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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

ROSE BARBOZA

VALE DO ANHANGABAÚ

traca algo que tinha a ver com povo, trem e

distância. Esbaforida, largou a bolsa enorme

no chão. Limpou o suor da testa e sem cerimônia

decretou: “– Vamos, o tempo urge”.

Ele urgia. Porquê nunca há nada que não seja

urgente em São Paulo. Nunca há nada que se

possa deixar para amanhã sem consequências

nessa cidade que tem como designío se voltar

contra si mesma.

São Paulo tem como profissão de fé o atraso.

Estamos sempre a um passo, mas nunca

somos pontuais. O centro do nosso mundo

urgia a cada manhã e a cada final de tarde, no

vagão lotado e na fila do Self, o kilão obsoleto

enxotado para fora do novo normal. Ah, se

você soubesse! Mas, naquele dia de atrasos e

urgências, paradoxalmente esse nosso futuro

era ainda impensável.

Saímos com passos rápidos, como quem busca

respirar retendo ar suficiente nos pulmões.

Havia a rua, o mar de gente, um dia atípico de

sol no inverno rabugento e, a distância a ser

percorrida. Havia a pressa porquê também é

o quê somos. E enquanto avançávamos, eu

me deixava extraviar impregnada na paisagem

difícil: o Municipal, o entramado de ferro

e concreto imponente do viaduto, aquele

shopping Light que nunca decifrei e, xs habitantes

daquele mundo, insistentes em desacomodar

certezas de nossos olhos e mãos.

À frente você era só sorrisos. Plena nessa realização

urbana que te fazia fazer casa de tantas

avenidas. Lembro-me de que você chegou

e, sob a marquise, uma aclamação afetiva te

recebeu como quem acolhe um orixá. Ali, reconhecida

e recebida, você era um dos gestos

mais fortes que testemunhara nesse dia: uma

mistura de respeito e dignidade a reivindicar

vida com a cabeça no filho Pedro, um corpo

negro exposto às duras da periferia; na filha

jovem, Samantha, cobiçada por uma pá de

malandro; com Dandara, a caçula e xodó.

Enquanto sorria e distribuía cumprimentos

foi operando no centro da marquise a transmutação,

ou melhor, a tua conversão em Carolina

Maria de Jesus. Cabelos sob um lenço,

vestido branco e, nas mãos, esse gesto que era

o teu tudo: cadernos de infância metamorfoseados

em diários. Tu, Carolina. Carolina

que era tu. Em poucos minutos, a personagem

que você encarnava fazia reverências,

enquanto você cuidava da mágica. Na tarde

de hálito quente que o pulso da cidade resfolegava,

curiosas e demais foram formando

a audiência atenta que decifrava nos teus dizeres,

os dizeres de Carolina. Da artéria da

metrópole para a fome amarela. Da frente do

edifício Matarazzo para o quarto de despejo.

Você, nossa griot urbana a desfiar com magia a

miséria que nos consome, para além da fome,

dos tiros, do suor e do sangue. A questionar

a lida, a ureia e as veias abertas. O aplauso

e a celebração ainda te interrompiam, quando

você retornava à transmutação. Carolina

que você era, Tula Pilar. O tempo urgia. “–

Vamos!”. Também estávamos ali para uma

marcha, a poucos passos da concentração, no

dia 25 de Julho, dia de Teresa de Benguela, a

nossa marcha, das mulheres negras. A última

marcha que estive ao seu lado.

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