Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SABINA SABINO
São Paulo - SP
NINGUÉM
forma humana, a ausência reparada, fundida
com o mundo que não a aceita. O
não se tornou sim, mas o pecado era infinito,
a dor insólita. Os chorões foram se
congregando, andando aos poucos, cambaleando.
Pais de família que nunca viam
seus filhos, esposas entediadas, adolescentes
bêbados, crianças velhas, seguranças
e faxineiras, indo em direção a Ninguém.
Ninguém, como bom profeta os acolheu,
acolheu-os em sua dor, em sua angústia
excruciante que torturava os tímpanos e
as pupilas. Deu-lhes o apocalipse de todos
os dias, a revelação suprema do cotidiano,
o que um poeta chamaria do peso da
história. Os chorões fizeram uma roda em
sua volta, Ninguém, ainda abraçado com
seus sapatos, levantou-se. Eles foram para
cima dele, o invadiram, quase o fizeram
em pedaços, mas não. Levantaram-no
ainda mais, como fazem os fãs com um
rockstar que se joga na plateia, boiando
num mar de gente, começou a procissão.
A procissão foi pelos corredores, singelamente,
em marcha fúnebre. Um adolescente,
com uma garrafa aberta de sei-lá-
-o-que na mão, os acompanhava de longe,
tinha uns dezesseis anos, cabelos longos
e mal cuidados. Gritava até os pulmões
arderem: "Joga ele no rio! O que foi achado,
deve ficar perdido, o que foi feito errado,
deve ficar certo!!! Chama-me de João
Batista e joga ele no rio! Joga ele no rio!".
A procissão continuou, imperturbada,
para fora do shopping. Ninguém em cima,
ainda chorando seu choro feio e remelento.
Os chorões levam-no pela passarela,
descem a rampa de entrada e atravessam
a marginal, onde todos os carros param
em fila, dando passagem, os motoristas
todos chorando. A cidade toda chorava,
o estado e logo a nação, uma realidade inteira
chorava um choro feio e remelento,
um lamento duma condição ignóbil, um
lamento pelo próprio sonho.
Os chorões descem às margens concretadas
do Pinheiros.
Quando eu cheguei, eles já tinham ido
embora, voltaram aos seus afazeres. Voltaram
aos seus trabalhos, lojas e quaisquer
distrações da dor do tempo, do peso
da história, a terrível simetria assimétrica
uma vez quebrada, agora restabelecida.
Estão todos acordados. O sol se esconde
atrás dos prédios na outra margem, erguendo
uma enorme sombra que engolfa
o mundo e foi lá, naquela escuridão pontual,
onde eu me sentei para observar o
corpo de Ninguém boiando no rio.
124