divorciada e sem filhos, seria o ideal.

A venda para um casal vindo do interior foi feita

de porteira fechada, mas ela fez questão de

levar o espelho do quarto de sua mãe. Aquele

espelho, oval e revestido por madeira trabalhada

pintada de branco, causava-lhe certa

curiosidade. Ficava no quarto da mãe, que não

proibia, mas não gostava que ninguém nele se

espelhasse. Nunca explicou o motivo, nem este

lhe foi perguntado.

Depois de fechar negócio com os compradores,

despediu-se e foi descendo, carregando o espelho

com deselegância, tendo-o à frente de si, até

chegar à garagem, onde se escondeu atrás de

um carro para não se encontrar com a Sílvia,

do 502, que, ao saber da venda do imóvel com

tudo dentro, havia lhe pedido justamente o tal

espelho. Como a vizinha era muito ligada a esoterismos,

a curiosidade de Branca foi ainda mais

atiçada.

E lá se foi a caminho do novo destino. Tendo

morado a vida inteira naquele lugar, queria algo

novo, que representasse mudança em sua vida,

até mesmo radical, e, quem sabe, fazê-la encontrar

um grande amor que a tirasse da solidão em

que se encontrava.

Tudo novo, até o nome do bairro: Cidade Nova!

Ao passar pelo túnel, veio-lhe um momento de

angústia, sentimento que a vida, não raras vezes,

lhe trazia. Mas, ao sair, com o sol se derramando

sobre o carro, percebeu que algo de

muito bom a esperava.

Depois de tudo organizado no apartamento, teria

calma para procurar o espelho. Foi até ele.

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Sentia-se como a criança que ouvia do pai a

história de Branca de Neve e os sete anões; ou

a adolescente ingênua e sonhadora de tempos

atrás; ou até a mulher a quem a solidão prolongada

trouxe um pouco de loucura. Mas estava

resolvida. Assim, meio envergonhada, perguntou-lhe

se era realmente bela, como todos diziam;

e, se for verdade, por que vivia tão só.

Sentiu um burburinho com vozes falando ao

mesmo tempo e, com certa dificuldade, obteve

as respostas. A primeira, a de que era, sem dúvida,

muito bonita. A outra se explicava pelo fato

de os homens terem medo de mulheres muito

bonitas e, se, aliada à beleza, estiver a inteligência,

aí o receio será maior. E ainda mais, era muito

seletiva e não sabia escolher o seu par. Dessa

forma, o espelho reproduzia o que a sociedade

pensava dela. Como estava muito cansada, foi

dormir. Demorou um pouco a conciliar o sono,

cansada e cismada com o tal espelho.

No outro dia, antes de preparar o café, caminhou

até a moldura novamente. Queria uma

resposta que lhe desse esperança. Foi aí que

notou, estupefata, que o espelho agora tinha a

figura de um pequeno homem, formado apenas

pelos traços do corpo, mas com um rosto contendo

nariz, boca e olhos. Lembrou-se do Bonequinho

de O Globo. E o hominho disse que não

o temesse e ficasse à vontade.

Branca insistia em duas respostas: o porquê de,

aos 53 anos, tão bonita, corpo esbelto, cabelos

louros e olhos verdes, viver tão só? O espelho

confirmou o que as vozes disseram na primeira

vez que o procurou: “Um dos motivos você

já sabe, mulher bonita e inteligente. Também é

muito seletiva e, embora a beleza inquestionável,

já estaria em idade que não permite muitas

escolhas. Um exemplo das opções erradas:

quando se casou com o Alcides, o outro pretendente

era o Rodrigo. Nem um dos dois a merecia,

nem dava a impressão de amor ‘infinito

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