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Traços 2

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ANO 1

Nº 2

JUNHO/JULHO

2021

SAM MOURA

Rio de Janeiro - RJ

Sam Moura é PhD em

Direito, mãe da Dalila,

e psicanalista em

formação. Se achou

quando aceitou que adora se

perder, e que palavras são a

melhor forma de se deixar ir.

@dumbigopralem

CREME DE PAPAIA

Eu tenho que ir.

Foi o que pensei enquanto olhava o

meu guarda-roupa sem ver as roupas

diante de mim. Fazia um mês que tinha

retornado da Inglaterra e não tinha mais

motivos para não encontrar Diana. A Diana era

a minha melhor amiga. Era tão minha amiga,

que eu pude contar quando vi na noitada o seu

namorado que lhe havia dito que estava doente.

Tão amiga que pude fazer isso a uma semana de

me mudar para a Inglaterra. Tão amiga que por

muito tempo me preocupei com ela e me questionei

se havia feito a coisa certa. Não acharia

sempre motivos para não ir, e não poderia não

ir sem motivos. Isso seria acabar com a amizade

e amizades não se terminam. Peguei o vestido

marrom, prendi o cabelo em coque, calcei as

havaianas e fui.

Quando cheguei ao café, logo a avistei. Não por

mérito meu. Todos a avistavam. Ela, mais loira

do que nunca, estava de pé, pulando, e acenando

me chamava com uma euforia destoante. O

lugar era pequeno demais para ela. Aliás, era

comum ela exceder os espaços. Os olhares se

voltavam para mim e de repente pensei que talvez

eu também tivesse diminuído e me tornado

pequena demais para ela. Encolhida, segui firme

ao encontro da minha amiga. Ela me recebeu

com um abraço tão forte que uma pontada de

esperança invadiu o meu coração e eu acreditei

que talvez a distância pudesse ter sido só física

mesmo.

Sentei e ela já discursava sobre o creme de papaia,

que era a melhor coisa daquele lugar. Eu

tinha que pedir. Ela duvidava que na Inglaterra

houvesse creme de papaia. Eu devia ter sentido

falta. Emendou dizendo como era bom uma

amizade como a nossa. Depois de tantos anos

podíamos nos encontrar e falar sobre creme de

papaia. Isso era intimidade.

Eu sorri pensando que não gostava de creme de

papaia e não lembrava de um dia ter gostado.

Mas não tinha certeza. Talvez tivesse gostado,

talvez costumasse comer e não lembrava. Pedi

uma água e um café e ela não pareceu notar que

eu não (mais) me entusiasmava com o creme.

Desandou a falar. Seu monólogo girou em torno

da sogra, que se dedicava a infernizar a sua

vida; da cunhada, que vivia para competir com

ela; e do irmão, que por ser super dotado, não

se interessava pelas coisas da família.

Tudo dela me constrangia: a aparência, o tom,

os gestos expansivos, o conteúdo da conversa.

Ela. Toda.

Envolvida por sua própria voz, continuava.

Agora reclamava de como era duro passar o

tempo a ensinar ao novo parceiro como um relacionamento

deve ser.

Pelo menos ele se esforça. Não é como o outro.

Mas a última briga havia sido desgastante demais.

Ela teve que argumentar que ele não podia

largar tudo e virar piloto do nada. Que ele

tinha que agir com ela como gostaria que ela

agisse com ele. Como ele se sentiria se ela resolvesse

largar tudo e virar cantora?

Entende?

Ela me perguntava, como se perguntasse para

todo o café. Todos os pares de olhos em mim.

E eu não entendia. Não entendia nada daquilo.

Para mim, ela estava falando outra língua.

Nada daquilo me interessava. Ao mesmo tempo,

não me animava a mudar o rumo da conversa,

contar sobre mim, sobre a minha vida e

os meus pensamentos. Não conseguia encontrar

nenhum gancho, nada que me fizesse supor

que ela se interessaria por qualquer coisa que

eu pudesse dizer. Não entendia como havíamos

sido tão próximas e não sabia dizer o que ti-

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